BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE PROJETO MEMÓRIA ORAL · depoimento da funcionária Maria Bernadete...

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BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE PROJETO MEMÓRIA ORAL MARIA BERNADETE MONTEIRO Hoje, 08 de junho de 2009, a Biblioteca Mário de Andrade registra o depoimento da funcionária Maria Bernadete Monteiro, que faz parte do corpo funcional da instituição desde 1981, para o Projeto Memória Oral; iniciativa esta que vem sendo desenvolvida com o objetivo de resgatar a história da Mário de Andrade de uma forma matizada, através de narrativas orais dos seus mais diferentes protagonistas: antigos funcionários, diretores, colaboradores, pesquisadores, artistas e intelectuais. Na direção de captação audiovisual deste registro, Sérgio Teichner e na condução do depoimento, Daisy Perelmutter. Daisy Perelmutter: Bom, Bernadete, gostaríamos inicialmente de pedir para que você nos conte sobre a origem, a atividade profissional dos seus pais e como foi a convivência com os seus muitos irmãos. Maria Bernadete: A mamãe é de Poços de Caldas. Ela veio para São Paulo aos 17 anos com uma família, que morava lá na Mooca. Eles trouxeram a minha mãe, hoje são os meus padrinhos de batismo, me batizaram. Meu pai não foi daqueles “pais” porque ele não era muito de trabalhar. Aquilo que ele trabalhava, ele gastava com a bebida. Então sempre a minha mãe que cuidou da casa. A responsabilidade era tudo da mamãe, mamãe, mamãe. Eu cuidava dos meus irmãos para a mamãe trabalhar. Minha mãe vendia no parque, a gente ia junto com a minha mãe. E em relação aos irmãos, eu cuidava deles, não é? Então tudo bem, não foi aquela coisa, eu cuidava deles e ninguém morreu, então está tudo bem. DP: Quantos são?

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BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE

PROJETO MEMÓRIA ORAL

MARIA BERNADETE MONTEIRO

Hoje, 08 de junho de 2009, a Biblioteca Mário de An drade registra o

depoimento da funcionária Maria Bernadete Monteiro, que faz parte do corpo

funcional da instituição desde 1981, para o Projeto Memória Oral; iniciativa

esta que vem sendo desenvolvida com o objetivo de r esgatar a história da

Mário de Andrade de uma forma matizada, através de narrativas orais dos seus

mais diferentes protagonistas: antigos funcionários , diretores, colaboradores,

pesquisadores, artistas e intelectuais. Na direção de captação audiovisual

deste registro, Sérgio Teichner e na condução do de poimento, Daisy

Perelmutter.

Daisy Perelmutter: Bom, Bernadete, gostaríamos inicialmente de pedir para que

você nos conte sobre a origem, a atividade profissional dos seus pais e como foi a

convivência com os seus muitos irmãos.

Maria Bernadete: A mamãe é de Poços de Caldas. Ela veio para São Paulo aos 17

anos com uma família, que morava lá na Mooca. Eles trouxeram a minha mãe, hoje

são os meus padrinhos de batismo, me batizaram. Meu pai não foi daqueles “pais”

porque ele não era muito de trabalhar. Aquilo que ele trabalhava, ele gastava com a

bebida. Então sempre a minha mãe que cuidou da casa. A responsabilidade era

tudo da mamãe, mamãe, mamãe. Eu cuidava dos meus irmãos para a mamãe

trabalhar. Minha mãe vendia no parque, a gente ia junto com a minha mãe. E em

relação aos irmãos, eu cuidava deles, não é? Então tudo bem, não foi aquela coisa,

eu cuidava deles e ninguém morreu, então está tudo bem.

DP: Quantos são?

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MB: Éramos em sete, agora somos em cinco.

DP: E vocês todos foram para a escola?

MB: Todos foram. A única que começou a fazer faculdade foi a Ivonete.

DP: E o que é que você lembra do ambiente da escola? Quais são as suas

memórias sobre essa sua fase?

MB: Ah, era muito boa. Eu gostava muito e tenho saudade do tempo de escola,

porque não é como hoje. Antigamente os professores eram como se fossem os pais

da gente, o que eles falavam... Hoje em dia não, há a maior violência na escola.

Então eu tenho muita saudade daquela saínha azul-marinho e blusinha branca, e do

tratamento dos professores para com a gente, era com carinho. Hoje pode ter

carinho, mas as crianças não respeitam.

DP: E você estudou até?

MB: Até o quarto ano primário na escola de Vila Caldas, Grupo Escolar de Vila

Caldas. Depois de muito tempo que eu completei e fiz o segundo grau, já estava na

Biblioteca.

DP: Você começou a trabalhar, portanto, muito cedo, é isso?

MB: Aos 14 anos, antes dos 14 anos, porque eu saía da escola e ia para a casa da

minha professora cuidar do Eros. Depois eu comecei a trabalhar no Bom Retiro com

14 anos. Sempre trabalhando.

DP: Você já era uma funcionária doméstica aos 14 anos.

MB: Isso. Depois saí do Bom Retiro e fui trabalhar na casa de uma família de

judeus, com quem eu tenho relacionamento até hoje, converso com eles, vou lá na

casa deles, tenho amizade até hoje com eles.

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DP: Naquele momento, quando você terminou a quarta série, você estava

completamente alfabetizada?

MB: Sim, sim.

DP: E seus irmãos todos permaneceram na escola até o final?

MB: Todos tiraram o certificado da quarta série, porque antigamente era só até a

quarta série. Quem estudava mais era quem podia. Na quinta série tinha que fazer

admissão. Todos os meus irmãos são alfabetizados.

DP: Então você foi trabalhar com essa família e os outros irmãos também

começaram a trabalhar cedo?

MB: Todos nós começamos a trabalhar cedinho, todos em casa de família.

Antigamente era isso, não é? Saía da escola e já ia trabalhar em casa de família.

Depois estuda um pouquinho, faz algum cursinho e aí que vai fazer outras coisas.

