Bibliotecas e Leitores: alguns resultados que nos interpelam

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Versão electrónica do artigo da publicação periódica do Observatório das Actividades Culturais, OBS nº 5, Fevereiro de 1999, pp. 7-10. 1 BIBLIOTECAS E LEITORES: ALGUNS RESULTADOS QUE NOS INTERPELAM João Teixeira Lopes Lina Antunes No âmbito da colaboração firmada entre o Observatório das Actividades Culturais e o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB) e com a colaboração de várias Universidades, elaboraram-se três programas de pesquisa, assentes na metodologia de estudo de caso, visando, com a continuidade temporal, estabelecer um mapeamento de situações singulares no panorama das instituições e práticas de leitura nacionais. Optou-se, então, por iniciar este projecto com três investigações: o levantamento da oferta cultural nos concelhos de Guimarães e de Mirandela 1 , o estudo das práticas e hábitos de leitura dos jovens de Coimbra e concelhos limítrofes 2 e uma monografia sobre a Biblioteca Municipal de Beja 3 . No presente artigo daremos conta de uma díade frequentemente abordada nesses trabalhos: a biblioteca e os seus utentes. Faremos apelo, sempre que possível, a uma óptica comparativa, de forma a retirarmos destes exemplos esclarecimentos que nos ajudem na tarefa incessante de reformular os nossos quadros de análise sobre as práticas culturais 4 . 1 O trabalho de Guimarães, “Muralhas” e “Horizontes”: a Leitura no Campo Cultural Vimaranense, foi realizado por André Aleixo e Rui Pedro Pinto e o de Mirandela, Retrato Cultural: um Estudo Sobre Práticas de Leitura no Concelho de Mirandela, por Sofia Alexandra Cruz, todos alunos finalistas do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, orientados pelo Professor Doutor António Teixeira Fernandes. 2 Realizado por Fernando Fontes, aluno finalista do curso de Sociologia da Faculdade de Economia de Coimbra sob a orientação do Professor Doutor Carlos Fortuna, tendo como título Leitura Juvenil: Hábitos e Práticas no Distrito de Coimbra. 3 Elaborado por Ana Monteiro, aluna finalista do curso de Investigação Social Aplicada da Universidade Moderna de Beja, sob a orientação do Professor Doutor Carlos Diogo Moreira e dos Mestres Maria Saudade Baltazar e José Palma Rita, tendo como título: A Biblioteca Pública de Beja como Espaço de Interacção. 4 Encontram-se no prelo, para publicação conjunta do IPLB e do Observatório, os trabalhos desenvolvidos, bem como um relatório síntese da responsabilidade do Observatório. Os indicadores apresentados neste artigo têm como fonte a informação estatística disponível nos trabalhos dos alunos finalistas, que na concretização das suas investigações se socorreram de metodologias quantitativas – designadamente inquéritos por questionário junto dos utentes da biblioteca – e qualitativas – entrevistas aprofundadas e observação in loco.

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João Teixeira LopesLina Antunes

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  • Verso electrnica do artigo da publicao peridica do Observatrio das Actividades Culturais, OBS n 5, Fevereiro de 1999, pp. 7-10.

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    BIBLIOTECAS E LEITORES:

    ALGUNS RESULTADOS QUE NOS INTERPELAM

    Joo Teixeira Lopes

    Lina Antunes

    No mbito da colaborao firmada entre o Observatrio das Actividades Culturais e o Instituto

    Portugus do Livro e das Bibliotecas (IPLB) e com a colaborao de vrias Universidades, elaboraram-se

    trs programas de pesquisa, assentes na metodologia de estudo de caso, visando, com a continuidade

    temporal, estabelecer um mapeamento de situaes singulares no panorama das instituies e prticas de

    leitura nacionais. Optou-se, ento, por iniciar este projecto com trs investigaes: o levantamento da

    oferta cultural nos concelhos de Guimares e de Mirandela1, o estudo das prticas e hbitos de leitura dos

    jovens de Coimbra e concelhos limtrofes2 e uma monografia sobre a Biblioteca Municipal de Beja3.

    No presente artigo daremos conta de uma dade frequentemente abordada nesses trabalhos: a

    biblioteca e os seus utentes. Faremos apelo, sempre que possvel, a uma ptica comparativa, de forma a

    retirarmos destes exemplos esclarecimentos que nos ajudem na tarefa incessante de reformular os nossos

    quadros de anlise sobre as prticas culturais4.

