Blimunda N.º 12 - maio 13

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7/30/2019 Blimunda N.º 12 - maio 13 http://slidepdf.com/reader/full/blimunda-no-12-maio-13 1/80  N.º 12  M  AIO 2013  F UNDAÇÃO OSÉ  S  ARAMAGO

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 N .º 1 2  M  A I O 2 0 1 3  F U N D A Ç Ã O J O S É  S A R A M A G O

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Gabo.  Os escritores dividem-se (imaginando que aceitem ser assim

divididos…) em dois grupos: o mais reduzido, daqueles que foram capazes

de rasgar à literatura novos caminhos, o mais numeroso, o dos que vão atrás

e se servem desses caminhos para a sua própria viagem. É assim desde o

princípio do planeta e a (legítima?) vaidade dos autores nada pode contra

as claridades da evidência. Gabriel García Márquez usou o seu engenho para

abrir e consolidar a estrada do depois mal chamado “realismo mágico” por

onde logo avançaram multidões de seguidores e, como sempre acontece,

os detractores de turno. O primeiro livro seu que me veio às mãos foi

Ninguém escreve ao Coronel , logo a seguir Cem Anos de Solidão e o choque

que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas.

Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração,

e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança

de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus

olhos. Na minha vida de leitor foram pouquíssimas as ocasiões em que

uma experiência como esta se produziu. Se a palavra traumatismo pudesse

 ter um significado positivo, de bom grado a aplicaria ao caso. Mas, já

que foi escrita, aí a deixo ficar. Espero que se entenda.  José Saramago

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Blimunda é a revista literária digital da Fundação José Saramago. Cumprindo

um dos objectivos da Fundação desde o seu nascimento, pretende-se

com este projecto, e fazendo uma analogia à Blimunda de Memorial do 

Convento , abrir uma passagem através da qual se possam olhar as questões

da literatura, dos livros e da promoção da leitura. A Blimunda  tem uma

periodicidade mensal e é distribuída gratuitamente. Através de uma

parceria com a Cátedra José Saramago de Tradução, da Universidade deBarcelona, a Blimunda será publicada em português e castelhano.

Em vigor desde a fundação da revista, em junho de 2012. Publicado em

cumprimento do n.º 3 do Art. 17.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13 de janeiro).

Estatuto editorial

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Griel Grcí Márquez no Prec

N o ano quente de 1975, Gabriel García Márquez aterrou em Lis- boa e aí se manteve durante duas semanas. O resultado da estada, ondeconviveu com escritores, descobriu a melhor eijoada da sua vida e sus-peitou de que a conta da electricidade havia de dar cabo da revoluço,surgiu nas páginas da Alternativa, a revista que o próprio Gabo undarauns anos antes, na sua Colômbia natal. Quase quarenta anos depois, o

 jornalista Ricardo J. Rodrigues percorreu a rota entre Lisboa, Bogotá eCartagena para descobrir o rasto das reportagens portuguesas de Gar-

cía Márquez, unicamente disponíveis nas velhas edições da Alternativa guardadas na Hemeroteca de Bogotá. A ediço recente das reportagense ensaios do autor, Gabo Periodista (ediço colombiana da FundaciónNuevo Periodismo Iberoamericano), no inclui os relatos portugueses,o que az do trabalho de Ricardo J. Rodrigues, publicado no  Diário de Notícias, um documento que ultrapassa a curiosidade bibliográca parase armar como contributo essencial para o estudo da obra do Nobel co-lombiano. Um excerto: «Há uma prudência enorme nos textos de Gabosobre Lisboa, o escritor quase anuncia que a Revoluço tem os dias con-tados, que a Europa, os Estados Unidos e as divisões internas arrastaro

inevitavelmente o país para longe da sua essência». García Márquez temeo rumo que as elites esto a tomar, mas encontra nobreza no povo. «Todaa gente ala e ninguém dorme, às quatro da manh de uma quinta-eiraqualquer no havia um único táxi desocupado. A maioria das pessoastrabalha sem horários e sem pausas, apesar de os portugueses terem ossalários mais baixos da Europa. Marcam-se reuniões para altas horas danoite, os escritórios cam de luzes acesas até de madrugada. Se algumacoisa vai dar cabo desta revoluço é a conta da luz.» nhttp://www.dn.pt/revistas/nm/interior.aspx?content_id=3189670

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uM Pís à deriv

E l Malpensante é uma revista colombiana com dezassete anos dehistória e um índice de artigos, temas e colaboradores invejável. Numdos seus números mais recentes, dedicou o tema de capa a Portugal,aproveitando a presença do país como convidado central da 26.ª ediçoda Feria Internacional del Libro de Bogotá e reuniu textos sobre a litera-tura, o cinema, a caricatura ou a música, para além de colaborações dealguns autores portugueses como André Carrilho ou Valter Hugo Me.Nesse número especial, Pedro Rosa Mendes publica o texto «PortugalComo  fnis terrae», anteriormente apresentado na revista  Ler  (Janeiro2013) e agora disponível para os leitores de língua castelhana. O ensaio éum retrato implacável do Portugal contemporâneo, analisado com rigor,rieza e um olhar histórico que recua aos tempos de Salazar para enten-der atitudes e perspectivas que têm denido o rumo (ou a deriva) a quetemos assistido com mais dureza nos últimos tempos: «Aquí estamos,entonces, en una ruptura geográca y ya no solo económica: Portugalya no es el sur emergente y vigoroso de la Europa unida, buen alum-no aplaudido en el club de los «grandes». Qué irreal recordar cuando,apenas hace dos años (¡!), el entonces primer ministro portugués, el so-

cialista Sócrates –«mon amijôzê»–, era el invitado de honor de NicolasSarkozy en un simposio sobre «Nuevo mundo, nuevo capitalismo» enParís... Hoy Portugal es la melancolía del n de la tierra de un nuevoMezzogiorno mediterráneo, cuya existencia no afige particularmente alos núcleos decisivos europeos.» nh t t p : / /www . e lma l p e n s a n t e . c om / i n d e x . p h p ? d o c = d i s p l a y _  contenido&id=2819&pag=1&size=n

 f u n d a ç ã o  j o s é  s

 a r a m a g o

 T h e  j o s é  s a r a m a

 g o  f o u n d a T i o n

 c a s a  d o s  b i c o s

 O n      t  m O  

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  ua d o s  Ba ca l h oe i r o s,  L i s b oa

 te l : (   3 5 1 )  2 1 8  8 0 2  0 4 0

 w w w. j o se sa ra a g  o. o r g 

 i    o. p @ j o se sa ra a g  o. o r g  

 C O m O  C      

   t t  n      

 me  r o   u b wa y  te r re i r o d

 o  Pa ç o 

(  L i  ha a z u l  B l ue  L i e )

  u  o ca r r o s  B u se s

  2 5 ,  2 0 6,  2 1 0, 

 7 1 1,  7 2 8,  7 3 5,  7 4 6,  7 5 9,  7 7 4

 7 8 1,  7 8 2,  7 8 3,  7 9 4

 S e g  u n d a  a  S e x t a

 M o n d a y  t o  F r i d a

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 1 0  à s  1 8  h o r a s

 1 0  a m  t o  6  p m

 S á b a d o

 S a t u r d a y

 1 0  à s  1 4  h o r a s

 1 0  a m  t o  2  p m

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Tesouro foToGráfico

A história de Vivian Maier podia ser enredo de lme ou roman-ce. Nascida em Nova Iorque, em 1926, ganhou a vida tomando conta decrianças e começou a otograar nos tempos livres, no início da décadade 50, sem imaginar que as suas otograas haveriam de correr mundo.Nas ruas de Nova Iorque e de Chicago, para onde se mudou em 1956,captou momentos, quotidianos, ruas e sobretudo pessoas, rostos e ges-tos que cristalizaram nos sais de prata deixando um espólio monumen-tal e intrigante que viria a ser descoberto em 2007, quando John Maloo 

passou por uma venda de garagem, em Chicago, e comprou uma caixacheia de negativos que ninguém sabia de onde tinham vindo. E oi JohnMaloo que se dedicou a descobrir quem teria registado aquelas ima-gens, conseguindo apurar alguns actos sobre a vida de Vivian Maier, aama que otograou gente pelas ruas das cidades por onde passou e quemorreu pobre aos 83 anos, em 2009, deixando uma herança imagéticade valor incomensurável. Acompanhando a exposiço da sua obra nasala San Benito, em Valladolid, Elsa Férnandez-Santos escreve sobrea otógraa e a sua obra no diário espanhol  El País: «Maier no revelabasus carretes, no se lo podía permitir. Solo tomaba otos sin descanso y

sin que aparentemente le importara el resultado nal. También colec-cionaba libros de arte y las esquelas de los periódicos. De una de ellassacó el relato de una de sus películas en Super 8. Es la historia de unamadre y un hijo asesinados. Maier ue con su cámara y rodó primeroel supermercado donde la madre trabajaba, luego la casa donde vivíacon el hijo, y así, uno a uno, todos los lugares a los que aquellas pobresalmas jamás volverían.» nhttp://cultura.elpais.com/cultura/2013/04/20/actualidad/1366471251_608940.html

Músic conTr o PreconceiTo

D esde que o presidente da Comisso dos Direitos Humanos eMinorias da Câmara dos Deputados, Marcos Feliciano (PSC/SP – Par-tido Social Cristo, de centro-direita), decidiu pronunciar-se sobre ahomossexualidade como se de uma doença se tratasse, o Brasil tem vi-vido intensamente um debate político sobre os direitos humanos am-plamente participado por personalidades ligadas ao mundo artístico ecultural. Agora que a Câmara dos Deputados se prepara para discutira proposta do deputado e pastor evangélico Joo Campos que prevê a

instauraço de medidas para ‘curar a homossexualidade’ (so palavrasdo deputado e pastor), a cidadania procura levar mais longe a sua mobi-lizaço, impedindo uma regresso civilizacional sem precedentes numpaís que tem vindo a destacar-se no panorama internacional pelo seudesenvolvimento e crescimento económico. A Coordenadoria Especialda Diversidade Sexual/CEDS-RIO organizou um espectáculo ao qualaderiram vários artistas, de Caetano Veloso a Preta Gil, passando porZélia Duncan ou Fernanda Abreu, e que brilhou no Circo Voador, noRio de Janeiro, no passado dia 15 de Maio. No jornal O Globo lê-se: «Se-gundo Tuvesson [da Preeitura do Rio de Janeiro], nada oi por acaso.

Nem a escolha do local para sediar o evento, o velho Circo Voador (es-paço echado pelo poder público em 1997, depois de um entrevero entreo vocalista dos Ratos de Poro, Joo Gordo, e o ento recém-eleito pre-eito Luiz Paulo Conde), nem a do elenco (composto por artistas noto-riamente ligados, seja nas canções ou na atuaço política, à deesa dasliberdades individuais) nem a data, que está entre o dia 13 (da Aboliçoda Escravatura) e o 17 (Dia Internacional contra a Homoobia).»nhttp://oglobo.globo.com/cultura/show-no-circo-voador-mobiliza-artistas--contra-preconceito-8333998

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no corção do século XX

Os Livros de Horas cumpriam a unço de re-colherem num mesmo objecto portátil as orações dadevoço crist iluminadas por imagens que acom-panhavam as práticas individuais dessa devoço.Séculos passados, esses livros so uma onte icono-gráca preciosa para o conhecimento de certos quo-tidianos medievais e renascentistas, o que amplia oseu horizonte muito para além da unço religiosa.Frans Masereel mantém parte desse conceito asso-ciado aos Livros de Horas, e no terá sido por acasoque semelhante título se manteve constante em qua-se todas as edições desta obra, um livro de pequenasdimensões cujas 167 imagens, sem nenhum texto,compõem uma narrativa onde acompanhamos osgestos e as práticas já no de uma devoço indivi-dual, mas antes de uma vivência coletiva, por vezes atravessada pelasolido.

Exímio na arte da gravura, no oi tanto a técnica que ez de FransMasereel reerência imprescindível na arte europeia do século XX, mas

antes a expressividade das composições, o movimento, o renesi queconseguiu representar talhando a madeira e o intenso diálogo com o ardo tempo, a época em que viveu e onde interveio activamente, acto aque no so alheios os seus trabalhos. Em Mi Libro de Horas, uma obrade 1919 (agora reeditada pela Nordica Libros para o mercado de línguacastelhana) conrma-se a apreciaço de Stean Zweig sobre a arte desteautor: “seria possível reconstruir o mundo contemporâneo unicamentea partir das gravuras de Masereel.” A narrativa que acompanha o perso-

leituras do mês

 Sara Figueiredo Costa

nagem central nas suas deambulações pela vida, da che-gada à cidade onde todos os uturos prometem aconteceràs ugas bucólicas em direcço a um campo onde Wal-den parece ecoar, das promessas implícitas de elicidadeà morte a prolongar-se numa espécie de Dança Macabra,é a narrativa de tantas vidas possíveis nesse torvelinhode invenções, mudanças políticas e desilusões estrondo-sas que oi a primeira metade do século passado, repre-sentada pela Berlim do pós-I Guerra onde decorrerá aacço de Mi Libro de Horas. No traço e no ritmo de FransMasereel convivem a antiga tradiço da xilogravura e omodernismo cosmopolita onde ecoam as vanguardas li-terárias e pictóricas do século XX. Essa ponte entre umatécnica antiga, um processo com raízes na Idade Médiaque no soreu grandes mudanças ao longo do tempo, e

o olhar moderno e, a espaços, uturista é um dos elementos refectidospor Thomas Mann no texto que serve de preácio à ediço de 1926 e quea Nordica, atentamente, reproduz.

Se a narrativa de Mi Libro de Horas pode situar-se na Alemanha do

pós-I Guerra, aquele tempo de euoria e esperança trazido pelo m doconfito, ainda sem as antevisões do inerno que estaria para chegar unsanos mais tarde, as suas reverberações so as de uma obra que, partindode uma época e um contexto identicáveis, se estendem para aquela ca-tegoria de intemporalidade graças à sublime refexo sobre as esquinasda chamada condiço humana. E essas, Masereel esculpia na madeiracom sabedoria e aguda atenço ao mundo, permitindo a sua reproduçopelos tempos vindouros.n

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Gab Gaa Mcóa y rptaj 

 Editorial Oveja Negra (9.ª edição, 1982) 10.000 pesos (cerca de 5,00 €)Comprado no alarrabista Biblíoflos-Car (Bogotá)

Os textos reunidos neste pequeno volume oramtodos publicados entre 1954 e 1955, no representando

seno uma pequena parte do trabalho jornalístico e cro-nístico de Gabriel García Márquez. No entanto, a ediçoda Oveja Negra pode ser uma boa orma de chegar a esta aceta da es-crita do Nobel, onde se revelam, a par dos preceitos jornalísticos, carac-terísticas comuns à sua escrita literária e onde surgem, com uma orçaquase romanesca, personagens que, sendo reais, podiam pertencer àlonga linhagem dos habitantes de Macondo.

Quem encara o realismo mágico como mero artiício literário, meca-nismo deslocador da verosimilhança para os terrenos resvaladiços dosobrenatural, no terá lido as reportagens eitas por Gabo em La Sierpe,

na costa colombiana, onde uma mulher vinda de Espanha há ninguémsabe quanto tempo teria assumido uma espécie de imortalidade atra-vés dos seus discípulos, deixando-lhes os segredos das curas, dos sor-tilégios e das muitas intervenções inexplicáveis que praticou em vida.La Marquesita, assim era conhecida a espanhola com dotes imortais,protagoniza os primeiros textos desta antologia, mas a galeria de per-sonagens estende-se ao veterano da Guerra da Coreia que no percebeporque era um herói matando gente no estrangeiro se no pode azero mesmo na sua terra, o engenheiro colombiano que passou três dias

alf arrabista

 Sara Figueiredo Costa

na selva com o piloto norte-americano que despenhou o avioonde ambos seguiam ou Alvaro Mutis, a propósito da publi-caço de Los Elementos del Desastre. Apesar do curto intervalocronológico, neste livro cabem ainda os textos sobre a bombade Hiroshima, com o testemunho de um padre Jesuíta que seencontrava perto do local onde o desastre provocado aconte-ceu, as reportagens eitas no Vaticano, acompanhando o PapaPio XII (incluindo o texto sobre o dia em que Papa recebeu a

visita de Soa Loren: “El Papa dio audiencia a Soa Loren.Se prohibieron las otos”), e as reportagens de Genebra, numcenário que podia ser o de qualquer lme sobre a Guerra Fria. O jor-nalismo de Gabo é cauteloso no modo como trata os dados e as ontes emuito claro na descriço dos actos, dos contextos e dos intervenientes,mas o escritor revela-se sempre que há oportunidade para destacar umpormenor mais risível, apontar um episódio que está mesmo a pedirironia ou revelar o deslumbramento perante uma determinada mani-estaço cultural ou política. No há contradiço, porque os dois níveisdo discurso so perceptíveis, mas é possível que uma imprensa maisseca e menos dada ao olhar participativo no apreciasse, hoje, este gé-nero de discurso. Apesar disso, se para os leitores de García Márquez oseu trabalho jornalístico é um complemento à vasta obra do autor, parao património escrito da humanidade estas crónicas e reportagens soum documento precioso de época, no tanto pelo conteúdo actual queregistam, mas antes pelo modo como o azem, denidor de um certo

 jornalismo e de um momento em que escrever sobre o mundo para aspáginas eémeras da imprensa periódica era tarea cumprida com es-mero por escritores da qualidade de Gabo.n

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a ouel Ribeiroán Santamaría

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 Fotografa de Daniel Mordzinski 

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g a b o

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Perdidos n solidãod Terr de Go

 Raquel Ribeiro, em Aracataca* 

P

ARA os colombianos, é impossível imaginarum mundo sem Gabo e sem Macondo, tal comoé impossível imaginar esse mesmo mundo cria-do por ele. Chegámos a Aracataca à procura dolegado dos García Márquez (ou dos Buendía),

mas descobrimos que nem cem anos poderocontar (e conter) o ímpeto desta revoada. Ouve-se o apito de umcomboio imaginado perdendo-se na curva. Sabemos que so duase meia porque “só o apito de um comboio amarelo e poeirento, queno leva ninguém, interrompe o silêncio duas vezes por dia”, es-creve Gabriel García Márquez em A Revoada (1955). Sabemos queso duas e meia porque ainda no escutámos o “trovo das três datarde”. Chegará: é uma esperança que reverbera ao longe, enquan-

to o calor nos escorre em suor pelo limite desenhado da testa.É Inverno, é Janeiro e em Aracataca, na província de Magda-

lena, pantanosa e bananeira, a 60 quilómetros da costa do Caribecolombiano onde nasceu o Nobel, o termómetro marca quase 40graus. No que o estejam, de acto. É bem provável que nem pas-sem dos 30. Mas se o termómetro é em Macondo deverá marcar40 ou mais, porque sentimos aquele calor estagnado na pele e so- Casa Museu Gabriel García Márquez 

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nhamos com a rescura do corredor das begónias. “Às vezes nopodíamos respirar por causa do cheiro quente dos jasmins – disse[a me, Luisa Márquez], olhando para o céu deslumbrante, e sus-pirou com toda a alma. – No entanto, o que mais alta me ez desde

ento oi o trovo das três da tarde.” Esperamos ansiosamente porele para amansar o sol, tal como Gabo o descreveu em Viver paracontá-la (2002), o tal “estampido único que nos despertava da sestacomo um desabar de pedras”.