DP: E a sua inserção na Prefeitura, como foi o processo?

MB: Foi pela Dona Violete e o esposo dela. Ela falava: “As crianças estão

crescendo, amanhã ou depois, como você vai fazer? Você tem que arrumar um bom

serviço para você”. E consegui a Prefeitura.

DP: Como que foi? Conta para a gente. Como foi essa chegada até a Prefeitura?

MB: Ah, não foi difícil, porque eu tive que fazer um cursinho para entrar na

Prefeitura, lá no DAMU1, que era lá na Avenida Tiradentes, foi lá no DAMU.

DP: Que é o departamento de? É um departamento da Prefeitura?

1 Departamento de Administração do Município de São Paulo.

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MB: Não sei, não é Finanças lá. Eu não sei o que é agora lá, mas tem o prédio lá,

não sei nem se funciona alguma coisa da Prefeitura. Sei que fiz a inscrição lá e

fiquei lá o dia inteiro limpando vidro, daí fui aprovada, não é? Porque eu já tinha

prática de limpar vidro. Fui aprovada, fiz os exames todos e fui lá para a Escola

Jardim Capelinha. Depois de lá eu vim para uma outra escola, porque uma diretora

que entrou lá, Dona Ivete Miguel, falou que onde já se viu eu morar em Carapicuíba

e trabalhar lá? Tinha que atravessar São Paulo! Com um simples telefonema ela

resolveu o meu problema, me mandou para a escola lá na Vila São Francisco.

Conversou a diretora tudo e eu fui direitinho para lá.

DP: Bernadete, esse momento na cidade de São Paulo, o seu trajeto era

atravessar...

MB: É, porque eu tinha que vir até a Júlio Prestes, fora lá de Carapicuíba até a

estação. Da Júlio Prestes até o Vale do Anhangabaú, do Vale do Anhangabaú tinha

que pegar ônibus até a estrada de Itapecerica. Eu trabalhava atrás do Clube do

Banco do Brasil, lá na Vila Capelinha, é Jardim Capelinha que chama lá. Então eu

saía de casa três e meia para entrar sete horas lá na escola. Eu pegava o primeiro

trem.

DP: Você não teve adolescência, certo?

MB: Não, não tive, não tive mesmo.

DP: Nem momentos de lazer?

MB: Lazer é quando minha mãe ia lá para o parque vender e a gente ficava ali

vendo os outros brincar.

DP: Qual que era o parque?

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MB: Sabe esses parques que chega nos bairros e ficam lá? Nem lembro o nome

deles, acho que nem tinha. Deveria ter um nome, mas nunca prestei atenção. E para

brincar lá nos brinquedos, às vezes aqueles homens que ficam lá cuidando ficavam

com dó da gente porque via que a minha mãe estava lá vendendo as coisas, então

colocavam a gente nos brinquedos. Porque não tinha condições da minha mãe

pagar para todo mundo, não é?

DP: Naquela pequena entrevista que o Edélcio fez com você, tem algumas

memórias do IV Centenário de São Paulo, que você teria ido ver, como foram as

festas em 1954, você lembra disso?

MB: Acho que foi a Ivonete, eu não lembro. Do IV Centenário eu só lembro que tinha

uns folhetinhos, não eram folhetinhos, eram uns triângulos iluminados, assim com

papel...

DP: E grandes acontecimentos na cidade, você lembra de ter testemunhado?

Situações, mudanças que aconteceram na Prefeitura, esses grandes

acontecimentos que mobilizaram a cidade, você lembra?

MB: O que é que eu lembro dos grandes acontecimentos?

DP: Teve o IV Centenário, depois teve a Revolução...

MB: Revolução do Jânio... Eu estava na escola e a professora falou: “Vão todos

para casa, a gente tem que ir para a casa!”. Eu só lembro disso.

DP: Década de 1970, Copa do Mundo, coisas que tenham acontecido...

MB: Ah, isso eu lembro direitinho, não tudo, tudo porque na época a gente não tinha

nem televisão em casa.

DP: Vocês só foram ter mais para frente?

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MB: Isso, eu estava já grandona quando foi ter televisão. A gente assistia na casa

do vizinho e de muito longe. Não tinha.

DP: Aí você entrou na Prefeitura e nesses primeiros anos você trabalhou na escola

e como você chegou até a Biblioteca?

MB: Então a Ivonete falou se eu queria vir trabalhar na Biblioteca. “Bom, eu quero,

que é mais limpo”. A diretora da escola disse que eu iria para a Biblioteca se eu

voltasse a estudar. Aí faz aquele processo todo. Eu falei: “Eu estudo se é para ir

para um lugar melhor”. E a diretora, a Dona Nina Rosa, falou, porque eu vim

conversar com ela: “Mas você vem para a Biblioteca porque você quer ou você está

à disposição? Porque a gente quer muito bem a sua irmã, então a gente não quer

problema”. Eu falei: “Problema comigo a senhora nunca vai ter”. Aí voltei na escola e

falei: “Está tudo bem”, aí foi tudo por escrito direitinho e estou aí até hoje. Graças a

Deus, tenho amizade com todo mundo. Graças a Deus, graças a Deus. E isso eu

devo à minha mãe.

DP: Por quê?

MB: Porque a minha mãe sempre falou: “Veja direito, você nunca fala ‘não’ para as

pessoas de imediato, você conversa com a pessoa, se você achar que você não vai

se dar bem, não maltrata e não fala nada, ‘bom dia’ e ‘boa tarde’, não faz mal para

ninguém, e fica sempre na sua”. E eu fico sempre na minha. Converso com todo

mundo, não gostei do fulano, fico na minha, “bom dia”, “boa tarde”, “tudo bem?”,

“tudo bem”. Respeito a pessoa, não maltrato, porque tem pessoas não gosta por

causa disso e já maltrata, procura encrenca, e eu não. Não, não, eu não. “Bom dia”,

“boa tarde”, “tudo bem?”, e pronto – é a melhor forma de se viver. Não faço cara feia

e nada.