    1 O trabalho de Guimares, Muralhas e Horizontes: a Leitura no Campo Cultural Vimaranense, foi realizado por Andr Aleixo e Rui Pedro Pinto e o de Mirandela, Retrato Cultural: um Estudo Sobre Prticas de Leitura no Concelho de Mirandela, por Sofia Alexandra Cruz, todos alunos finalistas do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, orientados pelo Professor Doutor Antnio Teixeira Fernandes. 2 Realizado por Fernando Fontes, aluno finalista do curso de Sociologia da Faculdade de Economia de Coimbra sob a orientao do Professor Doutor Carlos Fortuna, tendo como ttulo Leitura Juvenil: Hbitos e Prticas no Distrito de Coimbra. 3 Elaborado por Ana Monteiro, aluna finalista do curso de Investigao Social Aplicada da Universidade Moderna de Beja, sob a orientao do Professor Doutor Carlos Diogo Moreira e dos Mestres Maria Saudade Baltazar e Jos Palma Rita, tendo como ttulo: A Biblioteca Pblica de Beja como Espao de Interaco. 4 Encontram-se no prelo, para publicao conjunta do IPLB e do Observatrio, os trabalhos desenvolvidos, bem como um relatrio sntese da responsabilidade do Observatrio. Os indicadores apresentados neste artigo tm como fonte a informao estatstica disponvel nos trabalhos dos alunos finalistas, que na concretizao das suas investigaes se socorreram de metodologias quantitativas designadamente inquritos por questionrio junto dos utentes da biblioteca e qualitativas entrevistas aprofundadas e observao in loco.

  • Verso electrnica do artigo da publicao peridica do Observatrio das Actividades Culturais, OBS n 5, Fevereiro de 1999, pp. 7-10.

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    Um novo modelo de biblioteca

    As vrias bibliotecas estudadas (Beja, Mirandela e Guimares) possuem em comum o facto de

    estarem inseridas na Rede Nacional de Bibliotecas de Leitura Pblica, fruto de protocolos

    relativamente recentes5 estabelecidos entre a Administrao Central (atravs do IPLB) e as

    autarquias da Administrao Local. Uma das caractersticas mais salientes prende-se com o

    cuidado empregue na configurao arquitectnica dos edifcios que lhes servem de suporte. A

    biblioteca de Beja, por exemplo, para alm de estar situada no centro da cidade, num local de fcil

    acesso e contguo a outros equipamentos de grande visibilidade, foi concebida para funcionar

    como um convite irrecusvel ao transeunte: sobriedade nas cores e materiais, a sugerir

    transparncia (vidro, mrmore), profusamente iluminada, com um trio amplo e acolhedor e uma

    escadaria onde figuram colunas de livros ("equilibradamente desordenados" [Monteiro, 1998: 42])

    esculpidas no mrmore branco. Por outro lado, o prprio interior pensado de forma a que a sua

    organizao e decorao seja um prolongamento do projecto subjacente ao funcionamento da

    instituio.

    De forma sinttica (e correndo o risco de algum reducionismo) poderamos resumir nos

    seguintes eixos o novo modelo de biblioteca consubstanciado nos casos em estudo:

    polivalncia, assente, antes de mais, na multiplicao de espaos, de diferentes funes e por vezes com pblicos especficos (auditrio, cafetaria, sector audiovisual incluindo

    vdeos, CD's, CD-ROM's e internet , espao infantil, centro de recursos pedaggicos,

    etc.);

    divulgao e animao cultural, assumindo o seu papel de mediao e de aproximao a pblicos alargados, mediante a proliferao de iniciativas, directa ou indirectamente

    relacionadas com o livro (leitura dramatizada, debates e conferncias com escritores e

    outros criadores culturais, feiras do livro, exposies, comemorao de datas simblicas,

    realizao de concertos, animao de rua, etc.);

    estratgias inclusivas de democratizao cultural, baseadas no princpio, explicitado pelo director da biblioteca de Beja, de que a lgica prioritria a de servir os interesses das

    pessoas e no o das instituies ou dos objectos (o que constituiria um grave sinal de

    alienao...), com reflexos no regime de livre acesso a qualquer publicao ou

    documento, na multiplicao de servios e, ainda, na diversidade de gneros literrios e

    de suportes, do livro ao jornal, passando pela revista. Pretende-se, desta forma, afastar

    5 Entre finais dos anos 80 e incio dos anos 90.

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    qualquer tentao de exerccio de violncia simblica pela imposio de uma

    determinada modalidade de gosto;

    aposta forte no marketing e na seduo, atravs do estabelecimento de cumplicidades com os utentes ou de surpresas que subvertem o quotidiano6;

    estabelecimento de redes de contactos e parcerias, de forma a estimular o intercmbio e a abertura ao exterior, possibilitando a circulao de informao e a co-organizao de

    iniciativas7;

    ateno especial s populaes desfavorecidas ou debilitadas, como o caso de certas franjas de idosos, desempregados, populaes prisionais e minorias tnicas.

