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BEZERRA DA SILVA: COTIDIANO E CRIMINALIZAÇÃO DOS MORROS CARIOCAS NAS DÉCADAS DE 1980 e 1990. EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO 1 O presente trabalho, que se concretizará em dissertação de mestrado, tem o intuito de pesquisar o cotidiano dos morros cariocas, nas décadas de 1980 e 1990, através da problematização da produção musical do cantor e compositor Bezerra da Silva. Entre outras questões, sua obra expõe a representação do cotidiano de sujeitos históricos - os moradores dos morros cariocas - que até então, eram praticamente ignorados pela historiografia. O resgate da história dos chamados excluídos da história”, através da pesquisa de seu cotidiano, se faz necessário para recuperar as memórias, os questionamentos e as identidades dos setores sociais marginalizados. Cumpre lembrar, que até recentemente o campo de estudos históricos, seus temas e objetos de estudo eram monopolizados pelos setores economicamente hegemônicos, algo que vem sendo superado, desde a chamada “crise dos paradigmas”, que ocorreu ao final da década de 1960 e possibilitou o processo de descentralização dos sujeitos históricos: [...] Tiveram como preocupação abrir trilhas renovadoras, desimpedidas de cadeias sistêmicas e de explicações causais, criar possibilidades de articulação e inter-relação, recuperar diferentes verdades e sensações, promover a descentralização dos sujeitos históricos e a descoberta das histórias de gente “sem história”, procurando articular experiências e aspirações de agentes aos quais se negou lugar e voz dentro do discurso histórico convencional. Nessa perspectiva, os estudos do cotidiano passaram a atrair os historiadores desejosos de ampliar os limites de sua disciplina, de abrir novas áreas de pesquisa e acima de tudo de explorar as experiências históricas de homens e mulheres cuja identidade foi tão frequentemente ignorada ou mencionada apenas de passagem. (MATOS, 2014: 24) * 1 Mestrando do Programa de Pós- Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bolsista do programa CAPES. Orientadora: Maria Izilda Santos de Matos.

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BEZERRA DA SILVA: COTIDIANO E CRIMINALIZAÇÃO DOS MORROS

CARIOCAS NAS DÉCADAS DE 1980 e 1990.

EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO1

O presente trabalho, que se concretizará em dissertação de mestrado, tem o

intuito de pesquisar o cotidiano dos morros cariocas, nas décadas de 1980 e 1990,

através da problematização da produção musical do cantor e compositor Bezerra da

Silva. Entre outras questões, sua obra expõe a representação do cotidiano de sujeitos

históricos - os moradores dos morros cariocas - que até então, eram praticamente

ignorados pela historiografia.

O resgate da história dos chamados “excluídos da história”, através da pesquisa

de seu cotidiano, se faz necessário para recuperar as memórias, os questionamentos e as

identidades dos setores sociais marginalizados. Cumpre lembrar, que até recentemente o

campo de estudos históricos, seus temas e objetos de estudo eram monopolizados pelos

setores economicamente hegemônicos, algo que vem sendo superado, desde a chamada

“crise dos paradigmas”, que ocorreu ao final da década de 1960 e possibilitou o

processo de descentralização dos sujeitos históricos:

[...] Tiveram como preocupação abrir trilhas renovadoras, desimpedidas de

cadeias sistêmicas e de explicações causais, criar possibilidades de

articulação e inter-relação, recuperar diferentes verdades e sensações,

promover a descentralização dos sujeitos históricos e a descoberta das

histórias de gente “sem história”, procurando articular experiências e

aspirações de agentes aos quais se negou lugar e voz dentro do discurso

histórico convencional. Nessa perspectiva, os estudos do cotidiano passaram

a atrair os historiadores desejosos de ampliar os limites de sua disciplina, de

abrir novas áreas de pesquisa e acima de tudo de explorar as experiências

históricas de homens e mulheres cuja identidade foi tão frequentemente

ignorada ou mencionada apenas de passagem. (MATOS, 2014: 24)

*1 Mestrando do Programa de Pós- Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, bolsista do programa CAPES. Orientadora: Maria Izilda Santos de Matos.

