Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de...

4
Da neurologia à psicologia Paulo Henrique Ferreira Bertolucci Não se pode mais, como em outros tempos, dizer que a literatura brasileira na área de Ciências da Saúde é inexistente. De fato, um crescente número de publicações de boa qualidade tem sido lançado. Ainda assim, para algumas áreas os textos são escassos. Este livro aborda um assunto que, sem dúvida, tornou-se uma prioridade em saúde e o faz de um modo diferente do habitual, por um lado por tratar-se de uma cooperação bi-nacional, por outro, por reunir uma equipe multidisciplinar. A cooperação com profissionais de outros países pode trazer uma outra visão para diferentes pro- blemas. A multi-disciplinaridade mostra dife- rentes vertentes para o mesmo problema e, não por acaso, tem sido tão enfatizada na área da saúde. A dependência a drogas tornou-se, nas últimas três décadas do século passado, uma verdadeira epidemia. Drogas mais tradicionais, como a cocaína, tornaram-se muito mais aces- síveis, outras, como a maconha, deixaram seus nichos habituais e difundiram-se, e observou- se o aparecimento de novas drogas, com maior po- der de adição e destruição, como o crack. Se durante um período dos anos 60 surgiu uma contra-cultura da droga, com seu suposto encanto promovido em canções, livros e filmes, o período posterior mostrou uma transformação radical – o uso da droga deixou de ser uma Prefácio forma de protesto e resistência à sociedade e passou a ser um hábito difundido em círculos crescentes. Tão rápido foi este processo que, no final do século, estava claro que nenhum lugar estava a salvo – a droga pode ser encontrada em qualquer escola, ambiente de trabalho, até entre as forças da lei. O aumento do consumo fez com que a atividade de tráfico movimentas- se quantias crescentes de dinheiro, gerando uma fonte de corrupção. Hoje se pode falar dos aspectos sociais e políticos da dependência e analisá-la sob dife- rentes aspectos culturais, mas, o ponto funda- mental da questão continua sendo o mesmo, a figura do droga-adicto. Por que, em diferentes culturas, com diferentes substâncias se repete o mesmo padrão, onde o consumo da droga passa a ser o aspecto central da vida de alguém? Muitos aspectos da dependência a droga ainda não estão esclarecidos, mas, mesmo quando a resposta ainda não foi encontrada, as perguntas podem ser melhor focalizadas, como se verá em textos deste livro. A visão do dependente mu- dou em consonância com a mudança da visão que a sociedade tem de si própria. Do ponto inicial de “vício” ou “fraqueza de caráter” progrediu- se para a percepção da importância de fatores psicológicos na droga-adição, perfis de adição sendo identificados e hipóteses sobre

Transcript of Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de...

Page 1: Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de Drogas

Da neurologia àpsicologia

Paulo Henrique Ferreira

Bertolucci

Não se pode mais, como em outros tempos,dizer que a literatura brasileira na área deCiências da Saúde é inexistente. De fato, umcrescente número de publicações de boaqualidade tem sido lançado. Ainda assim, paraalgumas áreas os textos são escassos. Este livroaborda um assunto que, sem dúvida, tornou-seuma prioridade em saúde e o faz de um mododiferente do habitual, por um lado por tratar-sede uma cooperação bi-nacional, por outro, porreunir uma equipe multidisciplinar. Acooperação com profissionais de outros paísespode trazer uma outra visão para diferentes pro-blemas. A multi-disciplinaridade mostra dife-rentes vertentes para o mesmo problema e, nãopor acaso, tem sido tão enfatizada na área dasaúde. A dependência a drogas tornou-se, nasúltimas três décadas do século passado, umaverdadeira epidemia. Drogas mais tradicionais,como a cocaína, tornaram-se muito mais aces-síveis, outras, como a maconha, deixaram seusnichos habituais e difundiram-se, e observou- seo aparecimento de novas drogas, com maior po-der de adição e destruição, como o crack. Sedurante um período dos anos 60 surgiu umacontra-cultura da droga, com seu supostoencanto promovido em canções, livros e filmes,o período posterior mostrou uma transformaçãoradical – o uso da droga deixou de ser uma

Prefácio

forma de protesto e resistência à sociedade epassou a ser um hábito difundido em círculoscrescentes. Tão rápido foi este processo que, nofinal do século, estava claro que nenhum lugarestava a salvo – a droga pode ser encontradaem qualquer escola, ambiente de trabalho, atéentre as forças da lei. O aumento do consumofez com que a atividade de tráfico movimentas-se quantias crescentes de dinheiro, gerando umafonte de corrupção.