DP: Quais foram as suas impressões quando você chegou à Biblioteca? Porque

esse prédio causa um certo impacto, não causa? Quando você chegou pela primeira

vez na Biblioteca, as suas primeiras impressões.

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MB: Ah, sim! Porque até então eu nunca tinha entrado em uma Biblioteca, nunca. Aí

fui lá trabalhar no décimo andar e vejo aquele monte de livro, aquelas coisas que eu

nunca tinha visto, eu fiquei super surpresa. Era assim coisa de outro mundo. E no

sábado, quando a gente vinha trabalhar e via aquela fila lá no começo: “Para que

tudo isso de gente?”. “Vem estudar”. “Mas tudo isso estuda?” Ficava assim feito

boba mesmo, boba mesmo que nunca tinha visto e vê as coisas, ficava que nem

boba mesmo. Agora já estou acostumada, também depois de trinta e poucos anos.

DP: E quais foram as suas atividades, suas atribuições dentro da Biblioteca?

MB: Eu trabalhei na... Quando eu entrei, comecei na seção de etiquetagem, depois

fui para o protocolo, mas tudo numa boa, não porque briguei com fulano ou com

beltrano, tudo numa boa. “Bernadete, você quer ir lá?” “Tá, vou”. Fui para o

protocolo e quando as telefonistas ficavam de férias: “Você quer cobrir fulano? Você

se dá bem”. Fui e me dei bem. Fiz o teste, me dei bem com o telefone, então todas

as férias de todas elas, era eu que cobria. Aí depois de muitos anos, eu falei: “Quero

trabalhar lá”, foi na gestão do José Eduardo. Eu estava na Seção de Microfilme e eu

queria sair do Microfilme, porque eu soube quanto que o operador daquela máquina

que faz o microfilme ganhava, e eu não ganhava um centavo a mais, nem uma

convocação nem nada – estou falando isso aqui agora, hein! Eu em um minuto

desaprendi tudo. Aí o José Eduardo falou para mim se eu queria trabalhar

definitivamente no PABX2, aí eu falei que queria. Trabalhei muito tempo no

microfilme, muito tempo mesmo, mas desaprendi no ato quando eu soube quanto

um operador daquela máquina ganhava. Na época acho que meu salário era de

duzentos e pouco, trezentos e pouco, não lembro, depois com a convocação dava

acho que seiscentos reais. Então com aquilo eu fiquei muito magoada, muito

magoada mesmo e desaprendi o serviço, só isso.

DP: E depois você voltou para o PABX?

2 Central telefônica

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MB: Eu fiquei no PABX. Aí o José Eduardo falou se queria entrar... Quem que ia

sair? Nessa altura, nós éramos em quatro lá no PABX. O pessoal foi saindo, foi

morrendo, foi aposentando. Ele falou para mim: “Você quer ficar lá em definitivo?”.

Falei que queria, então...

DP: E as histórias engraçadas, Bernadete? Esse contato com o público tem esse

lado, que é um lado interessante...

MB: Ah, dos leitores, dos pesquisadores, o que é que tem? Assim, é engraçado e

triste ao mesmo tempo, porque quem ficou na época, quem ficou prejudicado foram

os leitores mesmo, que aí fechou... Porque antigamente, a Biblioteca, nos fins de

semana, funcionava inteirinha: Legislação, a Sala de Artes, Coleção Geral e tinha a

cabine dos pesquisadores. Na Sala de Artes tinha um senhor que dava aula lá na

Sala de Artes, aí foi descoberto que ele dava aula, aí fechou a sala.

DP: Não era funcionário?

MB: Não era funcionário, não. Eu sei que foi indo e mais a falta dos funcionários, aí

fechou a sala. Depois foi a sala de... Primeiro fechou a Sala de Artes e Livros Raros

também funcionava. Funcionava inteirinha a Biblioteca nos fins de semana.

DP: Aos sábados?

MB: Aos sábados. Só estou na dúvida com a sala de raridades, mas a Sala de Artes

funcionava, Legislação, Coleção Geral e tinha mais uma outra sala... Acho que era a

sala dos pesquisadores, de pesquisa, dos pesquisadores, aquele que vinha

intelectual, todo bonitinho. É, tudo isso funcionava.

DP: E nesse momento, enfim, você já estava no PABX?

MB: Eu estava no PABX. Mas antes disso, no fim de semana o PABX não

funcionava. Eu ficava na torre, no décimo quarto andar.

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DP: Fazendo a seleção dos livros na medida em que eles eram solicitados?

MB: Isso. Mas lá no décimo quarto andar era de periódicos, agora que me veio. Era

de periódicos, então tinha que mandar as revistas para os pesquisadores, então a

gente via tudo isso.

DP: E ao telefone, tem alguma história engraçada, assim? Porque o público no

telefone...

MB: Do público?

DP: É, em relação à Biblioteca, dúvidas em relação à Biblioteca, fatos que você

gostaria de destacar, curiosos da sua relação com o público através do telefone.

MB: Olha, não sei, tem dia que o público, não sei o que acontece, parece da família

da gente, trata a gente muito bem, não tem diferença, sabe, com aquela educação.

Mas tem dia que só por Deus! Eu não respondo porque eu sei da minha função, não

posso responder, não sei quem está do outro lado, mas a vontade dá porque não

tem educação. Se a gente estivesse na frente deles, acho que estapeava a gente,

pelo o que eles falam para a gente no telefone.

DP: Agora com a questão da reforma você recebe muitos telefonemas?

