Benjamin Barrento Eiras Agamben - Llansol

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A Tradição da Restante Vida:

literatura e história na Trilogia dos Rebeldes, de Maria Gabriela

Llansol

MARIA CAROLINA JUNQUEIRA FENATI

O termo pós-moderno indica um desafio à forma conceito tradicional ao

questionar qualquer terminologia que se pretenda totalizante e duvidar da elaboração

de uma lei genérica aplicável a manifestações particulares. Partindo do desfazer de

qualquer instância única produtora de conhecimento, o pensamento pós-moderno

define o verbo totalizar como implicitamente relacionado à idéia de unidade, de

controle e de organização por domínio. Seu discurso refere-se ao conhecimento como

um processo sem fim (e não um progresso) e, operando um deslocamento no próprio

vocabulário, aproxima investigar de problematizar, analisar, questionar, desconfiar,

duvidar. A permanente suspeita pós-moderna atua como corrosão dos critérios de

legitimação das formas discursivas. Nesse novo contexto, cada discurso só pode se

sustentar no âmbito político – na arena com outras formas discursivas – e não mais

assumir-se como inquestionável, natural e único.

Se a crítica pós-moderna incide sobre a estabilidade das formas discursivas,

seria possível afirmar que não se trata de uma inquietação exclusivamente

contemporânea e que os seus questionamentos são tão antigos quanto a história do

conhecimento1. O pós-modernismo se distingue pela ironia associada à repetição

obsessiva do ato de questionar e, no que parece ser uma espécie de equilíbrio instável

contemporâneo, pelo lançamento de problematizações não resolvíveis. Sua

especificidade não é a possibilidade de identificação de questões, mas o gesto de

mantê-las enquanto questionamento; é como se essas perguntas se tornassem

agudamente intransponíveis. A leitura pós-moderna evidencia problemas do discurso e

faz-se na mistura de afirmações diversas, na manutenção dos paradoxos. O pós-

modernismo evoca polaridades para fazê-las coexistir e torna sobrepostas as noções

de verdade e ficção, real e imaginário, criação e indício.

A convivência de questões não resulta, no entanto, na lamentação da ausência

de resposta, nem implica necessariamente a impossibilidade de conhecer: a pós-

1 Dom Quixote, por exemplo, inaugura a forma romance ao mesmo tempo em que problematiza

as definições para o gênero.

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modernidade lança a paisagem do paradoxo, na qual os conhecimentos devem passar

a existir despidos do que anteriormente os estruturava. A inquietação faz-se como

força problematizadora que levanta questões sobre o senso comum, a tradição e a

forma do natural, mas nunca oferece respostas que ultrapassem o provisório,

tampouco cria afirmações estabelecendo-as como regra geral. O pós-modernismo não

propõe um sistema em substituição ao que desconstrói: não oferece nem uma utopia

coletiva como resultado do rompimento com o estado das coisas nem uma lamentação

hiper-realista que levaria ao consenso da desgraça. Se elegesse um novo sistema de

verdade em detrimento do anterior, a nova forma funcionaria apenas como uma troca

de impostura. A perda das narrativa-mestras torna-se o campo onde nada se oferece

como natural ou acabado e no qual o desafio é o de evidenciar as contradições

internas – do discurso analisado e do próprio discurso – como forma possível de criar

vestígio (desnaturalizar, evidenciar a construção).

No contexto de pesquisa pós-moderna, o caminho que se aponta é a relação

de cada área do conhecimento com formas discursivas mais amplas, isto é, com o seu

limite, ou o fora dela – a criação de diálogo entre a literatura, a história, a política, a

teoria da imagem. O pós-moderno lança como possibilidade a troca de influências

entre essas áreas, efetuando uma mistura na qual cada uma afasta-se de uma

definição essencialista do seu fazer para perguntar-se sobre as relações que a

movimentam.