Mas no vem. E o comboio amarelo também no. So apenasrecordações literárias, daquelas que guardamos no baú das me-mórias sonhadas e que nunca pensámos viver. Vivê-las, assim, econtá-las, cada um à sua maneira, como estas de Gabo que des-

crevem a estaço de comboios de Aracataca: “A minha me e eucámos desamparados sob o sol inernal e toda a tristeza da aldeianos caiu em cima. Mas no dissemos nada um ao outro. A velhaestaço de madeira e telhado de zinco com uma varanda corridaera uma espécie de verso tropical das que conhecíamos peloslmes de cowboys. Atravessámos a estaço abandonada, cujos la-drilhos começavam a partir-se devido à presso da erva, e mer-gulhámos no marasmo da sesta, procurando sempre a protecçodas amendoeiras.” Nós também, descemos a lomba em direcço àcasa onde nasceu García Márquez e que hoje é a sua Casa-Museuem Aracataca.

Caçadores de mitos

N

ãO somos os únicos nem os primeiros oras-teiros, caçadores de mitos, a chegar a esta ci-dade. Outros vieram, antes de nós, atrás dos

lugares literários de García Márquez, atrás dolegado da amília Buendía, das histórias do co-ronel Aureliano, dos herdeiros de Remédios, a

Bela, ou de perceber em quem Gabo se inspirou para criar Rebecae azê-la comer cal das paredes e a terra quente cheia de vermes. O

 jornalista colombiano Alberto Salcedo Ramos viajou a Aracatacaà procura de Macondo e publicou a aventura na  Revista Soho, em2012. Também ele tem o “seu” Macondo: sabia que se echasse os

olhos e alguém lhe lesse passagens de Cem anos de solidão (1967),“sentiria que me nomeiam os meus parentes próximos, sentiriaque me conduzem através de caminhos amiliares”, escreve. “Ve-ria a Úrsula Iguarán como a personicaço da minha bisavó: ce-gueta, indestrutível.”

É assim para todos os colombianos: é impossível imaginarum mundo sem Gabo e sem Macondo, tal como é impossível ima-ginar esse mesmo mundo criado por ele. Em Aracataca, o povodiz a Alberto Salcedo Ramos: “Vocês querem saber quem era atal Rebeca que comia terra? Uma senhora chamada Franciscaque vivia na rua Monseñor Espejo.” E nós, mesmo no saben-do quem seria Rebeca nem Fernanda nem Remédios, escutamoslongas discussões sobre que lho, neto ou bisneto da estirpedos Buendía casou com a primeira Remédios. A bela? Essa eraa segunda. Terá sido Aureliano. José Arcádio? No, Aureliano

g a b o

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primeiro. Aureliano José? No, o coronel. As personagens estovivas na memória dos colombianos, discutem-nas como se lhessoubessem os passos, a cor dos cabelos, as manchas na roupa,como se lhes adivinhassem o uturo, ainda que estejam apenas

guardados nas páginas dos livros.Tanto assim é que o Ministério do Turismo da Colômbia re-

correu ao imaginário de García Marquez para traçar itineráriosturísticos literários, baseados nos seus livros. Se em Dublin se a-zem os percursos de Joyce; se em Paris se podem seguir os passosde Picasso, em Itália os de Visconti e em Cuba os de Hemingway,também podemos seguir o trilho de Gabo através da triste soli-do desta costa caribenha da Colômbia, tentando compreender

(em vo?) como oi possível esperarmos tanto tempo para que estemundo voraz e mágico se materializasse, enm, diante dos nossosolhos, para lá do sopé da Sierra Nevada.

Porque entre o “realismo mágico” dos livros de Gabo e a “magiado realismo” do quotidiano colombiano há uma dierença quaseindelével, no detectável a olho nu para aqueles que sonham ain-da com a possível chegada de um “senhor muito velho com umasasas enormes” e se deparam apenas com “uma aldeia arruinada,com quatro armazéns pobres e esquecidos, ocupada por gente de-sempregada e rancorosa”, como se escreve em A Revoada. Macon-do e Aracataca so o mesmo, aqui. É como “se Deus tivesse decla-rado Macondo desnecessária e a tivesse atirado para o canto ondeesto as aldeias que deixaram de prestar serviços à criaço”.

C

HEGAR a Aracataca é, portanto, deparar-se comum rio que já no é resco e transparente masriacho lodoso e castanho onde o povo molha ospés, uma terra desoladora e triste submersa num

calor esmagado pelos troncos das amendoeiras,esperando o trovo das três da tarde ou aqueles

cinco anos de chuvas intermináveis para lavar os olhos das me-mórias da violência ainda latente.

Como se recitassem “as armas e os barões assinalados”, os habi-tantes de Aracataca repetem como uma ladainha o primeiro parágra-o de Cem Anos de Solidão: “Muitos anos depois, diante do peloto deuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aque-

la tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo eraento uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na maréde um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leitode pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. Omundo era to recente que muitas coisas ainda no tinham nome epara as mencionar era preciso apontar com o dedo.” A cidade estácheia de gente que sabe indicar “a árvore onde esteve amarrado JoséArcádio o velho, ou o castanheiro em cuja sombra morreu o coronelAureliano Buendía, ou o túmulo onde Úrsula Iguarán oi enterrada”,explicou Garcia Márquez, num artigo. Gabo diz que respeita os leito-res que buscam a realidade por detrás dos seu livros: “Mas respeitomais quem a encontra, porque eu nunca consegui.”

Aracataca transorma-se assim em Macondo, onde miúdos quenunca leram García Márquez (muitos nunca leram um livro, se-quer) vivem da lenda dos Buendía, dizem-se herdeiros de Aurelia-

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no, pegam na mo do turista incauto à procura dos passos de Gaboe apontam a árvore, a casa, os objectos que povoam os seus livros.Coisas que nem Gabo saberia dizer onde esto: “Atrás do Macondocriado pela cço literária há outro Macondo mais imaginário e

mais mítico ainda, criado pelos leitores, e certicado pelos miúdosde Aracataca como um terceiro Macondo visível e palpável que é,sem dúvida, o mais also de todos. Por sorte, Macondo no é umlugar, mas um estado de ânimo que nos permite ver o que quere-mos ver, e vê-lo como o queremos”, escreveu García Márquez.

Autobiografa como fcção

TALVEZ por isso as discussões sobre a constru-ço da Casa-Museu tenham pouca substânciapara o turista deslumbrado com os móveis e asporcelanas da casa do Nobel, mas continuem aencher páginas de jornais com polémicas ma-niestações de apoio e repúdio.

Inaugurada em 2010, a Casa-Museu está “instalada” na RotaMacondo, passeio turístico de comboio que sai da capital de Mag-dalena, Santa Marta, até Aracataca. 800 milhões de pesos depoise muita polémica sobre como construir “uma casa digna do Nobel

colombiano da Literatura” (disse, na época, a ministra da Cultu-ra), destruiu-se o que restava da casa de telhado de zinco dos paisde Gabo e construiu-se esta Casa-Museu, “no meio de um muni-cípio que carece de saneamento básico e de serviços mínimos desaúde, e cujos habitantes se encontram encurralados na pobrezamais extrema”, escreveu, na  Revista Arcadia, Fabián Sanabria,

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Casa Museu Gabriel García Márquez 

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decano de Humanidades da Universidade Nacional, que, na épo-ca, se recusou a gerir o museu: “Quem se havia atrevido a recriarolimpicamente aquele ‘lugar de memória’?” Alberto Abello Vivesrespondeu, semanas depois, às críticas de Sanabria contra aquela

Casa-Museu “com um pretensioso jardim semeado de artiícios”,disposta a “persuadir turistas”. E explicou que aquela era a casaque Gabriel García Marquez tinha descrito, sonhado, narrado nasua autobiograa Viver para contá-la. A mesma em cuja epígra-e Gabo escreveu: “A vida no é a que cada um viveu, mas a querecorda e como a recorda para contá-la.” Lembrando que aquelacasa era, segundo Gabo “mais do que um lar, uma aldeia”, AbelloVives disse que oi o próprio escritor que desenhou o plano da

casa e o assinou “outorgando a sua aprovaço”.García Márquez descreve uma casa linear de oito comparti-mentos sucessivos, “ao longo de um corredor exterior com umrebordo de begónias onde se sentavam as mulheres da amília a

 bordar em bastidor e a conversar ao resco da tarde”. Está lá tudo:a secretária de cortina, a poltrona giratória de molas, o berço, oaltar com os santos, a estante “vazia com um único livro enormee descosido: o dicionário da língua”. Na sala de jantar, a mesa estáposta para os comensais “previstos ou inesperados que chegavamtodos os dias no comboio do meio-dia”, lê-se na autobiograa. Ena cço ( Revoada): “Aquela mesa esplêndida, posta com uma to-alha nova, com a louça de porcelana exclusivamente destinada aos

 jantares de amília do Natal e do ano Novo.”

A

O undo, antes de chegar ao quintal, na cozinha“há uma velha cadeira de madeira lavrada, semtravessas, em cujo undo o meu avô põe os sa-patos a secar, ao pé do ogo” (Viver para contá-

-la). Está lá a cadeira velha e o borralho negro,como se ainda ontem o tivessem acendido. E um

avô (coronel) que nele secava as botas. Realidade ou cço? Noimporta já, porque para que este ogo esteja aqui oi necessário“alargar a cozinha para construir dois ornos, destruir a velha des-pensa onde Pilar Ternera leu o uturo a José Arcádio, e construiroutra duas vezes maior para que nunca altassem alimentos emcasa” (Cem anos de solidão). Úrsula “empreendeu a ampliaço da

casa” quando se deu conta de que esta “se tinha enchido de gente,os lhos estavam prestes a casar e a ter lhos”. Isto, no Cem anos de solidão. Portanto, realidade e cço: “Decidiu que se construísseuma sala ormal para as visitas e outra mais cómoda e resca paratodos os dias, uma sala de jantar” e “quartos com janelas a darempara o quintal e uma longa varanda protegida dos esplendores domeio-dia por um jardim de rosas, com um balco para pôr vasosde etos e de begónias.”

Ali se iniciou “a redacço de um guio narrativo para os visi-tantes do museu”, explicou Alberto Abello Vives na Revista Arca-dia. “A deciso oi, ento, entrelaçar na narraço os acontecimen-tos amiliares, o massacre da zona bananeira de Santa Marta e aprovíncia de Padilla, e os elementos da obra garcia-marquesianaque ilustram os vasos comunicantes entre a realidade e a cço.”

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O Caribe e a violência

A REALIDADE e a cço continuam a cruzar--se quando, perto de Ciénaga, na estrada paraArataca, alguém diz, diante dos imensos cam-

pos de bananeiras: “Foi aqui o massacre de1928 que está no Cem Anos de Solidão.” Diz-seque a história encontra a cço quando se re-

conhece que no há dados exactos sobre o número de mortos.Até que “um congressista propôs um minuto de silêncio em hon-ra das 3000 vítimas da matança”, escreveu Alberto Salcedo Ra-mos. Precisamente, porque García Márquez assim o escreveu noromance.

Deixando a Sierra Nevada para trás, o trânsito está paradopor causa das operações stop. No so meras operações da po-lícia para saber se os condutores esto embriagados. So várioshomens vestidos de militar, com grandes metralhadoras nasmos e cintos de granadas rompendo a castidade da populaço acaminho de casa. Revistam carros, malas, pessoas, mercadorias.“Esta é uma zona de presença paramilitar”, explica alguém, nocarro.

A realidade da Colômbia encontra-se com a cço, na banali-zaço da violência, “o mito” perpetuado do lado de cá do Atlânticosobre um país que vive há mais de quarenta anos numa sangren-ta guerra civil, entre narcotracantes, guerrilhas de esquerda,insurreições, corrupço política, paramilitares, esquadrões demorte e reugiados, tudo em nome do que nos Estados Unidos sechama a “War on Drugs”. No mês passado, o Norwegian Reugee

Council dizia que a Colômbia é o país com o maior número de re-ugiados do mundo, mais do que o Congo ou a Somália: entre 4.9a 5.5 milhões de colombianos oram obrigados a deslocar-se dassuas casas ou regiões, vivendo como reugiados no seu próprio

país.No é “mito”, é verdade. Os dados da Comisso de Unidade

de Justiça e Paz (que cruzam dados de “rendições” de parami-litares desmobilizados com denúncias de vítimas do confito),revelam que entre 1996 e 2005 houve, na regio do Caribe colom-

 biano (Guajira, Magdalena, Atlántico e César), mais de trezen-tos massacres e mais de 1500 mortos. Diz o relatório que “outromassacre tristemente célebre oi cometido em Fevereiro de 2000

no município de Trojas de Aracataca, uma povoaço situada naoz do rio Aracataca. Os paramilitares chegaram em lanchas,tiraram as pessoas das suas casas e reuniram-nas na escola daaldeia, ao lado da estaço da polícia e da igreja. Onze pessoasoram assassinadas, a maior parte dos habitantes ugiu e poucosvivem ali hoje. As vítimas de Venecia e Trojas de Aracataca estoligadas porque a causa oi a mesma: os paramilitares acusavamum grupo de habitantes de presumivelmente colaborar com a

guerrilha.”Enquanto nos rerescamos no corredor das begónias da casade Gabo, esto ao nosso lado pessoas cuja amília teve de deixarAracataca, ugir sob o perigo de ser chacinada pelos paramili-tares. Algumas até trabalham para a Casa-Museu ou ali mesmoem rente. Durante o almoço, no hostel de Tim Buendía (TimAan’t Goor), o holandês que chegou há quatro anos a Aracataca

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e decidiu car para sempre em Macondo, “incorporando-se” nalinhagem da amília mais amosa da terra, comenta-se que “nascidades, os cidados no têm ideia do que se passa nas zonas ru-rais; as pessoas lêem o jornal e vêem mais um massacre, mas no

campo, na Colômbia, vive-se em guerra civil permanente”.

Q

UANDO o jornalista norte-americano Jon LeeAnderson veio a Aracataca com o irmo maisnovo de Gabriel García Márquez, Jaime, escre-veu assim na  New Yorker : “‘Temos de deixarAracataca às quatro’, disse Jaime. Se nos alon-gávamos, corríamos o risco de encontrar uma

patrulha de guerrilhas ou paramilitares. ‘Equando eles te virem, raptam-te, e no haverá nada que eu possaazer’. Fomos parados por várias vistorias do exército enquantoentrávamos na entediante paisagem verde de acácias e mato, masalgumas horas depois já estávamos protegidos pela geometria dasplantações de banana que envolvem Aracataca e que so a razo dasua existência, tal como na inância de García Márquez. Jaime dissea toda a gente que encontrávamos que me queria ora de Aracatacae de volta a Santa Marta antes do anoitecer, e com um aceno na mi-nha direcço dizia ‘no se vá dar o caso de me levarem o gringo’.”

Uma amiga da Guiana disse-me um dia que o norte da Colôm- bia no era bem o Caribe. O Caribe eram as ilhas: Cuba, Haiti eRepública Domicana, Jamaica. Que o continente no (re)conheceo Caribe da mesma maneira, no sore do seu isolamento, da suainsularidade, da (im)possibilidade de escape de um mundo mági-

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 Iglesia de San Jose de Aracataca

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co e violento, terrível e cruel onde o calor az os homens levitar ea beleza se torna uma espécie de maldiço. Há um Caribe de ilhas,sim, mas há um Caribe que mais do que geográco, é cultural, comodizia Gabo: “Deveria começar no sul dos Estados Unidos e esten-

der-se até ao norte do Brasil.” Só assim um escritor como Faulk-ner podia ser considerado caribenho, e no haveria qualquer tipode prurido por se incluir romances como O Som e a Fúria ou Luzem Agosto na categoria de “realismo mágico”.

E

RA Luz em Agostoque Gabo lia quando viajava coma sua me de Barranquilla para Aracataca paravender a casa da amília, esta mesma, onde hoje

é a Casa-Museu. “Todas aquelas povoações mepareceram sempre iguais. (...) Mais tarde, quan-do comecei a ler Faulkner, também as povoações

dos seus romances me pareciam iguais às nossas. E no era surpre-endente, pois estas tinham sido construídas sob a inspiraço mes-siânica da United Fruit Company”, escreve em Viver para Contá-la.

É ento que o escritor se dá conta de como (e onde, de onde)nasce Macondo. “O comboio ez uma paragem numa estaço sempovoado e pouco depois passou em rente da única quinta bana-neira do caminho que tinha o nome escrito no portal: Macondo.Aquela palavra chamara-me a atenço desde as primeiras viagenscom o meu avô, mas só em adulto descobri que me agradava a suaressonância poética.” Dizem que é uma árvore, uma espécie deceiba. E Gabo relaciona-a talvez com os makondo do sul da Tanzâ-nia e do norte de Moçambique. Virá daí a palavra? E o sonho?

Terra pequena, rasteira, casas baixas coloridas e quentes, depequenos comerciantes, lambretas arrastando-se pelas ruas deterra batida, com mais do que dois tripulantes a bordo, uma pra-ça central com uma igreja branca e sombras de acácias que, em

 Janeiro, ainda no tinham forido, um rio que, num domingo, es-tava cheio de gente a azer piqueniques e que tinha perdido todo o

 bucolismo dos tempos da  Revoada. A Macondo de 1909 é como aMacondo de 2013: nem cem anos podero contar (e conter) o ímpe-to desta revoada. E nós, que chegávamos a Arataca cegos do Ma-condo dos livros, “nós, os primeiros, éramos os últimos; éramosos orasteiros, os intrusos”. E sabíamo-lo porque tínhamos apren-dido e lido que “a seguir à guerra, quando chegámos a Macondo

e apreciámos a qualidade do seu solo, soubemos que alguma vezhavia de chegar a revoada, mas no contávamos com o seu ímpeto.Por isso, quando sentimos chegar a avalancha, a única coisa quepudemos azer oi pôr o prato com o garo e a aca atrás da portae sentar-nos pacientemente à espera que os recém-chegados nosconhecessem. Ento, pela primeira vez, o comboio apitou.” E eraamarelo, adornado de fores, uma “coisa espantosa, como uma co-zinha a puxar uma aldeia”, diz o povo nos Cem Anos. Nele vinhaum dos lhos do coronel Aureliano, acenando, desconhecendonaquele ento que era o comboio que “tantas incertezas e evidên-cias, tantos deleites e desventuras, tantas mudanças, calamidadese nostalgias havia de trazer para Macondo.” n

* A jornalista viajou à Colômbia como bolseira da Beca Gabriel García Márquez dePeriodismo Cultural da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI)

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-lo”. E entregou-nos a primeira ediço de  El coronel no tiene quienle escriba, em papel de jornal, publicado em Medellín pela AguirreEditores. Começámos a lê-lo com cepticismo e terminámo-lo comassombro. Era bela a solido daquele coronel, veterano da Guerrados Mil Dias, agora já velho e esperando todos os dias no porto fu-vial a carta que lhe trouxesse a notícia da sua reorma. E alimen-

tando com as sobras da sua miséria aquele galo de luta que era asua outra última esperança na vida. Essa história, seca, austera,ali no calor dos trópicos e com a grandeza da tragédia grega, dei-xou-nos deslumbrados, atónitos. Ento retirámos ao centro literá-rio do colégio o nome de Jorge Isaacs, autor de María, e demos-lheo de Gabriel García Márquez. Já desde ento no sabíamos elabo-rar cções mas tínhamos a elicidade e o olacto para saber quemazia as melhores do mundo. E isso aconteceu dois anos antes da

apariço de Cem anos de solidão e muitos anos antes de que as elitesintelectuais e os leitores de rua da Colômbia e de todas as naçõesse rendessem a seus pés, maravilhados pela sua magia universal epela eliz leitura da sua obra literária.