MB: Sim, reclamam muito. Reclamam e acham que a gente que tem que dar todo

aquele tipo de informação que eles necessitam, acham que a gente que tem que

falar. Outro dia... Não, já tem uns meses... Quem estava lá? Foi o Rodrigo? Foi o

Rodrigo. Que a moça foi tão malcriada comigo, mas tão malcriada, que aí eu fui

obrigada a responder, eu respondi e mandei ela ir falar com o prefeito, foi isso que

eu falei. “Mas eu não sei...”. “Como você não sabe se você trabalha aí, você tem

mais que saber”. Eu falei: “Não, acima de mim tem outras pessoas para você

conversar. Eu sou apenas a telefonista”. “Mas você tem que saber!!!”. Eu falei:

“Então vai falar com o prefeito”. Depois eu desci e falei com o Rodrigo: “Olha,

aconteceu isso, isso, isso, mas se vier amanhã ou depois uma reclamação, eu

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assumo porque eu sou assim: tudo o que eu faço ou que eu falo, eu falei, eu assumo

o que eu faço, porque tem pessoas que não assumem”. E o Rodrigo falou: “Não,

deixa quieto, é assim mesmo”. Eu falei: “Eu tenho a obrigação de saber que a

Biblioteca vai ficar pronta quando? Eu não tenho obrigação nenhuma. Minha

obrigação é atender aqui e ponto. Responder tudo direitinho, mas não obrigação. Ela

me fez fazer isso. Falei mesmo, paciência”.

DP: As pessoas reclamam muito pelo fato dela ficar fechada há tanto tempo?

MB: Reclamam, reclamam, reclamam por demais e querem saber o dia exato que

ela vai abrir. Eu falo: “Mas a gente não sabe, não tem...”. “Tem alguém aí que

pode...?”. Aí, às vezes, eu passo para a diretora; às vezes, não porque não adianta.

DP: Você nesse cargo, em outras gestões, você era obrigada a fazer um relatório

dos telefonemas que você recebe ou não? Isso era importante.

MB: No começo era, depois foi relaxando e aí... Quase que eu falo...

DP: Então você vai contar! Como que foi? Você tinha memórias muito positivas da

Biblioteca e que ela, aos poucos...

MB: Então era somente isso: marcar quantos telefonemas recebeu no dia.

DP: E não a natureza, o que cada um demandou? Porque é mais ou menos o que a

gente faz através da Internet, que a gente tem que fazer essa prestação de contas.

Vocês faziam isso?

MB: Não, não. Assim contar tudo direitinho, nos pormenores, não. Só quantos

telefonemas recebeu no dia, isso sim era feito, mas a historinha não, isso nunca foi

pedido. Tinha que marcar quantos telefonemas, aí ficou assim... paciência.

DP: Bernadete, eu queria que você contasse um pouquinho da sua relação com os

diversos diretores. Eu acho que você já atravessou, já pegou várias maneiras

distintas de gerir a Biblioteca.

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MB: Graças a Deus nunca tive nada assim de falar “aquela diretora foi melhor” ou

“aquela outra foi ruim”. Para mim foram todas iguais.

DP: Mas quando você achou que funcionou bem? Eu acho que essa percepção

você tem.

MB: Quando eu cheguei aqui, que era o pessoal da Dona Janeta, Dona Nina Rosa,

Dona May Brooking, Dona Ana Marilza, que era diretora; a Dona Maria da Guia não

era diretora, depois que ela foi ser diretora, mas a Dona Ana Marilza já era de

subdivisão, porque era tudo dividido, não sei explicar direitinho, tinha bastante

diretora de subdivisão, da Biblioteca, tinha um monte. Mas não tenho o que reclamar

de ninguém. Meu relacionamento com elas sempre foi positivo, graças a Deus!

DP: E por que é que você acha que funcionava melhor?

MB: Porque elas conversavam com os funcionários. Elas davam atenção, quando

viam qualquer coisa errada chegavam lá e chamavam lá na sala delas e

conversavam com as pessoas, não mandavam o recado, elas conversavam com os

funcionários.

DP: E a relação entre os funcionários, você acha que ela já foi melhor, já teve outros

momentos em que o grupo tinha mais harmonia?

MB: Os funcionários? Com certeza era melhor. Tinha mais gente, mais funcionário,

que eram três turnos e era mil vezes melhor do que agora. Agora, eu falo assim no

geral, de uns tempos para cá.

DP: De “quantos tempos” para cá?

MB: Vamos supor aí, vamos falar assim de uns dez anos para cá.

DP: Você acha que mudou muito o funcionamento?

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MB: Mudou e bastante, bastante, bastante. Dá vontade de chorar, começo a falar da

Biblioteca e dá vontade de chorar.

DP: Do grupo de pessoas que você convive esses anos todos, quem foram as

pessoas que foram mais companheiras da Biblioteca, que você teve mais afinidade,

que você teve um bom relacionamento, que te ajudou no processo de adaptação?

Quem você gostaria de destacar que foram parceiros de trabalho?

MB: Assim, por tudo que eu aprendi na Mário de Andrade, assim mexer com os

livros, porque, por exemplo, fazer leitura daquelas estantes era um bicho de sete

cabeças para mim, então quem me ensinou, não é? Todos já faleceram.

DP: Quem foram?

MB: O Luís Arcebíades, o Albano, acho que a Lucília está viva, ela tem uma escola,

mas aí a gente se desligou, não sei dela. Mas foi o Albano, o Luís – o Luís faltava

feito nem não sei o quê, mas era bom, o Albano também. Eram pessoas que não

tinham o nariz em pé.

DP: Eram bibliotecários?

MB: Não, não, os dois eram auxiliares de biblioteca e ensinavam, porque tem gente

que sabe e não gosta de ensinar. Eles não, tinham a maior paciência comigo, ainda

mais que eu falei: “Eu nunca vim em uma biblioteca, eu não sei”, então eles tiveram

aquele amor de ensinar para mim o serviço. E a Dona Lídia que era chefe também.

Em relação aos livros, eu fiz curso de encadernação.

DP: Isso estimulado pela própria Biblioteca? Diretores a estimularam?

MB: É, fiz pelo SENAI. E antes disso, quem me ensinou a mexer com os livros,

assim com pequenos reparos, foi o Percy, Percy Longo Filho, porque o Percy de

livro e essas coisas ele entendia muito bem. É isso.

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DP: Agora vou tocar em uma zona espinhosa: a relação com os bibliotecários, não é

uma corporação fácil. Como era a relação, você sentia um respeito por parte deles?