Hoje se pode falar dos aspectos sociais epolíticos da dependência e analisá-la sob dife-rentes aspectos culturais, mas, o ponto funda-mental da questão continua sendo o mesmo, afigura do droga-adicto. Por que, em diferentesculturas, com diferentes substâncias se repete omesmo padrão, onde o consumo da droga passaa ser o aspecto central da vida de alguém?Muitos aspectos da dependência a droga aindanão estão esclarecidos, mas, mesmo quando aresposta ainda não foi encontrada, as perguntaspodem ser melhor focalizadas, como se verá emtextos deste livro. A visão do dependente mu-dou em consonância com a mudança da visãoque a sociedade tem de si própria. Do pontoinicial de “vício” ou “fraqueza de caráter”progrediu- se para a percepção da importânciade fatores psicológicos na droga-adição, perfisde adição sendo identificados e hipóteses sobre

Page 2: Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de Drogas

Paulo Henrique Ferreira Bertolucci14

a origem do distúrbio sendo apresentadas. Osprogressos no campo das Neurociências permi-tiram uma outra abordagem. Sem deixar de ladoos aspectos psíquicos, passou-se a investigar asbases biológicas da droga-adição.

A investigação aqui pode ser em diferentesníveis. A primeira pergunta poderia ser: existeuma predisposição biológica à droga-adição?Em outra época esta indagação seria descabida,mas não hoje, quando aspectos genéticos dedistúrbios mentais, como a esquizofrenia, sãocaracterizados com mais precisão. Enquanto emrelação à genética ainda não existem resultadosconsistentes, pelo menos para as drogas ditasilícitas, resultados interessantes podem serobservados em outras direções. Para umaprimeira pergunta, se existe um padrão comumaos adictos, as investigações mostraram quesim, independente da modalidade de adição, porexemplo entre apostadores compulsivos, domesmo modo que entre consumidores regularesde cocaína, existe um padrão de alteração daatenção. O fato dessas alterações serem encon-tradas em formas de adição onde o comporta-mento aditivo dificilmente levaria a lesão cere-bral, ou seja, está excluída a possibilidade de osresultados serem decorrentes da própria subs-tância de adição, sugere fortemente uma basebiológica comum a estes comportamentos. Re-força esta idéia a verificação, em adictos semalterações em avaliação neuropsicológicaformal, de dificuldade em planejamento a longoprazo, ou de avaliar adequadamente osresultados finais de determinadas decisões,como visto pela aplicação do Teste do Jogo.

Este é um achado interessante, porque indi-ca um terreno comum a muitos dos comporta-mentos aditivos e permite imaginar novas

perspectivas. Por um lado, se o comportamentoaditivo tem uma base comum, o que condicionaa escolha do padrão de adição, em outraspalavras, o que leva a decidir entre jogo ecocaína, ou entre cigarro e chocolate? É prová-vel que disponibilidade e as circunstâncias so-ciais, mas este é um terreno ainda poucoexplorado. Por outro lado, quais as alteraçõessubjacentes aos padrões observados nasavaliações neuropsicológicas referidas acima?Uma possibilidade é a alteração na transmissãodopaminérgica nas vias córtico-límbicas, emparticular as que envolvem os lobos frontais.Este tópico é objeto de um dos capítulos destelivro e tem óbvias implicações em relação anovas possibilidades terapêuticas.

Especificamente em relação às drogas, emparticular a cocaína, há muito se sabe de altera-ções estruturais, sendo relatada há mais tempoa atrofia córtico-subcortical difusa, verificadaatravés da tomografia computadorizada. Tipica-mente este tipo de alteração é visto emconsumidores de longa data, e lesões maisdiscretas, por exemplo, na substância branca,foram verificadas com a introdução e utilizaçãoda ressonância magnética. Mesmo com o maiordetalhamento, podem ocorrer alterações aindamais sutis, para as quais a avaliação estruturalnão é suficiente, mas que podem ser evidenci-adas por métodos funcionais, como a ressonân-cia magnética funcional e a tomografia poremissão de fóton único (SPECT). Estes méto-dos permitem não apenas documentaralterações, mas também correlacioná-las compadrões de desempenho neuropsicológico e, épossível imaginar, poderão monitorar o efeitode tratamento. A interpretação do significadodas alterações verificadas por exame de ima-

Page 3: Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de Drogas

Da neurologia à psicologia 15

gem, como se pode verificar no capítulo corres-pondente, padece da dificuldade de delimitargrupos “puros”, isto é, grupos com consumorestrito a um único tipo de droga.