E passaram os anos e lemos e amámos toda a sua obra e o-mos jornalistas e conhecêmo-lo e entrevistámo-lo. E oi um diaem Nova Iorque quando chegámos ao Hotel Waldor Astoria onde

cd coloMino TeM o seuGriel Grcí Márquez

Germán Santamaría

Embaixador da Colômbia em Portugal

C

ADA colombiano do nosso tempo tem o seuGabriel García Márquez pessoal. Uma oportu-nidade de ter vivido na nossa época como seucontemporâneo. É o Gabriel García Márquez da-quele dia em que o conheceu. Da noite em que leuo seu primeiro livro. Da emoço que sentiu quan-

do soube da notícia do Prémio Nobel. A expectativa por senti-lode novo repórter, em cada escrito seu para a imprensa. O orgulhode ter um livro autograado ou uma oto com ele, ainda que na u-gacidade de um cocktail. Ou a rapariga que ao vê-lo, pela janelada um automóvel para outro, se assustou tanto que apenas con-seguiu gritar-lhe: “Você no existe!”. Sem saber qual é o seu Gabo,este é o meu:

Corria o ano de 1965 e apenas começávamos o ensino secundá-

rio. Era numa povoaço de Tolima, no município do Líbano, nomais proundo da cordilheira dos Andes na Colômbia, sob a som-

 bra dos caezais, muito próximo das neves do Nevado del Ruiz emuito longe do mar Caribe. Chega ento um proessor de literatu-ra e diz-nos, aos que nos apaixonávamos por escritores clássicoscolombianos como Silva, Rivera e Barba Jacob: “Tive um colegade escola que escreveu um livrito e quero que o tenham para lê-

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García Márquez estava hospedado, de passagem para Tóquio,onde ia encontrar-se com Akira Kurosawa para a possível adap-taço ao cinema de O outono do patriarca. Como Mercedes tinhasaído, García Márquez convidou-nos para irmos ao cinema. Fomosver Sonhos, de Kurosawa, num teatro da Sexta Avenida. Por sorte,o Nobel deixou a carteira no hotel e tive a oportunidade de pagaros bilhetes.

Sozinho, eu, o lho de minha me, com o Nobel na penumbrado cinema. No ecr os Sonhos, de Kurosawa, e a sequência do ra-paz que se unde com o rosto de Van Gogh. E eu ali, mirando Gar-cía Márquez numa matiné e em Nova Iorque, e ora dourava-se o

outono no Central Park. Foi tanta a emoço e admiraço por elee por esse momento, que pela primeira vez na minha longa vidade varo machista colombiano, senti o impulso de segurar-lhe amo como àquela namorada no cinema da aldeia, para dizer-lheque era muito o quanto o admirávamos e que era muito o quanto oamávamos e que obrigado por existir.

E A outra ocasio oi em Paris, naquela esquina

da margem esquerda do Sena. Também por ca-sualidade do destino estávamos naquela cidadee por coincidência com amigos comuns, todoscolombianos, convidou-nos para jantar. Masno num restaurante e sim num apartamento

nada extraordinário, se no osse porque ali chegou naquela noi-te, apenas para saudar García Márquez, Catherine Deneuve com

a sua beleza impossível dos seus 36 anos. Mas só alou com ele,num canto do apartamento, junto à janela que deixava ver o Lou-vre ao undo. O único importante para nós aconteceu à saída. Foina esquina, às duas da manh, e como sempre a essa hora a chuvaparisiense brilhava sob as luzes no cho de paralelepípedos. En-to, ali no semáoro, despedíamo-nos dele. Sempre pensando quetalvez o estivéssemos a ver pela última vez, como crianças que sedespedem da me, tentámos atravessar a rua olhando para trás,sem nos apercebermos de que o semáoro ainda estava vermelho.Sentimos que um carro quase nos atropelava, e que uma mo r-me e segura nos agarrava pelo pescoço e nos arrastava para trás, a

salvo da morte. Era a mo de García Márquez.Ficou a olhar para nós olhando-nos xamente e disse-nos com

o seu sorriso radiante: “Vocês devem-me a vida”.Passaram os anos e muita água por debaixo da ponte. E em

certas tarde luminosas de Lisboa, uma cidade to bela que Gar-cía Márquez jamais conheceu, por vezes ocorre-nos pensar queomos uns machistas imbecis naquela ocasio na sala do cinemaem Nova Iorque, porque no omos capazes de pegar na mo de

García Márquez para dizer-lhe que o amávamos, mas pelo menos,pelo que sucedeu em Paris, devemos a nossa vida ao único colom-

 biano que será imortal, porque a sua maravilhosa obra literáriacontinuará viva e crescerá enquanto passam mais séculos e sécu-los de solido.n

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Grcí Márqueze José srMGo

 Pilar del Río

A PRIMEIRA vez que se viram a sós, no numcongresso, acto público ou visita protocolar,tenho a sensaço de que se cheiraram. No po-deria ser porque nem a educaço, nem o lugar,nem as circunstâncias haveriam permitido se-

melhante comportamento, mas ninguém pode-rá convencer-me de que o encontro no arrancou com o mesmoritual de dois animais poderosos que se olham de rente e se me-dem um ao outro em todos os sentidos. Foi coisa de segundos, logose impuseram os modos corteses, a mesa estava preparada, os ca-sais acomodaram-se e o almoço oi de colegas que se conhecemporque se leram, partilham amigos, uma ou outra antipatia, certosmestres, capacidade para ironizar, para condências, e, sobretu-

do, um oício que alguns chamam de trevas mas que neles se azluminoso. Aconteceu no início dos anos 1990, em Madrid. Aí seselou uma relaço que continuaria por dierentes países e ao longodos anos: se ossem somadas, seriam muitas as horas de conversatranquila, sem alardes, própria de dois seres humanos que conhe-cem as sombras que projectam, que viveram todos os sobressaltose exerceram todas as desmiticações.

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Cuba, 1998, Reuters-CordonPress

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De que alavam Gabriel García Márquez e José Saramago quan-do se encontravam aqui ou ali? Dizer que da vida pode pareceruma simplicaço quase grosseira, mas é a verdade. Falavam davida porque ambos aziam vida da literatura e neles a literaturaera – é – pura vida. Recordo tê-los ouvido alar de Cortázar, deBorges, de Rulo, de Tolstói, de Kaka, de Coetzee, de política, doMéxico, da Colômbia, de Portugal, do 25 de abril e até de Shaki-ra, a colombiana que se lançou como um relâmpago que rompea noite. Houve momentos íntimos em casa de amigos, outros deintensa emoço, como a noite em que Carlos Fuentes celebrava oquadragésimo aniversário de A região mais transparente e o escritor

mexicano, amigo inseparável do colombiano, apareceu pelo braçode García Márquez e de José Saramago apresentando-os como “Oescritor colombiano e mexicano, o escritor português e mexicano”e todo o mundo – vários milhares de pessoas – que assistíamos àcelebraço soubemos que era assim e nunca poderia ser de outramaneira.

Seguir o rasto desta amizade requereria entrar em muitas ca-sas de dierentes países. Obviamente, no se desvelariam con-

dências que devem permanecer na intimidade – e aí caro – mas,sim, conhecer-se ia a camaradagem e a admirável solidariedadedos homens grandes. Um exemplo: quando a José Saramago osgovernantes do momento o quiseram expulsar do México por terpercorrido os meandros das comunidades indígenas de Chiapas,em ebuliço com a revoluço Zapatista, e, sobretudo, com a ma-tança de Acteal, Gabo e Fuentes zeram ver que para o escritor

todo o território do mundo é o seu âmbito, tudo é Macondo, por-que no existem limites para a geograa da criaço, nem da dor,nem da humanidade que nasce e morre continuamente. E José Sa-ramago, por essa intervenço, continuou no México, acalentandopor to corajosa companhia.

O PRIMEIRO livro de García Márquez que JoséSaramago leu oi  Ninguém escreve ao coronel eo deslumbramento oi total. A seguir chegouCem anos de solidão, os outros romances, oscontos, as crónicas. Saramago no renunciou

nunca ao elogio devido a García Márquez, ci-tava-o e recomendava-o como luz que ilumina e abre caminho.Gabo comentou com José Saramago aspectos de  Memorial doConvento, de O Ano da Morte de Ricardo Reis e mais tarde ala-ram de  Ensaio sobre a cegueira e Todos os nomes. No é comumque os escritores alem dos seus próprios livros, talvez paradeixar espaço para a liberdade de ler ou no ler, mas a gene-rosidade de García Márquez no parece aceitar estas normas,

sobretudo porque o grande devorador de livros que é lhe per-mite ter uma opinio singular, quer dizer, como bom crítico, lê,encontra o peril distinto, avalia e respeita, como cronista, con-ta, como jornalista, examina: o lugar comum no cabe numaconversa privada, em que o engenho cresce por minutos, nemnum acto público, em que a palavra se az mais diícil, mas nomenos certeira.

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García Marquez é um homem de tertúlias e um bom copo. De-testa alar em público, mas no há assomo de timidez na conversaprivada. É como se seguisse uma linha de conversa no interrom-pida, diz “ter escrito as minhas memórias salvou-me a vida, -lasgrandes para no poder morrer” e continua a partilhar descober-tas, declarações cheias de ironia bem-humorada, como se entre oúltimo encontro e esse instante no tivessem passado meses ouanos. Talvez o domínio do tempo, o presente contínuo, seja outracaracterística dos escritores, tal como o mundo inteiro, já aqui oidito, é o território da criaço.

García Márquez vive no México, vai muito a Los Angeles, tam-

 bém à sua casa de Cartagena de Índias. Diz que já no escreverámais e tem esse direito, porque amassou tantas letras como paraalimentar gerações. Que já no so de solido, porque têm a mag-níca companhia dos seus indestrutíveis livros.n

 Da esq. para a dir.:  Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez , Beli sario Betancur, José Saramago e Tomás Eloy Martínez 

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PriMeir críTic o livro ceM nos de solidão , Pulicd eM PriMer Pln , 20 de Junho de 1967

Tomás Eloy Martínez 

UMA literatura em estado de nascimento no temnada a perder: pode inventar a sua linguagem a

partir do zero, imaginar uma sintaxe louca, lan-çar para o mundo gordas de duzentos quilos egigantes de três metros, burlar todas as tradi-ções culturais dado que no deve responder a

nenhuma. O acto de criar transorma-se ento numa experiênciade vida livre, e a literatura que nasce vai-se nutrindo dessa gene-rosa desmesura, como um eto de cabeça monstruosa que apenaso ar, as relações com os demais homens, o acto de caminhar e de

crescer vo modicando. Pode acrescentar-se que essas so as re-gras de toda a criaço verdadeira; mas as mos do que trabalhanum páramo esto sempre mais soltas que as do que habita entreruínas ou monumentos. A realidade – a quotidiana ou a antas-magórica – oi sempre a erramenta do romance. Mas o único ges-to capaz de dotar de grandeza um romance é a alta de respeito poressa realidade

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Se a literatura latino-americana assoma agora – quase comcerteza – como a mais original de todas as literaturas, é apenaspela aceitaço do seu destino subversivo, pela sua desmedida ca-minhada através de uma imaginaço sem limites. Essa originali-dade é enganosa, no entanto, porque as ormas que assume so asmesmas ormas que as primeira cções humanas adoptaram, asde toda a cultura em erupço: assim como em Espanha o roman-ce começou por ser um cantar de gesta, uma louca aventura decavalarias, uma colecço de apólogos em que alavam os animaise os Dees de Santiago viajavam no tempo, a América Latina er-gue agora os seus próprios Calila e Dimna, os seus Conde Lucanor, 

os seus Mío Cid e os seus Amadises. No é improvável que dentrode mil anos Güiraldes e Rómulo Gallegos, Azuela e José Eusta-sio Rivera gurem como palimpsestos perdidos da innita his-tória literária; que Macedonio Fernández, e Arlt, e Borges, sejamapenas a origem de um mundo cujos pais se chamaro Cortázar,Vargas Llosa, Onetti, Guimares Rosa, Carpentier. Este pai maisvelho que a eles se juntou denitivamente, com os seus Cem Anosde Solidão, aporta, sozinho, uma nova bandeira para a aventura: o

romance que acaba de publicar resume, melhor que nenhum ou-tro, todas essas correntes alternativas. A magia celebra aqui o seucasamento com a épica; os ltros maravilhosos, as ascensões aocéu de corpo e alma, os estivais intermináveis de sexo, passeiam--se orgulhosos pelo braço das guerras revolucionárias, dos políti-cos hipócritas, das plantações de bananeiras que aniquilam, ondequer que estejam, a elicidade e a inocência.

 EM Anos de Solidão conta a história completade Macondo através da amília Buendía des-de que o primeiro José Arcádio e a primeira

Ursula a undaram, mitologicamente, a dozequilómetros de um galeo espanhol ancoradoem plena selva. Mas aponta para algo mais: é

uma metáora minuciosa de toda a vida americana, das suas lutas,os seus maus sonhos e as suas rustrações. Os quatro livros an-teriores de Gabriel García Márquez aparecem agora como merosafuentes deste romance total: os tumultos verbais de  La hojaras-ca moderaram o seu passo; as íntimas inclinações de cabeça de El 

coronel no tiene quien le escriba aplicam-se – com as suas mesmasreticências – à história de Remedios Buendía, uma casada impú-

 bere que García Márquez retrata através de jogos psicológicos.Apenas “Los unerales de la Mamá Grande”, último conto de umlivro homónimo, antecipa, com as suas tempestades episcopais e oseu tremendismo babilónico, os melhores momentos de Cem anos.Macondo oi sempre, salvo em El coronel , o obsessivo protagonistadessas cções, o ornecedor de símbolos e criaturas. Mas agora,

com um golpe certeiro, García Márquez chega para assassinar a“povoaço” que engendrou em 1955 (“Macondo era já um pavoro-so remoinho de pó e escombros centriugado pela cólera do u-raco bíblico...”). Essa matança em massa parece atribuir ao seuromance um destino apocalíptico; talvez o seja, talvez a partir domomento em que escreveu a última palavra de Cem anos, o autortenha aparado os seus bigodes literários, tenha mudado de lugar

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o seu coraço. Mas, para a América Latina, este romance tem osabor de um génesis, de uma abertura para as ormas mais pro-undas da sua vida.

TUDO o que ocorre em Cem anos é importante:a peste de insónia que acaba numa peste deesquecimento e obriga os habitantes a marcarcada coisa com o seu nome, mesa, cadeira, reló- gio, parede, cama, caçarola, a gravar um grandeletreiro na rua central que assegura que Deus

existe; as guerras inúteis do coronel Aureliano Buendía, um ini-

migo uribundo do governo cuja eígie prócer acaba por entroni-zar-se nos santorais colombianos; os prodigiosos amores de PetraCotes com Aureliano Segundo, que leva as vacas, as ovelhas e asgalinhas a parirem desaoradamente. No seu labirinto de histó-rias entrelaçadas, de genealogias que inebriam, nenhum persona-gem perde o passo, no entanto: é que García Márquez lançou-os aomundo vigiando que as suas aparências sejam sempre iguais aosseus actos. Esse o de Ariadne permite reconhecer no gigante José

Arcádio, que regressa a Macondo com o corpo riscado de tatua-gens, o lho adolescente que partiu um dia atrás de uma tribo deciganos com um trapo de cores preso à cabeça. E permite entendertambém por que persistirá sobre o seu túmulo um oculto cheiro apólvora.

As grandes explosões épicas de Cem anos de solidão acabariampor devorar os esplendores do livro se no ossem aplacadas, de

vez em quando, pelas ondulações suaves da poesia: nesse sentido,no há talvez em todo o romance um momento mais alto que o dahistória de Remedios, a bela, uma sereia homérica cuja inocêncialeva à morte os seus amores. Imune às tentativas de violaço, atéà santidade, Remedios acaba os seus dias de cristal numa tardede Março, quando sai para dobrar no jardim os lençóis de amília.Esse instante é to angélico, to denso de vapores e poesia, que asua simples transcriço é melhor que todas as demais palavras,para abrir caminho à leitura do livro: “Pelo contrário – disse [Re-medios] –, nunca me senti melhor. Acabava de dizê-lo, quandoFernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os

lençóis das mos e os estendia em toda a sua amplitude. Amarantasentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratoude se agarrar ao lençol para no cair, no instante em que Reme-dios, a bela, começava a ascender. Ursula, já quase cega, oi a únicaque teve serenidade para identicar a natureza daquele vento ir-reparável, e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Reme-dios, a bela, que lhe dizia adeus com a mo, entre o deslumbranteesvoaçar dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com

ela o ar dos escaravelhos e das dálias, e passavam com ela pelo aronde as quatro da tarde terminavam, e perderam-se com ela parasempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memó-ria a podiam alcançar”.

Mas esse parágrao é também um olhar para as debilidades dolivro, do seu único calcanhar de Aquiles: a uniormidade da escri-ta. Cada página de Cem anos respira de uma maneira idêntica à da

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página que se segue, repete as suas cadências secretas, os clarõesdos seus adjectivos, as mutações cenográcas. O cheiro a maravi-lha e a lavanda persiste tanto dentro do estilo de García Márquezcomo a sua aluvial ternura, a sua vitalidade cataclísmica. Numaobra menos vasta como El coronel , essa delidade da prosa a simesma era um prodígio; em Cem anos, a pereiço verbal adoça aleitura, entorpece-a em alguns momentos, acaba por anestesiar oolacto e a língua.

NO entanto, nunca esse dilúvio de beleza arree-ce o romance: por momentos García Márquez

pára-o a seco inserindo notícias aritméticas,detalhes prolixos. Que o coronel AurelianoBuendía retire a tranca de sua casa, e veja naporta dezassete homens; que Pilar Ternera

morra numa cadeira de baloiço de cipó, enterrada por oito ho-mens num buraco enorme; que chova em Macondo durante quatroanos, onze meses e dois dias, no so precisões inúteis. O romanceabunda nelas para ortalecer os seus músculos, para demonstrar

que os seus acontecimentos prodigiosos têm uma cor, um sabor,uma medida.

Chamar barroco a Cem anos de solidão é qualicá-lo pela meta-de: porque a semente do seu barroquismo é esta América luxurio-sa de uma ponta à outra. O coronel que está prestes a uzilar o seuamigo Gerineldo Márquez, apenas porque se atreveu a reprová-lo,e que acaba lutando pelo mero gosto da guerra, encastra, dentro

das suas loucas e solitárias artérias, dez gerações de coronéis ame-ricanos; o plantador Brown que desaparece de Macondo na sua“sumptuosa carruagem de vidro, juntamente com os representan-tes mais conhecidos da sua empresa”, antes de uma greve, é o re-sumo de uma raça de Grandes Mestres bananeiros, petroleiros eazendeiros que assolaram outras dez gerações de trabalhadoresdo Caribe.