Esse trabalho pensará a escrita de Maria Gabriela Llansol no seu diálogo com

a História. Parte-se da constatação de que o texto llansoliano foge às convenções –

sempre questionáveis – do discurso literário. Linearidade, causalidade, enredo e

caracterização psicológica de personagens são questionados e podem estar

absolutamente ausentes de um discurso que ainda assim se afirma como literário.

Experimentações gráficas, recursos imagéticos, fragmentação tornam-se recorrentes

ainda que não se estabeleçam como novas premissas nessa escrita. A crítica, ao

assinalar a dificuldade de classificação dos textos, responde de diferentes maneiras2.

Antônio Guerreiro, enfatizando a idéia de fragmentação (incompletude), recupera os

românticos alemães e aposta no termo poesia: “trata-se, assim, de aniquilar a frase,

de não concluí-la. O que resta de uma escrita narrativa que tem como missão aniquilar

as frases? Talvez pudéssemos responder, recorrendo a um conceito de Novalis: a

2 Para ver um mapeamento sucinto dos diferentes posicionamentos da crítica em relação ao tema, ver: EIRAS, Pedro. 1. Especificidade da escrita llansoliana. In: EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto: a Fragmentação do Sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. p. 535-43.

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poesia alargada” 3. Eduardo Prado Coelho afirma que o texto llansoliano “se torna

mais literário do que a própria literatura” e compõe uma “nova literatura como

horizonte de cenas fulgor” 4. César Guimarães destaca uma espécie de salto para fora

da literatura que teria como efeito o apagamento da diferença de gêneros numa

mistura não-sintetizável entre características do ensaio, do diário, do romance e da

poesia5. A discrepância de posicionamentos defendidos pela crítica destaca a

resistência do texto em ser associado a uma categoria literária previamente

determinada.

Entendida como poesia, como ficção poética, ou como uma escrita que se

serve de diferentes características de cada gênero sem, no entanto, se reduzir a

nenhum deles, a escrita llansoliana avança repensando e redefinindo os paradigmas

dos quais parte. Ainda quando nomeado de acordo com categorias do discurso

literário, esse texto aponta para a necessidade de revisão dos contornos do gênero.

Um falcão no punho e Finita, considerados como diários, escapam dessas

terminologias ao abandonarem um tom restritamente autobiográfico e, desfazendo-se

do recurso à ordenação de fatos, incorporarem tanto uma reflexão acerca da escrita

quanto da própria relação com a memória6. Ainda que alguns de seus livros, como Um

beijo dado mais tarde (que ganhou o Grande Prêmio do Romance e da Novela de

1990.), sejam chamados de romance, eles continuam a operar um deslocamento no

termo. Afastando-se da tradição do romance realista, o texto llansoliano aproxima-se

de uma idéia de romance não hegemônica que, ampliando as limitações definidoras

do gênero, levou-o ao limite de textos fragmentários, nos quais não há personagens

ou fios narrativos estruturantes e a interrupção e o inacabamento prevalecem sobre as

ilusões de continuidade e completude.

Na Trilogia dos Rebeldes7, primeiro conjunto de livros da autora, a escrita

pensa a História e a tradição. Numa paisagem de questionamento, o texto desfaz os

conceitos como origem e final, linearidade temporal e causalidade, progresso e

3 Antônio Guerreiro: “Destruir a frase”, in Expresso, Cartaz, 20 de janeiro: 40-41. Citado por EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto: a Fragmentação do Sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Porto: Campo das Letras, 2005. p. 540. 4 Eduardo Prado Coelho: “Maria Gabriela Llansol: o homem desmultiplicado”. In: O Cálculo das Sombras, Porto, Asa: 247-50. Citado por: EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto: a Fragmentação do Sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Porto: Campo das Letras, 2005. p. 541. 5 César Guimarães:Imagens da Memória: entre o legível e o visível. P. 209. 6 Sobre isso ver: César Guimarães:. Imagens da Memória: entre o legível e o visível. P. 209. 7 Trata-se dos livros: O Livro das Comunidades, A Restante Vida e Na Casa de Julho e Agosto. Que passarão a ser citados pela indicação das suas iniciais: lc, rv, cja.