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Nas décadas de 1980 e 1990, a população brasileira vivenciou grandes

problemas econômicos e sociais, em especial a população de baixa renda, (onde se

incluem os moradores dos morros cariocas, objeto de estudo da presente pesquisa). Essa

população foi atingida por problemas derivados do contexto político, social e

econômico mencionado, entre eles podemos citar as altas taxas de desemprego e

inflação, a falta de serviços públicos básicos e de assistência social. (MARTUSCELLI,

2005:21-22)

Contemporâneo ao período citado, temos como destaque a figura de Bezerra da

Silva, um artista que não foi “nem herói e muito menos santo”. O músico José Bezerra

da Silva nasceu em 1927 na cidade de Recife (PE), onde passou sua infância e parte da

juventude. Desde cedo se interessou por música, mesmo repreendido por sua mãe e por

sua família, que não queriam que ele aprendesse a tocar nenhum instrumento. Devido a

sua teimosia, aprendeu a tocar trompete (o primeiro instrumento) escondido da família,

que queria que ele seguisse carreira na marinha. (VIANNA, 1999: 14)

Seguindo o conselho dos familiares, Bezerra da Silva conseguiu ser

selecionado para fazer parte da marinha mercante, mas após um desentendimento com

um oficial, que lhe assediou sexualmente, teve a carreira militar finalizada

prematuramente. Consequentemente, foi criticado por seus familiares. Aborrecido

decidiu embarcar clandestinamente em um navio com destino à cidade do Rio de

Janeiro, em busca do pai, que também era da marinha mercante e o havia abandonado

junto de sua mãe, durante a infância.

Bezerra encontrou seu pai, mas não foi bem recebido e, depois de entrarem em

atrito, resolveu viver sozinho na cidade. Para sobreviver, arrumou trabalho na

construção civil e esporadicamente fazia participações na Rádio Clube do Brasil, como

instrumentista. Durante alguns anos enfrentou uma vida de privações, morando nas

obras em que trabalhava. (Ibidem, p.16)

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Iniciou a criação de suas músicas em 1959, compondo cocos2, em parcerias

com outros artistas, não atingindo o esperado sucesso de vendagem e repercussão

midiática nos primeiros discos. Só com o lançamento da série “Partido Alto Nota 10”, a

partir de 1977, começou a encontrar o seu público, curiosamente, nesse momento, o

repertório dos seus discos passou a ser abastecido por autores anônimos oriundos dos

morros cariocas e da baixada fluminense (alguns usando codinomes para preservar a

clandestinidade).

A partir de então, Bezerra da Silva assumiu um personagem, uma espécie de

persona3 – de “bom malandro”, “embaixador das favelas” – e, para formar o seu

repertório, passou a percorrer os morros cariocas e a baixada fluminense, com um

gravador de fita K7, procurando compositores e sambas que lhe interessassem, nas

biroscas, botequins e rodas de samba. Sambistas que eram conscientes de que Bezerra

da Silva não passava nenhum compositor para trás, ao contrário, tinha o prazer de

destacar a autoria e o valor dos compositores, além de pagar corretamente os seus

direitos autorais. (Ibidem, p. 30-40)

Depois de recolher esses sambas, Bezerra da Silva fazia alterações, arranjos

(cabendo lembrar que era músico profissional) e uma seleção dos sambas que iria

gravar. Bezerra rejeitava os sambas com temas românticos e amorosos, privilegiando os

temas críticos e de protesto, como a representação do cotidiano dos morros cariocas, da

baixada fluminense e do cárcere. Incluindo temáticas como o racismo, a malandragem e

a ascensão do narcotráfico, sempre ligados ao contexto citado. Coletadas de

compositores oriundos das camadas populares da sociedade, as músicas interpretadas

por Bezerra da Silva compunham uma espécie de sociologia de um Brasil urbano.

(Ibidem, p. 154-155)

2 Dança de roda, geralmente com passo binário, ritmada por música cantada em coro que responde ao

cantor, denominado coqueiro, e acompanhada por instrumentos de percussão. (LOPES, 1992: 34) 3 “O conceito de persona tem origem na literatura, delimitando quem está falando numa obra de ficção.

Essa visão sugere que o poeta sempre assume um papel- a persona poética- mesmo quando está falando

de si mesmo. Eduard T. Cone (apud. 1974:5) transpôs o conceito de persona para a música” [...]

[...] “Cone então identifica o cantor com a persona vocal, ou protagonista numa canção, e é quem carrega

o conteúdo poético, ou seja, a voz do poeta”. (Org. MATOS; TRAVASSOS; MEDEIROS, 2008:134)

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Em sua carreira artística, Bezerra da Silva foi duramente atacado por parte da

imprensa e dos críticos musicais. Sendo chamado de “cantor de bandidos”, acusado de

que suas músicas os “defendiam”, mas contrário disso, como o próprio artista afirma,

elas tinham o intuito de conscientizar as pessoas para não virarem criminosas,

destacando que o “verdadeiro malandro é trabalhador” e o verdadeiro bandido faz parte

da elite, sendo representado pelos políticos corruptos, ao quais Bezerra denominava de

“ladrões de gravata”.