Nada ca sem ser arrastado pela torrente dos Cem anos: aqui as-somam o Bebé Rocamadour de Cortázar, o Artemio Cruz de CarlosFuentes, e até a própria Mercedes García Márquez, sob a máscarade uma boticária silenciosa, como se o romancista tivesse querido

assinalar que a vida, os amigos, o amor e as criaturas de cço soum único eixe demoníaco no momento de criar. Mas talvez estas Mil e Uma Noites povoadas de nascimentos e de mortes, de casa-mentos e virgindades, no possam entender-se por completo sema ajuda de uma condência do autor: “Importava-me mais termi-nar o romance que publicá-lo”. O repto à solenidade que repousanessa rase, a alegria criadora que a sustém, so outras das cha-ves que explicam o triuno actual do romance latino-americano.

A partir de García Márquez – e de seus pares – já ninguém terádireito a escrever para ser conhecido, mas sim para descobrir omodo mais elevado, mais limpo de conhecer-se a si mesmo.n

Texto publicado por cortesia da Fundaço Tomás Eloy Martínezhttp://undaciontem.org/

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FilBo: Bloco de Notas

Sara Figueiredo Costa

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AINDA antes da Feira Internacional do Livro deBogotá (FilBo), uma das maiores eiras do livro

da América do Sul, a primeira impresso da ci-dade é um embate com o espaço. Tudo parecesem m nas avenidas de Bogotá, que podem serinterrompidas por ruelas inesperadas, engarra-

amentos épicos e curvas que revelam mais avenidas interminá-veis. Como a chegada se ez à noite, ca a esperança de que a luzdo sol traga alguma ordem a esta primeira viso, algo que no seconrma no dia seguinte. No há como ter uma percepço clara dotamanho, dos limites e da morologia da cidade. Dizer que é gran-de é pouco quando olhamos para o mapa e um percurso que arris-caríamos supor que demora uns minutos a azer a pé revela-se umpercurso que demora meia hora de carro, se o trânsito no estivermal. A viso da Cordilheira dos Andes impressiona pela beleza epelo contraste do verde cerrado com o caos visual da cidade, masserve igualmente para lembrar os incautos de que estamos 2640metros acima do nível do mar e que o  soroche, o conjunto de in-desejáveis sintomas ísicos derivados da altitude que provocaram

algumas baixas temporárias na comitiva portuguesa, é uma reali-dade a evitar.

A CHEGADA ao espaço da Feira az-se entrecentenas de pessoas que azem la para com-

prar uma entrada na FilBo (7000 pesos, cercade 3,5 euros) e ca a impresso de que o livro éum bem com procura intensa em terras colom-

 bianas. Já no recinto da Feira, no há um pavi-lho que no esteja cheio de gente a procurar livros concretos oua apreciar os escaparates, e o habitual é que grande parte dessaspessoas tenha, pelo menos, um saco com livros já comprados nasmos. A realidade sócio-económica e cultural de Bogotá no seráácil de perceber à luz de uma situaço demogracamente muitomais reduzida, como é aquela que melhor conhecemos: na capitalda Colômbia vivem tantas pessoas quantas as que contabilizam apopulaço portuguesa, pelo que a proporço é um dado a ter emconta. O ordenado mínimo a 200 euros, o desemprego e as situa-ções de pobreza em diversos graus so um indicador que baralhaa percepço da realidade quando se vê uma eira do livro cheiade gente a azer compras, mas importa acrescentar que há umaclasse média com capacidade económica e interesse na compra

de livros que, numa populaço com quase dez milhões, assegurauma dierença assinalável relativamente ao mundo que conhece-mos no que à venda de livros diz respeito. E, mais importante, hámuita gente com orçamentos apertados que, percebendo a impor-tância da leitura num contexto de desenvolvimento recente, azum esorço para comprar um ou dois livros, muitas vezes para

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os elementos mais novos da amília, e aproveita os descontos daeira para o azer. Isso mesmo conrma Enrique González Villa,

presidente da Câmara Colombiana do Livro: “É preciso perceberque há um século, 90% da populaço da Colômbia era analabeta.Hoje, a situaço inverteu-se e 90% da populaço já é alabetizada.É a partir daqui que tem de se construir um trabalho contínuo depromoço da leitura e perceber que a presença de tanta gente naFilBo também se deve a uma vontade de no perder o caminho jáeito.” Longe da FilBo, na enorme livraria que o Fondo de CulturaEconómica tem no Centro Cultural García Márquez, com um un-do muito completo no só a nível de literatura colombiana e mun-dial, mas igualmente em áreas como a arte, as ciências sociais, a

 banda desenhada ou o ensaio, as multidões no se avistam. Noquer dizer que no haja clientes, bem pelo contrário, mas o rene-si à volta dos livros desaparece para dar lugar à consulta calmae silenciosa, apoiada por livreiros bem inormados que sugeremlivros e indicam autores. O que é que se passa com os habitantesde Bogotá, que invadem a FilBo como se os livros ossem um bemde primeira necessidade (no sero?) mas mantêm as livrarias

num ritmo de cruzeiro mais semelhante àquilo que conhecemosda nossa realidade? Enrique González Villa volta a tomar a pala-vra: “A maioria das pessoas no vai às livrarias porque ainda vêesses espaços como lugares sagrados, inacessíveis ao seu meio. Éuma ideia que tem de ser contrariada, mas leva tempo.” Isso mes-mo será conrmado por uma das visitantes do Pavilho de Portu-

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 Livraria do Fondo de Cultura Económica,

no Centro Cultural Gabriel García Márquez (Candelaria)

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gal, que conversou connosco no m da visita assegurando que sócomprava livros na Feira porque as livrarias a intimidavam. E de-

pois de pedir lume a um dos seguranças, já no espaço a céu aberto,desabaou: “Nem sabia que se podia umar aqui. Como é uma coi-sa de cultura, pensei que ninguém umaria, para no parecer dopovo.” Quase dez milhões de habitantes e tanto ainda por azer noque à percepço da leitura diz respeito.

O PAVILHãO de Portugal tem três mil metrosquadrados, mas no é a grandeza que impres-siona e sim o acto de estar cheio de gente, e gen-te interessada em descobrir ou conhecer melhora literatura e a produço editorial portuguesa.Nos vários espaços que compõem o pavilho vê-

em-se miúdos acomodados pelo cho a ouvirem alar sobre livrose escritores, gente de todas as idades a experimentar os váriosadereços do espaço da Pato Lógico (um deles permite experien-ciar algo parecido com o mar, o que tem um peso signicativo paravárias pessoas que nunca visitaram a costa), gente a ouvir Zeeri-

no Coelho alar sobre a sua actividade editorial na Caminho, e aazer perguntas, muitas. Será assim ao longo de todos os dias daFeira, com um pico assinalável no dia em que a FilBo tem entradagratuita e mantém as portas abertas até à meia-noite. Nesse dia, noPavilho de Portugal, so distribuídos alguns milhares de livrospertencentes às duas edições eitas especialmente para esta eira,

com uma tiragem de 10.000 exemplares cada uma (Quillas, mástiles y velas e Cartas de tres océanos, antologias com textos de autores

portugueses sobre o tema da viagem). Desenhado e concebido peloFor Studio Architects, o Pavilho de Portugal oi pensado a partirda ideia de Mar sem que nenhuma das leituras mais óbvias tenhaintererido no resultado nal. Aqui, é o horizonte que predomina,com os espaços divididos por muros baixos que permitem umaviso de conjunto onde quer que se esteja. Por cima, as ondas, pe-daços de pano branco que criaram um eeito de movimento e aju-daram a disarçar o tecto do pavilho, pouco interessante e nadaacolhedor.

FALANDO com algumas pessoas que deam-

 bulam pelo pavilho de Portugal estranha-seo entusiasmo. Quando juntamos um grupo deportugueses e nos pomos a conversar, é certoque teremos vários colombianos parados a ou-vir a conversa. Quando perguntamos o motivo

de tanta curiosidade, explicam-nos que o português lhes soa de

uma orma exótica, como se quase conseguissem perceber o quese diz para logo depois constatarem que tal percepço no é pos-sível. Perguntamos se no é habitual ouvir português do Brasil naColômbia e dizem-nos que ali, na capital, no é comum. Tentamosargumentar que no é assim to diícil percebermo-nos mutua-mente, cada um alando na sua língua, mas a eterna vocaço para

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comedores de vogais que os lisboetas trazem nos genes linguísti-cos só serve para nos desmentir.

 

DEPOIS da conversa com o presidente da Câ-mara Colombiana do Livro, o enorme espaçodedicado pela FilBo aos livros destinados aopúblico inantil e juvenil conrma a apostano sector. Um enorme pavilho ocupado poreditoras colombianas e internacionais apre-

senta o melhor e o pior da ediço para os mais novos, com livros

cuidadosamente escolhidos pelo Fondo de Cultura Económica,editoras com catálogo cuidado e espaços dedicados à leitura com-petem com livros fuorescentes, ilustrações inenarráveis de tantomau gosto e dezenas de livros e produtos derivados associados agrandes marcas ou cadeias, onde o peso da televiso é visivelmen-te maior do que o dos livros. Entre os dois pólos, percebe-se quea ediço inantil e juvenil é um mercado em ranco crescimentoe que, independentemente das escolhas (porque essa é uma ou-tra conversa), quase todos os adultos desembocam no pavilho 16 para comprarem pelo menos um livro para uma das crianças daamília. Se pensarmos que há um século 90% da populaço colom-

 biana no sabia ler nem escrever, os sinais para o uturo so deesperança.

 

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 Pavilhão de Portugal 

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COM pouco ou nenhum tempo disponível depoisda programaço de cada dia, ainda houve tempo

para um ou dois passeios pela cidade, entre umdebate e uma palestra ou no caminho para o es-paço da Corerias, onde se realiza a FilBo. Entreo Museu do Ouro, o bairro da Candelaria e a rua

que liga o Mercado de las Pulgas ao centro da cidade (juram-nosque a cidade tem centro, ainda que a viagem chegue ao m semque os limites de Bogotá se vislumbrem), e onde se localiza a Ci-nemateca Nacional, o Teatro Jorge Eliécer Gaitán e alguns alarra-

 bistas que importa no perder, as curtas caminhadas conrmamuma certa imagem prévia das grandes metrópoles latino-america-nas: gente a perder de vista, autocarros de porta aberta, gingando,cheios de passageiros, por entre carros e peões, muitas bancas decomida, alguma miséria visível. É uma imagem preconceituosa,no sentido em que já vinha na bagagem muito antes de algumavez se ter vislumbrado uma ínma parte da América do Sul, masé diícil apagar ideias prévias. Igualmente prévia era a opinio,transmitida por todas as reportagens lidas sobre Bogotá, de que

os colombianos so gente muito simpática e dada à comunicaço.É o tipo de coisa que se lê num guia turístico e de que se descona(como quando se diz que os portugueses so todos muito dados aacolher estrangeiros, e depois sentamo-nos num qualquer caé de

 bairro, em Lisboa ou nem por isso, e podemos ouvir um chorrilhode comentários xenóobos sobre negros, ciganos ou chineses, nor-

malmente todos to portugueses como quem comenta, ainda queisso no aça qualquer dierença). Pode ter sido sorte, mas com ex-

cepço de um taxista que queria ouvir música romântica aos gri-tos e no esboçou um sorriso durante toda a viagem, os bogotanoscom quem nos cruzámos, na FilBo ou nas ruas, oram sempre desorriso ácil e conversa pronta. Quem ainda acredita que em Bo-gotá é preciso ter cuidado, porque anal estamos na Colômbia e opeso do narcotráco e das FARC e de todas as máas adjacentes égrande e ameaçador, terá uma grata desiluso. A ideia do perigo é,aliás, algo de que todos os bogotanos com quem alámos se lamen-tou, porque parece que nada mais se passa num país to grande. Enas ruas de Bogotá, no oi perigo nem ameaças que encontrámos,e a ideia da simpatia como característica comum conrmou-se acada conversa, por mais que seja irritante dar razo a lugares-co-muns.n

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madeiraCrónica de um festival insular a caminho do centro do mundo

Sara Figueiredo Costa

 Rui Tavares e Naomi Wol, otografa de Carlos Soares

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AO terceiro ano de vida, o Festival Literário daMadeira reinventou-se. Colocando a literatura

no centro da programaço, cruzou-a com ou-tras linguagens, outros modos de organizar omundo e tentar explicá-lo. Religio, economia epolítica andaram pelo palco do Teatro Munici-

pal Baltazar Dias a par com as viagens, as artes, os livros. A mis-tura no saiu mal à organizaço, da responsabilidade da editoraNova Delphi, e talvez seja um bom modelo para ugir ao repetir,como cantava o Variações, azendo das conversas entre autoresum modo de pensar e questionar em conjunto e no tanto umalitania sobre o processo criativo de cada um.

Tal como os grandes estivais de música, também os estivaisliterários apostam em cabeças de cartaz, um modo de atrair maispúblico com nomes acilmente reconhecíveis. No FLM deste ano,dois nomes se destacavam: Naomi Wol e Zygmunt Bauman, aprimeira na conerência de abertura, o segundo com uma mesacolectiva na Universidade da Madeira e um diálogo com José Ro-drigues dos Santos para encerrar o estival. No será injusto dizer

que a melhor prestaço de Bauman aconteceu na Universidade daMadeira, longe do olhar do grande público, e que Naomi Wol nose aastou muito daquilo que disse nas entrevistas que antecede-ram o estival. No caso de Zygmunt Bauman, a mesa onde tambémestiveram Rui Tavares, Antonio Scurati e Tabish Khair benecioude uma compreenso mútua entre os participantes, algo que a in-

tervenço do autor polaco intensicou ao dar o mote para umadiscusso que andou pelos territórios do presente com os olhos

postos no uturo, concluindo que a grande tarea para o séculoXXI será a de descobrir modos de reunir a política e o poder nomesmo espaço, algo que deixou de acontecer quando a nança eos decisores invisíveis do mundo se apropriaram do poder, dei-xando à política uma espécie de terra queimada onde no restaqualquer esperança. Com José Rodrigues dos Santos, cujo convitepara partilhar o palco com Bauman se compreende com diculda-de, a conversa no oi diálogo nem troca de ideias. O que se ouviuoram duas intervenções totalmente díspares, o pensador polacoelocubrando proundamente sobre a história da Europa e as rela-ções entre política e losoa, o jornalista-escritor desdobrando te-orias da conspiraço como se de actos se tratasse. Já Naomi Wol soube tirar todo o partido de um estilo e uma retórica capazes deagarrar a audiência, e ainda que no tenha acrescentado muito aoque já lhe conhecíamos das entrevistas, teve uma intervenço ar-rebatadora. Claro, começar por dizer, perante um teatro cheio,“let’s talk about the vagina” terá ajudado, mas o que se seguiu,

também na conversa posterior com Rui Tavares, deixou muitopara pensar, quer sobre a sexualidade, quer sobre os rumos domundo ocidental.

Os debates que encheram o teatro e a universidade oram ec-lécticos e cheios de episódios memoráveis. Joo Paulo Cotrim le-vou um príapo para a mesa onde se debatia “a arte de lidar com as

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mulheres”, conessando que abandonou o texto de Schopenhauerque dava mote ao debate por volta do vigésimo deeito eminino.

Sobre a “a arte de pagar as dívidas”, Maria do Rosário Pedreiraexplicou como é diícil cumprir o projecto de editar bons livrosnuma altura em que as editoras se rendem ao bestseller ácil e decaminho vo destruindo catálogos e redes de distribuiço, e Ra-quel Varela no poupou críticas ao estado do Estado. Joo Tordo,depois de comemorar com o público e os colegas de mesa a demis-so de Miguel Relvas, anunciada nesse dia, mostrou-se convenci-do de que o tema da sua mesa, “a arte de morrer longe” (a partir deMário de Carvalho), era uma reerência premonitória ao voo queo levou ao Funchal e que só terá aterrado em segurança pelo meiodo vendaval que assolava a ilha graças ao comandante da TAP queo pilotava.

E

NTRE a literatura, a refexo e a boutade, hou-ve tudo o que se espera de um estival literário,um equilíbrio entre intervenções sérias sobre oestado da arte e o tempo que nos coube viver e

participações mais descontraídas, capazes decolocarem público e autores numa conversa

amena que desagradará aos puristas, mas que no deixa de ter oseu papel. Digamos que se as cabeças de cartaz ajudaram a encheras salas do FLM, o painel geral dos convidados no cou atrás noque toca à conquista dos dierentes públicos presentes.

Depois dos livros em orma de debate, houve música a encerraras noites do Funchal, com Massimo Cavali e os alunos do CEPAM,

Mariano Deidda acompanhando Fernando Pessoa e Cesare Pave-se num delírio poético que começou circunspecto e acabou aossaltos pela plateia, Sérgio Godinho deixando rendido o público doTeatro Baltazar Dias com as músicas de sempre e as novas, a ener-gia mutante e inesgotável, as palavras capazes de lavarem almas.E houve muitas visitas de escritores às escolas da Madeira, algoque chama pouca imprensa num estival mas que acaba por serum dos eixos undamentais de qualquer trabalho de programaçocultural: ormar públicos e leitores, colocando livros e autores noespaço íntimo que pode ser uma sala de aula. Para o uturo, ca aintenço de Francesco Valentini, da Nova Delphi, de transormaro estival num espaço de promoço da literatura de língua por-tuguesa, abrindo portas para as traduções e a ediço internacio-nal. É um projecto em construço, assume o editor, que quer levareditores, agentes literários e tradutores ao Funchal. Será um novopasso para colocar a ilha mais perto de todas as pontes.n

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ISPECinfantil e juvenil

Andreia Brites

“Não se perde por não se entender”  

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Este mês, cruzamos ideias e palavras que azem ruir as

crianças, sendo ou não pen- sadas para elas. Visitamos aexposição A hora e a estrela,dedicada a Clarice Lispector 

e lemos os seus livros inan-tis. Destacamos O Livro do Ano, de Aonso Cruz, um

livro que podia ter sido vá-rios, e que o autor, afnal, não sabe para quem é.

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QUANDO se entra, a luz é escassa para no ous-car os rostos de Clarice Lispector, que cobrem asparedes da sala e se sobrepõem às suas palavras

sobre a escrita. A teia da otograa diculta a lei-tura, entretecendo ambas num mesmo corpo.

Na segunda sala, impõe-se um branco baçopara uma dimenso sobrenatural que extravasa de qualquer or-dem ou discurso. As palavras esto gravadas na madeira comproundidade e volumetria. No meio, um colcho velho, inscrito eesventrado, ou um texto impresso e esventrado, num colcho.

Ao undo, uma barata de costas luta, irremediavelmente, porvoltar a ter as patas no cho. Desde  A Metamorose que sabemos o

que isso signica: agonia, desespero, lenta condenaço. O lme éprojetado numa estrutura que poderia guardar uma joia preciosa,num museu. Nas paredes, brilha uma rase. Caminhamos.

