Better Leave Town - Um Vazio Que Preenche

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Relato da tour better live in sudamerica (novembro de 2013) da banda Better Leave Town. Lançado em junho de 2014.

Transcript of Better Leave Town - Um Vazio Que Preenche

Prefácio Better Leave (the) Country - um prefácio (ou quase isso...) - Minha empatia com a movida do sul da América do Sul vem de anos e ao longo deste tempo fui acumulando viagens, conhecendo novos amigos e fazendo novos contatos, que permitiram que eu pu-desse intermediar boa parte dos shows da turnê que o Better Leave Town fez em novembro do ano passado. Estava não só ajudando amigos de longa data, mas também “depositando” neles a realização de um son-ho, pois sempre quis fazer uma sequencia de shows pelo sul do Brasil, Uruguai e Argentina (e, quem sabe, Chile), mas dentro da minha realidade isso é algo bem complicado de se colocar em prática. Por sorte e com um bom planejamento os amigos do Better Leave Town conseguiram. E cruzaram fron-teiras levando suas letras e melodias aos ouvidos e corações de pessoas até então desconhecidas. Esse fanzine resume bem como foram esses 5 mil km quilômetros percorridos em 17 dias apertados dentro de um Clio preto. Queria ter ido junto para presenciar pessoalmente to-das as histórias contadas por esses quatro piás nas próximas páginas, mas fica para a próxima. Uma boa leitura!

Guilherme [email protected]

Intro

Não é questão de fazer as malas e sair como se não houvesse amanhã. A vida adulta é uma merda, tem um monte de coisas pra resolver, tudo vai fugindo do con-trole quando a gente menos espera e, a verdade é que não basta apenas desejar viver ideias ou son-hos que temos, você precisa ir e fazer. O primeiro passo pra isso é jogar pra cima suas priori-dades e reorganizá-las com foco no objetivo que se deseja. Esse é um relato sobre uma banda, sobre quatro pessoas que reorganizaram um pequeno tempo da vida pra viver outra coisa. Em novembro de 2013, o Better Leave Town fez aproximadamente 5 mil km de carro em pouco mais de duas semanas. Tocamos 11 shows e algumas coisas ficaram para a vida toda. Todo o texto foi escrito por mim, Vinícius. Isso significa que opiniões aqui expressas são de minha responsabilidade, inicialmente; pois as palavras tem asas. Dividi o texto por cidades que passamos por questão de organização, mas a montagem é ininterrupta. Há apenas um tópico que leva outro título que não o nome da cidade: impressões do Uruguai. A demora para o lançamento não foi proposital, apenas não tive controle do tem-po e do foco para conseguir finalizar antes. De toda forma, essas linhas não tem prazo de validade. E mesmo que fiquem restritas ao tempo histórico que lhes cabem, é o registro que nos situa no mundo. Espero que sintam um pouco do que expresso aqui. Boa leitura!

um vazio que preenche

relato da tour better live in sudamerica

Better Leave Town betterleavetown.tumblr.com http://betterleavetown.bandcamp.com/

[email protected] [email protected]

Edição e e distribuição por Projeto Chuva-imóvel http://www.projetochuvaimovel.com/ [email protected] [email protected]

Blumenau

Demorou algum tempo para tocarmos em Blumenau, cidade do João e do Xao, mas foi com um prazer imenso e com um ótimo público. Tocamos no DCE da Furb e, isso me faz pensar que espaços como esses devem sempre ser ocupados. É preciso muito pouco para que shows ou coisas aconteçam - um coletivo com vontade e organização pode fazer muito. Em Blumenau, o show foi armado na ultima hora e foi lindo. Fomos a única banda, tocamos bastante sons. As pessoas gostaram e faziam questão de deixar isso claro. Lembro de um menino que veio de Brusque para nos ver, mas chegou 5 minutos após tudo estar terminado. Muitas camisetas saíram por lá, o que agradecemos imensamente e parecia naquele momento que as 100 que levávamos na mala iriam embora rapidinho! Dormir na casa dos pais do João foi muito confortável, descansamos e comemos muito bem. O que não foi agradável foi descobrir às 7 da manhã que havíamos esquecido o documento do carro em Curitiba. Depois de discutir algumas possibilidades e de muitos telefonemas, voltamos até Joinville para pega-lo com um desconhecido que trouxe num ônibus de linha, graças a um amigo de Curitiba, Gabriel, que foi até a rodoviária para resolver. Prejuízo de tempo, de grana e ainda mais 200 km na conta do dia que já não era pouca coisa.

Canoas

Mas raciocinar com calma e enfrentar os problemas friamente para achar soluções sempre faz bem. Mesmo assim, a opção era de ganhar o maior tempo possível na estrada, o que significa pou-cas paradas, pé embaixo o tempo todo e almoço em movimento - feijão, farofa de dendê e batatin-has preparadas pela mãe do Xao, servido em copinhos de café e comido com espátulas de mexer açú-car. As obras no meio do caminho nos irritavam como se fossemos os bons cidadãos que voltam do trabalho para casa as 18 horas em cidades grandes soltando idiotices contra quem se vê pela frente - aquele grande problema de quem comprou um carro zero e agora pensa que o mundo está contra ele. Mas enfim, chegamos! Sem nenhuma folga, é verdade. Encontramos o Guilherme (xamorx, or-nitorrincos, cu sujo, etc), nosso booker mais atencioso e agilizado do universo, que nos guiou a frente de sua bike fixa até o pico. Foi o show mais corrido: depois de 20 minutos que encontramos o lugar, ja estávamos no palco e, 20 minutos depois que tocamos, estávamos no caminho rumo a Poa, pois tín-hamos dois shows nesse mesmo dia e com horários rígidos. Me senti um pouco mal com essa corre-ria, foi tipo um rolê rockstar ocupado, sem tempo para brincadeirinhas. Ao menos, teríamos outro em Canoas para compensar. Vale ressaltar que o estúdio Black Bird tem um som impecável; sinceramente não me lembro de ter tocado em algum lugar com a mesma sonoridade. Foi muito bom nesse sentido!

Porto Alegre

Carro carregado novamente, começando a nos deixar super práticos com a montagem/desmonta-gem do porta-malas e do teto. As coisas no Renault Clio se encaixam como pecinhas de tetris, no modo avançado. Os instrumentos têm seus lugares definidos depois de muito estudo apurado da situação e qual-quer mudança ocasiona um caos, onde tudo entra em colapso. Porém, sempre há desafios e então o Gui foi o primeiro caso desafiador: lá se foi mais uma pessoa dentro do carro e um pouquinho mais de tralhas.