MB: Nem todos, porque, quando eu trabalhava no protocolo, eu que fazia a relação

deles para trabalhar no fim de semana, convocação deles para o fim de semana.

Tem bibliotecários que te ensina também as coisas, não tem aquela..., mas tem

alguns outros que, se não sair da frente, eles te pisam em cima e cospem. De

coração, mas é a realidade mesmo, não estou mentindo, não estou aumentando

nada. Tem uns que te tratam ali com aquela humildade, te ensinam, sem os seus

problemas da Biblioteca, você sente que aquela pessoa gosta de você, tem aquela

amizade por você, mas, agora, tem outros que só por Deus, só por Deus.

DP: E quais foram os bons colegas bibliotecários? Você citou aqui o Percy...

MB: Isso, o Percy. Ah, mas teve tantos! Tem a Isabel Perez, já aposentou também;

a Célia Prado, mas já se foram todos embora daí. A Isabel Mezzalira, ela também

trabalhava na Seção de Encadernação. Ela, às vezes, era meio de lua, mas, quando

ela estava na lua boa, ela era boa. Isabel Mezzalira, ela era boa. Ela também me

ensinou muita coisa, a Isabel.

DP: Bernadete, durante a gestão, pelo menos a gente tem conhecimento através

dos relatórios, dos documentos que, durante a gestão da Marilena Chauí, houve um

esforço grande no sentido de fazer cursos de formação para os funcionários, você

se lembra de ter participado?

MB: Na gestão da Dona Marilena Chauí?

DP: Justamente. A Lucia Neíza foi diretora durante a gestão dela, quando a Marilena

era secretária de Cultura. Você falou dos cursos que a Lúcia Neíza promoveu. Você

lembra, você chegava a participar desses cursos?

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MB: Olha, eu participei de muitos cursos, viu! Fiz bastantes cursos. Esse que eu fiz

no SENAI... Ah, eu fiz muitos cursos, mas não lembro direitinho nos pormenores,

não lembro não.

DP: E as atividades que eram oferecidas pela Biblioteca? Nessas atividades de

música, os funcionários eram convidados a permanecer? Isso é importante.

MB: Olha, funcionário... Sabe como é funcionário, tem as pessoas que sabem até

onde podem ir e tem outros que não sabem. A Lúcia fazia uma programação, o

Prêmio Jabuti – será que eu pronunciei certo? -, e a gente ia depois do horário, na

hora do horário não podia, depois do horário podia. Depois foi proibido porque tem

os comes e bebes, e alguém viu lá algumas funcionárias enchendo a bolsa de

salgadinhos, aí foi proibido funcionário ir participar.

DP: Isso então foi na gestão da Lúcia...

MB: Isso aí aconteceu na gestão da Lúcia. Foi verdade, eu não estou mentindo. Aí

foi proibido funcionário participar, por quê? Porque encheu a bolsa, parecia que

estava morrendo de fome. E pegar as coisas, que coisa feia também! Era para

participar da festa e não para ir antes, pôr na bolsa e levar – e viram, esse foi o

problema!

DP: Bernadete, os funcionários da Biblioteca se mantiveram durante muitos anos,

tinha um quadro fixo, não teve muita rotatividade aqui, não houve muitas mudanças.

Assim, as pessoas que entraram, permaneceram praticamente até a sua

aposentadoria. Um quadro mais estável de funcionários.

MB: Sim. Isso, tudo estável, não teve mudanças assim, não.

DP: E histórias engraçadas, você se lembra de histórias engraçadas que tenham

acontecido no espaço da Biblioteca? Ou tem mais tristes do que engraçadas?

MB: Tem muitas histórias engraçadas, mas a que nunca me sai da cabeça é a do

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Eduardinho – não podia falar, saiu! [risos] Ah, mas foi verdade. Ele foi fazer o jogo

do bicho, ai veio a polícia e ele ficou preso. Depois, o pessoal, como sabia que era

da Biblioteca, foi lá avisar. E tinha o advogado e foi lá pegar ele. Isso foi engraçado

para a gente! [risos]

DP: Com certeza.

MB: É isso daí que eu acho legal. “Ah, ficou preso! “. Foi por algumas horas. Ele

fala: “Foi por algumas horas só”.

DP: E situações difíceis assim que você tenha enfrentado lá? Você pessoalmente ou

alguém que tenha vivido uma experiência muito difícil.

MB: O que foi muito triste aquele dia, isso aconteceu em um sábado, um menino...

Como que se chamava aquele menino? Acho que era Norberto, eu não me lembro

direito do nome dele. Ficou com a cabeça presa na caixa. Na caixa... Acho que você

não chegou a ver. Onde colocava os livros ali, no elevadorzinho pequenininho. Ali

quando faz aquela voltinha que vai lá para os fundos. Então, acho que era Alberto

que se chamava aquele menino, não sei direitinho. Ele colocou a cabeça lá para

chamar o pessoal lá em cima, aí fechou a caixa e ele ficou com a cabeça ali.

DP: E quem o resgatou?

MB: Eu estava lá embaixo, aí saí na rua correndo para chamar a polícia para ir lá

ver ele, aí que veio o bombeiro para tirar a cabeça, para tirar ele de lá.

DP: E ele saiu?

MB: Saiu, saiu bem, graças a Deus! Mas ali na hora, para você ver aquilo sem

saber, só chamando a polícia. Mas graças a Deus essa é a única lembrança triste

que eu tenho. Ah, e também quando sujaram os livros lá em cima e culparam um

colega – o que eu acho até hoje... Eu não me conformo dele ter feito isso. Aí

falaram: “Ele fez porque estava bêbado”. Mas até hoje eu acho que não foi ele, mas

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em todo caso está como se fosse ele que fez sujeira nos livros. Com isso eu também

fiquei muito magoada.

DP: Isso faz tempo, Bernadete?

MB: Ah, faz. Isso tem mais de vinte anos.

DP: E você então, quando você foi voltar a fazer o Segundo Grau, você já estava na

Biblioteca.

MB: Já.

