Biografias de Aprendizagens de Mulheres Encarceradas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO HELEN HALINNE RODRIGUES DE LUCENA BIOGRAFIAS DE APRENDIZAGENS DE MULHERES ENCARCERADAS JOÃO PESSOA PB Fev/2009

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Esta dissertação teve por objeto de análise as aprendizagens das mulheres em situação deprivação de liberdade, encarceradas no Instituto de Recuperação Feminina Júlia Maranhão deJoão Pessoa - PB. Especificamente, procuramos conhecer como se deram e continuaram sedando essas aprendizagens adquiridas através das experiências vividas (ou não) ao longo desuas vidas.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO MESTRADO EM EDUCAO

    HELEN HALINNE RODRIGUES DE LUCENA

    BIOGRAFIAS DE APRENDIZAGENS DE MULHERES ENCARCERADAS

    JOO PESSOA PB Fev/2009

  • HELEN HALINNE RODRIGUES DE LUCENA

    BIOGRAFIAS DE APRENDIZAGENS DE MULHERES ENCARCERADAS

    Orientadora: PROF. DR.Emlia Maria da Trindade Prestes.

    Dissertao submetida banca examinadora para obteno do ttulo de Mestre na Linha Educao de Jovens e Adultos do Programa de Ps

    Graduao em Educao da Universidade Federal da Paraba.

    JOO PESSOA PB Fev/2009

  • HELEN HALINNE RODRIGUES DE LUCENA

    BIOGRAFIAS DE APRENDIZAGENS DE MULHERES ENCARCERADAS

    Dissertao aprovada em 26/02/2009

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    PROF. DR.Emlia Maria da Trindade Prestes UFPB/PPGE/CE

    Orientadora

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto Vras de Oliveira - UFCG UFCG/PPGCS

    Examinador Convidado

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Charliton Jos dos Santos Machado UFPB/PPGE/CE

    Examinador

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Adelaide Alves Dias UFPB/PPGE/CE

    Examinadora Suplente

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Ana Maria Coutinho Bernardo UFPB/PPG-CR/CCHLA Examinadora Suplente

  • Aos meus pais. Dedico

  • AGRADECIMENTOS

    Em algumas situaes e experincias que vivemos fundamental poder contar com o apoio e a ajuda de algumas pessoas. Para realizar este trabalho de dissertao, pude contar com vrias. A essas pessoas prestarei, com poucas palavras, os meus mais sinceros agradecimentos:

    Aos meus amados e queridos pais, Joo e Joana, pelas suas existncias em minha vida, e pelo esforo, incentivo, preocupao, oraes e apoio doados gratuitamente durante toda a vida e nessa jornada acadmica.

    Aos meus irmos e irms: Ricardo, Rodrigo, Hallane e Hamanda, que ao longo dessa jornada souberam compreender as minhas ausncias e os meus momentos de intolerncia. Tambm pelo amor e respeito que me dedicam.

    minha tia Socorro, segunda me e amiga, que acompanhou de perto meu processo de escolarizao e torceu para que eu chegasse at aqui, acolhendo-me com todo amor e carinho em sua casa durante o momento mais intenso desta produo acadmica.

    estimada Professora Dr Emlia Prestes, pelo privilgio de t-la como minha orientadora, por todo apoio, ateno, conselhos, orientaes tericas e metodolgicas dedicadas em favor da construo desse trabalho. Tambm pelo exemplo de vida acadmica, que de certa maneira influenciou e norteou minha trajetria de pesquisa e acadmica, alm da sua amizade, carinho, motivao, compreenso nos momentos mais difceis e pacincia de enxugar as minhas lgrimas ao final deste percurso.

    Aos Professores Dr Charliton Jos dos Santos Machado, Dr. Roberto Vras de Oliveira e Prof Dr Elisa Pereira Gonsalves, pela disponibilidade em fazer parte da banca examinadora deste trabalho, oferecendo importantes orientaes, crticas e sugestes.

    Adriana Diniz, por toda ateno e contribuio oferecida ao meu trabalho, mesmo distncia.

    Aos demais professores do PPGE/UFPB, pelas conversas e orientaes informais oferecidas a este trabalho e que representaram um importante apoio, bem como pela amizade construda ao longo dessa trajetria.

  • s queridas amigas Ceia, Fabrcia. Quzia, Cristiane, Naiara, Alessandra, Gislia e Valdenice, pelas palavras de fora e incentivo nos momentos mais difceis da produo deste trabalho e ainda pelas conversas informais sobre o tema e sobre os sujeitos desta produo e, principalmente, pela nossa amizade. Aos componentes do grupo de estudo sobre Biograficidad e Aprendizagem ao Longo da Vida: Roseane, Sabrina, Kellyonara, Anderson, Naiara, Zlia, Ana Cludia, Luciene, etc.; pelo carinho e amizade conquistada, e por terem me ajudado a compreender melhor os tericos e a teoria da biograficidade.

    Aos demais amigos que circulam a minha vida cotidiana: Aristides, Edinaldo, Dona Dezilda, Dona Ftima, Sr. Ronaldo, entre outros que direto e/ou indiretamente apoiaram e me ajudaram a realizar este sonho que se tornou realidade.

    Aos colegas e amigos/as da graduao, que de longe torceram por mim e, aos/s colegas do mestrado, por todo incentivo e pelos momentos de alegria e descontrao que vivemos juntos.

    A Ernandes Queiroz, meu namorado e amigo, pela ateno, compreenso, amor e carinho que tem me dedicado.

    Aos trabalhadores penitencirios que contriburam de maneira significativa com a minha pesquisa.

    s mulheres encarceradas do Instituto de Recuperao Jlia Maranho, pela disponibilidade em se fazerem sujeitos desta pesquisa narrando suas histrias, pela ateno que me dedicaram e por me terem feito enxergar as pessoas encarceradas de outra maneira, alm crime.

    Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico) que viabilizou a realizao deste trabalho atravs do incentivo e apoio financeiro.

    E, finalmente, a Deus, por tudo que me proporcionou e tem me proporcionado nessa jornada da vida, me dando a sade necessria para buscar os meus objetivos.

  • Um entardecer na cadeia O pior momento na vida de algum ter que se adaptar a coisas tristes! Quantas vezes presenciei um

    lindo amanhecer e belas tardes! So apenas 17h30min da tarde e estou encarcerada! Aqui vejo pessoas tristes e arrependidas diante de Deus pelos seus erros, os coraes magoados pelo abandono, rejeio por no ter o que oferecer! como ouvir: aqui vale o quanto pesa! Nunca vou esquecer esse

    ditado. Muitas vezes com os olhos cheios de lgrimas vi o sol ir embora, lgrimas que ao molhar meus sonhos, tentam encontrar minha nsia de liberdade. Um dia vi algumas sorrirem e hoje vejo muitas companheiras a chorar suas mgoas na ausncia de um jardim. Sofro tambm por ter que

    enxergar minha triste verdade e aceitar minha triste realidade. Os momentos que aqui passei vo ser marcados para sempre em minha vida e em minha memria... (Judite).

  • RESUMO

    Esta dissertao teve por objeto de anlise as aprendizagens das mulheres em situao de privao de liberdade, encarceradas no Instituto de Recuperao Feminina Jlia Maranho de Joo Pessoa - PB. Especificamente, procuramos conhecer como se deram

    e continuaram se dando essas aprendizagens adquiridas atravs das experincias vividas (ou no) ao longo de suas vidas. Para alcanar este propsito, adotamos o enfoque biogrfico compreendido a partir do conceito de biograficidad, defendido por Alheit e Dausien, (1996, 2000, 2007). Trata-se de uma abordagem terico-metodolgica que analisa na teoria e na prtica o contedo da aprendizagem ao longo da vida no interior das biografias individuais: os processos de aprendizagem e de formao das biografias dentro de estruturas sociais e de contextos culturais de significao onde os sujeitos se inserem. Partindo destas premissas, constituiu-se objetivo desse estudo: a compreenso da(s) relao(es) entre as aprendizagens biogrficas adquiridas pelas mulheres encarceradas no processo de construo das suas biografias e as motivaes/circunstncias de vida que conduziram-nas ao mundo da criminalidade. Os procedimentos metodolgicos adotados procuraram se adequar ao objeto e ao objetivo central da investigao. Assim, elegemos dentro da investigao qualitativa, o mtodo biogrfico, selecionando as tcnicas a ele associadas, como a histria de vida, e os seus instrumentos de coletados de dados, como a entrevista em profundidade (ou biogrfica), por exemplo. Tambm utilizamos instrumentos de pesquisa quantitativa que serviram apenas de suporte para a anlise qualitativa/biogrfica realizada. A classificao dos dados foi organizada em trs categorias (biografia e famlia, biografia e trabalho, biografia e escola/educao) surgidas das prprias narrativas e ligadas proposta terica da biograficidad. As anlises das entrevistas foram feitas observando-se nos percursos biogrficos das encarceradas, (da infncia at fase em que se encontram hoje) alguns dos principais domnios da vida: a famlia (em suas diversas modalidades), o trabalho e a educao (escolarizao). A interpretao dos dados possibilitou a elucidao das principais marcas dos seus desenvolvimentos biogrficos: a combinao de fases (a construo de uma famlia, o exerccio de uma profisso e a formao/educao), as rupturas, as transies, as descontinuidades, todas elas arraigadas em seus mundos de ao concretos. Vimos predominar entre as mulheres entrevistadas, histrias dramticas, ligadas ausncia de uma referncia familiar, experincias de trabalho infantil e de precrias inseres no mundo do trabalho na juventude e idade adulta, experincias deficitrias no processo de escolarizao, e uma trajetria delituosa ligada a todas estas questes que atravessaram as suas construes biogrficas. Os dados revelaram tambm a capacidade dessas mulheres de usarem novos esquemas de estruturao biogrfica, ligados a uma assimilao subjetiva das aprendizagens proporcionadas pelas suas experincias de vida, e com ela, a produo de um sentido biogrfico prprio, ainda que associado a um espao social imediatamente prximo. A tentativa de afirmarem-se como sujeitos foi tambm uma constatao extremamente freqente nas narrativas.

    Palavras-chave: Biografia, aprendizagem, experincia de vida, biograficidad.

  • ABSTRACT

    The following work analyzes the learning processes of the women incarcerated in the Institute of Female Recovering Jlia Maranho of Joo Pessoa - PB. We have specifically searched to learn how this knowledge was (and is being) learned in the course of their lives. To this purpose, we adopted the biographic focus as presented in the biogrificidad concept of Alheit and Dausien (1996, 2000, 2007). This theoretical-methodological concept analyzes in both theory and practices the learning processes and formation of the individual biographies inside the subject's social contexts. Following these premises, the objective of this study was established as: to understand the relation between the knowledge learned by the incarcerated women and the motives that led them to crime. The methodological procedures were specially adapted to the work's objective and subjects of study. Therefore, we used the biographic method and associated techniques, such as the subjects' life stories and depth interview. We have also used quantitative instruments of research to support the qualitative/biographic analysis. The data classification was organized in three categories (biography and family, biography and workplace, biography and school/education), which are linked to the theoretical proposal of biograficidad. The interviews analyses were conducted considering the biographic courses of the inmates, the major domains of their lives: family, work and education. The data interpretation allowed us to better define the major marks in their biographies: the different phases of life (building up a family, exercising a profession and education), the ruptures and transitions. Most presented dramatic stories, derived from the absence of a solid familiar reference, child labor and the precarious beginning in the work life, besides bad experiences at the schooling process. All of them were linked to a criminal trajectory which encompasses their biographies. The data also reveals these women's capability when it comes to developing new designs of biographical structures. Their attempts to affirm themselves as subjects were also a frequent topic in their narratives.