Em Porto Alegre, muitos amigos e conhecidos. Ao meu ver, Campbell Trio e Hometown Road fo-ram escolhas perfeitas para tocar com a gente. Ótimas bandas. Depois do som, uma saga para achar algum local vegan ainda aberto para comermos. No fim, paramos numa lanchonete que tinha algumas opções e lá estávamos juntando muitas e muitas mesas, dominando o pico. Se há algo que adoro em estar em Por-to Alegre é essa coisa de como as pessoas te recebem e te deixam confortável. Confortáveis e prontos pra ir da melhor forma possível: No outro dia, além de proporcionar um rango delicioso com direito a repe-tir umas 8 vezes, nosso querido Alan Chaves nos deu inúmeros pacotes com “pão de mel” para seguir-mos viagem. Sério, 4 comilões comendo toda hora o tal pão e demorou 5 dias para conseguirmos acabar.

“Aduana Brasil-Uruguai”

fPelotas

Viagem tranquila, frentistas e atendentes nos perguntando, num clima de boa curiosidade, quem diabos somos nós e o que estamos fazendo nesse carro lotado com uma lona preta em cima. Em Pelo-tas, não conhecíamos pessoalmente as pessoas que organizaram o show, mas a surpresa foi ótima. Deu pra sentir de cara como estavam ansiosos pela nossa chegada e por levar a organização, não só do evento, mas de todo o itinerário a sério. Chegamos e já tínhamos um quarto e uma janta nos es-perando – não vou esquecer a “batata rústica de forno” tão cedo. Além disso, ali mesmo conhecemos o técnico de som que falava incessantemente sobre instrumentos, montagem de palco, etc. Sabem aque-les caras que devem estar desde os anos 90 ou 80 no rolê e sabem histórias cabulosas? Era esse cara, e a partir daquele momento de boa conversa, já estávamos íntimos para deixar o som mais tarde tri bom! Há um coletivo que começou a pouco tempo colocar Pelotas na rota de muitas bandas em tour, principalmente para quem tem planos de ir para o Uruguai, já que a cidade fica estrategica-mente localizada entre Porto Alegre e Montevidéu. Ficamos felizes desde o momento que consegui-mos fechar essa data em Pelotas, justamente pensando como funcionaria bem no itinerário geral. O show foi muito gostoso. Tínhamos planejado um set curto, mas como tínhamos tempo e a in-teração tava boa, acabamos tocando todas as nossas músicas e mais 4 covers. Aqui eu pensei como essa coisa de estar levemente cansado desaparece quando começamos a tocar e ver as pessoas responden-do; é uma sensação ótima. No dia seguinte, deu tempo de conhecer um pouco mais Pelotas, que é uma cidade muito antiga e que possui casarões lindos ao longo das ruas largas de paralelepípedos da região portuária, do tempo em que a cidade exportava charque para todo o Brasil e fez florescer uma classe lo-cal. Ainda se vê muitas charretes/carroças puxadas por cavalos nas ruas de Pelotas, contrastes bem visíveis.

Montevidéu

Na estrada para Montevidéu, paisagem dos pampas gaúchos pegando forte: tudo com ar muito solitário na imensidão dos campos, vacas atoladas em banhados e pouquíssimo movimento no asfalto. Os cenários mudam apenas quando se chega em Chuí, onde se tem aquela coisa toda de fronteira na Amé-rica Latina: “free shop” pesado, agitação imensa nas ruas, nenhuma regra no trânsito e pessoas deses-peradas tentando vender qualquer lixo, o que inclui o primeiro sujeito que se aproximou com várias facas grandes em nossa direção, instaurando-se um breve momento de dúvida se aquilo era um assalto ou ape-nas um vendedor entusiasmado. A segunda opção se sobrepôs, por sorte, e alguns metros dali adquirimos um aparelho GPS. Vale dizer que até eu, adepto de um certo romantismo idiota em torno de velhos ma-pas, me rendi a ele. Foi mesmo de extrema importância, principalmente nos trechos que viriam a seguir.

“Centro Cultural e porta para o porão”

Entrar no Uruguai e notar logo de cara uma moto com quatro pessoas sem capacetes e que a maioria dos carros nas estradas são os que eu via nas ruas nos idos anos 90 te faz pensar algumas coisas; mas depois voltamos à isso. Tocamos dois shows por lá: o primeiro foi em um bar chamado “El Canaveral”, na região da Playa Pascual – uma pequena viagem do centro de Montevidéu, onde nos estabelecemos na casa dos pais de Martin, num bairro muito agradável, cheio de árvores gigantes nas ruas e perto de parques com imensos gramados. O lugar do show parecia longe de qualquer coisa, quase que abandonado - a sensação na chegada era de que seria bem improvável que tocaríamos para mais de 10 pessoas. Mas o improvável se fazia presente e minhas considerações iniciais erradíssimas: lembro que tirei um cochilo dentro do carro e quando acordei tudo tinha muita vida. Dentro das questões improváveis, é preciso destacar que tocamos com bandas bem distintas do nosso som – só crust e trashcore. Uma delas da Argentina, um crust arrastado e pesado, chamada Ruínas, de rapazes que dormiram duas noites conosco e outra lindíssima e muito rápida - que fez um show sem dever nada à ‘WHN?’ nem ‘Discarga’ - dos ‘pibes’ que nos guiaram e nos recepcionaram muito bem por lá, o Septiembre Once. Quando tocamos, tive duas sensações opostas: parecia-me que as pessoas não tin-ham muita noção ou conhecimento de alguma banda com sonoridade parecida com a nossa, mas ao mesmo tempo estavam recepcionando bem e esperando o que estava por vir em cada parte das canções. Foi bacana a primeira experiência e quando tudo acabou fomos dormir na casa da Mica e do Loli, do Septiembre. Um colchão de casal para nós quatro, conchinha style com poucas horas de sono e muita pizza logo que acorda-mos. Num forno gigante feito de barro e um barril deitado, onde o calor circula ao entorno, a pizza do Loli é de deixar saudades. Vale destacar que a pizza mais tradicional do Uruguai, você pode pedir em porções em bares, por exemplo, é vegan já originalmente. Apenas uma massa e um molho de tomate caprichado colocado em cima em dois estágios: primeiro, vai um pouquinho pra secar junto com a massa e deixá-la crocante e já com sabor, e depois por cima, com menos tempo de forno para dar um aspecto mais molhado e cremoso. No dia seguinte, a gig foi no centro da cidade, perto das ramblas e do parque Rodó. O local era uma casa antiga, seguindo o estilo da maioria da cidade: tirando uma pequena parte modernizada para escritórios de gente rica, as construções antigas e prédios de até 5 andares dominam o visual e dão muita classe. O espaço para o show ficava num porão muito aconchegante, onde era acessado por uma porta de menos de um metro de altura com uma escadinha a seguir. Estávamos em um centro cultural, que pelo que entendi, foi iniciado por 3 gurias espanho-las há uns dois anos e agora outras pessoas também habitam no andar de cima, deixando o porão para várias ativi-dades: algumas relacionadas a artes marciais, outras com pinturas e oficinas de desenhos para crianças do bairro. Depois de descarregar todo os equipos de som, que trouxemos da casa da Mica e do Loli novamente em cima do carro, pasmem vocês – aqui está o segundo desafio vencedor do Clio - tivemos a apresentação da outra banda de alguns do Septiembre Once, o Avitácion 101, um crust mais arrastado, com muita presença e vocal da Mica. Os argentinos do Ruínas tocaram novamente e depois da nossa apresentação, muita gente se concen-trou para ver uma banda local experimental muito boa, chamada Hijo Agrio. Vale a pena ir atrás e escutá-la.