“Então, como eles dizem a realidade, que dói, então eles dizem que eu sou

cantor de bandido, por que os autores que escrevem pra mim são favelados,

são não sei o que. O Bezerra é cantor de bandido, idolatrando marginal, é

do lado, é defensor de bandido. Eu digo, quem defende bandido é advogado,

juiz né”? 4

Ao final de sua carreira, antes de falecer (em 2005, aos 77 anos), Bezerra da

Silva obteve o reconhecimento do seu talento, alcançando uma grande vendagem de

discos e vendo músicas do seu repertório cantadas e regravadas por diferentes artistas,

como “Jorge Ben Jor” “Marcelo D2” e as bandas “O Rappa” e “Barão Vermelho”.

Algumas de suas músicas tornaram-se trilhas sonoras de novelas e programas de TV e

após sua morte, dada a atualidade dos temas por ele cantados, sua obra ainda manteve

grande representatividade na sociedade brasileira.

A obra de Bezerra da Silva se inseria no contexto citado, como uma forma de

protesto, como denúncia contra a precariedade vivida. Mais do que isso, expressava a

visão de mundo, os anseios, os descontentamentos, o cotidiano e a resistência dos

moradores e dos próprios morros. Suas canções caracterizavam-se como uma das

“paisagens sonoras” da cidade do Rio de Janeiro.

4 Entrevista de Bezerra da Silva - Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício

Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.

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“As cidades não são só caracterizadas e identificadas pelos seus ícones;

possuem marcos de outras memórias peculiares, diferenciadas e

multifacetadas, como múltiplos sons, diferentes vozes, idiomas, sotaques e

canções que se constituem enquanto “paisagens sonoras”.

Estas sonoridades, e em particular as canções, apresentam-se como um

desafio de pesquisa instigante, já que por muito tempo constituiu um dos

poucos documentos sobre memórias relegadas ao silêncio, manifestações de

aspectos da vivencia cotidiana, urbana e particularmente das experiências

afetivas de seus produtores e ouvintes”. (MATOS, 2007: 164)

Bezerra da Silva assumiu o papel de “cronista do povo sofredor”, “porta-voz da

favela e dos favelados”, vanguardista de uma população excluída, marginalizada, que

sempre sofreu calada e encontrou em Bezerra da Silva um canal para se expressar.

Bezerra tinha conhecimento musical, um pensamento crítico e, junto a isso, possuía

contatos com gravadoras, empresários e músicos, que lhe abriram as portas para o

mercado musical brasileiro.

“Na mídia, nos sambas biográficos e no relato de história de vida, Bezerra

constrói uma identidade de “bom malandro” e delineia um personagem – uma espécie

de herói sofredor, mas vencedor, em uma sociedade injusta, e se autoproclama o

“embaixador da favela” – porta-voz dos excluídos e marginalizados”. (VIANNA,

1999:15)

Mesmo possuindo autorias diversificadas, foi possível constatar que alguns

temas se repetem nos sambas cantados por Bezerra da Silva, conclui-se que esses temas

são representações do cotidiano de vida dos moradores dos morros cariocas e da

baixada fluminense. O tema que possui maior repetição em sua obra é o da

criminalização, como nos mostra a letra do samba “Vitimas da Sociedade de 1985”:

Se vocês estão a fim de prender o ladrão

Podem voltar pelo mesmo caminho

O ladrão está escondido lá embaixo

Atrás da gravata e do colarinho

O ladrão está escondido lá embaixo

Atrás da gravata e do colarinho

Só porque moro no morro

A minha miséria a vocês despertou

A verdade é que vivo com fome

Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador

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Se há um assalto a banco

Como não podem prender o poderoso chefão

Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão [...] 5

Na letra desta música discute-se a criminalização dos moradores dos morros e

favelas, que no Brasil - ao contrário das pessoas de maior poder aquisitivo - são presos

por pequenos delitos, muitas vezes injustamente. A criminalização dessa população é

um exercício de controle autoritário, que discrimina as populações afrodescendentes e

as camadas pobres da sociedade brasileira.