    Keywords: Biography, learning, life experience, biograficidad.

  • SUMRIO

    CAPTULO I: A CONSTRUO DO OBJETO DE ESTUDO E O PERCURSO METODOLGICO

    10

    1.1 O MTODO DA INVESTIGAO E SEUS DELINEAMENTOS 27 1.2 O DISCURSO SOBRE A CRIMINALIDADE FEMININA NO ACERVO ACADMICO

    27

    1.3 A OPO PELO MTODO BIOGRFICO: RAZES TERICO-METODOLGICAS

    33

    CAPTULO II: MODERNIDADE CONTEMPORNEA, BIOGRAFICIDADES E INTERPRETAES EDUCACIONAIS E DE APRENDIZAGENS

    68

    2.1 OS PARADIGMAS DA SOCIALIZAO, INDIVIDUALIZAO E BIOGRAFICIDAD: REFLEXOS NOS PROCESSOS EDUCACIONAIS / FORMATIVOS E/OU DE APRENDIZAGEM E NA VIDA DOS SUJEITOS

    73

    CAPTULO III: CONTEMPORANEIDADE E BIOGRAFIAS FEMININAS

    86

    3.1 OS MUNDOS DE AO CONCRETOS DAS MULHERES: RELAES DE GNERO E IMPLICAES NAS BIOGRAFIAS

    89

    CAPTULO IV - BIOGRAFIAS DE APRENDIZAGENS DE MULHERES ENCARCERADAS

    103

    4.1 RETRATOS BIOGRFICOS DAS ENCARCERADAS INVESTIGADAS 106 4.2 ANLISES DAS CATEGORIAS FAMLIA , TRABALHO E ESCOLA EXTRADAS DAS NARRATIVAS BIOGRFICAS DAS

    ENCARCERADAS

    130

    5 (IN) CONCLUSO 154

    REFERNCIAS 159 ANEXO 167 APNDICE 180

  • CAPTULO I: A CONSTRUO DO OBJETO DE ESTUDO E O PERCURSO METODOLGICO

    Com direitos assegurados pela Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1949 e pela Constituio Federal brasileira de 1988, e reunindo as caractersticas que as convertem em um dos segmentos alvo das propostas educativas da Educao de Jovens e Adultos EJA, a academia pouco sabe ou discute sobre as trajetrias de vidas de mulheres em situao de privao de liberdade: suas aprendizagens, nem sempre conduzidas segundo as normas e regras impostas por uma sociedade desigual e discriminante; como elas produzem suas existncias e quais so os seus desejos e expectativas e que projetos de vidas manifestam.

    Esta dissertao teve, portanto, por objeto analisar as aprendizagens dessas mulheres, que se encontram encarceradas no Instituto de Recuperao Feminina de Joo Pessoa-PB. Procuramos, especificamente, conhecer como ocorreram

    e continuam ocorrendo - essas aprendizagens ao longo de suas vidas.

    Para alcanar esse propsito, adotamos o enfoque biogrfico compreendido a partir do conceito de biograficidad, defendido por Alheit e Dausien (1996, 2000, 2007). Trata-se de uma abordagem terico-metodolgica, que analisa, na teoria e na prtica, o contedo da aprendizagem ao longo da vida, no interior das biografias individuais: os processos de aprendizagem e de formao das biografias dentro de estruturas sociais e de contextos culturais de significao onde os sujeitos se inserem.

    O interesse dessa perspectiva, de acordo com seus autores (ALHEIT E DAUSIEN, 2007), , tambm, o de favorecer a compreenso acerca da complexidade que se tornou a administrao da prpria vida com o transcurso da modernidade, o qual, embora tenha trazido riscos sociais aos sujeitos, fez emergirem novas estratgias para seus enfrentamentos, o que acarretou em sorprendentes capacidades creativas de (re)construccin das biografias (ALHEIT, 1994; DAUSIEN, 1996; KADE & SEITTER, 1996, apud, ALHEIT & DAUSIEN, 2007).

    Compreender essa nova realidade social foi um dos motivos que levou Alheit e Dausien (2007) a elaborarem sua proposta terica, pois, segundo eles, faltava [...] una teora elaborada y sistemtica del aprendizaje biogrfico interessada em analisar como os sujeitos tm construdo suas biografias, mesmo diante das novas condies de existncia, marcadas pelas transformaes (nos mais variados campos) produzidas pelos processos de globalizao. Nessa perspectiva, o foco principal das anlises so os aspectos no formais, informais, no

  • institucionalizados e autoorganizados da aprendizagem ao longo da vida, embora no desconsidere os aspectos formais (ALHEIT E DAUSIEN, 2007).

    Para esses autores, a biograficidad tem a ver com a capacidade que temos de utilizar os estmulos que procedem do exterior (o contexto em que vivemos, por exemplo) para aprender e, a partir da, reelaborar a nossa biografia conforme o que projetamos para ela (ALHEIT, 1990; DAUSIEN, 1996, apud, ALHEIT & DAUSIEN, 2007).

    Apoiando-nos nesse enfoque terico que, neste trabalho, procuramos compreender os significados das aprendizagens (formais, no-formais e/ou informais) das encarceradas, que segundo suas narrativas, contriburam para a construo e/ou reconstruo de suas biografias. Alheit e Dausien (2007) chamaram essas aprendizagens, que se ligam ao processo de (re) construo da biografia, de aprendizagem biogrfica e conceituaram-na como a

    [..] capacidad autopoytica del sujeto para organizar de manera reflexiva sus experiencias, y, haciendo esto, darse a s mismo una coherencia personal y una identidad, para atribuir un sentido a la historia de su vida, para desarrollar sus capacidades de comunicacin, de relacin con el contexto social, de conduccin de la accin (ALHEIT, 1993B; ALHEIT & DAUSIEN, 2000B, apud, ALHEIT & DAUSIEN, 2007).

    No se trata, portanto, de um conceito desmembrado do mundo social do sujeito, j que os diferentes modos como a aprendizagem ocorre dependem tanto do desenvolvimento de comportamentos especficos (individuais), diante de uma dada situao (ex: curiosidade, coragem, confiana, determinao etc.), oferecendo uma coerncia pessoal s experincias, quanto das condies estruturais especficas (ex: recursos econmicos, sociais, culturais e simblicos) de que ele dispe. Nesse sentido, concordamos com Kunzel (1996, p.95), quando afirma que [...] a realidade dos [...] contextos de vida no vai simplesmente ao encontro das pessoas. [...] ela construda em processos de debate activo, com a ajuda de esquemas cognitivos, e assimilada atravs de experincias.

    a isso que corresponde o carter interventivo das aes de aprendizagem, as quais favorecem no apenas a compreenso do mundo, mas tambm sua transformao (KUNZEL, 1996, p.95). Ao que parece, uma aprendizagem que, ao longo da vida, orientada para o sujeito s faz sentido se reconhecida a associao biogrfica entre indivduo e sociedade, o que implica uma [...] concepcin del individuo estructurado por el contexto social, y a su vez, estructurador, actor, de su realidad

    (CARDENAL, 2006, p. 41).

  • Partindo dessas premissas, o objetivo deste estudo o de compreender a(s) relao(es) entre as aprendizagens biogrficas adquiridas pelas mulheres encarceradas investigadas (ou aquelas aprendizagens que, no plano da conscincia prtica, foram apenas desejadas, mas no chegaram a ser vivenciadas) no processo de construo das suas biografias, e as motivaes/circunstncias de vida que as conduziram ao mundo da criminalidade. da que surge o ponto de partida para a realizao deste estudo, firmado na seguinte pergunta: Como se revelam, nas narrativas das biografias das mulheres encarceradas, as aprendizagens que contriburam com a aproximao a mundos de vida 1 ligados criminalidade e ao crcere? Nesse questionamento, est o pressuposto de que foram as aprendizagens adquiridas (ou negadas) no interior das experincias dessas mulheres, ao longo de suas vidas, que contriburam para que elas se aproximassem do mundo do crime.

    Com base nesse pressuposto, julgamos que o levantamento de outras questes seria necessrio, como por exemplo: Quais foram as aprendizagens que as encarceradas adquiriram ao longo da vida e em que condies e contextos elas foram adquiridas? Que direes e que significados essas mulheres deram a essas aprendizagens no processo de construo das biografias? Quais as outras aprendizagens a que no tiveram acesso e que, segundo elas, possibilitariam outros direcionamentos para as suas biografias? Que aprendizagens o crcere lhes tm proporcionado?

    Tais questionamentos nos levaram a traar outros objetivos que, ao serem respondidos, possibilitariam o alcance do objetivo principal deste trabalho, a saber: Conhecer as aprendizagens que as encarceradas obtiveram em contextos formais (como a escola e demais instituies com intencionalidade educativa) e em contextos no-formais e informais: espaos no institucionalizados e autoorganizados, denominados por Alheit e Dausien (2007) de "aprendizagem do cotidiano", "aprendizagem a partir das experincias", "aprendizagem por assimilao", "aprendizagem ligada ao mundo da vida" ou "autodidaxia ; Conhecer as aprendizagens que, no plano da conscincia prtica das encarceradas, foram apenas desejadas, mas no, adquiridas; Apreender de suas histrias os significados das experincias mais marcantes em suas vidas, identificando a sua contribuio para a construo de suas atuais realidades; Conhecer as aprendizagens adquiridas no atual contexto em que se encontram (o crcere).

    1 O conceito de mundo-da-vida, na teoria de Habermas, uma separao dos trs aspectos do universo da existncia do mundo dos sujeitos, que como resultado da fragmentao desse universo, temos um mundo objetivo, um mundo social e um mundo subjetivo [...] (SILVA, 2001, p.07).

  • Tanto os questionamentos quanto os objetivos supracitados nortearam o desenvolvimento desta investigao. Eles foram analisados atravs do dilogo discursivo entre os relatos biogrficos das investigadas e a literatura biogrfica sugerida pelos alemes Alheit e Dausien (2007).

    No segundo captulo deste trabalho, discutimos sobre as novas tendncias tericas definidoras da modernidade e de seus reflexos na vida dos sujeitos e nas sociedades contemporneas, sob as lentes de alguns socilogos contemporneos, como Beck, Giddens, Lash (modernizao reflexiva, 1997), Touraine (desmodernizao, 1998), Evangelista (modernidade, 2007) e Habermas (razo comunicativa, 1981).