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destino, homogeneidade e continuidade; desconfia da distinção entre verdade e ficção

e se interroga sobre a base factual da História, ou sobre a sua formatação como único

discurso legítimo de fidelidade aos eventos passados. Nessa trilogia torna-se evidente

a suspeita em relação ao método historicista já que ordenar em causalidade e

organizar em linearidade são processos entendidos como métodos totalizantes –

criticados por vezes como impostura a um material que se apresenta como

diversificado e descontínuo.

Na relação entre literatura e História colocam-se questões-chave como as da

forma narrativa, da intertextualidade, das estratégias de representação, da função da

linguagem, da relação entre fato histórico e acontecimento, das idéias de documento e

vestígio. Questões como essas, postas e pensadas tanto por historiadores como por

teóricos e autores da literatura8, estão são desdobradas na Trilogia dos Rebeldes de

Maria Gabriela Llansol. Não se pretende, no entanto, enquadrar o texto llansoliano

naquilo que pode ser entendido como um arcabouço teórico pós-moderno por duas

razões. Por um lado, a primeira desconstrução pós-moderna é a da existência de um

conjunto de preceitos gerais identificáveis na sua versão particular em um texto dado.

E segundo porque o texto llansoliano escapa a sua fixação em categorias que lhe

determinem. É por uma dupla resistência – a do pensamento pós-moderno de se fazer

como sistema teórico aplicável e a do texto llansoliano de coincidir com uma definição

teórica – que o trabalho procura as linhas que cruzam os dois discursos, as formas

como os questionamentos de um incidem sobre a escrita do outro, a maneira como

problemáticas não coincidentes podem ser postas em dialogo e confronto.

A Trama da Existência

A Trilogia dos Rebeldes de Maria Gabriela Llansol é composta por três livros: O

Livro das Comunidades (1977), A Restante Vida (1983) e Na Casa de Julho e Agosto

(1984). No prefácio do primeiro volume, é proposto um pensamento sobre a História

na sua relação com as formas da tradição9. São lançados dois termos: “A Tradição

segundo a Trama da Existência” e “A Tradição da Restante Vida”.

A Tradição da Trama da Existência é entendida no texto llansoliano como uma

forma de narrar os fatos que representa o percurso histórico como um progresso

ilimitado, entendido como essencialmente contínuo e cuja imagem seria a de uma

linha reta crescente numa de suas pontas. Nessa forma da tradição, o tempo - 8 Alguns nomes são, por exemplo, Michel de Certeau, Hayden White, Paul Veyne, Dominick La Capra, Fredric Jameson, Edward Said, entre outros. 9 “Eu leio assim esse livro”. In: Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p. 9.

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mensurável em dias, anos, séculos, períodos – é descrito pelas ações que o

preenchem e que são “o falar e negociar, o produzir e explorar”10. Essa estrutura

cronológica é frequentemente associada, como Nietzsche11 já vislumbrava, a um

sentido evolutivo que indica uma ascensão – uma melhoria do estado geral do mundo

– na linha que vem de um antes longínquo a um futuro entendido como continuação

do já vivido. Trata-se de uma tradição ávida por construir estruturas de continuidade

ou explicações históricas definitivas. Essa norma contentora da variabilidade histórica

é o “grande espaço atravancado da história, onde não há lugar para mais nada, onde

nenhum excedente, nenhum ainda-não-acontecido, pode querer devir, vibrar em

simultaneidade”12.

Os Rebeldes

O diálogo entre história e literatura na Trilogia dos Rebeldes de Maria Gabriela

Llansol desde o primeiro recorte indica o ponto do qual se parte para a escrita. Entre

os livros não se encontram a narração dos grandes feitos dos heróis, nem cadeias

explicativas que se estendem de um tempo passado até o tempo da escrita. O texto

torna-se atento e faz retornar os rebeldes. Rebeldes são aqueles que interrogaram e

suspeitaram que a História esteja mal contada quando faz passar por linear a

experiência diversificada e múltipla do tempo e quando conecta em seqüência

continua o que de muitas outras maneiras se aproxima. Os rebeldes desfazem a

história violentamente reduzida ao curso do poder oferecendo-se como constelações

afirmativas da dissonância. São pontos de intensidade com os quais a herança

partilhável é não só aquela que chega com a força da permanência, mas a que afirma

a busca do novo como gesto fundador.