Descortinamos uma voz onde até ento só a imagem preenchiae excedia o espaço. A autora ala para a câmara, numa entrevistagravada, e sem a voz do entrevistador. Pausas, derivações, consta-tações, pausas, revelações, pausas, palavras… E, logo ao lado, pola-roides em cubos transparentes, legendam excertos dos seus livros.

Atravessamos outra sala por um arco retangular que ora seacende, ora se apaga, desvendando e ocultando uma cronologiade viagens. Do lado de ora do vidro, palavras, sempre palavrasque parecem estroes.

Na sala nal, espera-nos um arquivo monumental de gavetas,do teto ao cho. Acertar nas que se abrem e descobrir ragmentosde vida: documentos pessoais, cartas, livros seus, traduções, no-

tas, otograas. Puxar de uma cadeira e ler. Tudo so rases, res-pirações, ôlegos. Clarice Lispector – A Hora da Estrela é uma expo-siço pequena, sem cronologias ou bibliograas organizadas, que

prima por uma ideia. No segue o caminho da divulgaço e ganhatudo com isso: ganha identidade, veracidade e respeito. E desvelaao visitante como se partilha, intimamente, a alma de um escritorpelas suas palavras, sem as gastar em vo.

Mudr PersPeTiv

O sentido estético, as impressões grácas, o pretoe branco, o jogo de luzes, as dimensões das salas,tudo transporta emoções e sensações. A qualquer

um? Também a crianças de quatro, cinco, seis, noveanos? Como podero ler e sentir cada espaço? Fazsentido que dele se apropriem, como um adulto?

Marina Palácio concebeu uma ocina para amílias em quetorna essa visita numa experiência sensorial e de escrita para osmais novos. Ilustradora, autora de Banda Desenhada e realiza-dora de cinema de animaço, também cria e orienta projetos decriatividade. O convite partiu do Programa Descobrir, que oereceprojetos educativos a públicos de todas as idades a partir das ex-posições permanentes e temporárias de todos os equipamentos daGulbenkian, da arte à ciência.

“Para além do meu trabalho como autora de livros (texto e ilus-traço) para a inância, tenho desenvolvido em paralelo Ocinasde Leitura e Criatividade. A Maria de Assis Swinnerton tem vindoacompanhar o meu trabalho, e a Ocina dos Alabetos Sensoriais

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que oriento para crianças no alabetizadas inspirou-a a con-tactar-me.”, revela Marina Palácio. Dedicou-se ento a concebera Ocina “Pequenos escritores-astronautas”, para amílias com

crianças de duas aixas etárias: dos 4 aos 6 e dos 7 aos 9.O desao é que os visitantes percorram cada uma das salascomo se osse um planeta e que, a partir do que percecionam, re-gistem algo com a preciosa ajuda de um kit de escrita. “O nome daexposiço – A Hora da Estrela –, um romance da Clarice Lispectortambém adaptado para cinema, inspirou-me para todo o conceito.

Toda a exposiço está abundantemente recheada de rases queso quase como relâmpagos que iluminam alguns aspetos da vidade todos nós.”

visiT dos PlneTs

As primeiras ocinas correram muito bem. Ascrianças entusiasmaram-se e caram apaixo-nadas pelos kits, que queriam levar para casa.Embora as mais novas ainda no escreves-sem, puderam contar com a preciosa ajudados pais no momento do registo. A aborda-

gem à apresentaço dos planetas oi um pouco mais simples, masno essencial as propostas seguiram a mesma linha, para ambos ospúblicos.

Marina explica como tudo se passa: “A cada visita de um pla-neta, so apresentadas propostas grácas e sensoriais a partir daexploraço da vida e obra de Clarice Lispector. Cada escritor--astronauta possui sete postais em branco que vo sendo escritos

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no momento da exploraço de cada ambiente da exposiço. No -nal, os postais resultam num livro sensorial, gráco, precioso eúnico constituído por sete páginas viajantes como oi a própria

Clarice Lispector interiormente e exteriormente.” Cada sala as-sume uma nova identidade, planetária, e algumas das rases, es-colhidas para serem e por serem inspiradoras, transormam-seem ‘rases-oxigénio’. “Esta viagem intergaláctica corresponde aosambientes oerecidos pelas sete salas da exposiço: Planeta-Clari-ces; Planeta-Cama; Planeta Barata; Planeta-Entrevista; Planeta--Polaroides; Planeta-Mistérios; Planeta-dos-Segredos. A viagemaos sete planetas é viva e multissensorial. O meu papel é mediarcriativamente. As minhas propostas ajudam a que as crianças pos-

sam ler a obra de Clarice com o corpo todo e escrever/registar coma sua identidade essa vivência no momento.” Para escreverem, pre-cisam ento desse kit entregue a cada escritor-astronauta logo noinício. Também ele concebido por Marina Palácio, é uma espécie dearca do tesouro de estímulos e pistas de escrita. Os sete postais em

 branco, que sero preenchidos na exploraço de cada planeta, soo cerne da ocina e a sua memória, mas também há papel químico,olha de eucalipto, caneta corretora ou papel vegetal.

Equipados, os mais novos esto prontos para uma viagem a ou-tros mundos, que se lhes apresentam provavelmente estranhos,ora amiliares ora novos, ora alegres ora tristes, ora tranquilos oraexacerbados. A sua apreenso será certamente dierente da dosadultos, como é a da dita realidade em geral. Mas nem por isso soincapazes de lhe ler os sinais.n

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“(…) pergunta [Clarice]«Porque é queum cão é tão livre?» E responde: «Por-que é o mistério vivo que não se indaga».

 A existência ideal, para Clarice, seriaidentifcar-se tão integralmente com omundo – com o que não era ela – que

 já não necessitasse nem de indagaçãonem de resposta. E então, por ser exata-

mente o contrário disso, por não poder deixar de indagar, tenta ultrapassar aindagação, inventando respostas que,

 por assim dizer, desconstroem a lógica. Faz sentido, já que o discurso ilógico,irredutível à compreensão mas pleno

de emoções e sentimento, lhe possibilitauma espécie de êxtase, a sensação de es-tar para além da contingência, uma vez que, como ela mesma escreveu, «não se

 perde por não entender».”  1  43

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NOS livros inantis de Clarice Lispector no hásosticaço da linguagem. Há uma coloquia-lidade que estreita os laços com o pequeno lei-

tor, constantemente interpelado pelo narra-dor, para o inquirir, para o inormar, ou parapartilhar alguma dúvida insolúvel. “Oníria é

meio mágica também, mas só quando entra na cozinha. Imaginemque, com ovo, arinha de trigo, manteiga e chocolate, ela consegueazer explodir um bolo que é gostoso até para rei e rainha. Perguntoa você: quem é a pessoa mágica na cozinha de sua casa?”2

So pequenos contos que se aproximam, em termos estrutu-rais, dos contos para adultos: existe uma peripécia, um motivo de

aço, mesmo que seja depois desviado num outro sentido, surpre-endente. A linguagem no é aqui trabalhada nos limites do senti-do e é pela relaço interior entre todos os elementos que compõema narrativa – a disposiço do assunto no texto, a progresso e asrefexões intercaladas, a descriço das personagens, o papel in-terventivo do narrador – que se opera um esbatimento da lógica,como se assistíssemos a um ogo de artiício que, sendo uno à par-tida, se expande com brilho e cor em muitas direções.

É o que acontece, por exemplo, em  A Vida Íntima de Laura, ahistória de uma galinha normal que a narradora descreve sem eu-emismos: ela é a mais simpática que já conheceu, tem um pesco-ço horrível, é burra e poedeira. Ao mesmo tempo, revela, como seosse natural e óbvio aos olhos de qualquer um, emoções huma-nas: a alegria de ser me, a solido de um novo terreiro, a mania decomer sem parar, o medo de ser morta pela cozinheira de D. Luísa

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ou o reconorto pelas palavras do extraterreste. O ritmo é orali-zante, parecendo que as ideias surgem em catadupa e todas se su-cedem sem que se estabeleçam obrigatórias relações de causalida-

de. Acontece porque sim, e o leitor segue sem pestanejar, sorrindoa cada comentário, a cada provocaço: “Laura ouviu tudo e sentiumedo. Se ela pensasse, pensaria assim: é muito melhor morrersendo útil e gostosa para uma gente que sempre me tratou bem,essa gente por exemplo no me matou nenhuma vez. (A galinha éto burra que no sabe que só se morre uma vez, ela pensa que to-dos os dias a gente morre uma vez.)”3 Esta simplicidade aparenteesconde um jogo de espelhos subtil: num primeiro nível, o medode morrer; num segundo a hipotética reproduço de um pensa-

mento que revele a burrice da galinha e o comentário que, comhumor, o enatiza; e ainda, num terceiro nível, o sentido gurado epoético que pode ter a expresso ‘todos os dias a gente morre umavez’, que inviabiliza a condiço de burra da galinha e a transerepara a narradora e os leitores que se apressaram a concordar e rir.

ASSIM se desconstrói esta literatura: como sede um movimento centrípeto se tratasse, em

que à superície tudo é claro e simples e, ca-minhando para dentro de si própria, a lingua-gem põe em causa o seu sentido inicial.

Clarice Lispector desvincula as narrati-vas inantis de uma aço extraordinária ou excecional e aposta noconvívio entre o irrisório, aparentemente desinteressante, e umquestionamento daquela realidade que é muito mais do que julga-

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mos ver e saber. A autora é el às características ísicas dos prota-gonistas, no só de Laura como do coelho Joozinho que pensavacom o nariz, como todos os coelhos que o agitam sem parar, ou de

Ulisses, o co que no gostava de obedecer e adivinhava tudo pelocheiro. Mas o rigor da sua descriço, a sua atenço ao detalhe e asua exposiço adquirem contornos de humor, por serem surpre-endentes. “Natureza de coelho é o modo como o coelho é eito. Porexemplo: a natureza dele dá mais lhinhos do que a natureza daspessoas. É por isso que ele é meio bobo para pensar, mas no énada bobo quando se trata de ter lhinhos.”4 

OS protagonistas no so heróis, so apenas ani-mais, com pouca ou nenhuma inteligência, masconquistadores de liberdade, amor, elicidade,até justiça. A sua banalidade no lhes conereuma unço paradigmática, como tantas vezesacontece nas histórias inantis e na tradiço dos

contos morais e maravilhosos. O que têm de extraordinário está nasua individualidade e ali se nda. Clarice respeita o leitor inantil,escreve para ele e sobre si, os seus lhos e as suas memórias.

Em nenhum momento o menospreza, pelo contrário sedu-lo,interpela-o, leva-o ao estranhamento. Traz à superície do textouma escrita ingénua e um universo mágico, que joga com reeren-tes clássicos (os nomes das personagens em Quase de Verdade sodisso bom exemplo), com a tradiço dos abulários e dos contosmaravilhosos, mas que no visam reproduzir um imaginário abs-trato do que pode ser a inância.

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EM Portugal, a editora Relógio d’Água tem vin-do a editar toda a obra de Clarice Lispector, in-cluindo os quatro livros inantis que escreveu.

Em O Mistério do Coelho Pensante, o primeiro, aautora assina um prólogo em que explica que“a história oi escrita a pedido-ordem do meu

lho Paulo, quando ele era menor e ainda no tinha descoberto sim-patias mais ortes.” O texto segue, anunciando que a narrativa erauma homenagem aos coelhos que os lhos tinham tido e que tinhasido escrita “para exclusivo uso doméstico”. Tanto assim oi que al-guns anos passaram até à sua publicaço, em 1967. Alerta para asentrelinhas e as eventualmente necessárias explicações dos adul-tos. E remata: “Conversar sobre coelho é muito bom. Aliás, esse«mistério» é mais uma conversa íntima do que uma história. Daíser muito mais extensa que o seu aparente número de páginas. Naverdade só acaba quando a criança descobre outros mistérios.”

A vida e a linguagem esto imbricadas e se a primeira soa so- brenatural, a segunda está obrigada a car aquém da primeira. SeClarice o diz e rediz tantas vezes, se assim se edica, no exclui acriança e a inância. O mistério de como consegue o coelho sair da

casinhola de grades apertadas ca por desvendar.n

1. Gullar, Ferreira, «Para no dizer o dizível» in Clarice Lispector:  A ho ra da es-trela; curadoria de Ferreira Gullar e Júlia Peregrino; Lisboa; Fundaço CalousteGulbenkian; 20132. Clarice Lispector, Quase de Verdade, Lisboa, Relógio d’Água, p. 113. A Vida Íntima de Laura, Lisboa; Relógio d’Água, p.284. O Mistério do Coelho Pensante, Lisboa; Relógio d’Água, p.13

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o livro do no cagaa

“4 de Fevereiro

Aborrece-me que Fevereiro nunca veja dia 30.Decidi azê-lo. Peguei numa olha.

No é ácil azer um dia. Há a rotina,o pequeno-almoço de leite e torradas, depoisa escola. No é ácil azer um dia.Especialmente porque no há dias onde meterestes dias.

Quando penso nos dias, sei que eles so eitosde memórias. Comprei um diário.

Neste diário só vou escrever as memóriasdos dias que no existem no calendário.Até já tenho algumas recordações e lembro-mePereitamente do dia em que caí na rua de baixoe z uma erida no joelho que lateja todosos Invernos. Foi no dia 30 de Fevereiro,anotei.”

C omeçar por dizer que esta entrada, que explica a intenço daprotagonista e a razo de ser do diário, aparece quase no m do livro,levanta um pouco o véu ao que se propõe ao leitor: uma inverso dalógica, uma inverso das regras.

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Identicar como se constrói esta inverso implica dar mais um pas-so na leitura. Tudo é simples, por vezes silogístico, na voz de uma me-nina desenganada pelo irmo mais velho, seguida pela irm mais novae curiosamente alimentada pelos adultos, ainda que, talvez, involunta-riamente.

Podemos supor que tudo o que lemos até ao dia 4 de evereiro, e cer-tamente até ao dia 30, a última entrada do livro, acontece depois.

“ 30 de evereiro

Caí na rua de baixo e z uma erida no joelho.Foi exactamenteneste dia que comeceia escrever este diário.”

Ou, inversamente, separar o ato de escrita do seu tempo, como amenina explica em relaço às otograas. A melhor hipótese de leitura,contudo, será deixar vazio o espaço da correspondência lógica. Sabe-mo-lo porque já lemos todo o diário quando chegamos aqui, e aceitamosesta incongruência temporal.

Armou o autor que idealizou doze livros mas a certa altura deci-diu transormá-los num só, e que o pensou para crianças. O que tem de

 bom poder contar com o testemunho do escritor é precisamente consta-tar que o texto az um caminho, depois de si.

Este texto, construído por rases ditas recordações, transorma-asnum gigante que alberga sensações, sentimentos, observações e raciocí-nios que sempre partem do que se reconhece, para o desconstruir.

A imaginaço das crianças é muitas vezes proporcional à sua des-vinculaço das regras que limitam os adultos na comunicaço. Os diasque no existem no calendário no cabem nesses limites. Desse pontode vista, e pensando que o tempo e o espaço da inância so outros, deque os adultos guardam uma diusa memória, podemos crer que este

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livro possa ser um livro inantil. Sem qualquer prejuízo pelo preto e branco das ilustrações, marcadamente oníricas, no osse apresentar--se a menina, antes de uma palavra sequer, voando. Coincidência ouno, voa em sentido contrário ao movimento de leitura: da direita paraa esquerda. No podemos, para já, segui-la. Teremos de esperar até à úl-tima página, onde novamente estende os braços no ar. Nesse momento,podemos com ela regressar ao início.

Todo o livro se enleia, na sua construço metonímica que joga como mundo e com o discurso, as unções orgânicas e mecânicas, as causase os eeitos, os opostos espaciais, as homonímias. No se criam antino-mias, mas desvios, condenando ao racasso a dialética no nascimentode algo lateral, novo, que apaga irremediavelmente a síntese.

As árvores, os pássaros, as olhas, os rutos; as meias e a sombra; o

mar, o corpo humano, os berlindes e os raios x; os coelhos da Páscoa; ohorizonte, as otograas, a velhice… tudo é redimensionado e a matériado mundo perde-se da sua espacialidade e entra noutra dimenso.

De que conhecimento precisamos para ler e relacionar cada novaperspetiva? As páginas brancas, em branco, as páginas negras, em

 branco, a letra seriada, a pausa a cada nova estaço do ano… tudo estáorganizado para o leitor respirar, parar, ganhar ôlego. As imagens aju-dam a reiterar o onírico e o irónico. Há muito de ironia, tantas vezesmelancólica, nesta quase poesia.

A árvore, símbolo dos ciclos da natureza, do tempo que passa, da

própria vida, impõe-se naturalmente. Na capa, logo ouvimos as suas o-lhas, nos resguardamos sob a copa e, seguros, começamos a ler.n

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ilusTrrTen cs del lecTor

So leituras de cabeceira, leituras visuais que sugerem sonhos,para eles transportam quem as observa, ou deles obrigam a acordar.Este é o título da exposiço de cento e cinquenta ilustrações, três decada ilustrador, que a Casa del Lector expõe até setembro, em Madrid. Onome Lecturas de Cabecera é sugerido pela apresentaço das ilustrações,que se descobrem em gavetas de mesas de cabeceira, iluminadas porcandeeiros. A ideia pertence aos designers que desenharam a exposi-ço em Lisboa, para a 5.ª ediço da Ilustrarte, Bienal de Ilustraço para

a Inância. Eduardo Filipe e Ju Godinho, os seus comissários, criaramum concurso internacional de ilustraço, ao qual qualquer ilustradordo mundo pode concorrer com três ilustrações que entre si tenham li-gaço, sendo depois selecionados os melhores cinquenta trabalhos porum júri internacional que muda em todas as edições. É ainda distingui-do um vencedor e so atribuídas duas menções especiais. Em 2012, oitaliano Valério Vidali arrecadou o Prémio Ilustrarte, enquanto as men-ções especiais oram para Simone Rea e a dupla Nina Wehrle e EvelynLaube. Entre os selecionados para a exposiço constam nomes comoChiara Carrer, Sonja Danowski, Pablo Amargo, Bernardo Carvalho,

André da Loba ou David Alvarez.Para além da visita à exposiço, a Casa del Lector oerece ainda ate-liers em torno da mostra.n

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Xi cMinhos de leiTureM PoMl

Pombal recebeu, entre 10 e 11 de maio, mais uma ediço do En-contro de Literatura Inantojuvenil Caminhos de Leitura. Organizadopela Biblioteca Municipal, este encontro leva já 11 anos de existência,sem perder o ôlego. A programaço é de qualidade e aposta, por umlado, nas amílias e escolas do concelho, nos éis e potenciais leitores daBiblioteca, e por outro em todos os prossionais (proessores, educado-res, mediadores, animadores) que ali podero encontrar comunicaçõese ocinas dadas por especialistas nacionais e internacionais.

Por lá já passaram nomes como Estrella Ortiz, Manuel Sevillano, SergeBloch, Javier Saéz Castán ou José António Portillo.Este ano, as adas conviveram com os suportes digitais de leitura, mos-trando a todos que o imaginário no tem de abdicar de uns reerentespara integrar outros. Susana Silvestre, Cristina Taquelim, Paulo Con-dessa e Montserrat Fonts sonharam adas e gnomos. Carlos Pinheiro,Elisa Yuste e Joo Paulo Cotrim partilharam experiências sobre proje-tos digitais. Ainda houve tempo para ouvir contos, ver exposições, visi-tar a eira do livro. O plano de ormações começou uma semana antes,com diversas modalidades.