    Em suma, as bibliotecas em estudo adoptam uma postura de interveno social8 activa (no so

    instituies neutras nem to-pouco actuam num vcuo social), assumindo o seu estatuto de

    biblioteca pblica, com a responsabilidade de uma aco territorialmente delimitada, aberta s

    dinmicas sociais emergentes, dirigindo energias para a fidelizao e alargamento de utentes numa

    ptica de desenvolvimento democrtico.

    Leitores: competncias, relacionamento com a leitura e origem scio-cultural

    No surpreende a generalizada constatao de que os pblicos das bibliotecas municipais

    estudadas apresentam uma acentuada juvenilidade9. Por um lado, as exigncias escolares obrigam

    a um intenso uso instrumental da leitura; por outro, beneficiam de nveis de escolaridade

    superiores s demais geraes. A esmagadora maioria desses jovens so estudantes, mantendo, por

    imposio das actividades curriculares, contacto com as instituies de difuso e prtica da leitura,

    sendo que as inseres precoces no mundo do trabalho, resultado, frequentemente, de situaes de

    abandono e de insucesso escolar, conduzem ao afastamento das instituies onde a leitura 6 Dois exemplos. Na Biblioteca Municipal de Beja "as tcnicas de persuaso so jogadas a favor, sendo a criatividade um factor que se rentabiliza ao mximo. Por exemplo, livros solta pelas mesas, onde tiras de papel branco com letras negras suplicam: 'Leve-me consigo!' (Monteiro, 1998: 58). Na Biblioteca Municipal Ral Brando (Guimares), uma das iniciativas de maior sucesso, feita em colaborao com as padarias do concelho, consiste no programa "Po com Poesia" onde os sacos oferecidos para transportar o po so aproveitados para a impresso de poemas, constando no verso uma pequena nota biogrfica sobre o autor. 7 A Biblioteca Municipal de Guimares, por exemplo, encontra-se inserida na IFLA International Federation of Library Associations and Institutions , enquanto que a Biblioteca Municipal de Beja integra a Rede Europeia de Bibliotecas por Timor. 8 Como afirma Figueira Mestre, responsvel pela biblioteca de Beja, "a nossa responsabilidade no se esgota dentro da biblioteca" (Monteiro, 1998: 54). 9 No caso de Beja 69,4% dos utentes inquiridos tm at 24 anos; em Guimares 81,1% no ultrapassam os 25 anos e em Mirandela 57,9% enquadram-se no escalo 15-20 anos.

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    cultivada. Claro que, por si s, o prolongamento da escolaridade no conduz automaticamente a

    prticas regulares de leitura. Podem, inclusivamente, verificar-se fenmenos de autntica regresso

    cultural, uma vez de regresso a contextos familiares muito pouco capitalizados em termos sociais e

    culturais, traduzidos em "processos de efectiva anulao de aquisies feitas na escola" (Pinto,

    1996).

    No deixa de ser curioso, no entanto, verificar que a origem scio-cultural de uma boa fatia dos

    leitores indicia processos de socializao marcados por um relativo distanciamento face escola,

    com inevitveis consequncias ao nvel de um dfice de familiarizao face constelao cultural

    vigente no sistema formal de ensino. De facto, nos utentes da biblioteca de Beja apenas uns

    escassos 16% desenvolveram um forte relacionamento primrio com a leitura10. Alis, a

    esmagadora maioria dos pais dos inquiridos possui um nvel de escolaridade inferior ao terceiro

    ciclo11, sendo que cerca de um tero apenas completou o ensino bsico, apesar de haver

    igualmente uma sobre-representao de pais com o ensino superior. Situao que encontra

    continuidade nos estudos realizados nas bibliotecas de Guimares e de Mirandela12. Uma parte

    significativa dos utentes das bibliotecas, apesar de ainda no ter completado o seu percurso

    escolar, possui j um capital escolar superior ao dos progenitores. O que nos obriga,

    inevitavelmente, a rever profecias de teor catastrofista sobre a aquisio de hbitos de leitura. Se,

    apesar dos fracos capitais escolares de origem, os jovens estudantes frequentam as bibliotecas, tal

    deve-se influncia mltipla e cruzada de diversos agentes de socializao, nos quais se podem