A marca histórica dos rebeldes não coincide com a totalidade dos seus feitos

históricos e nem impõe como efeito na escrita a fidelidade aos fatos da sua vivência. O

rebelde torna-se inapreensível em totalidade e requer atenção à fertilidade da relação

entre a matéria que deles resta e o excesso de significado que as suas trajetórias

podem gerar. O texto avança em busca de vestígios, atento ao sopro desses rebeldes,

as marcas que não se impuseram na história por sistemas de ligação que garantissem

10 Maria Gabriela LLansol. O Livro das Comunidades. p.10. 11 Sobre essa desconfiança Nietzschiana, bem como para uma história da idéia do tempo no ocidente, ver: Giorgio Agamben, 2005, Infância e História: Destruição da Experiência e O)rigem da História, Belo Horizonte, Editora UFMG. 12 João Barrento: A Voz dos Tempos e o Silêncio do Tempo – o Projecto Inacabado da História n’O Livro das Comunidades. p.4.

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a sua perduração. O texto quer escutar a “história silenciosa dos intensos que, porque

necessitados de misericórdia, não impuseram aos seus congêneres as cadeias da

explicação, nem miragens para o desejo”13 .

É num gesto construtivo que o texto os recupera: trata-os como um corpo de

tensões, que se revela e se apaga, e que se expõe, incompleto, na proximidade com

os outros. Aquilo que os distingue historicamente convive com a indefinição inevitável

da sua aparição já que, cada rebelde, “no instante em que se deixa reconhecer lança

um clarão que não voltará a ver-se ”14. N’O Livro das Comunidades, o nascimento de

Nietzsche acontece como uma aparição em metamorfose, que põe em cena as suas

memórias historicamente partilháveis – “Nietzsche é um homem do livro. Bigodes,

cabelos negros”15 – , as transformações que ele se dispõe na entrada para o texto “N.

despe-se, fica nu.”16 e as direções para as quais o texto caminha sob o efeito da sua

aparição – “O Livro das Comunidades deveria passar por Nietzsche mas julgo que,

para o futuro, se tornará difícil escrever”17. Mas o seu rosto “afasta-se veloz”18, e

evidencia uma distância que não cede e que o mantém, no momento mesmo da sua

aparição, ainda como desconhecido “Cravo os olhos nos seus e sei que não chegarei

mesmo a pronunciar-lhes a cor”19.

Chamar de rebeldes aos seres que habitam o texto não significa, no entanto,

indicar uma propriedade anterior que encontraria a sua atualidade em cada uma das

figuras. Rebeldes são os que recusam a manutenção de um predicado que os

confinaria numa identidade ou que implicaria na sua dependência a uma natureza

comum e anterior. Um rebelde escapa, sem cessar, a definição fixante dos contornos,

seja pelo poder de negação à fixidez das estruturas, seja pela capacidade de agir em

direção ao novo. A ruptura que historicamente fomentaram não é com um estado do

mundo em nome de outro, mas com a própria fixidez das definições de mundo. A sua

entrada no texto faz com que aquilo que com eles é dito não se confunda com a

totalidade das suas manifestações, mas torna a escrita da tradição um encontro

instável de vozes: “Há mesmo sons que não vão juntos e escrevo à beira da

13 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p. 85. 14 Walter Benjamin: Teses sobre a filosofia da história. P. 159. 15 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidade. p.62. 16 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidade. p.62. 17 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidade. p.62. 18 Walter Benjamin: Teses sobre a Filosofia da História. P. 159. 19 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidade. p.63.