Impressões do Uruguai

Antes de irmos para a Argentina, ficamos mais dois dias num hostel em Montevidéu e, esse tempo proporcionou umas boas vivências para poder escrever impressões de lá. O tempo todo, brincamos que muita coisa no Brasil dos anos 90 lembra o Uruguai de hoje. Foi uma piada, dentre um bilhão que fazemos o dia todo, mas existe algumas coisas além: eu via os mesmos carros nas ruas de quando eu era criança, e esses que estão em grande parte nos ferro velhos brasileiros, estavam no Uruguai rodando felizes, reformados ou completamente ferrados. O país não teve historicamente um gigante investimento em montadoras de automóveis e nem teve um partido de esquerda recentemente baixando impostos na área, sem se preocupar com as consequências que as vendas – ou financiamentos endividados - trariam. O resultado disso é que lá pode-se ainda dizer o tempo exato - ou bem aproximado - de duração de uma viagem, pois não tem congestionamentos. Você que mora em um grande centro brasileiro consegue imaginar isso? É claro que existe uma classe média ou média alta que anda nas mesmas latarias cheias de cantos redondos de hoje em dia, as quais nem sei mais os nomes, porém a permanência de carros velhos nas ruas e estradas, viajando a 70 km/h, diz muito sobre um país. Esse “sonho médio” que vivemos aqui não atingiu o Uruguai com tanta intensidade, as pessoas não carregam com elas uma vontade absurda de enriquecer, de estar num ponto mais alto dessa suposta escala do sucesso. Por conta disso, as coisas caminham mais devagar, há muito menos apelo visual nas casas e nos comércios. As gramas crescem mais altas, as paredes descascam mais, as televisões são mais gordinhas, os sofás mais desbotados e os banhei-ros muito mais bregas. Nas publicidades, as coisas ainda andam com um pouco menos de mentiras e de frases desprezíveis – não tem aqueles joguinhos de palavras ou “tiradas sensacionais” que os nossos jovens queridos se orgulham tanto por aqui. As coisas simplesmente aparecem nas propagandas de um jeito mais simples. Vi muita propaganda que, de fato, falava sobre o produto em si, não sobre um universo paralelo. Se não existisse na internet a chance das pessoas serem o centro do universo, poderia jurar que eu estava em outra época.

Para quem não associa prédios cheios de vidros espelhados e reformas visuais sem funcionalidades com desenvolvimento, o Uruguai parece um lugar muito simpático. Mas a superfície sempre engana e então, vamos para questões mais polêmicas. Primeiro, a polícia, que também não anda em carros novos e não tem nem pintura específica: parece carro de firma, com um adesivo feio e mal colocado na lateral descrevendo quem são eles. Algumas pessoas nos disseram que são praticamente ausentes, há muito menos que no Estado brasileiro, mas há unidades criadas recentemente especializadas para repressão de ideias. Pessoas próximas dos amigxs de lá que nos receberam, foram sequestradas na porta de casa ou do trabalho, torturadas por dias, sem nenhum tipo de processo jurídico, nem esclarecimento de supostas “razões” para isso acontecer, além do fato de serem anarquistas. É uma situação bem séria e isso me levou a perguntar coisas sobre o atual presidente, Pepe Mujica.

O negócio é que aqui no Brasil, não só os meios da esquerda tradicional, como também vários outros, estão empenhados em mostrar notícias e atitudes que são, de fato, diferenciadas de qualquer presidente atual que se possa pensar – andar de fusca, não ter seguranças na maioria das aparições, roupas simples, não usa a casa oficial do governo para moradia e dá declarações que me parecem bem ameaçadoras à burguesia. Essa era, normalmente, minha introdução feita aos uruguaios para falar do assunto. As pessoas compreendiam bem e a conversa continua, mas de todo modo, estamos falando de um alto cargo representativo e, investigando a conjuntura política do país um pouco mais a fundo, o que acontece – ou o que entendi - é que uma figura assim atendia a algumas expectativas de classes específicas; nada tão diferente de qualquer lugar do mundo. Pessoas me perguntaram sobre a ascensão do Lula em 2002 e se eu não achava que o que eles vivem agora não era um fato repetido acontecendo na América do Sul. É claro que esse papo tem muitas especificidades, mas um dos pontos é o de que a propaganda investiga onde os frutos podem florescer e ataca aonde existem chances de ganhar: é criado um personagem para isso. Pensem comigo: um verdadeiro operário – ou muito próximo disso - não vai ser presidente e, um homem quase aos 80 anos, um “camponês de senso comum” como ele próprio se define, não é pretensioso a ponto de comandar um país. Mesmo que exista essa crença em partidos de esquerda que a conquista revolucionária se dá pela obtenção de poder constitucional e então, que venha os de baixo para fazer a “coisa certa”, é preciso ver como essa fórmula é recheada de desonestidade intelectual e política no meio do jogo até o sonhado poder. Eu não quero aqui ignorar a história política e de vida de cada um deles, mas re-forçar o papel que um personagem ganha para alcançar objetivos. Há grandes interesses por detrás e a minha impressão é que no Uruguai, a diferença está na intensidade em que se despreza ideologias nessa nova - ou nem tanto - tendência ditatorial mundial: “vai, pode falar o que quiser, não nos importamos com que verdades possam ser ditas, nos importamos que as coisas não saiam do controle, você fala o que quer enquanto estivermos lucrando”. O exemplo de repressão à anarquistas é justamente isso. Quando coisas são apontadas de modo radical contra o governo, aí não existe mais senhor simpático e humilde. Aliás, eu nunca vi a humildade ligada ao maior cargo político de uma nação – isso simplesmente não existe -, esse homem assina documentos que dizem respeito a milhões de pessoas. Na verdade, ser chamado de humilde ou de presidente mais pobre do mundo – entre outros títulos - parte não dele próprio, é claro, mas do circo que direciona os adjetivos a manter o personagem intacto. Aqui vale um parêntese: um amigo de lá me contou que viu o presidente perto da ocu-pação onde mora; aliás, vale destacar que é raríssimo um ato de desocupação acontecer por lá – ponto positivo. Pepe estava inaugurando um novo setor de uma fábrica vizinha. Perguntei se ele estava de fusca e se havia se-guranças. Ok, sobre o fusca foi piada, mas sobre seguranças, ele me explicou que há uma longa tradição de não existir nos presidentes por lá um aparato de segurança próximo todo o tempo: “é como as coisas são por aqui”.