O cotidiano de repressão e criminalização nos morros e favelas é decorrente do

processo histórico brasileiro. O ranço racista e escravocrata originário de quase quatro

séculos de escravidão, se mantém até os nossos dias. Um ideário excludente foi

assimilado ideologicamente por parte da população brasileira, sobretudo pelas elites e

pelo aparato policial. Esse ideário é pautado em um discurso jurídico-científico,

legitimado por um “consenso social”, que possibilita “a hegemonia burguesa”, em

detrimento das classes subalternas do nosso país. “O crescimento da população

carcerária, por conseguinte, seria um indicativo da ampliação de categorias

criminalizadas sempre em nome da manutenção da ordem pública, um demonstrativo de

que agora a repressão se volta para os pequenos delitos, em sua maioria, voltados contra

o patrimônio”. (NEDER, 1995: 17-18)

Outra questão relacionada à criminalização das populações de baixa renda é a

seletividade do sistema penal brasileiro, ou “extermínio ideológico”, um discurso

justificador de práticas racistas e xenofóbicas de “limpeza social”, que no Brasil volta-

se para as populações negras, pobres e nordestinas, em sua grande maioria, moradores

de favelas e jovens do gênero masculino. Essas políticas penais excludentes

contribuíram para o aumento da população carcerária brasileira nas últimas décadas

(outros dois temas recorrentes na obra de Bezerra da Silva), formando as chamadas

5 Crioulo Doido e Bezerra da Silva (Comp.). Vítimas da Sociedade. LP “Malandro rife”. Lado 2, faixa 2.

São Paulo: RCA, 1985.

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“sociedades disciplinares”, visto que o sistema penal serve como um mecanismo de

controle social sobre “a massa indisciplinada”. (FOUCAULT, 1987: 54)

Mesmo sendo vitimas do controle social, os moradores dos morros não

aceitavam a dominação de forma passiva, ao contrário disso, resistiam à ordem social

estabelecida, ou se revoltando contra as leis e o poder dominante ou astuciosamente,

utilizando-se de táticas para burlar a ordem repressora da polícia e do Estado.

Personagem marcante na obra de Bezerra da Silva, a figura do malandro é apresentada

de forma diversa ao malandro típico da década de 1930 - alguém que era alheio ao

trabalho (MATOS, 1982) - ele é apresentado como um trabalhador de baixa renda, que

consegue resistir ao descaso do Estado, à opressão dos policiais e dos traficantes, sem

sucumbir ou virar bandido”. (SOUSA, 2009: 82)

O malandro descrito na obra de Bezerra da Silva representa uma parcela dos

moradores dos morros cariocas e da Baixada Fluminense, pessoas que lutam

diariamente para sobreviver, enfrentando dificuldades como a criminalização, o

desemprego, a miséria e a falta de assistência do Estado. A música “Malandragem dá

um tempo”, apresenta a tensão existente entre a repressão do Estado e a resistência

diária do cotidiano:

Refrão:

Vou apertar

Mas não vou acender agora

Vou apertar

Mas não vou acender agora

Eh! Se segura malandro

Prá fazer a cabeça tem hora

Se segura malandro

Prá fazer a cabeça tem hora...

Eh, você não está vendo

Que a boca tá assim de corujão

Tem dedo de seta adoidado

Todos eles afim

De entregar os irmãos

Malandragem dá um tempo

Deixa essa pá de sujeira ir embora

É por isso que eu vou apertar

Mas não vou acender agora... ihhhhh!

Refrão:

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É que o 281 foi afastado

O 16 e o 12 no lugar ficou

E uma muvuca de espertos demais

Deu mole e o bicho pegou

Quando os home da lei grampeia

O coro come a toda hora

É por isso que eu vou apertar

Mas não vou acender agora...ihhhhh

Refrão:

É que o 281 foi afastado

O 16 e o 12 no lugar ficou

E uma muvuca de espertos demais

Deu mole e o bicho pegou

Quando os home da lei grampeia

O Coro come a toda hora

É por isso que eu vou apertar

Mas não vou acender agora...ihhhhh!6

A interpretação desta composição permite perceber a tensão existente, entre o

malandro do morro que quer fazer uso da canabis sativa, - droga ilícita mais comumente

chamada de “maconha” (fazer a cabeça)- e a repressão do Estado, representado pela

polícia (os homens da lei) e pelos delatores (corujão, essa pá de sujeira) que moram no

morro e de alguma forma se identificam com os ideais e a repressão do Estado. A

repressão apresentada contrasta com as táticas e formas de resistência usadas pelos

moradores dos morros, que na música se fazem perceber pela perspicácia e pela

comunicação gestual entre os malandros, que “necessitam esperar” o momento certo

para fazer uso da droga.