    Essa discusso revela como estamos compreendendo a modernidade na contemporaneidade e serve de subsdio para as reflexes que desenvolvemos subsequentemente sobre o movimento de trs paradigmas da modernadidade contempornea que selecionamos: o da socializao - ligado ao movimento da Educao popular, desde o final da dcada de 1960; o da individualizao

    que passou a questionar os fundamentos dessa educao popular para a nova sociedade que emergia e que Beck (apud HERNANDEZ, 2007, p.4) chamou de: sociedade de risco ; e o paradigma da biograficidade, proposto por Alheit e Dausien (2007), como uma terceira via entre os dois primeiros, numa relao de dependncia recproca. Foi por entender que no interior desses paradigmas modernos que essas biografias de aprendizagem se processam, constroem-se e se (re) constroem, que achamos importante discuti-los neste trabalho.

    Essas discusses so imprescindveis, uma vez que, junto com os discursos atuais sobre a educao e a aprendizagem ao longo da vida, servem como eixos norteadores da anlise do principal objetivo desta investigao que, como j dissemos, objetiva compreender a relao entre aprendizagens biogrficas (ou ao longo da vida) das encarceradas e as motivaes/circunstncias de vida que as levaram /s prtica/s criminosa/s.

    Ressaltamos que o alcance desse objetivo se torna ainda mais relevante de ser estudado luz da biograficidad porque, como enfatizaram Alheit e Dausien (2007), ainda pequeno o nmero de estudos tericos e, muito menos, os empricos que, de fato, voltam-se para a anlise de fenmenos em si, envolvendo a aprendizagem ao longo da vida. O que tem sido visto, segundo eles, uma avalanche de publicaes (nem sempre cientficas) que discutem sobre o tema de uma maneira obstinadamente simplista e empobrecedora.

    Outra evidncia aponta para a relevncia da temtica em pauta - a de que, por envolver a relao aprendizagem e biografia , o debate sobre a biograficidad favorece o alargamento do discurso acadmico sobre a educao num sentido mais amplo, compreendida atravs do

  • retorno do conceito de educao/aprendizagem ao longo da vida. Esse conceito foi inovado e defendido pela UNESCO como [...] uma construo contnua da pessoa humana, do seu saber e das suas aptides, [...] da sua capacidade de discernir e agir

    (DELORS, 1999, p.106). Atravs deesse tipo de educao/aprendizagem, a pessoa [...] levada a tomar conscincia de si prpria e do meio que a envolve e a desempenhar o papel social que lhe cabe [e lhe convm] no mundo do trabalho e na comunidade

    (DELORS, 1999, p.106, grifos nossos). Da educao ao longo da vida, assim compreendida, foi que a perspectiva da

    biograficidad se elaborou. Para Alheit e Dausien (2007), no interior dessa educao

    em

    que as experincias e o sentido que os sujeitos do a elas so valorizados - que a aprendizagem biogrfica ganha relevo e significado. Esses autores justificam sua teoria, principalmente quando defendem que todas as atividades significativas de aprendizagem

    representam o conceito de Educao ao longo da vida. Para ns, a dimenso do conceito da educao, na perspectiva ao longo da vida, deve

    ser reconhecida. Em seu sentido amplo, ele no corresponde somente ao de uma sociedade, atravs das diversas instituies que ela pe em funcionamento para assegurar a transmisso de conhecimentos, valores, comportamentos que garantem a integrao na vida social (JOSSO, 2004), mas tambm ao dos indivduos nas experincias cotidianas que vivenciam (no mbito da famlia, da escola, do trabalho, do bairro onde moram, da cidade, das relaes com os amigos etc.), as quais tanto podem produzir efeitos ligados interiorizao das normas e dos valores voltados para o bem comum, e, consequentemente, integrao em um mundo socialmente aceitvel (marcado pelas condutas reguladas, pela aceitao das normas coletivas etc.), como podem provocar um desajuste dessa integrao, decorrente dos seus efeitos excludentes, aproximando os indivduos de mundos de vida ligados marginalidade e criminalidade. Nesses casos, a ideia de uma educao humanizadora seria comprometida. Vejamos o que Kunzel (1996, p.97) argumenta a esse respeito:

    A idia de uma humanizao da nossa vida atravs do recurso a uma larga escala de possibilidades de aprendizagem profundamente contrariada quando essas deixam de estar disposio de um nmero cada vez maior de pessoas, em resultado de uma mecnica de distribuio social cada vez mais dura.

  • Mais especificamente falando, se importante sublinhar a fora desse modelo de educao que humaniza, emancipa, integra, e cuja tarefa principal formar adultos democrticos2, tambm importante presumir que, por se tratar de uma atividade social e subjetiva (e por isso depende do que o contexto oferece de aprendizagem e de como o sujeito a direciona), a educao, na dimenso, ao longo da vida, pode tambm provocar consequncias dessocializadoras e desinstitucionalizadoras (TOURAINE, 1998)3 na vida dos sujeitos, ainda que no seja esse seu objetivo.

    Hernndez e Dobon (2006), baseando-se, em um primeiro momento, nas teorias crticas pressagiadas pelo marxismo e inspiradas na hermenutica, que evidenciaron que las instituciones en general y la educativa en particular esconden dispositivos que operan de manera no igualitria

    (HERNNDEZ E DOBON, 2006, p. 01-02), e, em um segundo momento, por teorias ligadas Escola de Frankfurt (que criticam a razo instrumental) e outras, como a de Foucault (apud, HERNNDEZ E DOBON, 2006, p. 02), - que defende uma genealogia do poder - e a de Bourdieu (apud, HERNNDEZ E DOBON, 2006, p. 02) - que reconhece a escola como instncia de reproduo e legitimao das desigualdades sociais - buscaram interpretaes para os diversos sentidos e significados da educao na vida das pessoas.

    Suas anlises sobre essas teorias permitiram-nos afirmar, sem medo de incorrer em erros, que a educao pode tanto favorecer a igualdade quanto a desigualdade, o que supe a existncia de duas noes diferentes, cujas tendncias so contrrias: a educao-instituio e a educao-campo. Segundo esses autores, a primeira seria orientada para a igualdade, e a segunda, para a distino social.

    Tomando esses paradoxos interpretativos da educao como exemplo, talvez fosse o caso pensar tambm os outros vieses que o conceito da educao, na perspectiva ao longo da vida pode abarcar, j que ela considera os diferentes modos e direcionamentos dados pelos sujeitos s aprendizagens que adquirem no curso de suas vidas e que servem construo de suas biografias.

    2 Para Maturana e Dvila (2006), a democracia o nico modo de convivncia que oferece a possibilidade de realizao do humano como um ser autnomo, capaz de ser social na colaborao num projeto comum. 3 Para Touraine (1998), a dessocializao (compreendida como o desaparecimento de papis, normas e valores sociais pelos quais se construa o mundo vivido) e a desinstitucionalizao (entendida como o enfraquecimento ou desapario das normas codificadas e protegidas por mecanismos legais e, ainda, o desaparecimento de julgamentos de normalidade aos comportamentos regidos por instituies), so consequncias do processo de desmodernizao que estamos vivendo neste novo milnio. E nesse processo o que tem ocorrido , antes de tudo, a ruptura entre o sistema e o ator.

  • No caso da biograficidad, o que caracteriza a sua reciprocidade com a corrente terica da Educao/Aprendizagem ao longo da vida, exatamente a valorizao da sinergia de los diferentes modos de aprendizaje

    (ALHEIT E DAUSIEN, 2007, p.12) que essa perspectiva terica abraa. Essa sinergia est no cerne das anlises que realizamos em torno das biografias das encarceradas, uma vez que avaliamos tanto a dimenso subjetiva/psicolgica das aprendizagens dessas aprendentes quanto a dimenso social, considerando o contexto de vida em que esto inseridas.

    Compreender a educao/aprendizagem ao longo da vida e suas interconexes com a biograficidad trata-se no somente de uma opo nossa, mas da condio para que sejam conhecidos os fundamentos e os sentidos dessa segunda, como teoria e como objeto emprico na vida das mulheres investigadas.

    vlido registrar que, no Brasil, exceto em um artigo publicado no ano de 2006 pela Revista Educao e Pesquisa da USP, intitulado A formao de adultos confrontada pelo imperativo biogrfico , de Pierre Dominic, em alguns dos estudos organizados pela professora Emlia Prestes (UFPB) - que utiliza a perspectiva da biograficidad para referendar suas pesquisas sobre formao/aprendizagens de conselheiros das comisses de trabalho e emprego, e na tese de Adriana Diniz (2007), que utiliza a perspectiva biogrfica para investigar a Educao, a formao e o trabalho de pessoas adultas da comunidade valenciana e brasileira, no se conhecem outros estudos que se referenciem pela teoria da biograficidad e por seus autores. Temos a um dos principais motivos para o alargamento desse debate terico no presente trabalho, j que ainda so poucos os estudiosos que o utilizam para abalizar suas investigaes.

    Outro motivo

    tambm ligado a esse - reforou o nosso interesse por discutir a proposta da educao/aprendizagem ao longo da vida. Trata-se do fato de termos pesquisado um grupo de mulheres4, cujas histrias de vida e de aprendizagens escolares as tornaram integrantes de um pblico especfico, o da Educao de Jovens e Adultos - EJA. Alis, a premissa bsica desse trabalho est centrada na idia

    Nos ltimos anos, essa modalidade da Educao Bsica inseriu, em suas propostas, os pressupostos da educao/aprendizagem ao longo da vida, passando a reforar a ideia de que se devem garantir aos jovens e aos adultos (homens e mulheres) no apenas a sua

    4 So mulheres que, em sua maioria, no concluram o Ensino Fundamental ou Mdio, e que, no presdio, esto, ou deveriam estar aproveitando a experincia que esse contexto oferece, para adquirir aprendizagens novas, capazes de possibilitar a reflexo sobre a delinquncia cometida, e, consequentemente, a ressignificao da prpria vida (MAYER, 2006).

  • escolarizao, mas o direito de aprender por toda a vida - em qualquer contexto, inclusive no interior das experincias, quaisquer que sejam elas.

    Foi, mais precisamente, na V Conferncia Internacional sobre Educao de Adultos (V CONFINTEA), realizada em Hamburgo - na Alemanha - em 1997, que a EJA, na perspectiva da educao ao longo da vida ganhou destaque. Na declarao e no Plano de Ao emanados dessa Conferncia, ela fora enfatizada como [...] uma perspectiva que afirmava a necessidade de continuidade e integralidade do processo educativo nas diversas etapas e espaos da vida das pessoas, [...] (ZARCO, 2000, p.148). Parecia responder, em primeiro plano, a uma necessidade econmica e social, que reforava ao Estado o papel de assegurar o direito de educao para todos, particularmente, para os grupos menos privilegiados da sociedade [...] , nos quais incluam-se as mulheres (Declarao de Hamburgo sobre Educao de Adultos - V CONFINTEA, 1997).

    Semelhante anlise acerca da educao/aprendizagem ao longo da vida tambm fora apresentada pelo Relatrio da Comisso Internacional sobre Educao para o Sculo XXI, da UNESCO, intitulado: EDUCAO, UM TESOURO A DESCOBRIR. Nesse relatrio, a educao ao longo da vida, baseada nas aprendizagens adquiridas pelos sujeitos a partir de suas experincias de vida, foi posta como uma exigncia democrtica, ou seja, [...] o meio de chegar a um equilbrio mais perfeito entre trabalho e aprendizagem, bem como ao exerccio de uma cidadania ativa (DELORS, 1999, p.105). De acordo com os seus relatores, essa educao oferece aos sujeitos - em tempos de globalizao - oportunidades de conduzir os seus prprios destinos, bem como de reorganizar, quando necessrio, os seus ritmos de vida (DELORS, 1999, p.105).