O Uruguai é um território que está servindo à interesses de corporações mundiais e o papel de Mu-jica não é suficiente para que os rumos não sejam decididos por forças políticas externas, onde a dependência econômica e agrícola à vizinha Argentina pesa bastante. Mas, além disso, como bom político, Mujica é um hábil demagogo nos discursos, pois o que anda acontecendo não é uma dura resposta e oposição ao capital-ismo, é no máximo um meio termo: há continuidade e incentivo à atividades como monoculturas de soja e celulose nas mãos de grandes empresas ou latifundiários e há também reformulação de leis que dão direitos importantes aos cidadãos comuns, como o direito ao aborto. Quer dizer, não estou pintando o sujeito como monstro, inclusive a reação das pessoas quando eu perguntava o que achavam dele não chegavam nunca à isso; mas as respostas variavam no máximo entre “bom, não to vendo muita coisa boa acontecer não, viu?”, “Mais um aqui para nos distrair” ou “o Pepe é simpático, é um dos nossos, mas estamos todos ferrados aqui, você sabe”. Enfim, alguém lembra quando o Lula governava o Brasil, ou mais especificamente, quando foi eleito presidente e as manchetes pelo mundo afora eram absurdas e exageradas? Os jornais pintavam o Luiz Inácio Lula da Silva como ele era nos anos 80 e por quê? Fácil de responder, não? É mais interessante, tem mais audiência falar daquela figura e, ao mesmo tempo, ocultar e desviar as atenções das transformações e alianças que o PT e seu líder passaram para alcançar e assumir a presidência. Eu senti que com o Mujica, cada vez que falei do entusiasmo de muitos brasileiros, eles passavam pela mesma sensação quando eu pen-sava: “espera aí, esse Lula é um cagão, não vai fazer reforma agrária nenhuma, tá com o cu preso com os maiores empresários do país, tem uma porrada de ladrão que é amiguinho dele, porque tá to mundo apo-stando as fichas nele?”. Mas aí que tá: nós temos esperança e, esperança pode se tornar um buraco sem fundo.

No ano 2002, eu era um adolescente cheio de energia pixando “vote nulo” por aí e, assim me mantive diante da urna, mas silenciosamente eu estava torcendo muito para que “o operário” ganhasse. Naquele mo-mento, estava bem difícil não se entusiasmar em ver algo novo acontecendo no país, quer dizer, isso se você não fosse um rico desinformado, com medo de ter que doar um quarto da casa para um pobre morar, entre outras bobagens que eram faladas em tons sérios durante os meses de campanha eleitoral. É claro que já ex-istia gente com visões mais desenvolvidas nas críticas, mesmo naquele momento específico. Mas em resumo, a verdade é que tínhamos esperança. Eu não sou conhecedor profundo da história do Uruguai, posso estar falando algumas asneiras, mas ao que parece, há uma semelhança tremenda em apostar num personagem aqui e também lá. Não se ganha eleição democrática sem saber usar do jogo sujo, tanto aqui, como lá. Isso é regra. Mesmo com as minhas desconfianças políticas se tornando verdadei-ras no meio desses dias maravilhosos em Montevidéu, a esperança é a ultima que morre e então, entusiasmado, eu quis saber da maconha. Bem... Vamos com calma!

Primeiro de tudo, ouvi relatos que - antes da legalização - se você estivesse fumando na rua e alguém rec-lamasse do cheiro ou da simbologia de drogado envolvida, a Polícia poderia ir e te abordar. O que acontecia era eles te darem uns tapinhas amistosos nas costas e pediriam com educação para se dirigir até outra esquina, ou se quisesse mais calma, até sua casa. De fato, isso foi relatado por mais de uma pessoa, e mesmo assim, não sei se era esse o comportamento padrão exercido pela Polícia, mas em novembro de 2013, quando a lei ainda não valia e até o atendente do hostel fumava de boa no meio do expediente, acreditei que o clima de “tá tudo liberado” já tava valendo. Nesse sentido, da maneira como as coisas já são, a legalização serve como uma garantia de que não haverá mesmo truculência policial e, provavelmente, ajudará numa mudança de imaginário social sobre o uso – apesar que existem sérias duvidas, que falarei mais a frente. Junto à isso, vem uma notícia assustadora: além de pessoas conhecidas interessadas em se mudar para o país vizinho – em tom de brincadeira ou não – adivinhem quem também tem interesses reais nessa investida? Eu não pude acreditar em primeiro momento, mas o fato é que a Monsanto vai controlar o plantio da maconha no Uruguai. O combate ao tráfico e a aposta num produto de qualidade para competir significa trazer uma multinacional para testar sua nova semente transgênica. Mais do que isso, tá implícito que a pauta da liberação, que não deve ser entendido apenas como o possível uso de um produto qualquer, mas sim de uma nova perspectiva de alcance de direitos reclamados pela população, ou por parte dela organizada, conecta-se intimamente com um monopólio empresarial. É interessante estarmos atentos a isso, pois logicamente trata-se de um modelo que será empurrado para outros países também, pos-sivelmente num futuro próximo, o Brasil. A Monsanto vai usar o pequeno Uruguai como campo de testes e como exportador para regiões do mundo que já aprovaram o uso medicinal da maconha. Diz-se que as cam-panhas governamentais tiveram um “impulso” com o patrocínio de George Soros, um bilionário estadunidense acionista da Monsanto. (Soros também está por trás de ONGs que promovem a descriminalização da droga).