Existe já uma extensa literatura sobre a ava-liação neuropsicológica de droga-adictos, quetem tentado identificar padrões de comprometi-mento neuropsicológico de acordo com o tipode droga. Um primeiro ponto a ser considerado:Quais os testes mais eficientes? Tendo em vistaa multiplicidade de sugestões na literatura, pa-rece evidente não haver uma resposta clara, ain-da que haja consenso sobre algumas áreas, porexemplo, atenção e função executiva, quedevem ser examinadas de modo mais detalhado.O problema é determinar que testes podemcumprir melhor esta função, e é neste sentidoque foi incluído o capítulo sobre avaliaçãoneuropsicológica. Esta tarefa é muito dificultadapela freqüência de uso de múltiplas drogas epela associação com alcoolismo. Estas sãosituações que tornam a interpretação deresultados muito difícil. Pegando como exemploa freqüente combinação de cocaína e álcool,onde foi observado, em alguns estudos, umdesempenho melhor no grupo com cocaína e ál-cool, quando comparado com o grupo usandoexclusivamente cocaína, uma interpretação pos-sível é que, enquanto a cocaína causa vaso-constrição, e por isso piora do desempenho, oálcool causa vaso-dilatação, e pode, portanto,contrabalançar este efeito. Por outro lado, oefeito do abuso crônico do álcool provocarádanos que podem modificar as alteraçõesneuropsicológicas provocadas pela cocaína.Exemplos como este mostram as dificuldadesmetodológicas encontradas neste campo deinvestigação. A investigação das alterações

neuropsicológicas na droga-adição partiu deuma etapa inicial onde se avaliava indivíduosintoxicados ou que haviam consumido drogarecentemente e gradualmente foi incorporandoabstinentes, sendo este o tema de um dos capí-tulos deste livro. Este é um ponto da maior re-levância por dois motivos: pode esclarecer queseqüelas neuropsicológicas se podem esperar douso prévio de drogas, ou seja, quais as altera-ções permanentes da droga-adição, e comoestas seqüelas podem contribuir para quediferentes tentativas de tratamento fracassem.Neste sentido, dificilmente o tratamento dedroga-adictos será bem sucedido, se não levarem consideração que alterações cognitivaspodem estar impedindo a plena compreensãodo planejamento e dos objetivos da terapêutica.Em um outro sentido, a reabilitação cognitivapoderá ser necessária no tratamento de umaparte dos droga-adictos.

Deveria então a adição a drogas ser consi-derada como, basicamente, um problema bioló-gico? Certamente que não. Este é um problemaque claramente envolve não apenas o indivíduo,mas também sua família e seu grupo. Ocapítulo de Souza sobre o uso de um testeprojetivo em droga-adictos mostra comoexistem alterações não apenas na percepção dopróprio ego, como também das figurasparentais. A questão da família e adição éretomada no texto de Vizziello e colaboradores,em seu trabalho na recuperação de mãesdependentes. No sentido de mostrar o que sefaz no Brasil são apresentadas investigaçõessobre atendimento a droga-adictos em uma re-gião do Estado de São Paulo. Estas pesquisasindicam a necessidade de uma melhorsistematização de atendimento e registro. Se

Page 4: Bertolucci - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de Drogas

Paulo Henrique Ferreira Bertolucci16

por um lado existe concordância que otratamento tradicional com hospitalização podeser menos eficiente que o acompanhamento emambulatório, também é necessário o uso de es-calas que ajudem a objetivar o tratamento e aavaliação dos resultados. O trabalho de Oliveirano acompanhamento de usuários de álcool é um

exemplo da aplicação destes métodos. Estaspesquisas indicam um sistema de atendimentoque está à procura de um novo modelo, maiseficiente. Livros como este podem fornecersubsídios para que esta mudança se faça de for-ma mais acertada.