    enquadrar as prprias bibliotecas enquanto locais onde se acede de forma crtica e diversificada

    chamada "sociedade da informao". Segundo os trabalhos realizados, entre esses agentes destaca-

    se, designadamente, o papel da escola (em termos das exigncias curriculares e da influncia dos

    professores) e das redes de sociabilidade informal protagonizadas pelos grupos de amigos. No

    primeiro caso, importa destacar a funo marcadamente instrumental da biblioteca (e da prpria

    leitura), encaradas como resposta a necessidades escolares ligadas ao estudo. No caso dos amigos,

    surgem como uma das principais fontes de conhecimento da instituio, a par de circuitos

    alternativos informais por onde passa um conjunto de informaes respeitante ao universo dos

    livros, ao funcionamento da biblioteca e s suas actividades. Alis, uma parte significativa dos

    inquiridos reala na biblioteca a sua funo convivial, inerente estruturao dos quotidianos

    juvenis.

    10 O ndice de relacionamento primrio com a leitura foi construdo com base na definio proposta por Freitas, Casanova e Alves (1997: 85). Este ndice resulta da conjugao de duas variveis: a leitura de livros lidos ao inquirido por parte dos familiares na sua infncia e a frequncia com que o inquirido costumava ver os seus familiares a ler. constitudo por trs nveis de relacionamento com a leitura: um "nvel forte", para aqueles que indicam que os familiares tinham por hbito ler-lhes livros e que costumavam ver os familiares a ler muitas vezes; um "nvel mdio", para aqueles que renem apenas uma destas condies, e um "nvel fraco", para os que no renem nenhuma das condies. 11 71,7% dos pais e 68.8% das mes. 12 Em Guimares 39,3% dos pais e 40,6% das mes completaram apenas o ensino primrio. Em Mirandela 51,4% dos pais e 50,0% das mes no ultrapassaram o mesmo nvel de ensino.

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    Por outro lado, poderemos ainda questionar a ideia de um destino social precocemente

    estabelecido, como se os pioneiros anos da socializao primria abrissem ou fechassem de forma

    irreversvel os campos de possveis. Pensar desta forma levar-nos-ia, alis, a resvalar para um

    desencantado pessimismo, inibidor de qualquer iniciativa de mediao e animao cultural.

    Alm do mais, a posse de um capital escolar no se traduz automaticamente em incorporao

    de capital cultural. De facto, os grandes leitores, como os trabalhos de Guimares e Mirandela

    demonstram, constituem um grupo residual mesmo no interior das fraces de classe mais

    escolarizadas, ligadas a profisses qualificadas de enquadramento (quadros superiores) ou de cariz

    intelectual e cientfico. Na esteira de anteriores estudos13, parece-nos legtimo adiantar que a

    escolaridade no uma condio suficiente, embora necessria, para a intensidade de certas prticas

    culturais, como o caso da leitura. Assim, impe-se reflectir sobre os processos de aquisio de

    disposies, moderando, ao mesmo tempo, a veleidade de tudo querer explicar a partir de

    conceitos como o de habitus. Neste sentido, importa recolocar no debate a importncia do carcter

    permanente da socializao, bem como questionar a durabilidade e o determinismo da

    aprendizagem familiar.

    Em sntese, parece-nos que ter validade a pertinncia de considerar como profcuos os

    princpios de aco cultural que colocam a nfase no cruzamento de repertrios e referncias

    associados s redes de insero dos praticantes culturais. Do mesmo modo, far todo o sentido

    apostar em equipamentos estruturantes, geridos de acordo com estratgias de incluso social

    direccionadas para a reconverso democrtica dos habitus primrios. O desenvolvimento cultural

    o desenvolvimento em geral tambm passa por aqui.

    BIBLIOGRAFIA

    FREITAS, Eduardo de, CASANOVA, Jos Lus e ALVES, Nuno de Almeida (1997), Hbitos de

    Leitura Um Inqurito Populao Portuguesa, Lisboa, Publicaes D. Quixote.

    MONTEIRO, Ana (1998), A Biblioteca Pblica de Beja como Espao de Interaco, policopiado, Beja,

    Universidade Moderna.

    PAIS, Jos Machado (coord.) (1994), Prticas Culturais dos Lisboetas, Lisboa, Instituto de Cincias

    Sociais.

    PINTO, Jos Madureira (1996), "Lados encobertos da iliteracia (1)" in Jornal de Notcias, 23 de

    Janeiro.

    13 Cf., por exemplo, Pais (1994).