É necessário destacar um ponto em que está previsto que o cultivo pessoal também seja lib-erado. Isso quer dizer que os uruguaios poderão plantar em hortas caseiras, mas com uma quanti-dade controlada por pessoa. O medo é que as regras para o plantio possam ir se estreitando com o tem-po ou que o mercado “orgânico” eleve o preço absurdamente. Também existe um grande receio sobre cadastrar-se perante o governo para poder estar legalizado, além de carregar o estigma de maconheiro, o que isso poderá ocasionar num outro governo que venha no futuro? Mesmo assim, eu gostaria mui-to de poder dizer que estamos vivenciando um avanço, mas é difícil saber os rumos que as coisas podem tomar, onde claramente está em jogo um novo agente poderoso: se antes a polícia poderia lhe dizer para ir fumar na outra esquina, agora a Monsanto poderá te levar ao tribunal caso esteja fora da lei – a lei deles.

Eu me lembro agora de ter lido algumas manchetes que apareciam líderes mundiais ou personali-dades famosas elogiando o passo que o presidente Mujica estava dando em relação a descriminalização. Se parar pra pensar, fica quase óbvio, não? Os elogios são para esse novo controle sobre drogas do século XXI, já que as ideologias dominantes e as regras sobre o que é droga ou não, ou de um modo mais amplo, o que pode e o que não podemos consumir diante de leis associadas aos impostos, não são tão novos assim, já foram reguladas outras vezes por grandes empresas e governos. Se a Monsanto começa a garantir os royal-ties, a produção, o mercado, o sabor, a cor da fumaça e sei lá mais o que, nada injusto passar a mão na cabeça do presidente personagem que faz um bom papel para que isso aconteça. Assim são os elogios capitalistas.

Fico pensando que quanto mais pessoas vão a “Marcha da Maconha” por aqui, mais cresce os olhos de quem está a fim de monopolizar um grande negócio. A maconha não é apenas uma droga de pobres, ela está em toda a classe média brasileira. Com a regularização do mercado, é um negócio certo, garantido. As-sim como fica garantido mais uma vez, que dentro do capitalismo e com as porcarias de concessões e leis do Estado, a chamada “liberdade” fica restringida ao nosso poder de consumo e na nossa incapacidade de escol-has reais. Eu não quero supor uma generalização onde pessoas que lutam ou se interessam pela legalização da maconha não estão atentas ou são acríticas ao que relato; mas é fato que a grande maioria enxerga no horizonte apenas um produto embalado pronto a ser consumido, onde fica sublinhado a ideia de que as coi-sas são neutras, como se não tivessem um rastro atrás; o produto ali aparece num passe de mágica e se quiser comprar “eu vou correr atrás de dinheiro fazendo qualquer coisa porque é assim que deve ser”. É a mesma coisa com a tendência crescente do veganismo caminhando para conquistar prateleiras especiais em super-mercados, quando pensávamos que ele seria uma força para mudar as relações de trabalho, de consumo e até de distribuição de terras, mas… tirando alguns belos esforços, não. Não temos assistido a mudanças reais e eu acredito que cada vez que aplaudimos a chegada de um novo produto até nós, nos moldes como funciona a economia dominante hoje - a lógica restrita de produção de mercadorias na busca de lucro máximo, usando a terra e a natureza como medidas de produtividade incessante, onde não produzimos para o bem comum, apenas mercadorias com valores de trocas regulado por uma economia global na mão de poucos - reforçamos a ideia de que não queremos mais nada, não pensamos em outras formas de se viver, não nos importamos com quem é miserável para sustentar esse esquema todo e louvamos os que tomam as decisões por nós. Se está de acordo com isso, vá em frente e tire o chapéu ao Senhor Mujica, mas tenha em mente que não tem muito de inovador, você apenas concorda que o mundo continue uma merda, mas representado em novos trajes.

Na democracia brasileira, temos uma ex guerrilheira torturada por militares na presidência, que faz vista grossa para as torturas que hoje acontecem nos presídios, faz vista grossa às brutais repressões policiais nas mortes diárias em favelas, faz o papel da mídia conservadora diante dos protestos, faz um discurso sempre mentiroso, amarrado, chato, sem graça. Dilma sempre parece desconfortável, antipática, o sorriso é amarelo e o semblante é autoritário. O personagem dela não empolga ninguém, ela parece alguma professora/diretora que te encheu muito o saco no colégio, não? Mas Dilma tem um partido, hoje, extremamente rico e influente, o qual realmente trabalha e estuda para ter um plano bem traçado para conquistar vitórias nas urnas e a perpetuação no poder. Há muitas estratégias para comandar a democracia e, em resumo, não há inocência nos jogos políti-cos - todo cidadão sabe disso - mas quando eu cito que as pessoas tem esperanças em coisas novas, tenho em vista um imaginário social, de que figuras públicas expondo, com aparente sinceridade e simpatia, coisas próxi-mas do que pensamos, nos remete a um senso de pertencimento, incomum ao dia a dia. Se um amigo concorda contigo, ótimo! Mas quem não acha interessante, para dizer o mínimo, notar ideias que são similares a de um presidente? As campanhas se baseiam nisso! O que sai da boca dos candidatos são discursos agarrados em es-tatísticas e público-alvo. De todo modo, assistir o Mujica falar, faz muita gente abrir um sorriso; e com razão, pois estamos imersos numa quantidade absurda de asneiras que é quase automático pensar que algo bom está por vir. A direita também tem seus caminhos para agradar, criar personagens, conquistar vo-tos, audiências, e então, nas redes sociais - ou seja, nos meios que concentram e se desen-volvem grande parte das discussões hoje – muitas vezes precisamos parar de pensar emavanços reais para responder falas de pessoas que argumen-tam a favor de ditadura militar ou hipocrisias e merdas do tipo Jair Bolsonaro. Quer dizer, é simplesmente horrível o nível dominante das discussões, (você já leu comentários no youtube em vídeos sobre direito ao aborto, por exemplo? E você sabia que existem pessoas que são assala-riadas por Igrejas Evangélicas para encher de comentários conservadores qualquer artigo desse tipo na in-ternet?) mas como vivemos numa guerra constante de informação e temos pouco tempo para “ganhar”, - digo, quando caímos na preocupação de não deixar as coisas em ambientes de redes sociais passarem bati-das - vale apelar para alguém importante dizendo algo sensato, mesmo que não analisemos com mais pro-fundidade. Ainda, a tal “guerra da informação” é algo que nem sempre importa, quando tem-se o para-digma sobre o que fazer com essa informação. Por exemplo, muitas pessoas sabem de problemas sérios que a realização da Copa do Mundo vem trazendo ao Brasil, existe muita informação de qualidade disponível, as pessoas concordam que não deveria ser assim que se faz futebol. Mas o que a grande maioria vai faz-er? Ser apenas espectadora. É claro que ser espectador e não ser participante ativo dos processos é apenas como as coisas já são desenhadas para ser: “fechar os olhos vai te deixar confortável”, diz as entrelinhas. O segundo motivo, talvez mais complexo, é que há uma prisão construída entorno das possibilidades de ação. Isso significa que não é fácil se organizar ao redor de um problema e fazer algo objetivo para resolvê-lo. As soluções necessitam de ações e práticas que não são ensinadas pela família ou pela escola. Além disso, onde arranjar tempo para tal, se precisamos trabalhar para comprar mercadorias que nos dão nossa dose de liber-dade? E assim fecha-se o círculo quando não enxergamos além do que está na superfície. É preciso abrir hori-zontes para se pensar em mudanças que afetem o centro da questão. Obviamente que não há linhas suficientes para tratar com dignidade o que significam mudanças concretas, mas eu sei que apostar numa figura presiden-cial não faz parte de luta alguma. Se alguma vez fez parte, tenho certeza que tinha grupos populares organi-zados na retaguarda fazendo todo o serviço impulsionador. Temos que ter cuidado para não criarmos ídolos.