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dissonância”20. Isso não significa que a sua força é apenas negadora, mas que avança

na experimentação de um desejo não fixável.

Esse desapego a uma definição fixa é evidenciado por uma abertura ao ato de

escutar. Escutar é retirar-se da posição de sujeito forte e deslocar-se, é dispor-se ao

enigma que vem do que não é o mesmo. “(...) sabia que a rapariga lhe desejava falar;

escutava tão atentamente o que ela expunha que, passadas duas horas, sentia dores

na nuca e também no crânio.” Escutar é o contacto que transforma, que atinge, pela

força que encena, aquele a que a esse ato se dispõe: “parecia-lhe, como sempre que

conversava durante muito tempo, que as palavras lhe caíam nos próprios olhos, os

dilatavam e afundavam.” E escutar aqui não significa recolocar nas categorias do

familiar o que chega como imprevisto, mas aproximar-se do que mantém uma

distância irredutível. Escutar é abrir-se ao que não se sabe e que transforma: “a

rapariga queria obter uma resposta e ela lembrava que não existiam precedentes; no

entanto, ia pensar, estar com algumas crianças e os papéis, e talvez com São João da

Cruz, que encontraria em qualquer parte”21. Buscando o irrepetível em cada voz, o ato

de escutar tem sempre o tom inaugural. Entre essas figuras escutar é um gesto que se

espalha, que inicia a troca e desencadeia a partilha de pensamento. Mas dispor-se a

escutar é também permitir o silêncio. “Alice disse-me, silenciosamente, que quanto

mais me calasse, mais os rebeldes animais se revelariam a mim”22.

O nome rebelde indica as figuras que habitam o texto, mas não supõe um

significado que designaria indiferentemente cada uma delas. Rebelde é o nome para

os que não podem ser reduzidos a um nome e nesse jogo, no qual só o artigo pode

mover-se com desenvoltura, ele não é o rebelde, mas um rebelde, esse rebelde,

aquele rebelde. O texto também os chama pelos nomes próprios: “Conheço-vos de

nome, Margarida, Eleonora, Marta, Beatriz e Vós.”23. Eckhart, Ana de Peñalosa, o cão

Jade, Bach, Pessoa e os desconhecidos – vós, as vozes – que não estão nomeados e

existem. “De cada espécie não havia mais de um exemplar, e reconhecia-se à

diferença a mesma evidência que ao indício”24.

A rebeldia inicia-se como resistência à classificação, e o texto lança as figuras

através do limite das singularidades. Müntzer é guerreiro, rebelde, religioso, viajante,

personagem do século XVI, homem, vencido, decapitado. Todas essas categorias 20 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.8. 21 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.13. 22 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.9. 23 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.7. 24 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.15.

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definidoras de propriedades comuns dizem desse rebelde sem serem exclusivas e

nem a sua soma coincide com a totalidade do seu espectro. Rebelde não é nem um

indivíduo inserido numa série nem a soma particular de diferentes séries25: ele é uma

singularidade que o texto nunca acaba de dizer. Dizer que um rebelde resiste às

classificações é dizer que ele nunca pode ser dito em totalidade, ainda que muitos

sejam os nomes que possam o designar. Rebeldes são, portanto, aqueles dos quais

se pode infinitamente dizer e não aqueles dos quais não se podem dizer. Sem

encontrar descanso em nenhuma classe ou categoria, os rebeldes migram, sem

cessar, entre elas. O rebelde é também errante entre os nomes.

“Olhando os escritores sentados à volta da mesa, verificou que este termo era vazio, e que suas imagens se definiam, sobretudo, pela posição do olhar, e pelo abandono da antiga forma de leitura e escrita”26.