A letra ressalta a ideia de que “para fazer a cabeça tem hora”, e a hora que seria

apropriada para consumir a maconha seria aquela em que não têm policiais e delatores

por perto. Essa forma de agir é também uma forma de resistir, algo essencial para a

proteção e para a sobrevivência dos malandros e dos demais usuários de maconha nos

morros. Essa forma de resistência, aparece na música com uma das poucas formas de

se defender contra uma polícia violenta e agressiva, (quando os homem da lei grampeia,

o coro come toda hora), e contra uma legislação criada para preservar o domínio

6 Popular P, Adezonilton e Moacir Bombeiro (Comp.) Malandragem dá um tempo. LP “Alô

Malandragem, Maloca o Flagrante”. Lado 1, faixa 1. São Paulo: RCA, 1986.

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econômico e politico das elites (É que o 281 foi afastado, o 16 e o 12 no lugar ficou, e

uma muvuca de esperto demais, deu mole e o bicho pegou).7

A partir do que a composição acima apresenta, pode-se concluir que existe uma

“tática de resistência cotidiana” dos moradores dos morros cariocas. Táticas que se

aproximam da concepção de “táticas e estratégias”, muito trabalhada nas ciências

humanas. Segundo essa concepção, os sujeitos ordinários (pessoas comuns) se movem

no campo das estratégias hegemônicas (campo do inimigo), e com as “astúcias” e o

“olhar panóptico” (observação de oportunidades) podem resistir à dominação imposta

pelos setores dominantes e hegemônicos, nas praticas cotidianas, chamadas de

“maneiras de fazer”:

“Chamo de “estratégia”, o calculo das relações de forças que se torna

possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável

de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um

próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestação de suas relações

com uma exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou

cientifica foi construída segundo esse modelo estratégico”.

“Ao contrário, pelo fato do seu não lugar, a tática depende do tempo,

vigiando para “captar no voo” possibilidades de ganho. O que ela ganha,

não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para

transformar em “ocasiões”. Sem cessar o fraco deve tirar partido de forças

que lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina

elementos heterogêneos .[...]

[...] mas a sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a

própria decisão, ato e maneira de aproveitar a “ocasião”.

Muitas praticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar

refeições etc.) são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma grande

7 Segundo a declaração do compositor Adezonilton, no documentário “Onde a Coruja Dorme” esse

trecho da música faz uma crítica a modificação do código penal 281 para os códigos penais 16 e 12 na

Constituição brasileira. O código 281 punia da mesma forma o usuário e o traficante de drogas, enquanto

o código 12 pune com prisão o traficante “que em sua maioria são membros das classes menos

favorecidas” e o código 16, privilegia os usuários, não os penalizando com a prisão - lembrando que uma

parcela dos usuários de drogas faz parte da elite, possuindo relações de amizade e poder aquisitivo para

pagar bons advogados que lhes possibilitam se livrar inclusive do registro policial, e ao contrário disso os

usuários das classes menos favorecidas são vitimas de torturas e agressões por parte das autoridades-

Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de

Janeiro, Brasil, 2006.

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parte das “maneiras de fazer”: vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os

poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), pequenos

sucessos, artes de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades de mão de

obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos

quanto bélicos”. (CERTEAU, 1994: 45)

As táticas se fazem nas práticas cotidianas, “no dia-dia” e também no campo

cultural, dos setores dominados. Essa abordagem é fundamental para a problematização

da resistência e do combate que era exercido nos morros cariocas, local onde os

moradores, sem possuir meios para expor suas queixas e problemas, os expunham, entre

outras formas, através dos sambas de protesto interpretados por artistas como Bezerra

da Silva.

As táticas de resistência cotidiana também eram visualizadas nos códigos

internos de convivência dos morros, constando em muitas músicas do repertório de

Bezerra da Silva. Esses códigos regulavam as formas de agir e a convivência entre os

moradores dos morros, contando entre eles os trabalhadores e mesmo os criminosos.