Argentina

Um trecho longo de viagem. Decidimos não atravessar pela balsa que liga Colonia del Sacramento até Buenos Aires, pois os custos para ir de carro não compensavam - se você estiver viajando só com mo-chila, compensa muito. A segunda opção foi atravessar a fronteira pela cidade de Frai Bentos. Isso nos deixou o dia todo na estrada, o que torna as coisas cansativas, mas a paisagem e as conversas sempre com-pensam. Muitos nos perguntaram porque não fizemos isso tudo de avião. A resposta é justamente a coisa de “estar na estrada”, tendo uma maior autonomia com o automóvel, parando quando dá vontade, olhando tudo mais de perto, criando, mesmo que inconscientemente, um mapa em nossas cabeças do camin-ho feito. Além disso, rola uma coisa de “missão cumprida” quando alcançamos a próxima cidade. Acho que esse salto das sensações de avião para carro é do mesmo tamanho que a de carro para viajar de bike. Chegamos a noite em Buenos Aires e, depois de passar vendo cidadezinhas pequenas pelo caminho, ir direto aos lados de Puerto Madero, te coloca em outra dimensão. Puerto Ma-dero é a parte mais moderna e nobre da cidade - quando moderno significa muitas luzes, arranha-céus, avenidas largas, propagandas de multinacionais, etc. Mesmo com a economia argentina quebrada no começo dos anos zero – adoro essa expressão -, a região passou por um grande investimento de res-tauração da área, que se encontrava degenerada, onde um porto tornou-se obsoleto nos idos 1930. Depois de várias tentativas de lugares para dormir, acabamos ficando a primeira noite num Hostel, dentro de um quarto sem janelas e onde o café da manhã era abastecido apenas com água quente – quem acordasse antes podia sentir a cafeína, o resto foda-se. Saímos pela cidade a fim de trocarmos moeda e logo demos de cara com um carioca muito doido anunciando algum trambique que agora não lembro. Troca-mos ideia e ele nos levou até o contato dele para cambiar a grana no meio de muitas histórias esquisitas so-bre o porquê dele estar na Argentina. Basicamente, ele nos contou que usou drogas “das boas” e pesadas a vida toda e agora tá usando o sistema de saúde argentino, pois anda muito mais rápido que o brasileiro. O cara sabia todos os rolês putaria/drogas que rola em Buenos Aires, mas estava lá pela saúde – ok. Logo encontramos quase sem querer um restaurante vegetariano finíssimo de taiwaneses: frituras e mais frit-uras, com um preço muito barato, algo como 12 reais o kilo. Sofri bullying dos rapazes porque o meu pra-to foi o único que pesou abaixo de um kilo – depois eles perceberam a “grande” vantagem que tiveram. Dormimos nesse dia na casa do Hernan, dos Beautiful Sundays, e da Eugenia, sua esposa. Os dois são o tipo de pessoa que dá saudades cada vez que lembro da Argentina. Muito atenciosxs e queridxs. Uma noite bem tranquila, vendo discos e comendo pratos de saladas deliciosas no pequeno e simpático apartamento deles.

Monte Grande

Pela manhã, seguimos até uma cidade próxima, Monte Grande. O caminho até lá já não se parece com as organizadas vias que chegam até Buenos Aires, percebe-se ali um pouquinho do cenário das per-iferias de Bs As. Nosso show e nossa hospedagem foi no centro cultural Metamorphosis, uma casa grande numa via movimentada, onde rola diversas atividades, como aulas de instrumentos musicais para crianças – rolando no momento que chegamos - e abriga shows de hardcore/punk. Cristian e Lolo, nossos “Herma-nos de la mente furiosa” foram os responsáveis por nos acolher por lá. À noite, as pessoas foram chegan-do para o show e percebemos uma grande movimentação de crust punx passando pelo local e dirigindo-se até a outra esquina. Para nossa surpresa, estava rolando alguma gig cabrera por lá. Fui com o João na ma-landragem checar e vimos aquele cenário de muita galera bebendo na calçada e algumas pessoas nos estra-nhando. Quando voltamos, Cristian nos alertava que temos muita cara de gringo pra ir até aquela esquina barra pesada – ainda se o Xao estivesse junto, um sujeito adaptado à praticamente todas as características mundiais de aparências dos seres humanos, a coisa ficaria mais suave. Esse ponto foi lembrado durante toda parte da viagem em que pensávamos que poderíamos estar sendo observados como meros gringos panacas. Nosso show começou tarde e estava um pouco menos movimentado que o show da esqui-na barra pesada. Mas foi ótimo. Os Hermanos de La Mente Furiosa tocaram antes e foi bacana vê-los ao vivo. Em seguida, fizemos um set que foi muito bem recebido. Uma primeira experiência bem posi-tiva. Pessoalmente, não consigo esquecer o cubo de baixo lá do espaço, feito artesanalmente com peças de primeira qualidade, proporcionava timbres lindos e difíceis de igualar com modelos fabricados por aí. Ninguém mora no centro cultural e, então a estrutura da cozinha é limitada e o chuveiro é inexistente. De-pois de estrada, andanças e suor no palco, logo vem um desejo lá do fundo, que vai ganhando espaço rapidamente, o de tomar uma boa ducha. Nesse caso, usamos a tática infálivel de pensar que “com o tempo resolve” e seguir adiante.