    Tais interpretaes, oferecidas tanto pelas organizaes internacionais quanto pelo debate acadmico contemporneo, expressam, como temos visto, que o principal objetivo da educao ao longo da vida o de oferecer aos sujeitos possibilidades diversas de aprendizagens, que essas sirvam efetivamente para a abertura de janelas

    de oportunidades em suas vidas.

    Reconhece-se, no entanto, que, nem sempre, esse objetivo pode se consolidar nas construes biogrficas dos sujeitos, tendo em vista que os contextos de vida e as estruturas nas quais se assentam e se constroem as biografias, embora ofeream diversas possibilidades de aprendizagens, nem sempre garantem tais aberturas. Nesses casos, como argumenta Kunzel (1996, p.97), a mobilizao em torno da educao/aprendizagem ao longo da vida acaba sendo taxada como escrnio e rejeitada por aqueles que, por causa do desemprego de

  • longa durao e por outras formas de marginalizao, no so lembrados para as aes de educao/aprendizagem criadoras de riqueza .

    Ressalte-se que as designaes: educao/formao ao longo da vida e aprendizagem ao longo da vida - sendo esta ltima a mais utilizada nos ltimos anos - emergiram, primeiramente, no contexto europeu, mais especificamente nas dcadas de 1960 e 1970, num cenrio em que a educao de adultos ganhava nfase em razo da necessidade de atender s exigncias dos processos de reestruturao produtiva daqueles pases da Europa e de se garantirem sociedades mais democrticas. por isso que no se pode dizer que a educao ao longo da vida, qual at agora nos referimos, uma perspectiva nova , como alguns tentam defender. Sua origem, na verdade, deriva da concepo de educao permanente, que foi altamente difundida nas dcadas anteriores de 1990, sob uma orientao poltica educativa das mais progressistas da poca.

    No obstante, o que interessa discutir neste trabalho, mais especificamente, o novo conceito

    atribudo educao ao longo da vida, nos ltimos anos, que John Field (200, p.133, apud, ALHEIT E DAUSIEN, 2007) diz ser revelador de um fenmeno societrio por ele chamado de nova ordem educativa , provocadora de uma revoluo silenciosa . Nela, o aprender, nos seus diferentes modos (seja em contextos formais, no-formais e/ou informais), torna-se a mola-mestra para a construo de biografias individuais muito diferentes umas das outras.

    Foi por considerar essa nova ordem

    que surgiu o nosso interesse por aplicar a teoria

    biogrfica de Alheit e Dausien (2007) na anlise das biografias das mulheres encarceradas, com a inteno de compreender o fenmeno da criminalidade entre elas, com base nos seus diferentes modos (subjetivos) e circunstncias de aprendizagem.

    Acreditamos, portanto, que a anlise das aprendizagens biogrficas dessas mulheres permitiria um olhar novo para as questes que envolvem os comportamentos considerados criminosos pela sociedade, tendo como objeto especfico a apreciao/anlise do comportamento delituoso , especificamente o feminino.

    Salientamos que, neste estudo, nossa preocupao no apenas com as questes de ordem estrutural e/ou cultural da vida dos sujeitos (e que, geralmente, so utilizadas por estudiosos para justificar as prticas criminosas cometidas por algumas pessoas). Focalizamos tambm e, principalmente, a sua ateno para o interior das biografias, em que poderamos identificar os resultados/implicaes das aprendizagens adquiridas ao longo da vida, capazes de conduzir - no caso das participantes desta pesquisa - a mundos de vida ligados ao crime.

  • A razo que nos conduziu escolha das encarceradas como principais sujeitos desta investigao teve a ver com a centralidade que a aprendizagem biogrfica, adquirida a partir de nossas experincias, ocupou em nossas vidas. Uma dessas experincias foi a que vivenciamos na infncia, mais especificamente na dcada de 1980, quando morvamos na cidade de Patos

    Pb. Ainda que no fosse frequentemente, visitvamos o presdio daquela cidade na companhia dos nossos pais, nos dias em que eles, em parceria com a pastoral carcerria, promoviam feijoadas naquele local e as distribuam para os/as aprisionados/as e funcionrios do sistema. Alm dessa ao, ofereciam tambm uma palavra de f e de conforto queles sujeitos.

    Ao contrrio de hoje, as visitas aos presdios eram mais comuns naquela poca. No se temiam tanto as rebelies como se teme hoje, e a revista que era feita aos visitantes no era to rigorosa. Talvez fosse por esse e por outros motivos (ligados s aprendizagens que aquela experincia nos poderia proporcionar) que os nossos pais permitissem e at quisessem o nosso contato com aquela realidade.

    Reconhecemos, pois, que essa experincia nos favoreceu novas configuraes de experincias (ALHEIT & DAUSIEN, 2007) que se abriram nos caminhos que nos levaram progressivamente a ser o que somos hoje e a alcanarmos o que at aqui alcanamos. Podemos, ento, registrar que, embora essa experincia no tenha sido a motivao principal para a realizao deste trabalho, serviu para nos oferecer pistas acerca dos perfis (as subjetividades e as formas de sociabilidades) e das posturas dos sujeitos com os quais trabalhamos nesta pesquisa e para que, na narrao de parte significativa de nossa biografia, fizssemos uso do saber de fundo biogrfico , tal como entende Alheit (2007). Na compreenso desse autor, esse saber representa a La reconstruccin de las vivencias y de las experiencias biogrficas y, con ello, la construccin de sentido que tiene lugar, por ejemplo, en la narracin de la historia de vida (ALHEIT, 2007, p.33).

    As demais experincias que tivemos e que se destacaram ao longo da nossa vida estiveram ligadas aos processos de formao e de trabalho institucionalizados pelos quais passamos e delinearam, aos poucos, o nosso itinerrio biogrfico. Uma delas, que consideramos a primeira das mais importantes, foi a formao no Curso de Licenciatura em Pedagogia. Alm das muitas aprendizagens que adquirimos com essa experincia, vivenciamos outras que foram importantes (na vida pessoal, acadmica e profissional). Destacamos, aqui, algumas das que vivemos nesses dois ltimos campos.

    No campo acadmico, a experincia como bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica do PIBIC/CNPq, foi a mais marcante e a que mais impactou

  • nossas biografias, pois, alm de nos ter guiado para vivncias de outras significativas experincias (nos campos profissional e formativo), proporcionou aprendizagens sistematizadas importantes para a construo social/cultural das nossas biografias.

    Os primeiros passos para essa experincia comearam no terceiro perodo do Curso de Pedagogia, ao ser aberta a seleo para o programa de bolsa de iniciao cientfica. Era ainda uma fase em que no tnhamos certeza do que queramos em relao vida acadmica. Naquele perodo, simultaneamente ao curso, trabalhvamos em uma empresa privada (supermercado), que demandava uma carga horria pesada, o que dificultava o processo de aprendizagem do curso.

    Estvamos desejosas por abandonar aquele trabalho, mas, ao mesmo tempo, temamos a perda dos benefcios (salrio e proteo social garantidos com a assinatura da carteira de trabalho) que, de certa maneira, aquela experincia profissional nos proporcionava, uma vez que contribuamos com a manuteno da nossa famlia.

    Mesmo com dvidas, resolvemos tentar a seleo e nos candidatamos. Podemos dizer que, embora no tenha sido fcil optar por participar daquela seleo, pelos motivos j apresentados, admitimos que foi a partir daquela deciso e, consequentemente, da aprovao (que gerou o afastamento daquela experincia de trabalho e mais envolvimento em atividades acadmicas), que demos um dos passos mais importantes no processo da construo de nossas biografias. Foi a que garantimos ao nosso itinerrio biogrfico uma lgica prpria e um direcionamento novo, proporcionador de transformaes surpreendentes nas nossas vidas.

    Alheit e Dausien (2007) analisam realidades como essas pelo vis do princpio de determinao , que envolve todo o processo de formao biogrfica.

    Os processos de formao biogrfica tm seu prprio princpio de determinao, eles possibilitam experincias inesperadas e transformaes surpreendentes que, muitas vezes, no foram previstas pelo prprio aprendente e s podem ser "compreendidas" posteriormente, mas que tm, entretanto, sua "direo" prpria.

    De fato, por meio da nossa histria, fica mais fcil entender o que dizem esses autores em relao formao da biografia, mais especificamente, quando alegam que cada vez mais difcil para o aprendente prever as experincias (ou as suas transformaes) que os aguardam. Essa impreviso vista por Sen (2001) como um reflexo da complexa natureza da

  • organizao social moderna, cujo sistema no oferece ou dificulta para as pessoas o acesso a todos os instrumentos de controle sobre a prpria vida (SEN, 2001, p.113).

    Em relao a essa experincia, o que percebemos foi que a ausncia de tais instrumentos de controle da vida5 no representou impedimento para tomarmos tal deciso e, por conseguinte, para provocar as transformaes que se deram em nossas vidas, como frutos dessa deciso. Foi, portanto, analisando experincias assim, dentre outras tantas, que os autores Alheit e Dausien (2007) enxergaram a possibilidade da biograficidad, visto que ela representa a capacidad del sujeto de reelaborar la experiencia vivida , atravs de reaes autnomas dentro de seus contextos.

    Lembramos que, ao todo, foram vivenciados quatro anos de experincia no Programa de Bolsa de Iniciao Cientfica. Em um desses anos, investigamos a Poltica de Erradicao do Trabalho Infantil

    PETI

    e, nos outros trs, a Poltica Pblica de Qualificao para o Trabalho, Emprego e Renda, no contexto dos governos de FHC e de LULA, analisando, especificamente, as contribuies da qualificao profissional para mulheres em situao de risco social (desempregadas, subempregadas, trabalhadoras do campo, negras etc.). Nosso principal objetivo era analisar se essa qualificao oferecia incluso social e como isso ocorria.

    Os resultados encontrados nesta pesquisa6 e a familiaridade adquirida com o pblico investigado, durante esses trs anos, fizeram com que optssemos, mais uma vez, pelas mulheres (embora inscritas em outra realidade: a da priso) como sujeitos do objeto de estudo na ps-graduao.

    A relevncia dessa experincia na nossa vida, durante esses quatro anos de desempenho da funo de pesquisadora bolsista do PIBIC/CNPq, permite-nos proceder a uma avaliao mais positiva possvel, visto que ela nos despertou o encantamento e o gosto pela pesquisa e por outras atividades acadmicas que antes desconhecamos. Ora, nosso ingresso no Mestrado (que tambm apontou novas possibilidades de formao e de trabalho) talvez no

    5 Para aquele momento, seriam: a certeza de que, se optssemos pela permanncia no trabalho, no seramos demitidas daquele emprego; a certeza de que o valor da bolsa permitia continuarmos contribuindo com a manuteno da nossa famlia; a certeza de que asseguraramos outras experincias acadmicas remuneradas aps aquela, etc. 6 Os resultados desta pesquisa demonstraram estar incidindo novas e diferentes formas de incluso, ou, ao menos, de se perceber includo na sociedade, por exemplo, atravs da aquisio de capacidades argumentativas (dilogo), de tolerncia, respeito e convivncia com os diferentes, da participao cidad mais ativa na sociedade, etc.