O programa oi ambicioso, mas sustentou-se, como em anos anteriores,na resposta que a Biblioteca Municipal tem dos leitores que vem or-mando, desde o berço, com espaços próprios e atividades continuadas.Esse trabalho dá rutos, promovendo boas práticas e leitores mais exi-gentes.n

Os Jardineiros das Palavras, www.miguel-horta.blogspot.pt 

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os Melhores infnToJuvenisde 2012 eM frnç

B ibliotecários (ABF) e livreiros (ALSJ) ranceses, especializa-dos em livros para crianças e jovens, elegeram em abril os seis melhoreslivros editados em 2012 em França. Os Prix Sorcières oram anunciadosna Fête du Livre Jeunesse de Villeurbanne, depois de ter sido reveladaem janeiro uma lista de nomeados, pelo júri do Prémio.Respeitando critérios de qualidade literária e gráca, rigor inormativo,originalidade do tema, e respeito pelos leitores mais novos, bibliotecá-rios e livreiros votaram no vencedor, em cada uma das seis categorias.

2 Yeux? , de Lucie Felix (Ed. Les Grandes Personnes) venceu na categoriade Tout Petits com um livro cartonado ao jeito de Komagata ou Munari.Na de Albums, oram distinguidos os japoneses Kenya Hirata (texto)e Kunio Kato (ilustrador) das Ed. Nobi-Nobi, com  La Maison en PetitsCubes, uma narrativa sobre a velhice e a memória.As peripécias de uma criança que acredita ser capaz de se tornar invisí-vel para no comer mereceram o prémio nas Premières Lectures. Émileest invisible, de Vincent Cuvellier (texto) e Ronan Badel (ilustraço), éuma ediço da Gallimard Jeunesse, que também arrecadou a distinçona categoria de Romans Ados, com Max , em que Sarah Cohen-Scali re-

gressa a um tema caro a adolescentes e jovens: o nazismo.Na de Romans Juniors, o vencedor oi Brian Selznick com mais umanovela textual e gráca, Black Out (Bayard Jeunesse)Finalmente, em Documentaires, o vencedor oi Cartes: voyages parmi mille curiosités et merveilles du monde, de Aleksandre Mizielinska e Da-niel Mizielinski (Ed. Rue du Monde). nhttp://www.abf.asso.fr/2/25/336/ABF/prix-sorcieres-laureats-2013?p=5

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shrJh children redinG fesTivl:uM referênci no Mundo áre

Pelo 5.º ano consecutivo, realizou-se em Sharjah, nos EmiradosÁrabes Unidos, entre 23 de abril e 3 de maio, uma eira exclusivamentededicada ao livro inantil. A maioria dos stands oi ocupada por edito-ras dos EAU. No entanto, o Líbano, a Síria, o Egito, a Jordânia, a ArábiaSaudita, a Tunísia e o Qatar também marcaram presença, ortalecendoo conceito deendido pela organizaço: um espaço de partilha de livrose inormações sobre todo o universo inantil no espaço árabe. A Feiraacolheu igualmente as grandes cadeias americanas e europeias como a

Harper Collins, a Random House, a Hachette ou a Simon & Schuster. Olivro inantil começa a ser uma aposta muito orte no mercado editorialda Península Arábica, seguindo o que se passa na Índia e também naChina.Na Feira estiveram disponíveis cerca de 20.000 títulos impressos em 16 línguas dierentes, e os suportes digitais também no oram esqueci-dos. O espaço acolheu ainda, pela segunda vez, uma Exposiço Inter-nacional de Ilustraço, com trabalhos de 75 ilustradores, previamenteselecionados em concurso, e um programa paralelo de atividades paracrianças e mediadores. A par de livros e autores árabes, houve muito

espaço para novidades e clássicos europeus e americanos.  Elmer , TomSawyer e Pipi das Meias Altas oram alguns deles.nhttp://www.sharjahbookfair.com/portal/0dd72331-3dcc-4f86-a56b-

0819895e3b4a.aspx

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Saramaguiana

Carlos Reis

Fernando Gómez Aguilera

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 Na sequência da publicaçãode A Estátua e a Pedra, de

José Saramago, a Blimunda publica os textos de Carlos

 Reis e Fernando Gómez  Aguilera, lidos na sessão

de apresentação destelivro. Dois documentos undamentais para um percurso pelo universoliterário e intelectual do

 Prémio Nobel português.

Objetos pessoais de José Saramago em exposição na Fundação 

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 CONHECIDA a imagem do escultor que, em

 busca da orma ainda por vir, desbasta a pedraà procura do que ela esconde, seja estátua decorpo inteiro, busto ou simples adorno. E é sa-

 bido também que o trabalho do escultor, comoo do pintor ou o do modesto oleiro, consenteme até estimulam a transerência, para outrasatividades, de conceitos que, nas chamadas

artes plásticas, remetem para aquilo que é da ordem do material eliteralmente palpável; e assim, a modelaço do gesso ou do barro, ocorte da pedra com o cinzel ou o espalhar da tinta com a espátula re-aparecem metaoricamente no campo da criaço literária. Tal como

dizemos daqueles, seja pintor ou escultor, armamos do escritorque ele modela as suas personagens, desenha o seu perl, compõeum resco, pinta, delineia ou cinzela uma paisagem ccional. Masvamos mais longe, em matéria de homologaço artística ou to-sóde mimetismo artesanal; alamos ento no sólido travejamento deum romance, numa história bem arquitetada ou no romancistacomo hábil carpinteiro do relato que enuncia.

No acontece isto por acaso. Aparentemente temos diculdadeem entender ou até em ver claramente visto como se processa a cria-ço literária, para aquém da letra legível em que lemos o poema,o conto ou o romance. Por isso, apelamos àquelas imagens. E con-nosco os escritores, porque, sendo muitas vezes generosos no quetange à caracterizaço da sua escrita, ajudam-se também eles, comas metáoras a que aludi; e alam na sua ofcina de trabalho, como senela pudéssemos ver, pendurados ou desarrumados, o martelo e o

ormo, a plaina e a serra. É já mais elaborado e às vezes até exces-sivo sob vários pontos de vista, o conceito de ocina ou de ateliê deescrita, lugar de encontro de aprendizes com o mestre que os inicianisso que almejam: dominar as erramentas e a técnica – etimologi-

camente: a arte manual – da composiço literária.Na metalinguagem de uma disciplina que algo tem que ver

com o que ca dito e que é a crítica genética, tratamos de tudo istoe do mais que agora no vem ao caso. Descrevemos ento o borroque o escritor abandonou, mas nem nos damos conta de que essaé uma imagem undamentalmente plástica, a da mancha de tintaque o pintor trata de superar pela orma artística que está no seuhorizonte criativo. O mesmo az o escritor, seja o borro um ras-

cunho manuscrito ou um cheiro provisório, na memória de umcomputador. Já chegarei a José Saramago e a A Estátua e a Pedra. Antes, po-

rém, aço notar que so respeitáveis e muito antigas as origens detodas estas derivas conceptuais e uncionais, de umas artes paraoutras, na tentativa de uma precisa descriço da criaço artísticae literária. Sabemos bem que o amoso ngimento pessoano nose entende se o desligarmos da poética horaciana, que nos diz quengir ( fngere) é criar e representar, mas também modelar. Como seser autor de cções requeresse (e requer) a construço de modelosdo mundo que, entendidos assim, so indissociáveis do gesto do es-cultor que aeiçoa a pedra. E a também horaciana órmula ut pictura poesis, tantas vezes mal interpretada, sublinha uma semelhança jáno no plano da criaço, mas no da contemplaço das obras artís-ticas: Horácio sentia que era necessário reclamar, para a leitura da

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poesia, atitudes e estados emocionais to exigentes e plurais comoaqueles que a pintura demanda.

É por isso natural que, em diálogo com uma tradiço e com umimaginário da criaço que radica num dito de remota origem – a

pintura é poesia muda e a poesia é pintura que ala, declarou o po-eta Simónides –, dito amplamente disseminado no mundo ociden-tal, muitos escritores alinhem na homologaço entre artes de quevenho alando. Perto de nós, zeram-no Sophia de Mello BreynerAndresen (“Todo o poeta (…) é arteso de uma linguagem”1) e Eu-génio de Andrade (“uma música, sem nome ainda, começa a subir”,quando nasce o poema2). E Carlos de Oliveira conrmou expres-sivamente a exigente dimenso de materialidade que a escrita lite-

rária comporta, no singelo título que atribuiu ao conjunto dos seuspoemas: Trabalho Poético.Nada disto surpreende, nada disto é novo. O que surpreen-

de é que um escritor chamado José Saramago de repente nos diga:“Cada vez me interessa menos alar de literatura”3. E logo a seguir:“A verdade é que duvido mesmo que se possa  alar de literaturacomo duvido, com mais razões, que se possa  alar de pintura ou sepossa alar de música” (p. 17).

Maior surpresa nos atinge se tivermos presente que quemaquilo escreveu no oi parco nem ambíguo quando, por muitas ve-zes e em dierentes circunstâncias, refetiu sobre os sinuosos mo-dos de ser escritor, ou seja: sobre a relaço entre História e cço,sobre a escrita literária como trabalho, prosso e compromisso,sobre a instituiço literária as suas lógicas e as suas perversidades,sobre os géneros literários herdados e a sua subverso, sobre os

desaos da língua como orma e substância de expresso, sobre ou-tras linguagens artísticas (o teatro, a ópera, o cinema, etc.) que re-elaboram textos para atos recetivos outros, que no a leitura. Sobretudo isso alou e escreveu Saramago, em conerências, em entrevis-

tas, em crónicas, em textos diarísticos e até no interior das cções;sobre tudo isto e também, como pode ler-se no ensaio de que agoraocupo, sobre a escultura como metáora da obra literária, dos seusavatares e dos seus sentidos.

Olho para trás e verico: no é a primeira vez que a esculturaacode a José Saramago para sugerir, a ele e a nós também, as di-culdades, os segredos e os engenhos da criaço artística. Lembroaqui, seguindo o escritor, aquele moço, “habilidoso de seu natural,

que, sem nunca ter tomado aulas de belas-artes nem aprendido demestres particulares, e no dispondo doutra erramenta que um ca-nivete, em pouco tempo transormava um toco de madeira bruta nomais acabado e pereito urso de que rezariam histórias da esculturase osse objetivo delas preocuparem-se com talentos rústicos e pai-sanos.” 4 

ERANTE a inocente simplicidade dequem revela, com um trivial canivete, ourso dentro da madeira, o escritor José Sa-ramago, que também no requentou be-las-artes nem ocinas de escrita, conclui:“A arte, anal de contas, no é ácil, o rapazdos ursos esteve a divertir-se à nossa cus-ta”. Mas ensinou, ainda assim, duas lições

ao escritor, a da modéstia e da generosidade, desao e interpelaço

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para quem quer descobrir o que está dentro das palavras com quese azem as cções. E assim, “bem imprudente seria aquele que seatrevesse a jurar que no interior de cada bocado de madeira no háum urso à nossa espera. (…) Ainda que no consigamos vê-lo dis-

tintamente, pelo menos somos capazes de adivinhá-lo, intuímo-lo,aparece-nos ao longe como uma luz instável e lenta, um luzeiro que,por assim dizer, no chegasse a iluminar-se a si mesmo.” 5 

Foi a procura daquela luz que motivou a vida de José Saramago.Daí que seja visível o o de cumplicidade que liga o moço do cani-vete ágil ao escritor maduro que em  A Estátua e a Pedra reclamou“uma muda contemplaço diante de uma obra acabada, pela cons-ciência que tenho”, diz, “de que, de certa maneira, nos domínios da

arte e da literatura estamos lidando com aquilo a que damos o nomede ineável” (p. 17). A essa ruiço centrada num ato de intransmis-sível empatia chamou George Steiner o culto da  presença real : “Napintura e na escultura, como na literatura, a concentrada luz dainterpretaço (o hermenêutico) e a valoraço (o crítico-normativo)encontram-se na obra de arte”, disse Steiner; e a seguir: “As melho-res leituras da arte so arte”6 .

So ousadas, mas perigosas estas palavras. Steiner certamentesabe que, em unço de uma conceço radicalmente imanentistada obra artística, a reduço da leitura a um silencioso ato de mime-tismo criativo resulta em autocontemplaço, em deriva individua-lista e mesmo elitista dos enómenos culturais. E sabendo-o tam-

 bém Saramago, dá nota disso: “Seria absurdo pretender reduzirao silêncio aqueles que escrevem, ou aqueles que leem, ou aquelesque sentem, ou aqueles que compõem música ou que pintam ou que

esculpem, como se a obra em si mesma já contivesse tudo quanto épossível dizer e que tudo o que vem depois no osse mais do queinterminável glosa” (p. 17). Em A Estátua e a Pedra, Saramago recusaaquele silêncio e relativiza a tal “muda contemplaço”.

onsciente, como sempre esteve, de que asua obra se abre aos outros – aos leitoresde agora e aos do uturo –, José Saramagoprocede em A Estátua e a Pedra a uma expli-caço. É isso que o subtítulo anuncia, masde orma calculada: “O escritor explica-se”.Assim mesmo e no “o escritor explica”,menos ainda “explica-nos”. O escritor ex-

plica-se, porque pondera o que ez, em autoanálise deixada ao nossodispor: trata-se de um “encontro entre autor e leitor” (p. 19) em queo explicar-se de José Saramago tem muito de olhar lançado sobre simesmo, sobre os livros que escreveu, sobre os sentidos que por elesoi dispersando e sobre os tempos e os modos da sua própria evolu-ço literária. Apenas três anos separam a história do rapaz escultor(que é de 1994) da redaço original d’ A Estátua e a Pedra, conerêncialida em Turim em maio de 1997. Entretanto, outros anos passarame José Saramago ampliou o arco cronológico que cobre esta auto--indagaço, até chegar ao romance O Homem Duplicado, apresenta-do em Lisboa em outubro de 2002, na véspera de o escritor cumprir80 anos. Para aquilo que interessa a este texto, so quase três dé-cadas de escrita de cções, pois que so estas sobretudo que levamSaramago a explicar-se, estendendo a explicaço a quantos com elequiserem partilhá-la.

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Quero eu e aceito o desao de um debate que abre  A Estátua e a Pedra, debate que traz consigo, do lado do romancista, o tema – qua-se uma vexata questio – do romance histórico. Ou melhor: do alega-do enleiramento de José Saramago na coorte dos que cultivaramum tipo de romance ancorado a valores e a ideias que o século XIX

cultivou, mas que o nal do século XX e o século XXI saramaguia-nos só por anacrónico seguidismo poderiam emular. “O rótulo gas-to de que sou um romancista histórico”, diz Saramago conessando“uma certa impaciência”, explicar-se-ia, ento, “tanto por algunslivros que escrevi como pela minha relaço com o tempo e posiçoperante a história” (p. 18). O mal de que Saramago se queixa é bemportuguês, conorme Eça um dia notou: “Desde que nós, portugue-ses, laboriosamente conseguimos arranjar uma ideia dentro do crâ-

nio – a nossa preguiça intelectual, o nosso desleixo (…) impede-nosde lhe mexer, de a tirar do seu canto, onde ela ca ganhando bolorem tranquilidade e para sempre.”7 Assim tem acontecido com olugar-comum cultivado pelos desleixados de serviço: Saramago éromancista histórico e ponto nal.

Compreende-se, pois, que uma parte d’ A Estátua e a Pedra sejaconsumida a explicar (ou a explicar-se) por que razo ou sem-razo Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segun-do Jesus Cristo e mesmo Manual de Pintura e Caligrafa e Levantado doChão – quer dizer: romances em que abundam pessoas, episódios ecenários migrados da História que conhecemos para a cço que oescritor compôs – têm sido conundidos com romances históricos.Conundidos e desse modo desvalorizados no que representam deousada reconguraço ccional no do que sabíamos, mas do que

 julgávamos saber. Como se, de repente, um escritor do m do sécu-

lo XX cedesse à serôdia tentaço de imitar os modelos literários deAlexandre Herculano ou de Walter Scott, quando já se sabe, desdeque Eça o disse (e Saramago cita-o) que a História será sempre umagrande antasia; e disse-o, curiosamente, a propósito de um seu ro-mance, A Relíquia, que trata da paixo, morte e ressurreiço do Na-

zareno, em registo no menos heterodoxo (blasemo, diro alguns)do que aquilo que está n’O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

UEM hoje lê as explicações de José Sara-mago em A Estátua e a Pedra encontra-seno lugar de cómodo distanciamento emque é possível rever a questo que impa-cientou o escritor. Por outras palavras:no estamos dentro do processo criati-

vo, no somos o tal moço de canivete emriste e apenas olhamos o urso quando elenos é dado a ver. Por isso dizemos com meridiana clareza: a questodo romance histórico em Saramago é uma alácia (para dizer o mí-nimo) to absurda como a da ausência de pontuaço na sua prosa,coisa que já oi dita e redita por exegetas de vo de escada que nuncaleram uma linha de Saramago, mas que padecem da preguiça inte-lectual denunciada por Eça.

A questo é outra e a Saramago, para o evidenciar, bastar-lhe-iaconvocar um seu texto de 1990 a que regresso muitas vezes: esse emque, sob a égide de George Duby e da historiograa que ele renovou,o escritor disserta sobre História e cço. “A História, tal como seescreve, ou (…) tal como a ez o historiador”, arma, “é primeirolivro, no mais que o primeiro livro.” E depois: “Restará sempre,contudo, uma grande zona de obscuridade, e é ai, segundo enten-

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do, que o romancista tem o seu campo de trabalho.”8 O romancis-ta trata, ento, de “reclamar a presença” do passado (expresso dopróprio Saramago9), numa dupla aceço: chamar de novo e reivin-dicar um outro modo de ver esse passado. E assim, aquilo que, porm, a cço pós-modernista de temática histórica trata de azer é

construir e desenvolver “dispositivos de contraditória conjetura eautorrefexividade, de modo a questionar a natureza do conheci-mento histórico, tanto de um ponto de vista hermenêutico comode um ponto de vista político”10, disse Elisabeth Wesseling no apropósito de Saramago, mas de toda uma tendência que atravessauma parte da grande cço escrita na segunda metade do séculoXX. Dessa cço, José Saramago é um expoente maior.

Estamos ento entendidos quanto a esta história. Ou História,

com maiúscula. Que o mesmo é dizer, acompanhando o escritor notrajeto seguido pelo seu ensaio: estamos esclarecidos quanto ao la-vrar da estátua. “A estátua”, cito, “é a superície de pedra, o resulta-do de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, asroupagens, a gura, é descrever o exterior da pedra, e essa descri-ço, metaoricamente é o que encontramos” (p. 33) desde  Manual de Pintura e Caligrafa até a O Evangelho segundo Jesus Cristo. E assim,com uma grande lucidez relativamente ao que oi a mudança da suaobra do início dos anos 90 em diante, José Saramago assinala o co-meço do tempo da pedra.