La plata

Na outra noite, estava tudo resolvido na questão do banho. Já estávamos em La Plata, uma cidade muito bonita, com ruas espaçosas e bem organizadas, uma catedral antiga mais bonita que Notre Dame e com muitas uni-versidades. Viajamos junto com o Cristian, e fomos recepcionados na casa de Barbara e Sebastian. Eles tem uma distro, chamada Comunidad Del Fuego Discos, onde desenham todas as artes e fazem também camisetas, ade-sivos, etc. Alguns posters vieram parar na parede do quarto onde lhes escrevo; são lindos! Foi aí que conhecemos o pessoal da banda Saturday Nighters, de Bahia Blanca, sul da Argentina – com certeza uma das bandas mais legais que tocamos juntos por lá. Elxs também viajaram muito para chegar até La Plata e estavam num carro igual o nosso, com 5 pessoas dentro. Ficamos conversando, bebendo e relaxando na agradável sacada/laje até o horário do show. Tocamos em um espaço chamado “Casa Flotante”, uma casa grande, de dois andares, onde mo-ram algumas pessoas e onde rolam atividades, oficinas e muitas gigs. O clima tava ótimo, as pessoas con-versando muito e a comida vegan que nos foi oferecida estava demais – sanduíches gigantes com vários in-gredientes previamente cortados e separados que eram montados na hora de acordo com a vontade do freguês – para não ter duvidas, pedi que colocassem tudo que tinha. Na casa, a banda tocava numa sala grande com algumas poltronas espalhadas. Essa sala tinha uma parede quase inteira de vidro e então mui-ta gente ficava para fora, no pátio, e podia sacar o som de lá. Os equipamentos estavam finíssimos, o som saiu muito redondo e nesse dia quem se apaixonou pelo cubo usado – um sovtek -, foi o João e o Xao. Voltaríamos até Monte Grande para dormir no Metamorphosis novamente. Essa hora e meia de viagem foram de longe a mais preocupante de toda a tour, pelo menos para mim. A festa termi-nou quase as 4 da manhã e, mais uma vez, o cansaço era evidente em todos nós. Me dispus a diri-gir na volta, mas o sono dominava de um jeito brutal. Em menos de 10 minutos na estrada, todo mun-do já tava cochilando e logo depois meus olhos não respondiam à racionalidade de se manter alerta na direção. Muitas artimanhas utilizadas e amanhecendo o dia, estávamos de volta dormindo no chão.

Rafael Calzada

Tudo pronto para a próxima gig, também em uma casa. Dessa vez, na casa do Gastón, baterista do Beautiful Sundays. O cenário é o fundo de um quintal, com muita grama, piscina com água suja, árvores, cachorro no meio da dança e muita gente fazendo força pra montar toda a estrutura. Era um bairro resi-dencial na cidade periférica de Buenos Aires, Rafael Calzada, mas parece que os vizinhos já sabem que de vez em quando, barulhos acontecem e tá tudo certo. Provável que este tenha sido o show com maior público da tour, umas 250 pessoas. Entre as bandas, uma de meninos e meninas bem jovens, chamada Para Todxs Todo, fazendo um metalcore e cantando sobre libertação animal com muito sangue nos olhos. Vendo eles tocar, fiquei saudosista e me arrependendo de não ter visto o Nueva Etica no Brasil em 2004. Para fechar a noite, nossos amigos, os Beautiful Sundays: um show divertido, com distribuição de flores, confetes pro ar, muita gente cantando junto, se emocionando e inevitavelmente, fazendo lembrar de Boom Boom Kid! Rolou uma after e um jantar na casa do Fernando, guitarrista do Beautiful, e de sua noiva, Natalia. Muitos papos sobre política e perguntas sobre o governo brasileiro. O por-tuñol nessas alturas da viagem já estava rendendo muito mais e embalamos madruga-da a dentro. No outro dia cedo, voltamos para a capital fazer nosso ultimo show na Argentina.

Buenos Aires

Era uma segunda feira, feriado na Argentina. Tocamos em um show organizado pelo pessoal do selo Varsity. O local era no centro de Bs As, uma região próxima a avenida 9 de julho, em um Pub com um subsolo escuro, um palco com equipamentos da casa e um técnico de som muito profissional sem ser um pé no saco; ou seja, o som ficou ótimo lá embaixo. Eu sei que eu to falando muito sobre equipamen-tos e como o som soa em cada lugar, mas essa é a minha primeira banda que essas conversas se alongam um pouco mais, vocês sabem, então esse tipo de coisa fez parte das minhas anotações e lembranças de cada pico. O show teve quatro bandas e foi fechado pela banda Justify, do xFedex – que nos recebeu e nos colo-cou no show - um hardcore old school straight edge com muitos riffs fortes e energia, lindo de ver ao vivo. Esse dia me fez refletir e lembrar algumas questões que fazem parte de contradições que carrego/amos e que, sinceramente, não sei exatamente como conviver com isso – e mesmo que alguém aponte o dedo e fale uma solução [radical] concreta, não vai atingir a dimensão e a profundidade que isso merece. Vou tentar expor brevemente: convidei uma amiga (e vou me referir no feminino por questão pessoal com a pessoa, mesmo que ela entenda que “ser feminino” é também algo a ser questionado) de Buenos Aires para ir no show, ela é uma pessoa super ativa culturalmente em questões da quebra do papel de gênero na sociedade: já lançou livros, responde entrevistas sobre o tema a todo momento, produz muitos materiais artísticos, é lutadora de artes marciais e sabe ensinar a se defender fisicamente contra ataques e assédios de homens, como nunca vi igual. No convite, eu avisei que era um show de hardcore “tradicional”, mas se ainda quisesse me ver, eu es-taria lá. Quando tive contato com ela em outras ocasiões, estávamos em ambientes diferentes e que envolviam atividades e discussões focadas ou, ao menos, envolvendo o tema que ela é ativa. Fiz o porém no meio do convite de modo automático, sem pensar direito, como que considerando que ela deveria saber que, dessa vez, não nos veremos num ambiente que suporta integralmente as posições de minorias, sobretudo no que diz respeito à escolhas pessoais – e políticas – relacionadas a sexualidade, gênero e visual envolvido ni-sso tudo. E isso, infelizmente é um fato. Poderia ser diferente - e há por vezes esforço para isso - mas não é. Ela foi até o show e ainda convidou outra compa que chegou mostrando stencils de mensagens queers que tinha feito pela cidade. Ficamos o tempo todo juntxs, conversamos e rimos de bastante coisas. Ela com-prou os cds do Better Leave Town depois de tocarmos e seguiu seu rumo. Eu fiquei ali pensando que os anos trazem visões ampliadas sobre a representatividade das posturas no hardcore, e existem questionamentos que vão de encontro à imagem e às atitudes que circulam, quando há celebração de um estereótipo no meio, – estou falando da maioria branca, homem cis, classe média - mas eu não abro mão de apreciar o som.