DP: E aí, como você conciliava as duas coisas? Você saía, você tinha seu horário

aqui e ia para a escola.

MB: Saía às seis horas, tinha que sair correndo, às vezes pedia para sair um

pouquinho mais cedo porque a condução era mais difícil, mas dava tempo porque eu

entrava as sete e meia lá em Carapicuíba. Dava tempo, mas foi muito sofrido, muito

corrido. Mas consegui, graças a Deus! A minha mãe não sabe ler, ela lia um

pouquinho, ela não sabia escrever, e eu tenho o segundo [grau], então está tudo

bem.

DP: Bernadete, eu queria que você falasse em relação a sua atividade na Biblioteca,

você acha que isso trouxe uma sensação de orgulho pelo fato de estar participando

de uma instituição tão importante, tão tradicional na cidade.

MB: Ah, sim. Até me arrepia porque eu gosto demais da Biblioteca e o que eu faço

também eu gosto, comecei pegando os livros lá com o pessoal, fui para o PABX, eu

gosto de ter contato com o público. Eu gosto, gosto mesmo. Só fico aborrecida

quando eles me aborrecem. Mas eu gosto, gosto muito.

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DP: E o fato de ser uma servidora pública, para você é importante? O fato

justamente de trabalhar na prefeitura, ter uma relação, ter essa importância de ser

justamente uma prestadora de serviço.

MB: Sim, claro! Eu gosto muito do que eu faço. Gosto de ter a mãezona lá, porque a

prefeitura é uma mãe. Você sabendo trabalhar direitinho, cumprindo com as suas

obrigações, que deve ser feito assim, apesar que o pessoal não faz, mas o certo é

isso. Cumprir, eu cumpro, então deixo os outros para lá. Eu faço a minha parte,

então eu gosto.

DP: Em relação à questão salarial, você acha que houve uma mudança muito

grande? Teve momentos mais prósperos, mais bem sucedidos, onde o salário do

servidor era...

MB: Olha, se não fosse um prefeitinho que tivemos aí, o salário estava um

pouquinho melhor.

DP: Teve momentos, quando você entrou, o que você lembra, na prefeitura? Em

1975 era bom, o salário era mais?

MB: Era bom, o salário era bom, razoável. Dava para você sentir o salário ali na sua

mão, hoje em dia não dá. Ainda mais que... Depois foi em 1994... Não me lembro

direitinho. Em dez dias foi mudada uma lei e aí o salário ficou praticamente zerado.

DP: Não tem reajuste há 15 anos, não é isso?

MB: Pois é. Vamos tentando, graças a Deus, mas está dando para viver, está bom.

DP: E essa mudança, quando a Biblioteca deixou de fazer parte do sistema? Você

sentiu a diferença? Você acha que quando ela estava integrada ao Sistema

Municipal de Bibliotecas, se houve uma mudança na sua percepção, no seu

sentimento em relação a isso.

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MB: Então, eu acho que eu vou ver a partir, porque até em então não dava para ver

direitinho como que funcionava tudo direitinho nos pormenores, não é? A gente via

assim por cima. Agora sendo ela, ela mesma, então vamos ver agora. Agora que

tem que aparecer.

DP: Ver se ela tem perninhas para andar sozinha.

MB: Exatamente.

DP: O que você se lembra da reforma de 1992? Porque também foi uma reforma

grande.

MB: Foi diferente desta.

DP: Quais são as diferenças que você identifica?

MB: Que pelo menos os funcionários não ficaram. Só no final que vieram alguns

funcionários, como dizia a tia Lúcia, que foi na gestão dela: “Vão ser escolhidos a

dedo os funcionários que são para vir para pôr em ordem a casa para reabrir”. Foi

escolhido a dedo o povo.

DP: E para onde você foi, Bernadete?

MB: Eu fiquei, graças a Deus, eu fiquei lá na circulante e depois, quando era para

reabrir, que tinha que pôr os livros no lugar, então eu desci. Graças a Deus eu fui

escolhida, eu, minha irmã, graças a Deus.

DP: Muita gente que saiu naquele momento não voltou mais, é isso?

MB: Na gestão da Lúcia?

DP: Porque as pessoas foram para as bibliotecas ramais...

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MB: Algumas não voltaram, algumas. Foi um gato pingadinho, poucas mesmo, acho

que não chegou nem a cinco pessoas que não voltaram. Deixa eu pensar bem. Acho

que é isso mesmo, acho que não teve nem cinco pessoas que não voltaram.

DP: Quando reabriu, naquele momento, a Biblioteca reabriu de uma maneira mais

condizente? O que você se lembra desse momento?

MB: Foi uma reforma, mas eu não entendi direito a reforma que foi feita.

DP: Não foi discutida com vocês?

MB: Não.

DP: Vocês tinham pouca participação.

MB: Não participava de nada, nada, nada. Era só o alto escalão, não é?

DP: Quando reabriu você sentiu por parte do público um interesse grande

novamente pela Biblioteca? Conseguiu recuperar seu público?

MB: Não, eu acho que aí o que aconteceu...

DP: Foi em 1992.

MB: Eu não sei o que aconteceu que já foi diminuindo. Não tinha mais aquelas filas,

aquelas coisas. Reclamaram muito do acervo, que bastantes livros foram

comprados, mas todos estrangeiros.

DP: Houve esse tipo de reclamação?

MB: Teve... Saiu no jornal até essas coisas. Teve isso sim.

DP: E em relação a esta reforma, vocês chegaram a ser consultados? No início o

pessoal do escritório chegou a conversar com vocês?

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MB: Não, pelo menos comigo ninguém conversou, não. Ninguém falou nada, não.

DP: Qual é a tua esperança em relação a esta reforma? O que é que você gostaria

que acontecesse depois que finalizar este processo?

MB: Bom, como antes, como era antes, acho que nunca mais, não é? Às vezes eu

penso isso, às vezes não, porque todo mundo agora está na nova era do

computador, faz tudo, mas tem professores que não querem, então talvez volte sim

ao que era. Mas eu gostaria que ela fosse assim um nível de primeiro mundo. Esse

era meu sonho, vamos ver. Em relação a tudo, no geral, funcionário, acervo, assim

tudo, no geral mesmo.