  • tivesse ocorrido to rpido7 se no tivesse sido nos dada (ou talvez, se no tivssemos nos dado) a oportunidade de vivenciar essa experincia inicial de pesquisa.

    Outras duas experincias acadmicas, embora mais curtas, tambm favoreceram o nosso construto biogrfico. Uma foi a experincia da monitoria na disciplina Histria da Educao, que muito nos fez aprender sobre a importncia da histria para compreender o mundo moderno, e das histrias de vida como fundamentais nessa tentativa de compreenso, tendo em vista a escassez de fontes escritas e a validade das fontes orais; a outra foi a experincia vivida no Programa Alfabetizao Solidria, ligado aos projetos de extenso da UFPB, em que atuvamos como coordenadoras pedaggicas/setoriais, responsveis pela formao de professores leigos em dois municpios do interior da Paraba.

    Cada uma dessas experincias, somada a outras que vivenciamos brevemente (a convite da professora Emlia Prestes), ainda no decorrer do Curso de Pedagogia, representou uma oportunidade valiosa de estendermos a nossa aprendizagem para fora da sala de aula. As demais experincias vividas no campo do trabalho resultaram daquelas que vivemos no campo acadmico. Elas tambm contriburam para que chegssemos at a concretizao desse trabalho, foram os casos: do trabalho com jovens e adultos (homens e mulheres) em processo de escolarizao, numa Escola Municipal de Joo Pessoa - PB, atuando como professora estagiria; como coordenadora pedaggica da EJA, em uma Escola Municipal de Bayeux

    PB; como formadora de professores da EJA (1 segmento), na rede municipal de ensino, e, por ltimo, como coordenadora pedaggica dos professores da EJA nos presdios da grande Joo Pessoa. A nossa atuao nesta ltima experincia narrada ocorrera de maneira articulada tanto com as demais coordenadoras quanto com os diretores, os agentes penitencirios e os/as professores/as dos presdios, trabalhando com todos eles no sentido de incentivar as aes educativas naqueles contextos.

    Vale registrar que, em todas essas experincias, o trabalho desenvolvido no se limitava pura execuo de tarefas. A realidade daqueles sujeitos com quem trabalhvamos era essencialmente rica e passvel de observao, por isso no deixvamos de remeter um olhar crtico e reflexivo para elas. Assim, podemos dizer que as aprendizagens que adquirimos nesses contextos foram tambm responsveis por novos direcionamentos em nossas biografias.

    Foi, portanto, mais precisamente, a vivncia desta ultima experincia de trabalho, como coordenadora pedaggica dos professores da EJA, nos presdios, e de uma experincia

    7 A rapidez a que nos referimos a da entrada no curso de Mestrado, depois apenas de seis meses de concluda a graduao. Tempo esse em que foi dedicada s etapas da seleo no Programa de Ps-graduao.

  • de pesquisa8 em um programa que envolvia a situao educacional de aprisionados e aprisionadas, denominado Educao para a liberdade, que identificamos a necessidade de olhar mais atentamente para as problemticas que abarcam o pblico dos presdios, to esquecidos social e academicamente.

    No trabalho da coordenao pedaggica, que ocorreu depois do desenvolvimento da pesquisa acima citada, despertamos o interesse mais especfico por investigar uma parte exclusiva do pblico desses contextos, como foi o caso das mulheres encarceradas, sujeitos desta pesquisa. Atravs dessa experincia, pudemos perceber como os/as encarcerados/as eram/so vistos pelo sistema prisional, ou seja, sob uma nica tica - a do crime. Salvo por poucas pessoas, como alguns/as educadores/as, por exemplo, quase ningum demonstrava compreender aqueles sujeitos como seres histricos, construtores de uma biografia, possivelmente marcada por circunstncias de vida difceis.

    Destacamos, no entanto, que, ao mesmo tempo em que percebemos o descaso com a populao aprisionada, identificamos (mais precisamente no ano de 2005-2006) o surgimento de uma srie de iniciativas por parte das instituies da Educao e da Administrao Penitenciria, articuladas em torno do Projeto "Educando para a Liberdade", cujos objetivos voltavam-se para a garantia, a ampliao e o fortalecimento das atividades educativas nas penitencirias.

    O referido projeto deu origem a uma srie de atividades, no mbito da organizao da educao nas prises, a saber: a realizao de seminrios regionais para se discutir o assunto e se construrem as diretrizes da educao prisional com os representantes dos rgos do Governo responsveis pela questo, nos mbitos federal e estadual, e pelas lideranas da sociedade civil; a alterao da Lei de Execuo Penal, que prev a reduo da pena para quem estuda na priso; o financiamento de projetos junto aos Sistemas Estaduais e o fortalecimento das relaes entre esses sistemas e os rgos federais, visando minimizao das barreiras burocrticas para a promoo de uma educao de qualidade nesses contextos. Essa educao se justifica no exclusivamente como um instrumento de reabilitao (mesmo que se contribua para que ela acontea), mas pela oportunidade de garantir ao/ aprisionado/a a reconciliao com o ato de aprender (MAYER, 2006) e, consequentemente, de melhorar a qualidade de vida no seu atual contexto de vida.

    8 Tratou-se de uma pesquisa encomendada pela Secretaria de Estado de Educao e Cultura, que queria um diagnstico da situao educacional das principais unidades prisionais do Estado. Para tal ao, foi contratada uma equipe de pesquisadores da UFPB da qual fiz parte, tendo como coordenada a professora Emlia Prestes. O objetivo era contribuir com o fortalecimento do processo educativo nas unidades do sistema prisional paraibano.

  • O direito educao do/a preso/a, na perspectiva de uma educao ao longo da vida, comeava, ento, a ganhar destaque, tanto nas pautas dos importantes documentos da EJA, no Brasil, quanto nos estudos de alguns pesquisadores que investigavam o assunto, como Mayer (2006), por exemplo. Por meio das reflexes que apresenta sobre a relao entre educao e priso, esse estudioso se constituiu a principal referncia cientfica no assunto, porquanto contribuiu diretamente para a elaborao dos documentos acima mencionados. Para ele, ainda que no se trate do melhor lugar, nem obtenha as ferramentas necessrias para tal, a Educao/Aprendizagem ao longo da vida, nesses contextos, possvel e necessria.

    Em outras palavras, poderamos dizer que, em contextos de recluso, a educao ganhou uma dimenso mais profunda. De acordo com Mayer (2006, p.22), ela no deve se restringir ao ensino, mas ser, primordialmente, [...] uma oportunidade para que os internos decodifiquem sua realidade e entendam as causas e conseqncias dos atos que os levaram priso . Todavia, no seu entender, isso s possvel se a educao oferecida nesses contextos se constituir de

    [...] momentos de aprendizagem, de experincias bem-sucedidas, de encontros que no sejam relaes de fora, momentos de reconstruo da prpria histria, espaos para expressar emoo e realizar projetos (MAYER, 2006, p.03).

    a isso que Mayer (2006) chama de educao ao longo da vida na priso. A nosso ver, essa tendncia reconstruo da prpria histria parece tambm ser propcia para o desenvolvimento de pesquisas nesses contextos, especialmente as educacionais. Foi essa, ento, a nossa inteno.

    Acreditamos que, ao dar voz s encarceradas, dandos-lhes a oportunidade de rememorar suas histrias, estaremos no apenas contribuindo com o desnudamento dos fenmenos investigados na pesquisa, mas tambm lhes favorecendo uma instrumentalidade educativa.

    importante registrar que as mulheres investigadas neste trabalho (por serem mulheres e, ao mesmo tempo, prisioneiras) se encontram duplamente situadas no grupo que Michelle Perrot (2001) chamou de os excludos da histria . Foi isso tambm que nos motivou a investig-las, ainda mais porque vimos que so escassas as discusses e as pesquisas acadmicas, principalmente as educacionais, sobre esse pblico.

  • Tal realidade foi possvel de ser observada quando realizamos um levantamento bibliogrfico sobre o assunto enfocando essas mulheres. Nesse levantamento, vimos que, se o debate sobre as pessoas encarceradas no mbito educacional j pequeno, ele quase inexiste quando se trata de mulheres.

    Em outras reas, no entanto, - a sade, o direito, a psicologia, servio social e a sociologia - os estudos sobre a criminalidade feminina, ainda que no sejam muitos, ganharam mais impulso, nos ltimos anos, do que as demais reas pesquisadas. Porm, o que mais se v nesses estudos, principalmente os relacionados s cincias sociais, so tentativas de se explicarem as aes criminosas das mulheres, nica ou prioritariamente, pelo contexto onde elas viveram antes de reclusas, geralmente marcado por situaes de pobreza. A justificativa quase sempre ilustrada da seguinte maneira: Traficaram drogas, cometeram furtos ou estelionato porque moram em favelas, so pobres, no tm marido, mas tm muitos filhos e precisam sobreviver! , enfim, em razo das precrias condies socioeconmicas em que vivem antes de reclusas.

    Cabe salientar que justificativas como essas no foram utilizadas ao longo da histria para analisar a criminalidade feminina. Ao contrrio, as dimenses sociais, econmicas e culturais da delinquncia sempre foram empregadas, segundo Cunha (2005, p.03), para analisar a criminalidade masculina, que era a nica vista nessa perspectiva. s mulheres eram reservadas explicaes com bases biolgicas e psicolgicas: desregulamentos hormonais, complexos, neuroses e manias [...] (CUNHA, 2006, p.04).

    Temos, ento, que reconhecer que foi um avano o fato de se ter passado a analisar a delinquncia feminina tambm a partir das dimenses sociais, econmicas e culturais acima mencionadas por Cunha (2006). Ao que tudo indica, as mudanas ou o avano nesse campo de anlise deve ter ocorrido em razo das modificaes dos papis sociais exercidos pelos gneros na contemporaneidade, uma vez que o homem no mais o nico provedor das famlias, porquanto a mulher, em muitos casos, a nica que garante a sobrevivncia dos seus membros.

    No nosso entender, foi essa nova realidade social que fez com que muitos estudiosos adotassem o contexto social como principal e, no raras vezes, nica referncia de anlise da prtica criminosa realizada por mulheres. Neste estudo, porm, no desprezamos o contexto, mas tambm no aderimos a ele unicamente para interpretar o fenmeno que estamos investigando. Para ns, o contexto social, como instrumento nico de anlise da ao social das pessoas, no oferece respostas para questes como as que levantamos no objeto de estudo desta pesquisa. Por exemplo, se as mulheres so minorias nos presdios, como explicaramos

  • o fato de que a maioria (as que esto livres), mesmo vivendo sob as mesmas condies e nos mesmos contextos em que viveram as que atualmente se encontram presas, no enveredou pelo mundo do crime? Que aprendizagens fizeram com que se desviassem desse caminho? Como explicar tambm a criminalidade de mulheres que vivem em contextos elevados scio-economicamente? No parece fcil responder a essas questes, todavia concordamos com Pais (2003, p.117), que defende que [...] no devem os contextos fsicos ou ecolgicos ser encarados como causa dos atos individuais, mas apenas excitantes [...] .