Quero dizer, com isso tudo passando na minha cabeça naquele momento, eu dei uma pausa, vi a ultima banda e amei escutá-la. Procuro saber onde estou pisando e expus isso no dia: sou atrelado emocionalmente em algo que escuto e vivo, de certa forma, desde os 14 anos e que, não deixo apenas ir embora. Mas seria justamente porque faço parte do que é majoritário no meio? É difícil responder brevemente e aqui entram contradições e resoluções que talvez nunca serão resolvidas. Não estou pintando uma imagem completamente podre da chamada “cena”, ainda mais porque nunca me mostraram outra que fosse livre de preconceitos e ações escrotas, mas isso não anula o fato de que não importa onde estejamos, é preciso desenvolver e lu-tar por respeito e horizontalidade – a política está em tudo (mesmo que você não queira) e é prática diária. Mas é preciso reconhecer que estar no meio musical é uma coisa e, estar envolvido em questões que não são apenas o divertimento em cima do palco é outra: “Fazer parte” de algo que – talvez – carregue elemen-tos libertários, não significa que está tudo já resolvido. Primeiro porque nada nunca tá “resolvido”, o mundo não é uma equação matemática e, depois porque são as práticas que dizem o que somos, não vestimentas , sejam elas de qualquer espécie. Na verdade, falando sobre a minha indagação em específico, a educação e o espírito canalha do capitalismo e do patriarcado se fazem presentes em toda a parte e, não é novidade que também nesse meio. Porém, tenho a sensação de que estamos perdendo ainda mais território ou, es-tamos deixando ser sugados, numa espécie de afrouxamento do que o punk representaria. Tem a coisa da tecnologia permitindo um acesso fácil e rápido, que às vezes pode significar perda da essências; a tecnologia que permite também maior exposição tanto de opressores como de oprimidos, de um modo como a gente nunca viu e, talvez o que sempre aconteceu está agora mais em nossa cara; tem a individualidade exacer-bada sendo incentivada; tem o dinheiro comprando ideias; tem essa conexão cada vez mais próxima com um sonho esquisito do mainstream - que já não é tão mainstream, enfim … tem muitas distrações da parte criativa e pensante. E assim o barco vai - reflexões sobre punk nunca terminam - mas haja força nos remos.

Canoas

Um caminho longuíssimo de Buenos Aires até voltar a Porto Alegre e fazer nosso ultimo show em Canoas. As estradas argentinas, com poucas curvas e praticamente planas, deixam a velocidade do carro constante e rende bem cada trecho, mas mesmo assim, já eram demasiadas horas e paramos para relaxar e dormir tranquilamente num hotel em Uruguaiana. Essa cidade tem um aspecto muito calmo e simpático no pequeno centro e praças que vimos; nem parece fronteira. Em poucas horas, percebi que em Uruguaiana se fala o mesmo sotaque do melhor vídeo da internet, que vocês já deveriam ter visto: Como tirar anel do dedo. Amanhecendo o dia, um café meia boca no hotel e mais caminho pela frente: agora com estrada simples, trechos sem acostamentos e dificuldades enormes em encontrar restaurantes que não tivesse carne no feijão. Quando entramos no Brasil, além do João beijar o chão da duana num surto nacionalista misturado com promessas doidas do momento, pensamos que deveríamos comer um belo feijão; mas esse interior distante do Rio Grande do Sul é um mundo a parte sobre a simples opção de não ter carne em tudo o que se cozinha. Tanto homens como mulheres que nos atendiam, ficavam surpresos de um modo grosseiro ao saber que não queríamos carne e, pior, em tom desafiador falavam que não íamos almoçar um feijão sem carne nas redondezas de sei la quantos quilômetros. De fato, aos poucos fomos sendo convencidos que estavam certos, até acharmos um pequeno posto que fazia PF personalizado, com os preços de cada porção colocado numa cartolina branca e desenhado com canet-inha de ponta grossa através daquelas fôrmas de stencil vermelhas, muito populares há tempos atrás. Humor e alegria recuperada pós-almoço, principalmente após passarmos pela cidade de Alegrete; óbvio.

Em canoas, no mesmo lugar do primeiro show, tocamos junto com a banda Suerte, que levou um ótimo público pro espaço e fizeram uma apresentação legal de se ver, cheio de gente cantando junto com muito vigor. Era nosso ultimo show do rolê e com isso veio a impressão, que me pareceu conjunta, de que nen-hum cansaço nos impediria agora em cima do palco. Assim foi. Com um set bem mais longo que a primeira vez em Canoas e agora também com tempo para longas e boas com amigxs antes de seguirmos até a Mi-nor House para dormir e deixar lembrancinhas/tranqueiras antigas com nosso anfitrião oficial da cidade. O longo caminho pela frente foi com a cabeça toda em nossos lares em Curitiba. Difícil disfarçar a ansiedade quando a mente já está muitos quilômetros a frente. Eu, de certo modo, já sentia saudade de es-tar em outro lugar, fazendo as mesmas coisas. Na época, eu morava numa casa que tinha um projeto, de micro políticas e práticas libertárias, também de moradia coletiva. Durante o ano todo que estive lá, eu não conseguia chamar especificamente de “minha casa” e, isso ajuda quando você quer ou precisa ser despren-dido. Mas mesmo com isso vindo à tona, reinava o sentimento de voltar e se estabelecer por um tempo, sentar numa cadeira, esticar as pernas, contar as experiências, escrever, pensar e programar as próximas. A sensação de chegada também é boa. O sorriso sai fácil, o corpo pede calma e a mente relaxa. Ainda dentro do carro, lamentando engarrafamentos, o Bino diz com toda a sin-ceridade que lhe cabe: “Piazada, eu amo vocês, mas vamos deixar pra nos vermos só daqui uns dias, um mês, sei la. Pode ser?”. Você precisa manter a coisa verdadeira, não? Assim é!