DP: Você teve oportunidade – essa é a grande questão – a gente trabalha na

Biblioteca, mas em geral a gente não tem tempo de ler os livros, pelo menos no

momento que a gente está dentro da Biblioteca, ter acesso. Sua relação com os

livros mudou depois de passar tantos anos na Biblioteca, você tem mais interesse?

MB: Sim, eu pego livro emprestado da circulante.

DP: Que legal! O que é que você pega?

MB: Eu gosto muito de livros espíritas, eu gosto demais de ler sobre isso. Mas é só

isso a minha leitura. E, às vezes, assim por curiosidade uma revista ou outra que eu

pego lá mesmo na Biblioteca, mas eu gosto é de livro espírita.

DP: Bernadete, em relação à sua aposentadoria, a sua perspectiva é se aposentar

no ano que vem, enfim, eu queria que você falasse um pouquinho o que você está

planejando fazer e o que você vai mais se ressentir, assim, ao sair da Biblioteca o

que você vai sentir mais falta desse seu dia-a-dia.

MB: Ah, eu vou sentir falta do dia-a-dia, só de pensar eu choro. Mas eu quero me

aposentar, a minha filha fica falando, eu quero me aposentar porque senão fica a

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vida inteira? Eu estou ensaiando, estou ensaiando... Eu falo assim: “Eu vou, eu

tenho que aposentar, eu quero aposentar, porque também ficar a vida inteira

trabalhando!”. O que eu tinha que fazer, eu já fiz, graças a Deus! Graças a Deus eu

tenho a minha casa. Graças a Deus! Eu consegui a minha casa vindo para a

Biblioteca. Graças a Deus!

DP: É bastante coisa, não é?

MB: Então o que eu vou fazer quando me aposentar? Fazer crochê, cuidar dos

netos, cuidar das plantinhas, só isso, não pretendo fazer mais nada. E passear, é

claro, é lógico, para não ficar bitolada dentro de casa.

DP: E quais são os seus projetos de passeio? Onde você gosta, em São Paulo, de

passear quando você tem um tempo livre?

MB: Eu gosto de ir para Poços de Caldas. Gosto de ir para a Baixada, mas

ultimamente estou ficando com medo do mar.

DP: E seus filhos? Você estava falando da sua formação, que você conseguiu se

desenvolver, que conseguiu comprar uma casa. O que fazem os seus filhos?

MB: O meu filho já é casado, já mora lá no quintal. E a minha filha também. Moram

lá comigo.

DP: E qual a atividade de trabalho deles?

MB: O meu filho trabalha de mecânico. Era mecânico. Agora, com a caída, ele diz:

“Ah, mãe, não existe mais isso, não existe mais aquilo”, então agora ele trabalha de

segurança. Minha filha é auxiliar de enfermagem e trabalha como segurança

também.

DP: E todos puderam frequentar a escola até o final?

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MB: Não completaram porque... Sabe, porque não quiseram. Porque fizeram outras

coisas antes, então aí não deu para continuar os estudos. Eu sinto por isso, mas

paciência, a gente não está dentro deles, não é?

DP: Mas os netos... Você me falou que a sua neta já está fazendo faculdade.

MB: Sim, ela está fazendo, a Domênica está fazendo faculdade, graças a Deus.

DP: E os outros são mais jovens?

MB: São pequenos ainda, tem 15. Os gêmeos têm 15, a Samanta tem 13, o Ramón

tem 10, que é do meu filho. Domênica, os gêmeos e a Samanta são da Magda. O

Ramón, a Isabela e o Gustavo são do Wagner. São pequenininhos, o Gustavo tem

sete, seis, a Isabela, oito, e o Ramón tem dez.

DP: Todos estão na escola?

MB: Todos estão na escola.

DP: A escola é próxima à casa de vocês?

MB: É perto, é perto de casa.

DP: E qual é a diferença que você sente em relação às escolas? Assim, de quando

você foi... Você falou justamente da violência nas escolas hoje. Qual é a experiência

dos seus netos? Assim, você acha que o ensino é ok, a relação com os

professores...?

MB: É bom, eles têm bom relacionamento com os professores, porque a gente

conversa muito com eles, conversa muito. A Roberta que é meio boca-dura e ela

fala: “A minha professora fez isso, isso e eu respondi”. E a minha filha só fala: “Se eu

for chamada para ir à escola, você vai me pagar!”. Mas, graças a Deus, até hoje não

aconteceu isso, não é? Eles respeitam os professores porque a gente ensina, fala

para eles.

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DP: E a qualidade de ensino? Pelo menos nas escolas lá dos seus netos é

razoável?

MB: Razoável, porque igual antigamente nunca mais.

DP: Eles têm conhecimento que você trabalha em uma biblioteca tão importante, ou

pelo menos que foi tão importante, fonte de orgulho?

MB: Sim, têm. A Domênica falou ontem ou anteontem: “Quando que vai voltar a

funcionar a Biblioteca? Porque eu preciso de uns livros, eu preciso disso, eu preciso

daquilo”. Aí eu brinco com eles: “Vocês não queriam o computador? Olha o

computador aí!” - “Não, mas a professora não quer, tem que ser no livro”. Eu falo

assim com eles.

DP: Bernadete, você que está encerrando o seu ciclo na Biblioteca, enfim, a

perspectiva é do ano que vem você se aposentar, como é que você gostaria de ser

lembrada quando você se afastar da instituição? Quais você acha que são as suas

características?

MB: Olha, eu gostaria que todos se lembrassem de mim com orgulho, não é?