    Partindo desse pressuposto, focalizamos este estudo na ideia de que os sujeitos, regulados pelo que constroem socialmente, so capazes de dar um sentido individual s suas prprias aes, fundado por meio das interaes com os outros indivduos. As biografias de aprendizagens das encarceradas, nesse sentido, servem para analisar as mediaes que ocorrem entre as aes (individuais) e a estrutura e/ou entre a histria individual e a histria social de cada uma delas.

    Entendemos, todavia, que, na anlise de tais mediaes, era imprescindvel que se conhecesse como elas prprias interpretam suas experincias e as aprendizagens que delas resultaram e, ainda, se atribuem a elas o fato de terem enveredado no mundo do crime.

    Esses e os demais fatores que elencamos anteriormente nos induziram a entender que no interior das experincias de vida (sejam elas vividas em contextos formais, no-formais ou informais) que as pessoas adquirem as aprendizagens necessrias para a construo de suas biografias individuais e que, dependendo de como essas aprendizagens se relacionam com as biografias (identidades) e com as estruturas, podem conduzir as pessoas para a marginalidade e a criminalidade.

    Nesta pesquisa, estamos trabalhando com a hiptese de que as aprendizagens das mulheres investigadas tm pontos circunstanciais parecidos, que so favorveis a sua aproximao com a atividade criminosa. Compreendemos, ento, que as decises de vida esto ligadas s aprendizagens informais que acompanharam a construo das suas biografias no processo de socializao. Por isso pressupomos que a probabilidade de essas mulheres se envolverem com atividades criminosas seria bem menor se a maior parte das aprendizagens que acompanharam suas trajetrias de vida tivesse sido adquirida em processo de aprendizagem formal (escolaridade ou perspectivas de mudar de vida atravs da escolaridade, por exemplo).

  • 1.1 O MTODO DA INVESTIGAO E SEUS DELINEAMENTOS

    Iniciamos esta pesquisa com um levantamento bibliogrfico sobre o tema da nossa investigao - a criminalidade feminina

    por acreditar que essa atividade seria fundamental para indicar a relevncia do assunto na rea da Educao. Assim, conhecer a repercusso sobre o tema estudado no mbito das discusses acadmicas, sobretudo, as educacionais, foi o principal objetivo desse levantamento.

    O primeiro passo em direo a esse objetivo foi apreciar as publicaes de trs peridicos importantes na rea de Educao (nos seus ltimos trs anos) e trabalhos acadmicos (dissertaes e teses), para identificar se, de alguma maneira (direta ou indiretamente), eles abordavam o tema da criminalidade. Podemos dizer que esse levantamento foi um recurso essencial tanto para orientar os procedimentos metodolgicos da pesquisa quanto para subsidiar as reflexes sobre o tema, sob as lentes de outros estudiosos.

    De modo geral, todos os procedimentos metodolgicos utilizados procuraram se adequar ao objeto e ao objetivo central da investigao. Foi, portanto, dessa compreenso que elegemos, dentro da investigao qualitativa, o mtodo biogrfico, selecionando as tcnicas ligadas a esse mtodo: histria de vida, e os seus instrumentos de coletados de dados, como a entrevista em profundidade (ou biogrfica), por exemplo.

    As justificativas para as escolhas terico-metodolgicas e as formas de utilizao/aplicao nesta pesquisa esto mais frente explicitadas. Apresentamos, na sequncia, os resultados do levantamento bibliogrfico realizado sobre o tema e, em seguida, discutimos sobre tais decises metodolgicas, como foram aplicadas na prtica e os seus resultados.

    1.2 O DISCURSO SOBRE A CRIMINALIDADE FEMININA NO ACERVO ACADMICO

    Atendendo ao plano de atividades estabelecido no projeto de pesquisa, apresentamos, neste espao, uma sntese da reviso de literatura sobre a temtica do nosso objeto de estudo. Tal reviso foi realizada no site da CAPES, atravs do banco de teses, e em peridicos de renome9 na rea da Educao. A inteno foi a de conhecer, no mbito da produo acadmica, a repercusso do discurso da sociedade do conhecimento, mais especificamente, do discurso educacional, em torno do tema que envolve a criminalidade feminina.

    9 Revista Brasileira de Educao, Revista Educao & Sociedade e Revista Educao & Pesquisa

  • Para realizar essa atividade, obedecemos a alguns critrios que julgamos pertinentes relatar. O primeiro deles foi a seleo de peridicos com conceito A no QUALIS da CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior). Acreditvamos que, em peridicos que obtm esse conceito

    devido ao amplo reconhecimento na comunidade cientfica por causa da qualidade de suas publicaes - seria mais provvel encontrar estudos ligados, direta ou indiretamente, ao tema da criminalidade.

    Dos trs peridicos selecionados (Revista Brasileira de Educao, Revista Educao & Sociedade e Revista Educao & Pesquisa), analisamos somente os artigos publicados nos ltimos trs anos (2005, 2006 e 2007). Da soma das publicaes desses trs peridicos nos anos acima referidos, apenas dois apresentaram discusses ligadas temtica do crime.

    A primeira publicao ligada ao tema foi encontrada na Revista Brasileira de Educao, e a outra, na Revista Educao & Pesquisa. Na primeira, o autor10 apresentava uma discusso sobre as condies da educao prisional na Europa, nos seus vrios planos e aspectos, procurando identificar os problemas de ordem organizacional, metodolgica e social que as determinavam ou que as limitavam.

    A leitura e a anlise dessa publicao foram importantes porque serviram para compreender que, no Brasil, os problemas que acompanham a garantia de acesso e a qualidade da educao para as pessoas encarceradas so muito parecidos e, s vezes, at idnticos aos de alguns pases europeus, considerados de primeiro mundo. Serviram ainda para que percebssemos que os estudiosos sobre a educao nas prises tm realizado suas anlises e reflexes ancorando-se na perspectiva da aprendizagem ao longo da vida, exatamente aquela em que temos nos baseado para refletir sobre a biografia das encarceradas, pblico-alvo desta pesquisa.

    Pelo que vimos, embora o autor dessa publicao demonstrasse entender que a educao ao longo da vida fundamental no ambiente carcerrio, admitia que, na prtica, ela no estava sendo efetivada na realidade carcerria, o que, para ele, significa uma reduo das possibilidades de solucionar os problemas da complexa e diversificada realidade dos presdios.

    Para Rangel (2007), a efetivao dessa educao no crcere favoreceria aos presos a compreenso dos significados de suas atitudes criminosas do passado, dando-lhes os meios e as possibilidades de ressignific-las na perspectiva de uma mudana, exatamente o que prope a biograficidad. Citando Duguid (2000), Rangel (2007) afirma que, se a educao no interior

    10 RANGEL, Hugo. Estratgias sociais e educao prisional na Europa: viso de conjunto e reflexes. Revista Brasileira de Educao v. 12 n. 34 jan./abr. 2007.

  • dos presdios no conseguir provocar essa reflexo para uma mudana de atitude dos encarcerados, ela estar simplesmente criando criminosos qualificados.

    No segundo peridico selecionado para esse levantamento - a Revista Educao & Sociedade - no encontramos nenhuma publicao que, direta ou indiretamente, abordasse a temtica do crime. J na Revista Educao & Pesquisa , encontramos uma que se ligava temtica e cujo ttulo era: Narrativas sobre a privao de liberdade e o desenvolvimento do self adolescente (OLIVEIRA & VIEIRA, 2006).

    Essa publicao, embora se enquadre mais no campo da psicologia do que no da educao, levantou ideias muito prximas das que so defendidas na teoria da biograficidad, por Alhei e Dausien (2007). Suas autoras se apoiam na ideia de que os adolescentes privados de liberdade podem produzir novas significaes acerca de si mesmos, por meio do desenvolvimento do self, um conceito da psicologia que se refere ao papel desempenhado pelo prprio sujeito no processo de reorganizao interna e externa do ser, atravs da relao com o outro no contexto cultural. Admitem que as narrativas, nesse processo, so muito importantes, pois servem como instrumento de organizao da experincia subjetiva e social, consequentemente, da vida mental (BAMBERG, 2004A; 2004B; CHANDLER, 2000; BRUNER, 1997, apud, OLIVEIRA & VIEIRA, 2006).

    Tais premissas, ainda que ligadas ao campo da psicologia, lembraram-nos algumas das caractersticas e especificidades da biograficidad, que defende a ideia de que os sujeitos so capazes de reelaborar as prprias experincias de vida, por meio das aprendizagens que assimilam subjetivamente, aproximando-se de alguns modelos tericos da psicologia sobre o desenvolvimento do self, os quais apostam na capacidade dos sujeitos de produzirem novas significaes sobre si mesmos, por meio da relao de interdependncia com o outro, atravs da interao social em contextos socioinstitucionais concretos.

    A ltima anlise que fizemos sobre o que foi observado nesses trs peridicos selecionados nos permitiu comprovar a existncia de uma grande lacuna, no que diz respeito abordagem do tema da criminalidade, ou de temticas afins, na rea da educao, confirmando a relevncia deste trabalho para ampliar os estudos sobre o tema. Ainda mais porque, pelo que vimos, os poucos cientistas da educao que pesquisam esse tema no o fazem dentro de uma perspectiva biogrfica e, muito menos, de gnero. O que se v so discusses quase somente ligadas a problemas de ordem estrutural e pedaggica, que envolvem as tentativas de ressocializao dos presidirios e das presidirias, atravs da educao, porm sem a considerao de suas biografias.

  • Concluda a reviso da literatura nos peridicos mencionados, e tendo encontrado apenas duas publicaes ligadas ao tema do nosso estudo, partimos para a outra etapa desse levantamento, com a inteno de contabilizar e verificar os trabalhos acadmicos (dissertaes e teses) sobre o tema que, envolvendo direta ou indiretamente a criminalidade feminina, foram produzidos, nos ltimos anos, na rea de Educao.

    Essa atividade foi realizada no site da CAPES, atravs do seu banco de teses, onde so apresentados os resumos das produes acadmicas (teses e dissertaes) defendidas desde 1987. Antes de iniciar, percebemos que havia trs alternativas para realiz-la. Na primeira, a pesquisa poderia ser efetivada informando o nome do autor da produo investigada; na segunda, o nome do assunto investigado, caso no se soubesse o nome do/s autor/es de tais produes e, tampouco, as instituies onde elas poderiam ser encontradas e, na terceira e ltima alternativa, o nome da instituio era o que deveria ser informado, caso houvesse a certeza de que nela se encontraria a produo desejada.

    Como no obtnhamos informaes suficientes para escolher a primeira ou terceira alternativas, uma vez que demandavam o conhecimento dos autores e das instituies onde as produes foram construdas, restou-nos a segunda.

    Tomada essa deciso, comeamos esse levantamento pesquisando o tema criminalidade feminina . Para alm desse assunto, elencamos outros: mulher prisioneira,

    mulheres encarceradas, priso feminina, por estarem ligados a ele, o que aumentou as chances de encontrarmos um nmero maior de trabalhos.