OM Ensaio sobre a Cegueira – em meu juízoum dos grandes romances de José Sarama-go – enceta-se a tendência para a contem-plaço da pedra, como a substância últimae recôndita que, sendo a essência da está-

tua, é a transcendência do romance. Assimmesmo, embora me pareça que aqui o es-critor peca por modéstia, já que as cções

anteriores a Ensaio sobre a Cegueira, sendo requentemente elabora-das em registo de indagaço metaliterária (o azer-se do romance,o engendramento dos eventos, a questionaço da cço), no des-prezam uma refexo exigente acerca da nossa relaço com o tempoe com a morte, com Deus e com a arte, com a História e com os de-

saos do nosso presente, com os mitos da nossa civilizaço e com anecessidade de os desconstruir. No é pouca coisa.Mas no há como negar: a prosa incomparavelmente mais es-

correita e despida de alusões metalinguísticas avorece o apareci-mento da pedra. A arquitetura agora no é barroca e a catedral queSaramago vai construindo tem as ormas retilíneas do nosso pre-sente e do nosso uturo; chama-se homem o Deus que a habita. No

 já dito Ensaio sobre a Cegueira, em Todos os Nomes, em  A Caverna eem O Homem Duplicado esse homem – essa condiço humana, por-que é assim que a pedra se chama – autoexilou-se dos deveres da so-lidariedade e da justiça. O homem lobo do homem de que ala JoséSaramago em A Estátua e a Pedra traduz bem a cosmoviso sombriae melancolicamente desencantada de um escritor que, nesse tem-po mais do que nunca, se ez militante de causas sociais e aceitoude peito aberto a impopularidade de lhes dar a sua voz. Os matizes

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inquietantes que revestem o ser desumanizado da cço sarama-guiana têm nomes próprios: egoísmo, consumismo, dissoluço dapessoa, intolerância, crueldade, violência, desconhecimento e atédesprezo pelo próximo. Por sobre as ruínas que estes sentidos voanunciando, assoma aquele assustador Anjo que avança de costas

para o uturo, tal como Walter Benjamin o concebeu, a partir doquadro amoso de Paul Klee. Como ele, Saramago olha a catástroesem m da nossa comum História e lastima as ruínas que ela temacumulado, pelo meio de um vendaval chamado progresso.

alta inevitavelmente em  A Estátua e a Pedra o que veio depois de O Homem Duplicado, umdepois já inscrito naqueles sentidos sombriosa que aludi; é isso mesmo que nos dizem  As

 Intermitências da Morte o e o quase derradeiroCaim. Neles, continua José Saramago a suacaminhada “em direço ao essencial”, ou seja,penetra “mais proundamente na pedra obs-

cura do ser do que até ento tinha sido capaz” (p. 39). O trajeto quesegue, em direço ao m – m de quem ou de quê? eis a perguntaque nos assusta –, assemelha-se ao arrepiante desenlace vivido poraquele coronel Aureliano Buendía que, em Cem Anos de Solidão enum ato de lucidez terminal, salta páginas da história que está a lere antecipa a extinço da sua estirpe, numa Macondo que é já “umpavoroso redemoinho de poeira e escombros centriugado pela có-lera do uraco bíblico”11.

É tarde para perguntar a José Saramago se  A Estátua e a Pedra conrma os temores de Aureliano Buendía e o pavor do Anjo daHistória benjaminiano. Mas lendo o que ali nos é dito, somos leva-

dos a crer que só a literatura e a arte podem estender com rme-za a ponte que nos leva ao nosso semelhante. Por m, Saramagoconverge com George Steiner: “A empresa e o privilégio do estéticoé ativar em presença iluminada o continuum entre temporalidade eeternidade, entre matéria e espírito, entre o homem e ‘o outro’”12.

Fazemo-lo com a ajuda das histórias contadas por José Saramagoe do apelo à memória que elas nos endereçam; porque “esquecer éa morte denitiva”. E assim, pela magia das cções conseguimos“prolongar a vida e os nomes das pessoas, dotá-las de outra exis-tência. Talvez, ao m e ao cabo, seja essa a tarea mais importantedo escritor de cções” (p. 40).n

1. Sophia de Mello Breyner Andresen, “ArtePoética – II”, em Geografa, Obra Poé-tica II . Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 95.

2. Eugénio de Andrade, “O Sacriício de Igénia”, em Rosto Precário, Poesia e Prosa(1940-1979). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, p. 299.3. José Saramago,  A Estátua e a Pedra. Lisboa: Fundaço José Saramago, 2013, p.17. Todas as citações so desta ediço, a partir de agora apenas com indicaço depágina.4. José Saramago, “Do Canto ao Romance, do Romance ao Canto”, in  Bulletin o  Hispanic Studies, vol. LXXI, n.º 1, january 1994, p. 119.5. Loc. cit., p. 119.6. Presencias Reales, p. 29.7. Eça de Queirós, Cartas Públicas. Ediço de Ana Teresa Peixinho. Lisboa: Im-prensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, p. 194.8. J. Saramago, “História e cço”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 400, 1990, p. 19.9. C. C. Reis, Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, pp. 84-5.10. E. Wesseling, Writing History as a Prophet . Postmodernist Innovations o theHistorical Novel. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1991, 117.11. Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão. 2.ª ed., Lisboa: Publicações Eu-ropa-América, 1974, p. 392.12. G. Steiner, Presencias Reales, ed. cit., p. 275.

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“Aglobali ã

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Apontamentospara uma leiturade A estátua e a pedra . Da Históriaao desassossegocontemporâneoFernando Gómez Aguilera

 VERTENTE refexiva e analíticada literatura no oi alheia a Sa-ramago. Desde muito cedo, maisconcretamente durante os anosde 1967 e 1968, escreveu mais deuma vintena de críticas literáriasnas páginas da Seara Nova. Já umautor reconhecido, a partir da pu-

 blicaço de  Levantado do Chão em 1980, oi ecundo em comentá-rios e anotações sobre os seus livros. Comunicou as suas obser-vações, com prodigalidade, em entrevistas, artigos, conerênciase colóquios, desenvolvendo uma signicativa veia hermenêuticamuito estimável no momento de abordar a sua obra a partir daperspetiva do autor e de se aproximar aos propósitos que o mo-

A  globa liza çã o econó m ica  é u m  

euf e m is m o  pa ra  encobrir o sis-te m a   político 

que a s gra nd es  m ultina ciona is estã o a  i m  por: 

o ca  pita lis m o é a utoritá rio.” 

“Não são o

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veram. Saramago interessou-se em construir e transmitir o seuprivilegiado ponto de vista a propósito do que escrevia, num sus-tentado a de se entender e de se azer entender:

“…independentemente de ser ou no um romancista assim

[histórico], a verdade é que quando acabei O Evangelho segundo Jesus Cristo, e sem que soubesse o que poderia ocorrer depois,me deparei com uma relutância (relutância é uma orma de di-zer), olhei para um lado e para o outro e disse a mim mesmo:“Bom, isto acabou-se”.” [Entrevista de Tununa Mercado a JoséSaramago, La Jornada, México DF., 18 de outubro de 1998]

“Talvez tudo isto tenha a ver com a idade, com a experiência,

com muitas coisas que eu mesmo no saberia denir aqui. Maso que ca claro é que com o  Ensaio sobre a Cegueira começoualgo novo no meu trabalho.” [Entrevista realizada por José LuisMoure a José Saramago, Biblioteca Nacional de Argentina-Salavirtual de leitura, Buenos Aires, 12 de dezembro del 2000]

“Com O Evangelho echa-se uma porta e abre-se outra. Como Ensaio sobre a Cegueira, publicado também aqui, apontava aocoraço do ser humano, depois de olhar – no direi para a Hu-manidade, pois é um disparate dizê-lo assim – para o que eupensava que deveria ser o assunto do meu trabalho com umagrande angular onde cabia a história bíblica, a história de Por-tugal.” [“Pensar, pensar y pensar”, Verso da intervenço de

 José Saramago, Prémio Nobel de Literatura, a 17 de junho de2005 na sala Che Guevara da Casa das Américas, La Habana]

N ã o sã o os  po-líticos os que 

gov erna  m  o  m un-d o. Os luga res d e  pod er, a le m  

d e sere m  su pra - na ciona is,  m ul-tina ciona is, 

sã o inv isív eis.”

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“Eu penso que as duas obras que marcam a minha narrativa,que eu dividiria em dois períodos distintos, [e que] mostram osmeus sinais de identidade, so Levantado do Chão e o Ensaio so-bre a Cegueira. ”[Andrés Sorel, José Saramago. Una mirada triste y lúcida, Madrid, Algaba Ediciones, 2007]

Os dois ciclos narrativosor alturas de 1997, coincidindo com a con-cluso de Todos os Nomes, depois de terpublicado dois anos antes o seu granderomance Ensaio sobre a Cegueira e de seter instalado em Lanzarote, participouno encerramento de um seminário sobrecultura portuguesa organizado pela Uni-versidade de Turim. Aproveitou ento a

ocasio para alinhavar uma viso panorâmica sobre a sua própriaproduço. Reconheceu ali dois grande ciclos narrativos (deixandoà margem o seu período ormativo) e caracterizou-os. Entendia quese havia produzido uma “rutura radical” no seu universo literário eaproundou uma explicaço sobre a natureza dessa ratura.

Moveram-no duas razões undamentais para ormular os seus

 juízos: por um lado, reagir e livrar-se do peso da incómoda e im-própria etiqueta de romancista histórico; e por outro, deendero tipo de romance que tinha começado a escrever na década denoventa, concebida como uma novidade no seu trabalho. Assimo reconheceria em Turim, no apenas ali, mas em diversas inter-venções públicas a partir de ento.

A Metáforaara explicar-se, em Turim, cria umagrande metáora binária que ará cami-nho: a da estátua e a pedra. Coincidin-do com a etapa da sua escrita alegórica,

recorre às possibilidade seminais daanalogia gurada, estimulado pelo em-penho em esclarecer o que estava a suce-der no seu panorama criativo. Mostra-se

conante na capacidade irradiadora do sentido da metáora, umdos grandes pilares do discurso literário:

“… eu tinha de entender o que se estava a passar depois deescrever Ensaio sobre a Cegueira, que é uma rutura radical comtudo o que havia eito antes, e conrma-se essa rutura com esteúltimo romance Todos os Nomes, que é uma mudança: o estilotornou-se mais seco, mais austero diria eu, menos ornamen-tal. Nestes últimos tempos, pensando nisso, creio ter chegadoa uma concluso: a metáora sempre oi a melhor orma de ex-plicar as coisas. E encontrei uma metáora que talvez expliqueisto. É como se até a O Evangelho segundo Jesus Cristo tivesseestado a descrever uma estátua, qualquer que seja, mas uma

estátua: as suas roupagens, a cara, o nariz, a beleza da estátua.E, a partir de Ensaio sobre a Cegueira e especialmente de Todosos Nomes, é como se tivesse passado a interessar-me no pelaestátua mas sim pela pedra de que está eita a estátua. Porquequando alguém olha para uma estátua, no vê a pedra: o quevê é a orma. Ainda que te digas: “Esta estátua está eita de pe-

“Constat

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dra”, no estás a ver a pedra. Ou, para dizê-lo de uma ormamais pretensiosa, é como se dissesse: “Agora o que a mim meinteressa é a essência”. E no quero dizê-lo assim. Prero car--me pela metáora: no a estátua mas a pedra.” [Entrevista deTununa Mercado a José Saramago, La Jornada, 18 de outubro

de 1998]

O núcleo substantivo último da sua narrativa, entendida comouma meditaço sobre o erro humano, continuaria intacto, masadotava agora um enoque distinto, sem renunciar à identidade domal-estar:

[No escrevo] por amor, mas por desassossego. Escrevo

porque no gosto do mundo em que vivo. [“Saramago: ‘Yo noescribo por amor, sino por desasosiego”, El Día, Tenerie, 15 de janeiro de 2003. Notícia de la Agencia EFE]

Como to-pouco renunciará nem à conceço de género comolugar literário de expresso total, nem à energia do pensamentoromanceado, isto é, a entender o romance como espaço de pensa-mento e de questionamento da verdade instituída:

  “No escrevo livros para contar histórias, só. No undo,provavelmente eu no seja um romancista. Sou um ensaísta,sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que éassim: cada romance meu é o lugar de uma refexo sobre de-terminado aspeto da vida que me preocupa. Invento históriaspara exprimir preocupações, interrogações...” [Entrevista de

Consta ta  m os que o  pod er rea l 

nã o está  nos  pa -lá cios d os go-v ernos:  encon-

tra -se, si m , nos conselh os d e a d - m inistra çã o d a s 

 m ultina ciona is que  d ecid e m   a  nossa  v id a .” 

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Humberto Werneck a José Saramago,  Playboy, So Paulo, Oc-tubre de 1998]

A aproximaço e a visualizaço literária do erro associa-se anovas estratégias modais e a novos mundos, a outras interroga-

ções e variações sobre a questo de undo, que no seria adequadointerpretar, de maneira simplicada, como uma conrontaço en-tre a superície da estátua e a riqueza da pedra, entre o lado de orae o de dentro. Saramago sentiu este movimento, mais propriamen-te, como um “echamento angular” nos seus interesses, um actoque o conduziu a modicar as suas intenções como romancista,abandonando o grande espaço da História para centrar-se no in-divíduo contemporâneo. Entendia o sucedido em unço da buscado essencial, como um processo de indagaço radical da naturezahumana e das circunstâncias em que se desenvolve a existênciacontemporânea, enquanto insistia em reivindicar o regresso da -losoa, a perentoriedade das ideias.

A estátua e a pedrantre 1980 ( Levantado do Chão) e 1991 (O Evangelho segundo Jesus Cristo), decorreriao ciclo da estátua: Saramago escreve sica-

mente em Lisboa, medita sobre o passadodo seu país, opta por estruturas corais eembrenha-se num labiríntico estilo barroco.Relaciona-se com a História no para azerromances históricos, algo que nunca oi sua

vontade, alheada de qualquer pretenso de reconstruço arqueo-

lógica, mas sim para introduzir o romance no coraço da Históriacom a intenço explícita de questionar as grandes verdades apon-tando pontos de vista dierentes, incómodos, que desestabilizam aperspetiva dominante.

Conceptualmente, desenvolve-se entre “a História é uma c-ço” de Georges Duby e o “toda a História é História contempo-rânea” de Benedetto Croce, apoiado na convicço de que, sendo aHistória parcial e estando inacabada, a literatura pode corrigi-lae completá-la, repondo omissões e, em denitivo, atirando umareparadora luz sobre a obscuridade que a verdade histórica hege-mónica gera em seu redor:

“O meu trabalho como escritor é o de levantar esses homensvivos que, pelo acto de estarem mortos, esto vivos.” [«A ques-to que se põe hoje em Portugal é a da sobrevivência – alerta

 José Saramago», O Diário, Lisboa, 29 de setembro de 1985. Re-portagem de António Arnaldo Mesquita]

Saramago multiplica os pontos de vista e volta-se para o pas-sado olhando-o desde o seu presente com o m de compreenderas pulsações dos dias em que vive, no tempo em que aloja a pa-

lavra no âmbito da justiça e da redenço social, posicionando-acontra o silêncio e o esquecimento. Mas, acima de tudo, conron-ta-se com o poder que cega, dos relatos únicos. Mostra o seu ce-ticismo em relaço ao dogma, desvelando os alicerces ideológi-cos com que se arma a sua construço, e contrapõe perspetivasalternativas, uma leitura inédita da realidade, considerando a

“Penso que ã

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intra-história que ca excluída e uma interpretaço discrepante.

Esse o de diálogo pessoal com a História quebrar-se-á em 1995com a apariço de Ensaio sobre a Cegueira. O livro anuncia de or-ma vigorosa a emergente etapa da pedra, que se estenderá até ao

desaparecimento do autor, culminando com a extraordinária in-subordinaço que Caim (2009) representa, na qual, conrontando--se com Deus, enrenta o grande mito, o dogma dos dogmas. As-sim, o que inicialmente seria uma “trilogia involuntária”, acaboupor contar com oito romances.

Agora, nesta ase, Saramago escreve materialmente na ilha ca-nária de Lanzarote, para onde se muda em 1993, adota cenáriosabstratos de alcance universal, refete sobre desaos atuais, tomacomo reerência o indivíduo, a sua expresso tempera-se azendo--se mais austera, contida e direta, e, através de ideias ortes, sur-preendentes, recorre à alegoria como instrumento que veicula in-terrogações e reprovações:

“ Mas com O Evangelho... sinto que se acabou algo. Deixoude interessar-me contar histórias. Para escrever um romance énecessária uma história, um confito, alguma coisa, no? Pois,é como se agora pensasse que o mais importante é que a histó-

ria sirva para ir para além da história.” [Entrevista de TununaMercado a José Saramago, La Jornada, México D.F., 18 de outu-

 bro de 1998]

“… Ensaio sobre a Cegueira, que é o livro em que de algumaorma há uma rutura, inclusivamente uma rutura de estilo;

P enso que nã o se d ev e m   perd er 

tod os os v íncu-los co m  a   E uro- pa ,  m a s d ev e m os 

 procura r  m a is  pa ra  o Sul.” 