Parte dessas normas era imposta pelos criminosos, mas a maior parte foi construída

historicamente, através da experiência de vida dos habitantes dos morros, que

precisavam se autorregular e evitar a repressão e a violência impostas pela policia,

representante do Estado. Os códigos e normas de conduta dos morros aparecem no

repertório de Bezerra da Silva, geralmente na condenação da delação (caguetagem) e na

condenação dos delatores, como podemos observar na música “Língua de Tamanduá”:

Todo cagueta é safado e também tem

instinto de traíra, aí que ele arrumou

pro nosso irmãozinho, deu de bandeja

um bom malandro

Veja bem o que você fez

seu língua de tamanduá

tem gente pagando pelo que não fez

só porque o seu dedo não soube apontar

agora a malandragem já está sabendo

que você cagueta e vai lhe ripar

Você sabe bem

a lei que se aplica em qualquer caguete

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quando seu dedo entra numa anzol

ele leva rajada ou entra no cacete

É e você já sentiu que a rapaziada

não está lhe aceitando

porque sua língua nervosa

tudo o que vê sai falando

E agora canalha a barra para você pesou

o seu nome já entrou na lista

dos condenados e a hora chegou, olha aí

vai levar eco pra deixar de ser delator

Eu falei!

vai levar eco pra deixar de ser delator[...] 8

Podemos verificar nesta letra, que a prática da delação era internamente

condenável dentro dos morros e favelas, ela ameaçava a regulação interna dos morros,

expondo a sua população à repressão e à condenação das autoridades. Por isso a delação

(caguetagem) era combatida, com castigos severos por parte dos líderes das

organizações criminosas que se alojavam nos morros, mas também faziam parte do

inconsciente coletivo, que se perpetuou de geração para geração entre os moradores.

Bezerra da Silva se auto intitulava “porta-voz” dos oprimidos e marginalizados,

narrando em suas músicas os anseios e as experiências de uma parcela da sociedade

carioca, que se viam representados pelos compositores musicais que encontravam no

trabalho artístico de Bezerra da Silva a única forma de se expressar. Pode-se entender a

obra de Bezerra da Silva agindo de forma a reforçar a identidade comum dos moradores

dos morros cariocas e atuando como um elo que fazia o intercambio entre a população

dos morros e o restante da sociedade, como podemos ver nesta entrevista de Bezerra da

Silva no documentário “ Onde a Coruja Dorme”:

“O Morro não tem voz, ele é somente atacado, mas não se defende. Como o

morro não tem direito a defesa, só tem direito de ouvir: marginal, malandro,

safado, acabou. Como é que ele vai falar”?

8 Valmir e Tião Miranda (Comp.) Língua de Tamanduá. LP “Alô Malandragem, Maloca o Flagrante”.

Lado 2, faixa 2. São Paulo: RCA Vik, 1986.

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“Então o que é que faz os autores do Morro? Ele diz cantando, aquilo que

ele queria dizer falando, e eu sou o porta-voz.

E é o pessoal do Morro que escreve ou o pessoal da Baixada Fluminense.

Aquele que pega o trem quatro horas da manhã, cinco horas, aquele que

acorda três horas da manhã para trabalhar e ai bota um bocado de arroz e

feijão na marmita, aí vem e quando passa o lobisomem e toma” (...) 9

Conclui-se que a obra de Bezerra da Silva se insere historicamente, como uma

forma de representação do cotidiano vivenciado pelos moradores dos morros cariocas e

da Baixada Fluminense, nas décadas de 1980 e 1990. Sua obra age como uma forma de

crítica, denunciando os percalços e as dificuldades enfrentadas diariamente por essa

parcela da população. Entre esses percalços, algo que aparece latente em sua obra é a

criminalização de personagens – representações de cidadãos comuns - que muitas vezes

eram condenados injustamente ou arbitrariamente por um aparato policial e jurídico

voltado a consolidar a hegemonia das elites nacionais e marginalizar as camadas

populares da sociedade.

Contrariando a lógica hegemônica, as camadas populares não aceitaram a

criminalização de forma passiva, ao contrário disso, resistiram da forma que puderam.

Uma das formas possíveis de resistência para essa camada da população foi a arte e

dentro das artes mais difundidas nos morros cariocas nesse contexto, pode-se encontrar

a arte musical, com o samba ocupando um lugar privilegiado nas décadas pesquisadas.

Nas interpretações de sambistas como Bezerra da Silva, diversos compositores

encontraram um canal para expor suas representações do cotidiano, suas criticas e suas

formas de resistência, também encontradas nas táticas exercidas cotidianamente, nos

pequenos gestos, nas maneiras de fazer.

Referências Bibliográficas.

Livros:

9 Entrevista de Bezerra da Silva- Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.

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CERTEAU, Michael de. A Invenção do Cotidiano: 1 - Artes de fazer. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1994.

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