    Considerando tais assuntos, identificamos um total de 122 produes, entre teses e dissertaes, nas diversas reas do conhecimento. Desse nmero, 36 produes foram encontradas, por meio da pesquisa sobre o assunto criminalidade feminina ; 15, sobre o tema mulher prisioneira , 29, mulheres encarceradas , e 42, sobre priso feminina .

    importante registrar que, antes mesmo de organizar esse levantamento por rea de conhecimento, identificamos que alguns trabalhos se repetiam na pesquisa por assunto. Isso nos levou a perceber que o nmero de produes era menor do que o registrado inicialmente, totalizando 96 produes.

    Alm disso, atravs da leitura atenta dos ttulos e dos resumos dos trabalhos levantados, verificamos que alguns deles no tratavam de estudos sobre os assuntos delimitados nesse levantamento. Por isso que, ao descart-los, o nmero total de trabalhos selecionados se reduziu ainda mais, chegando a 71 para 18 reas do conhecimento.

    Recorde-se que a ideia de realizar esse levantamento bibliogrfico, no banco de teses da CAPES, surgiu do nosso interesse em verificar a repercusso das pesquisas, principalmente

  • no mbito educacional, sobre a problemtica que envolve a criminalidade feminina. Abaixo, mostramos uma tabela que organizamos com a inteno de apresentar informaes sobre essa repercusso, tanto na rea da educao quanto em outras reas do conhecimento. Demais informaes sobre tais produes, como: ttulo, nome dos autores, data de defesa e instituio onde elas foram defendidas no constam ainda nessa tabela, mas esto disponveis em anexo.

    REA DO CONHECIMENTO NMERO DE PRODUES

    ENCONTRADAS NA PESQUISA SOBRE O ASSUNTO

    SADE 11 DIREITO 15

    SERVIO SOCIAL 04 HISTRIA 05 CINCIAS SOCIAIS 07 PSICOLOGIA 08

    EDUCAO 07 ADMINISTRAO 01 POLTICA SOCIAL E POLTICAS PBLICAS E SOCIEDADE

    02

    ESTUDOS POPULACIONAIS E PESQUISAS SOCIAIS

    02

    DESENVOLVIMENTO REGIONAL E

    AGRONEGCIO 01

    CINCIAS DA RELIGIO 01 ANTROPOLOGIA 02

    ARTES 00

    LITERATURA 02

    TECNOLOGIA 01

    PSICOSSOCIOLOGIA DE COMUNIDADE E

    ECOLOGIA SOCIAL

    01

    ECONOMIA DOMSTICA 01

  • Ao analisar essa tabela, constatamos que o tema da criminalidade feminina vem sendo objeto de estudo em diversas reas do conhecimento cientfico, at mesmo naquelas em que seria difcil de imaginar, como o caso da rea do Desenvolvimento regional e agronegcio .

    Algumas reas, porm, apresentaram um nmero mais significativo de produes sobre esse tema, como Direito e Sade. Em contrapartida, as reas de Educao, Servio Social, Cincias Sociais, Histria e Psicologia apresentaram poucas produes, se comparamos s primeiras.

    Esses resultados nos permitem afirmar que os estudos sobre a criminalidade feminina, ou sobre temticas afins

    relacionadas s pessoas e/ou s instituies envolvidas com esse fenmeno, so ainda muito restritos no campo da educao. Diante dessa constatao, perguntamos: O que estaria por trs desse to nfimo nmero de estudos sobre a criminalidade, ou temticas afins, na rea da Educao? Ser que a criminalidade no tem sido encarada pelos estudiosos como um problema tambm educacional? Ou ser que, por serem inmeras as problemticas que envolvem a Educao, esse tema ainda no recebeu a ateno merecida? No temos as respostas para essas questes, mas foram elas que nos motivaram e continuam nos motivando a estudar essa complexa realidade, luz das teorizaes sobre os processos de aprendizagem por meio dos quais as pessoas constroem as suas biografias. Foi por isso que realizamos esse levantamento.

    A maioria dos trabalhos encontrados sobre o tema, na rea da Educao, apresentou reflexes sobre os significados das aes educativas dentro dos presdios femininos. Pelo que se percebeu, a ideia desses estudos foi de discutir tanto as implicaes de tais aes na vida das encarceradas no contexto da priso quanto as possibilidades que elas oferecem, ou deveriam oferecer, para a sua reintegrao na sociedade.

    Em apenas um trabalho, intitulado: Mulheres delinquentes: uma longa caminhada at a casa da rosa , da autora Montano (2000), vimos a preocupao de se investigar a trajetria da vida de mulheres em situao de privao de liberdade, em especial, as escolares. A ideia da pesquisa, segundo a autora, foi analisar o significado da escola na vida das presas-alunas de uma penitenciria feminina da cidade de Porto Alegre

    RS. Tanto a entrevista quanto a observao dos contextos scio-ocupacionais, familiares e educacionais das detentas, quando crianas e adolescentes, foram instrumentos de pesquisa que a autora utilizou para alcanar os seus objetivos, entre os quais, o de [...] descortinar a trajetria da carreira desviante dessas mulheres (MONTANO, 2000).

  • Ainda que a preocupao central deste trabalho tenha sido a investigao das trajetrias escolares e de suas significaes para a carreira desviante das prisioneiras, percebemos aproximaes entre os seus objetivos e os nossos, tendo em vista o interesse apresentado, embora indiretamente, pelas biografias dessas mulheres e pelos sentidos que deram a elas por intermdio dos processos escolares.

    Concludo esse levantamento, demos incio aos outros procedimentos metodolgicos da investigao, mediados por tais reflexes bibliogrficas.

    1.3 A OPO PELO MTODO BIOGRFICO: RAZES TERICO-METODOLGICAS

    Esta pesquisa seguiu orientaes metodolgicas da investigao qualitativa da formao11, explorando os processos de aprendizagem biogrfica das pessoas envolvidas no estudo em todas as idades e em todos os mbitos de socializao, institucionalizados ou no.

    A perspectiva terico-metodolgica da investigao qualitativa da formao, de acordo com Alheit e Dausien (2007), a da reconstruo dos processos de formao (aprendizagem) em trs nveis: micro, meso e macro. No primeiro nvel, o foco de interesse so os processos de formao e\ou aprendizagens individuais (nesse caso, so investigadas as aprendizagens que as pessoas adquirem individualmente, nos seus processos de vida, sob as condies de uma nova modernidade); no segundo, o interesse se volta para a reconstruo desses mesmos processos nos grupos identitrios, nos seus mundos de vida e comunidades; no terceiro, o objeto de investigao so os processos de formao e\ou aprendizagem desenvolvidos nas unidades sociais maiores, como por exemplo, as instituies escolares (DINIZ, 2007, apud, ALHEIT E DAUSIEN, 2007).

    De modo especfico, nas cincias da educao, esse tipo de investigao

    [...], toma en consideracin conceptos de enseanza y aprendizaje ms complejos los destinos de aprendizaje y formacin concretos, individuales, de las personas investigadas, que slo en el contexto de sus vidas (es decir, su biografa y sus entornos) tienen un sentido para ellas (ms all de la conexin estadstica) (MAROTZKI & ALHEIT, 2002, apud, HERNNDEZ, 2007, p.29-30).

    11 La investigacin cualitativa de la formacin es un mbito parcial de la disciplina emprica de la investigacin de la formacin. Su mbito objetual compreende un abanico de orientaciones diferentes (ALHEIT & DAUISIEN, 2007, p.27).

  • No se trata de uma investigao educativa, tal como fora compreendida e executada em seus incios, nos anos 1950 e 196012, mas de uma investigao cujo objeto de estudo deixa de ser os rendimentos da aprendizagem das pessoas ou os balanos da formao, de maneira estatstica, e passam a ser

    [...], los procesos de crecimiento de cada nueva generacin, los procesos de desarrollo de la personalidad, de superacin de la vida, las biografas de los jvenes y las jvenes en sus respectivos mdios escolares y vitales (FEND, 1990, p. 705, apud, ALHEIT e DAUSIEN, 2007, p.28).

    Considerando o problema especfico desta pesquisa (suas perguntas norteadoras) e os seus objetivos, adotamos um plano metodolgico ligado s finalidades da investigao qualitativa da formao nos trs nveis (micro, meso e macro), ainda que com uma maior ateno para o nvel micro, que corresponde investigao biogrfica.

    As orientaes advindas desse mbito, sugeridas por Garz & Blmer (2002), apud, Alheit e Dausien (2007), bem como as extradas da literatura sobre os mtodos e as tcnicas de investigao no mbito das cincias sociais (RBIO & VARAS, 1997) e de um estudo especfico que adotou a perspectiva biogrfica no seu planejamento metodolgico (CARDENAL DE NUEZ, 2006) nos ajudaram a reconhecer o mtodo biogrfico como o mais favorvel a esta pesquisa.

    Rbio & Varas (1997) nos ajudaram a compreender que a aplicao das tcnicas do mtodo biogrfico nas cincias sociais, apesar de ser bem vista nos dias de hoje, (principalmente em estudos sobre a criminalidade), nem sempre foi bem aceita. Esses autores enfatizaram que, embora esse mtodo tenha sido utilizado amplamente nas dcadas de 1920 e 1930 pelos socilogos da Escola de Chicago, comeou a receber crticas nas dcadas subseqentes, em razo das desconfianas das anlises da realidade social produzidas atravs de sua aplicao durante esse perodo. Para os seus principais crticos, essas anlises colocavam em risco a cientificidade das pesquisas, uma vez que se ancoravam muito mais na compreenso dos sujeitos sobre essas realidades (ou seja, no senso comum) do que no que se observava objetivamente.

    Marcadamente entre as dcadas de 1940 e 1950, viveu-se um perodo de crise de reconhecimento de tal mtodo nas anlises dos fenmenos sociais. Ainda de acordo com

    12 Seu incio esteve marcado pelo paradigma quantitativo, que se concentrava em compreender os rendimentos da aprendizagem e os balanos de formao, e em determinar estatisticamente sua conexo com fatores como a origem, o gnero, a idade das pessoas em processo de aprendizagem, a qualidade, o tamanho e a pertinncia regional das instituies de formao (ALHEIT & DAUISIEN, 2007).

  • Rbio e Varas (1997), a sua aceitao s passou a ocorrer novamente por volta da dcada de 1960, depois de amplos debates em prol do reconhecimento do seu estatuto cientfico, enquanto mtodo autnomo de investigao. a, exatamente, que passam a ressurgir as investigaes que o utilizam na busca pela compreenso dos processos de construo e reestruturao de identidades (tanto individuais quanto de grupo, de gnero, de classe etc.), em um determinado contexto social, ou seja, aquilo que buscamos ao investigar as biografias de aprendizagens das mulheres que compuseram o pblico-alvo desta pesquisa.

    Para os estudiosos das correntes terico metodolgicas fenomenolgicas, interacionistas e etnometodolgicas, Os fenmenos sociais objectivos devem ser vistos luz da subjectividade dos actores sociais: quer no que se refere s atitudes, aos desejos, ou s definies de situao (PAIS, 2003, p.98). Eles defendem que o cruzamento entre o subjetivo e o objetivo uma das atividades metodolgicas que mais contribuem para uma averiguao imediata da realidade dos fenmenos sociais.