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o estilo torna-se mais austero, mais seco, mais direto, menosadornado, digamos.” [Entrevista de José Luis Moure a José Sa-ramago, Biblioteca Nacional de Argentina-Sala virtual de leitu-ra, Buenos Aires, 12 de dezembro de 2000]

“Desde o  Levantado do Chão até ao  Evangelho, os meus ro-mances so, de certo modo, «corais», o que conta sobretudo éo grupo (no digo as «massas»); a partir do  Ensaio, a atençocentra-se na pessoa, no indivíduo. Essa é, creio eu, a dierençaque separa estas duas ases ou épocas. [Entrevista de José Car-los de Vasconcelos, «O Mundo de Saramago», Visão, Lisboa, 16 de janeiro de 2003]

“Quando se apresenta o Ensaio sobre a Cegueira é como se oolhar, o campo de observaço, se tivesse estreitado e, por esseacto, pudesse ir mais alem, entrar mais undo. De que estoua alar? No quer cair na banalidade de dizer que se trata daalma humana. No sei o que é isso [...] a partir daí [ Evangelho]o que conta para mim é o indivíduo..” [“Saramago y El hombreduplicado”, espectador.com, Montevideu, 12 de maio de 2003.Conversa de Tomás de Mattos com José Saramago transcrita eeditada por Mauricio Erramuspe]

Em romances mais breves, apegados à ormulaço de certasteses e a uma dicço mais desnudada, ormula aproximações emtorno de questões substantivas: o que azemos aqui, o que signi-ca viver hoje. Instalado na sua intrínseca posiço incómoda, noseu desgosto, desassossegado e convencido da desumanidade da

nossa vida, situa o ser humano como centro das suas prioridades.A partir da censura, da compaixo e da reivindicaço, irónico e cé-tico, racionalista e voltaireano, descrente mas lutador, clama peladignidade e pelo respeito, envolve-se numa tarea humanizadora,situado mentalmente no epicentro dos nossos dias:

  “Talvez a história do homem seja um longuíssimo movi-mento que nos leva à humanizaço. Talvez no sejamos maisdo que hipóteses de humanidade e talvez cheguemos ao dia,e isto é a máxima utopia, em que o ser humano respeite o serhumano. Para chegarmos a isso escreveu-se o Ensaio sobre aCegueira, para me perguntar a mim mesmo e aos leitores se po-demos continuar a viver como estamos a viver e se no haveráuma orma mais humana de viver que no seja a crueldade, atortura e a humilhaço, que costuma ser o desgraçado po decada dia. [Escrevi para saber se há uma orma mais humana deviver que no seja a crueldade, La Voz de Lanzarote, Lanzarote,25 de junho de 1996, reportagem de Montse Cerezo]

“A partir de Ensaio sobre a Cegueira passei a escrever, de umaorma mais atenta, sobre o mundo em que vivemos, quem so-mos, em que nos transormamos. Existe, pois, um processo re-

fexivo ligado à pós-modernidade e um questionamento: Comoserá o ser humano novo [...]? Estamos no m de uma civiliza-ço e num processo de passagem de um tempo com raízes naRevoluço Francesa, no Iluminismo, na Enciclopédia, que ten-de a desaparecer. No sei o que virá. Como será a Humanidadedaqui a 50 anos?” [«A democracia ocidental está erida de mor-

A Comunid d

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te»,  Diário de Notícias, Lisboa, 25 de março de 2004, entrevistade Ana Marques Gasto]

“Olhando para os meus romances, desde o  Manual de Pin-tura e Caligrafa, estes refetem essa espécie de interrogaço de

mim para mim e de mim à sociedade. Acontece que nos doisúltimos livros [ Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes] issose tornou mais claro, porque se despojaram de uma série deatores, talvez literários, para se mostrarem mais descarnados.Uma certa depuraço e austeridade, como se me tivesse preo-cupado durante muitos anos com a estátua e agora me interes-sasse mais pela pedra».” [«O socialismo é um estado de espí-rito»,  A Capital , Lisboa, 5 de novembro de 1997, entrevista deAntónio Rodrigues]

Interrogaço, questionamento pessoal e do indivíduo como es-pécie, apontando para o mistério da sua substância. A raparigados óculos escuros arma, em Ensaio sobre a Cegueira, que dentrode nós há uma coisa que no tem nome e essa coisa é o que so-mos. Nesse reduto indecirável ronda, penetrando nas suas som-

 bras e penumbras. Mas submerge também na dimenso coletiva,na sociedade onde homens e mulheres desenvolvem a sua vida de

conquistas e rustrações, pois no há possibilidade de penetrar nomistério do ser sem esclarecer a índole do estar.

A   Co m unid a d e [C E  E ] é u m  conse-

lh o d e a d  m inis-tra çã o d e u m  es- pa ço econó m ico. 

 E , co m o a contece se m  pre nos con-selh os d e a d  m i-

nistra çã o, que m   m a nd a  é que m  te m   m a is a ções.”

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Diálogo com os nossos dias e circunstânciasOMO escritor, Saramago apresentavaa sua tarea como a de alguém preocu-pado em levantar as pedras do caminhopara descobrir o que se escondia debaixo.

Pensar, ver, desvelar, no se conormar… Já muito cedo, em Claraboia (1953), ezSilvestre observar que “até que possa-mos echar os olhos, devemos mantê-los

abertos”. No se desprenderia nunca dessa convicço, que tomavatambém a orma de uma advertência, de modo que a viso se cons-tituiu numa metáora seminal do seu universo literário e do seucódigo moral, prolixamente desenvolvida no seu ciclo da pedra.

A sua indagaço da condiço humana contemporânea levou--o a transpor para o romance atributos determinantes do seu dis-curso de intervenço cívica.  Ensaio sobre a Lucidez, de maneiramais explícita, mas do mesmo modo As Intermitências da Morte, ACaverna ou Ensaio sobre a Cegueira proporcionam bons exemplosda sua implicaço em tornar inteligíveis determinadas dinâmicaspolíticas, económicas e sociais próprias da nossa época. Num mo-mento de colossal raude democrática como o que hoje vivemos,particularmente na Europa, traduzida em abusos e humilhações

coletivas, no acentuar da injustiça social e na crua visibilidade dosmecanismos próprios do capitalismo autoritário da globalizaço,como o apelidou o próprio escritor, as questões que deixou plas-madas nos seus romances e nas suas denúncias públicas reves-tem-se de orças renovadas e de plena atualidade:

 

“A globalizaço económica é um euemismo para encobriro sistema político que as grandes multinacionais esto a impor:o capitalismo é autoritário.” [Reportageme de Joseba Santama-ría, Diario de Noticias, San Sebastián, 25 de março de 2002]

So os direitos humanos básicos os que esto em causa, agoraàs portas do mundo ocidental, à medida que se pulverizam con-quistas sociais e direitos civis, voltando a colocar em primeiro pla-no o exercício da vontade transormadora inclinada para humani-zar as circunstâncias:

“Os direitos humanos no se cumprem em lado nenhum.Direito à vida, à existência honrosa, a comer e a trabalhar, àsaúde e è educaço. A grande batalha da cidadania deve ser a

 batalha pelos direitos humanos. [«Na Colombia no há guerri-lhas, mas bandos armados»,  El Tiempo, Bogotá, 28 de novem-

 bro de 2004, entrevista de Yamid Amat]

“Devíamos trazer inscrita na testa a rase de Marx e Engelsem A Sagrada Família: «Se o homem é ormado pelas circuns-tâncias, é preciso ormar as circunstâncias humanamente.»Está aí o espírito e a letra dos direitos humanos. Tudo o que umpartido humanamente preocupado deveria seguir é a Carta dos

Direitos Humanos que, por outro lado, é uma coisa moderada,uma coisa que há uns anos parecia burguesa, por isso é quea Unio Soviética no a assinou. E se me perguntarem se naantiga URSS as circunstâncias eram humanas, eu digo decla-radamente que no. [«A globalizaço é o novo totalitarismo», Época, Madrid, 21 de janeiro de 2001, entrevista de Ángel Vivas]

“Nadamechatei

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Do problema do poder real ocupou-se com denodo. Regressoua ele uma e outra vez, com insistência: “há que saber quem o de-tém”. Tratava-se de levantar as pedra para discernir o que se ocul-tava debaixo; tratava-se de ver, de saber para além das aparências,de penetrar na realidade prounda, de, metaoricamente, olhar

por detrás da coroa como, sendo jovem, ez no Teatro de So Car-los, a refexo sobre o poder, as suas engrenagens e consequênciasresultava inevitável e imprescindível. Como lidar com essa tarea?Através das perguntas precisas: porquê, para quê e para quem,pautas do seu roteiro intelectual. Para descobrir a identidade dopoder, pensava que tinha de olhar para o rosto do dinheiro.

Poucas dúvidas existem hoje acerca da eroso que as democra-cias esto a sorer, perdidas no seu labirinto cerimonial, compor-tando-se no contexto da severa crise atual, como prolongamentossubalternos de empresas e corporações nanceiras. Aos respon-sáveis pelas nossas democracias eridas, crescentemente despo-

 jadas e dominadas por essas entidades no democráticas, comextraordinária capacidade para infuenciar e condicionar as polí-ticas públicas, impondo as regras de jogo e as decisões dos gover-nos, atribuiu Saramago o papel de comissários políticos do podereconómico:

“No so os políticos os que governam o mundo. Os lugaresde poder, além de serem supranacionais, multinacionais, soinvisíveis.” [Entrevista de Clara Ferreira Alves a José Sarama-go, Expresso, Lisboa, 7 de agosto de 1993]

 

N a d a   m e ch a teia   m a is d o que ou-

v ir u m   político d izer que nã o d ev e m os cria r 

a la r m e  socia l. A  socied a d e te m  d e esta r a la r-

 m a d a , que é a  sua  f or m a  d e esta r v iv a .” 

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“Um dos dramas do nosso tempo é que há um poder – o úni-co poder que existe no mundo, que é o nanceiro – que no édemocrático! E as pessoas no reparam nisto, apesar de esta-rem sempre a alar em democracia. Tanto mais que sabemosque os governos, indireta ou diretamente, esto ali para execu-

tar políticas que no so as suas.” [Entrevista de Clara FerreiraAlves a José Saramago, Expresso, Lisboa, 7 de agosto de 1993]

“Constatamos que o poder real no está nos palácios dos go-vernos: encontra-se, sim, nos conselhos de administraço dasmultinacionais que decidem a nossa vida. Todos sabemos isso,mas, em nome da nossa tranquilidade e consciência cívica,esorçamo-nos por acreditar que a democracia é apenas isto.Se se restringir ao que vemos no dia a dia, chamar-lhe-emosoutra coisa qualquer – «poder subalterno a outro poder», porexemplo –, mas democracia no. Vivemos numa plutocracia,pois so os ricos que governam e vivem.” [Entrevista de SérgioAlmeida, «Democracia ocupou o lugar de Deus», Jornal de No-tícias, Porto, 27 de março de 2004]

ROVAVELMENTE, à sua desconançaem relaço ao modo de as hierarquias se

desenvolverem e as desigualdades se re-solverem, para além da suas rmes con-vicções transibéricas, atlânticas, talveztenhamos de acrescentar os seus receiossobre a Unio Europeia, maniestadoscom beligerância cética nos anos 1980 e

nos primeiros anos da década de 1990: “Sou um europeu céticoque aprendeu todo o seu ceticismo com uma proessora chama-da Europa”, assinalaria naqueles anos. Saramago sublinhou comobstinaço a debilidade do processo de construço europeia, es-corado na sua vertente mercantil do mercado, carente tanto de

coeso cultural como de orça política. Expôs publicamente o seuconvencimento de que a unio se criava sobre a base de uma divi-so polarizada, em unço dos países mais ricos. Nada impediria,na sua opinio, que a Comunidade se viesse a articular sobre a

 base de países líderes e países subalternos, limitados na sua sobe-rania nacional e vinculados a uma mera super-estrutura econó-mica, onde primariam o critério e os interesses de multinacionaise do setor nanceiro, ao passo que a cidadania soreria uma inde-sejável deterioraço. “No me parece que seja este o caminho paraPortugal”, concluía, em evereiro de 1986, nas páginas do diário La Repubblica, enquanto conessava sentir-se manipulado. O seudesaeto europeísta e os seus juízos de ento – antecipou, em 1994,que Portugal se converteria num satélite do Bundesbank, admi-nistrado pela Alemanha –, assentes na perspicácia, no rigor exi-gente do juízo critico e na sua tendência natural para distanciar-seda apresentaço da realidade como um jogo de peças encaixadas,reverberam hoje com o som da premoniço:

“A Península Ibérica pretende ligar-se a um Norte que con-tinuará a ser orientado e dirigido por três potências médias– Alemanha, Gr-Bretanha e França –, enquanto os restan-tes países no alteraro a sua condiço de satélites. No un-do, é isso que dene a política económica da Comunidade. A

“Há que muda

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CEE, em trinta anos, no conseguiu outra coisa seno denira sua política económica. No existe uma política europeia. Aprópria organizaço económica da Europa, como sabemos, émuito precária e, de qualquer orma, é orientada por essas trêspotências médias, sendo o resto só perieria. Penso que no se

devem perder todos os vínculos com a Europa, mas devemosprocurar mais para o Sul.” [Entrevista de Jordi Costa a José Sa-ramago, Quimera, Barcelona, n.º 59, 1986]

“A atitude vital, o olhar proundo do povo ibérico no é eu-ropeu em nada. Fixa-se muito mais na sua comunidade maisenraizada, ibero-americana e ibero-aricana, que na Europa,essa pretensa unidade que, além do mais, à margem de um or-malismo económica, meramente super-estrutural, no se sabemuito bem o que é. [“Saramago: ‘La CE, un euemismo”, El In-dependiente, Madrid, 29 de agosto de 1987. Reportagem de An-tonio Puente]

“Sempre se alou da Europa como de um mercado com nosei quantos milhões de consumidores. Ninguém alou da Eu-ropa dos cidados que precisam de medicamentos, pensões develhice dignas, assistência hospitalar, sistemas educativos mo-

dernos. É duvidoso que, em 40 anos de construço europeia,nada na Comunidade aponte nesse sentido. Aquilo de que seala é em reduzir os beneícios sociais. Se me é permitido, pas-sámos do ideal do Estado-providência para o Estado-chulo.”[Entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago,  Expresso,Lisboa, 7 de agosto de 1993]

 H á   que  m ud a r o  conceito  d e 

 m obilid a d e  so-cia l  por  m obi-liza çã o  socia l 

e d esobed iência  civ il.” 

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“No estou desenganado, sou totalmente cético. A Comu-nidade [Económica Europeia] é um conselho de administraçode um espaço económico, sobretudo económico. E, como acon-tece sempre nos conselhos de administraço, quem manda équem tem mais ações. Cada membro desse conselho senta-se

num pacote de ações e, quanto mais alto or esse pacote, maisorça e mais poder tem, porque possui mais ações. Mesmo quenós – quando digo nós, rero-me aos portugueses – nos sente-mos ali, azêmo-lo como uma parte menor, porque a relaço depoder e de orça no interior da Europa se mantém. Em poucosanos, a Europa será administrada pela Alemanha e nós sere-mos só uma espécie de satélite do Bundesbank. E embora essarelaço de poder entre o orte e o raco tenha existido sempre,muitos lutámos para que isso no seja um escândalo.” [Entre-vista de Esperanza Pamplona a José Saramago, Canarias7 , LasPalmas de Gran Canaria, 20 de evereiro de 1994]

“É uma ingenuidade imaginar que a Europa é uma espéciede continente, particular e privilegiado, onde podemos resol-ver todos os problemas, e que o que acontece à sua volta no ainfuencia. O que acontecerá na Europa e no mundo nos pró-ximos anos dependerá do que aconteceu a 30 de novembro

[de 1999] em Seattle. Lá decidiram até onde chega o poder dasmultinacionais, e até onde chegaremos nós. O que levou sécu-los a construir, como a ideia de cidadania, de responsabilidadecívica, vai mudar radicalmente; vamo-nos converter todos emconsumidores infuentes. A soberania nacional no é mais queáguas passadas.” [“Escritores ante el III milenio (I). José Sara-

mago: ‘El progreso beneciará sólo a una minoría”,  El Mundo,Madrid, 3 de janeiro de 2000. Reportagem de Paula Izquierdo]

O meio do desamparo presente queaturde a Europa do Sul, o seu país, a

Espanha, a pedra saramaguiana dadesumanizaço, levantada sobre os pi-lares do senso comum, a perspicáciaanalítica, o compromisso responsávele o inconormismo, eleva-se como umareerência terrível e também lumino-

sa. Assim sendo, poderia pensar-se que adquire pleno sentido deoportunidade o seu eloquente convite a uma insurreiço ética, aresponder com a responsabilidade cívica, a dizer no, a impacien-tar-se e a desobedecer pacicamente, a ter os olhos abertos, inco-modar e pensar desde o lado de ora do relato ocial e da manipu-laço da realidade. Inquietar-se e inquietar:

“O pior que nos pode acontecer é resignarmo-nos a no sa- ber. É preciso aprender a voltar a dizer no, e a interrogarmo--nos porquê, para quê e para quem. Se encontrássemos respos-tas para estas perguntas, se calhar entenderíamos o mundo.”

[“Saramago, conciencia de Lanzarote”, Lancelot, Lanzarote, n.º896, 22 de setembro de 2000. Reportagem de María José Cons-tanz]

“À  paciência

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“Nada me chateia mais do que ouvir um político dizer queno devemos criar alarme social. A sociedade tem de estar alar-mada, que é a sua orma de estar viva.” [Entrevista de ÁngelVivas a José Saramago, Época, Madrid, 21 de janeiro de 2001]

“Há que mudar o conceito de mobilidade social por mobili-zaço social e desobediência civil.” [Entrevista de Vinicio Cha-cón a José Saramago, Semanario Universidad , San José de CostaRica, 30 de junho de 2005]

“À paciência divina teremos de opor a impaciência huma-na. Para mudar as coisas, a única orma é sermos impacientes.”[Entrevista de Patricia Kolesnikov a José Saramago, Clarín,Buenos Aires, 23 de outubro de 2005] n

À  pa ciência  d iv ina  tere m os 

d e o por a  i m - pa ciência  h u- m a na . P a ra   m u-

d a r a s coisa s, a  única  f or m a  é ser m os i m  pa -

cientes.” 

a g e n d a até 8 juL

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78

a g e n d a

até 8 sTL’t en ee.fana, 1938-1947: e Paa etExposiço dedicada aoambiente vivido em França

durante a II Guerra Mundiale perante a ameaça nazi. NoMuseo Guggenheim, Bilbao.http://arteenguerra.

guggenheim-bilbao.es/ 

1 a 16 jufetvalintenanal

de b de bea9ª ediço de um dos maisreconhecidos estivais de

 banda desenhada da PenínsulaIbérica. Casa da Cultura evários espaços da cidade, Beja.https://pt-pt.facebook.com/ 

festivalbdbeja

até 9 juo Tep e cnwayO drama da amíliaConway, do autor inglês J.B.Priestleynuma encenaço deVera Fajardo. Sesc - Casa daGávea, Rio de Janeiro.http://www.casadagavea.

org.br/ 

até 8 juLVvan mae,steet Phtga-

 phePrimeira exposiço europeia

da obra da otógraa norte-americana Vivian Meier. SalaMunicipal de ExposicionesSan Benito, Valladolid.http://www.vivianmaier.com/ 

23 mi a 2 juÁa mta-e3ª ediço da mostra de cinema

e culturas aricanas, este anosob o lema ‘A infuência dasculturas aricanas nas artes -Diálogos e Inspiraço’. Váriosespaços, Lisboa.http://africamostrase.info/ 

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a g e n d aaté 15 ju

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a g e n d a

até 14 juLdana Letd.ftgaía1970-2007Exposiço retrospectiva daotógraa argentina AdrianaLestido. Museo Nacional deBellas Artes, Buenos Aires.http://www.mnba.org.ar/ 

index.php

13 juralía, cantaeda maA poesia e a prosa de Rosalíade Castro levadas à cena peloSarabela Teatro, companhia

galega undada nos anos80.Teatro Principal, Santiagode Compostela.http://www.sarabelateatro.

com/ 

25 mirepet dena bg bandConcerto incluído no ciclo

didáctico de jazz para criançascom a Walter Sax Big Band.Teatro Sanpol, Madrid.http://www.teatrosanpol.

com/ 

23 mi a 10 ju

fea d Lv deLa83ª ediço da Feira do Livro deLisboa. Parque Eduardo VII,Lisboa.http://feiradolivrodelisboa.pt/ 

até 15 juftgáabgtáV Encuentro Internacionalde Fotograa, com ospaíses escandinavos como

convidados de honra. No FotoMuseo e em vários espaços dacidade, Bogotá.http://fotomuseo.org/ 

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 Diretor Sérgio Machado Letria

 Edição e redação Andreia Brites

Sara Figueiredo Costa

 Design e paginação

 Jorge Silva/SilvadesignersFUNDAÇãO JOSÉ SARAMAGO

Casa dos Bicos Rua dos Bacalhoeiros, 10

1100-135 Lisboa – Portugal

 [email protected]

http://www.josesaramago.org

N.º registo na ERC – 126 238

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dos respetivos autores. Os conteúdos desta

publicaço podem ser reproduzidos ao abrigoda Licença Creative Commons