Gostaria, mas eu sei que isso não é possível. Como dizia a minha mãe, “uns gostam

do zóio, outros gostam da remela”. [risos] Não são todas as pessoas que gostam de

mim, eu sei disso, porque eu sou aquela pessoa que quando eu tenho que falar, eu

falo. E tem pessoas que não gostam de ouvir a verdade. Agora, tem uns que já

gostam, tem bastante gente que gosta de mim e tem aqueles que não gostam

também. Eu acho que o povo vai sentir saudade, porque quando nos dias que eu

estou de licença ou de férias: “Eu senti falta de você”. Eu falo: “Não sentiu falta de

mim, sentiu falta do meu trabalho”, eu falo isso.

DP: Você gostaria de falar mais alguma coisa que eu não tenha perguntado?

MB: Não....

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DP: Algo que você queira deixar aqui para a história nesse documento. Sobre a sua

experiência na Biblioteca, sobre a Biblioteca...

MB: Só quero que a Biblioteca seja assim, quando ela reabrir que seja aquele

primeiro mundo para o povo, para o público em geral. Para todo mundo entrar, olhar

e falar: “Valeu a pena ficar todo esse tempo fechada porque agora tem isso, isso e

isso”. E pelo menos abrir todas as salas quando reabrir, porque o pessoal reclama,

eles reclamam muito: “Ah, está fechada!”. Às vezes vem pessoas de longe que não

sabem que a sala está fechada, eles vêm para fazer aquela pesquisa e chegam aqui

e falam: “Está fechada, mas ninguém avisou”. Porque realmente não está escrito em

lugar nenhum até hoje. Que eu me lembre essas salas não funcionam, aquela não

funciona, só a Coleção Geral. Depois de muito tempo acho que apareceu um

pedacinho lá: “Só Coleção Geral atende”. Pelo menos eu tenho que passar para

quem liga: “Só a Coleção Geral que está funcionando”. Então seria de muita

importância se abrissem todas as salas, só deixassem livros raros lá quietinhos

porque são livros raros, não é? Antigamente eram as pupilas da Regina Dantas,

agora são pupilas do Bruno, então... A Regina Dantas – Nossa Senhora! – tinha que

ser assim, assim, assim, assado. Então ela ficava fechada, quando tinha alguma

coisa, não tenho muita certeza, mas a Regina vinha...

DP: Você chegou nesses anos todos a ter algum tipo de contato com essas obras

raras? Houve algum tipo de formação para os funcionários introduzir quais são,

afinal, os livros raros que nós temos lá?

MB: Não.

DP: Nunca?

MB: Não, não, não. Só entrei na Sala de Livros Raros para conhecer. E, às vezes,

entrava lá para dar um “oi” para o pessoal que trabalhava lá. Só, só, só. Não sei

mais nadica de nada.

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DP: Nunca teve um contato de corpo-a-corpo com as obras raras?

MB: Não, não, não. De jeito nenhum. Ali é um problema, sempre foi. Eu só entrei,

entrei mesmo na sala só para conhecer.

DP: Convidada?

MB: Convidada. Nossa Senhora! Entrar lá sem ninguém de jeito nenhum, de jeito

nenhum! A Regina ficava em uma salinha ao lado e os pesquisadores lá dentro da

sala, e duas bibliotecárias, uma de cada lado lá. Então, eu, por exemplo, passava lá,

mas só “oi” e pronto, não podia entrar.

DP: Com qual diretor você teve mais tranquilidade? Se você consegue resgatar uma

comunicação mais tranquila, mais...

MB: Para conversar assim com o diretor?

DP: É. Para falar as suas coisas, as suas necessidades.

MB: Ah, com a Dona Ana Marilza. Às vezes eu encontro com ela: “Oi, tia Ana

Marilza, tudo bem?”. A Dona Ana Marilza...

DP: Que foi a primeira, não é? Quando você entrou.

MB: É, quando eu entrei, mas ela era diretora de subdivisão. A Dona Nina Rosa que

quando eu entrei era a diretora. Depois ela saiu e eu não sei nem por quê.

DP: Então, Bernadete, eu te agradeço muitíssimo pelo teu depoimento, pelas tuas

lembranças, pelas tuas colocações.

MB: Espero que tenha sido útil, não é? Espero que dê para alguma coisa, não é? Eu

fico assim meio inibida.

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DP: Mas se você se lembrar de alguma coisa, ainda tem tempo, está bom?

MB: Não tem, não. Já falei tudo, já falei até demais.

DP: Que bom, isso é um bom sinal.

MB: Já falei demais sim, do Eduardinho... Ah, mas ele foi mesmo! Eu fiquei

pensando no Eduardinho. Tem as tristezas... Tem o Eduardinho, do Percy, eu já falei

do Percy, que me ensinou a mexer com os livros, do Luís, do Albano, das pessoas...

DP: O Marcos Celso também...

MB: Ah, sim, o Marcos Celso. O Marcos Celso era um bibliotecário de lua, viu? Ele

era de lua, o Marcos Celso era de lua, Nossa Senhora! Ainda mais acho quando ele

descobriu e ficou com aquele problema da doença, daí que ele ficou mais... No fim a

gente vai se acostumando com as pessoas, mas ele era... Graças a Deus que

comigo era “bom dia, boa tarde, tudo bem?”, não era aluado comigo. Mas você vê

com as outras pessoas, aí eu fico sentida porque eu sou muito assim sentida.

Coitado, mas foi uma boa pessoa, não tenho o que reclamar. Acho que eu não tenho

que reclamar de ninguém da Biblioteca, só das bibliotecárias, algumas, nem todas.

[risos]

DP: Todos nós sentimos a mesma coisa!

MB: Não são todas, mas também paciência...

DP: A gente sobrevive, não é?

MB: É, sobrevive. Porque eu penso assim: cada um é como Deus o fez. Você é uma

bibliotecária, eu sou uma faxineira, mas o que é que tem? Somos todos filhos de

Deus, não é? Você anda mais bem vestida e eu ando mais... Mas somos filhos de

Deus. Quando morrer, todo mundo vai para o mesmo caminhozinho. Para que ser

assim? Mas tudo bem, acabou.

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DP: Muito obrigada.

MB: Fiz vocês darem risada, não é?

DP: Foi ótimo.