    Ferrarotti (1988), por exemplo, alega que, ao dar oportunidade aos sujeitos de contarem suas prprias histrias de vida e aprendizagens e os colocarem como os principais intrpretes de suas prprias aes sociais, favorece-se o transparecer de biografias como sntese de uma histria social e, paralelamente, de histrias sociais como snteses dos comportamentos e/ou atos individuais. Isso ocorre, segundo Pais (2003, p.151), em um movimento de vaivm que vai da biografia ao sistema social e deste biografia.

    Eis a, portanto, alguns dos motivos que levaram Cardenal de La Nuez (2006) a tambm optar por esse mtodo, em sua pesquisa sobre as transies juvenis para a fase adulta. A referida autora, ainda que no seja uma estudiosa dos mtodos e tcnicas de investigao da realidade social, contribuiu com a nossa pesquisa, oferecendo maior clareza sobre o processo de aplicao prtica do mtodo biogrfico em investigaes como a nossa.

    Em seu livro, El paso a la vida adulta: dilemas y estratgias ante el empleo flexible , ela apresenta uma discusso sobre o mtodo qualitativo (no qual se firma o biogrfico) em oposio ao quantitativo (positivista). Na sua concepo, este ltimo, quando aplicado sozinho, desconsidera os aspectos da subjetividade humana, deixando em um segundo plano [...] la compreensin del sentido y significado de las prcticas sociales dos sujeitos (CARDENAL DE LA NUEZ, 2006, p.121). Em contrapartida, o mtodo biogrfico - que se origina de uma perspectiva qualitativa e baseado na experincia humana - possibilita o entrevistado relatar suas histrias e serem os prprios protagonistas da investigao (RBIO E VARAS, 1997).

  • Dessa reflexo sobre a capacidade dos sujeitos de interpretarem suas realidades e de construrem suas prprias racionalidades prticas para orientar as suas decises na sociedade, foi que Cardenal de La Nuez (2006) decidiu optar por tal mtodo. Em seu estudo emprico sobre as transies juvenis, ficou evidente a sua preocupao central de reconstruir os itinerrios escolares e laborais de um grupo de jovens (o pblico da sua investigao), para analisar a relao entre os dilemas que os afrontavam no processo de juventude e as estratgias diferenciadas que utilizavam para resolv-los.

    Com efeito, tambm o nosso objeto de investigao, relativo s aprendizagens biogrficas de mulheres prisioneiras, reclamou estratgias operativas ligadas ao que o tal mtodo biogrfico prope no campo emprico, e as leituras realizadas sobre os seus fundamentos foram fundamentais para que compreendssemos a sua importncia, adequao e pertinncia em nossa pesquisa, tendo em vista as possibilidades que oferece ao alcance dos seus objetivos. Pelo que vimos, a utilizao desse mtodo requer a aplicao de uma tcnica que corresponda trade em que ele se sustenta, ou seja, aos trs eixos que Rbio e Varas (1997, p.243) afirmam que se combinam entre si: o da subjetividade humana, o da interpretao e o da relao dialtica entre a ao e as condies sociais. Os referidos autores argumentam que atravs da narrao das histrias de vida que se torna possvel a correspondncia dessa trade, apreendendo seus aspectos de maneira correlacionada, na medida em que resgata as relaes cotidianas dos sujeitos.

    A histria de vida , portanto, a ferramenta principal dentro do mtodo biogrfico, uma vez que possibilita a identificao social dos sujeitos investigados, traduzida, por exemplo, nas expresses de gnero.

    1.3.1 A histria de vida como principal ferramenta para o desvelamento da realidade investigada

    Conhecer a vida cotidiana dos sujeitos sociais, nos seus [...] aspectos mais rotineiros e teatralizados, fora de qualquer contexto institucional ou das estruturas de poder e de autoridade (PAIS, 2003, p.93), foi uma das razes que impulsionaram o uso do mtodo biogrfico e, por consequncia, da histria de vida nas pesquisas das cincias sociais. Camargo (1984), j h algum tempo, defendia o uso da histria de vida em pesquisas cientficas, argumentando que ela possibilita apreender a cultura do lado de dentro , colocando-se no ponto da interseco das relaes entre o que exterior ao indivduo (as circunstncias do contexto, as estruturas) e aquilo que ele traz dentro de si (a subjetividade), contribuindo significativamente para a anlise e interpretao do problema.

  • Em nosso trabalho, as narraes das histrias de vida deram s mulheres, sujeitos da pesquisa, o direito de expressarem suas vivncias, valores, iluses, alegrias, tristezas etc, enfim, o que elas valorizam (e valorizavam) da vida dentro e fora do crcere, e as aprendizagens retiradas dessas experincias. Permitiu, ainda, que compreendssemos as interaes que tiveram com outros sujeitos nas diversas fases de suas vidas e o reconhecimento das experincias que tiveram maior impacto em sua formao pessoal/profissional.

    vlido registrar que, na literatura biogrfica, encontramos diferentes classificaes para a histria de vida, entre as quais, tivemos que optar por uma que mais se adequasse ao nosso objeto de estudo. Essa tarefa no foi fcil, visto que quase todas as classificaes pareciam favorveis a tal objeto. No entanto, optamos pela histria de vida completa 13, tal como prope Dausien (1996). Por meio dela, as pessoas investigadas [...] no presentan identidades fijas, sino las historias en las que han sido como son (ALHEIT & DAUSIEN, 2007, p.30). Isso faz com que os processos biogrficos sejam reconstrudos tanto com base nos acontecimentos da vida vivida quanto atravs das [...] remisiones a la vida no vivenciada, a las posibilidades no realizadas o cerradas

    (ALHEIT & DAUSIEN, 2007, p.30).

    Assim, analisamos os acontecimentos da vida vivida das encarceradas e os no vividos, pois acreditamos que a apreenso do no vivido nas histrias de vida completa tambm podia nos oferecer possibilidades de alcanar a\as resposta\as para alguns de nossos questionamentos, como por exemplo, aquele que se refere s implicaes das aprendizagens no obtidas, ou no vividas, no processo de construo das biografias. Isso nos ajudou a compreender melhor a relao entre a criminalidade e a biografia das investigadas.

    Ao longo do processo investigativo, o que procuramos rastrear nas histrias de vida das mulheres investigadas foram as aprendizagens que, nos percursos da vida, marcaram (pelo acesso ou pela negao) as suas biografias e os sentidos que lhes foram atribudos. Por esse motivo que compreendemos que s a narrao completa da histria de vida daria conta de tal rastreamento.

    Convm enfatizar que, quando Alheit e Dausien (2007) se referem histria de vida completa, no querem dizer que tudo que se passou na vida de uma pessoa tenha que ser narrado, isso seria impossvel. Porm, a preocupao desses autores de que no se determinem temas para a narrao, pois isso prejudica a reconstruo das experincias dos

    13 La construccin de una historia de vida es, por otra parte, ms que la suma de las historias de interaccin singulares, como ha sido desarrollado en las premisas tericas de Dausien, 1996, parte 2, cap. 4 [p. 93-122].

  • sujeitos investigados. Nesse caso, deve-se deixar a escolha dos temas a encargo do narrador e, com base nessa narrao inicial, tentar colher as informaes relacionadas ao objeto que est sendo investigado.

    A flexibilidade da histria de vida, como assinalam Rbio e Varas (1997), permite um processo de reflexo constante acerca do que relatado, indicando que possvel at mesmo mudar, se se considerar necessrio, as estratgias utilizadas para a obteno das informaes desejadas.

    Apresentamos, em seguida, os instrumentos de coleta de dados que fizeram parte dessas estratgias e que corresponderam, ao mesmo tempo, com a adequao aos objetivos desta pesquisa.

    1.3.2 Instrumentos de coleta de dados utilizados e o desenho da investigao

    As leituras sobre os mtodos e as tcnicas de investigao e da perspectiva terico-metodolgica da biograficidad nos fizeram entender que, para conhecer a totalidade de uma experincia biogrfica, no tempo e no espao, preciso considerar no apenas o sujeito, mas toda a estrutura social e os demais sujeitos que entram em relao significativa com ele. isso que alguns estudiosos entendem ser o objetivo da histria de vida numa pesquisa biogrfica. Neste trabalho, alcanar esse objetivo representou um desafio, j que o pblico abarcado, ainda que estivesse atualmente inserido num mesmo contexto, apresentava caractersticas (individuais, culturais, sociais, geracionais, civis etc.) diversificadas, heterogneas.

    Outrossim, compreendemos que, ao desnudar, em cada histria de vida particular, as motivaes e as finalidades dos comportamentos sociais dos sujeitos investigados, suas formas de vida na cotidianidade e o carter subjetivo dado a essas aes e maneiras de estar no mundo, favorecemos a compreenso dos papis que desenvolvem na sociedade contempornea, enquanto atrizes e construtoras de suas biografias.

    Assim que o conjunto das falas das encarceradas, adquiridas atravs do uso do nosso principal instrumento de pesquisa - a entrevista

    - representou o documento mais importante deste trabalho para fundamentar nossas anlises, ainda que outros instrumentos de coleta de dados tambm tenham contribudo com as nossas interpretaes. Alis, a descrio sobre o uso desses outros instrumentos e a exposio de alguns dados que coletamos atravs deles esto mais frente apresentados.

    Antes, apresentamos as justificativas para a utilizao da entrevista biogrfica como nosso principal instrumento; as dificuldades e estratgias utilizadas para aplic-la no contexto

  • do presdio; a composio e os motivos da seleo da amostra; a caracterizao da entrevista, considerando: o roteiro previamente elaborado, o equipamento utilizado para a gravao das narraes, o tempo de durao das entrevistas e as disposies das entrevistadas para narrarem suas histrias.

    A entrevista em profundidade (ou biogrfica) foi o instrumento mais importante desta pesquisa, porque melhor dava conta do objeto de investigao proposto. Atravs dela, procuramos [...] profundizar en las motivaciones personalizadas de un caso individual frente a cualquier problema social

    (DINIZ, 2008, p.105) e proporcionar a reconstruo das experincias dos sujeitos.

    Alm da orientao da literatura da biograficidad, na qual Alheit (2007) recorre a Shutze (1995) para defender uma entrevista narrativa, caracterizada pela [...] ausencia de cualquier intento de estructurar la conversacin

    (DINIZ, 2007, p.105), outras literaturas sobre os mtodos e as tcnicas de investigao nos orientaram sobre a melhor forma de utiliz-la. Rbio e Varas (1997), por exemplo, ajudaram-nos a compreender que, para que uma entrevista biogrfica (ou qualquer outra) obtenha xito, preciso que se cumpram algumas regras bsicas, antes mesmo de se iniciarem as entrevistas, ou seja, do estabelecimento de uma relao emptica com as investigadas, da gerao de um clima de confiana e da busca por um lugar tranquilo, onde o/a entrevistado/a se sinta cmodo.

    Em nosso trabalho, procuramos cumprir todas essas regras, ainda que o local da pesquisa (o presdio) no fosse o mais propcio, uma vez que as prises,