O rebelde insiste no ter lugar da diferença. Inscrevem-se pela sua relação

particular com o desejo, ou a posição de cada olhar. A aparição do rebelde é força de

diferença já que não é pensável como a permanência de uma idêntica essência em

cada um, mas na distância entre eles aberta para a variabilidade do que é singular –

as formas de ler e escrever de cada um. Os rebeldes lançam e sustentam no texto um

paradoxo: aquilo que lhes é comum não constitui a essência de cada um. A

singularidade desses seres não mantém com o comum uma continuidade essencial e

o nome que designa as figuras do texto “não as une numa essência, mas dispersa-as

na existência”27. O nome rebelde indica uma comunidade e não uma categoria: “A

cada vez me atrai mais a vida de eremitério, e o que possamos aí ser, desligadas uma

das outras, mas trocando-nos na criação.”28

Os rebeldes buscam uma “emancipação em devir”29. Sem cessar de escapar

às definições totalizantes, eles não poderiam entrar com rebeldia no texto a não ser se

o corte que os destacasse fosse um gesto de amor. O rebelde é o ser amável, não

pela afirmação de um elogio das suas qualidades, mas porque

25 Sobre isso, ver: Giorgio Agamben. A Comunidade que Vem, Lisboa, Editorial Presença, 1993. 26 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.14. 27 Giorgio Agamben. A Comunidade que Vem. p.23. 28 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.80. 29 EIRAS, Pedro, 2005, Esquecer Fausto: a Fragmentação do Sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. p.596.

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“o amor nunca escolhe uma determinada propriedade do ser amado (o ser louro, pequeno, terno, coxo), mas tão-pouco prescinde dela em nome de algo insipidamente genérico (o amor universal): ele quer a coisa com todos os seus predicados, o ser tal qual é” 30. O texto, num ato de “fazer amor”31, deseja a inteligibilidade do rebelde – que não se dá

nunca em completa manifestação – e busca-o em devir, cria-se com ele, numa lógica

afastada da revelação da essência. O texto recorta as figuras numa anamnese

erótica da história, e deseja oferecer-lhes não um outro lugar, mas o seu próprio ter

lugar, a sua aparência e existência inclassificável.

“Sei onde estais. Dizem-me o que fazeis. E construo um ponto de vista. (...) O meu ponto de vista, porque não dize-lo até o fim?, é a forma amativa do meu conhecimento que, se o desejais, deposito na luminosidade íntima da vossa soberania ainda por incompleta.”32

Os rebeldes do texto llansoliano são nomes também citados pelas narrativas

da Trama da Existência. Nietzsche, Pessoa, Espinosa ou Camões são “figuras

definitivamente incluídas no drama europeu” (L1, 131) e são repetidamente afirmados

nas narrativas desse encadeamento. A maioria deles tem reservado um lugar na

continuidade – como vencidos, como pensadores exemplares ou como cânones da

literatura. O texto llansoliano, no entanto, evidencia que o recorte da Tradição segundo

a Trama da Existência recolhe a trajetória rebelde como uma forma acabada de

unidade discursiva e, por isso, toma por inteiro o que é vestígio, controla a sua

dispersão e esquece a capacidade transformadora dos seus indícios. O que o texto

llansoliano quer criar uma outra maneira de lembra-los, uma outra forma de contar a

história que não seja o encadeamento do que é disperso numa linearidade causal,

uma maneira de lembrar que seja capaz de fazer da rebeldia marca da sua

construção.

Da Restante Vida

O texto llansoliano deseja retomar os rebeldes traçando entre eles relações e

não os afastando como indivíduos isolados. No prefácio d’O Livro das Comunidades é

30 Giorgio Agamben. A comunidade que Vem. p. 12. 31 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.11. 32 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.9.

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lançada uma outra forma de tradição – a “Tradição segundo o Espírito da Restante

Vida”33. A tradição da Restante Vida não se faz com os esquecidos da Trama da

Existência, mas é lançada como uma mudança na forma de lembrar os rebeldes.

Trata-se de um deslocamento no modo de recordá-los. Parte-se da desconfiança de

que, se é possível designar Nietsche na linha de continuidade da história da filosofia,

isso não corresponde à única forma de lembrá-lo e nem coincide com a totalidade do

seu pensamento. A retomada é por uma espécie de herança não manifesta, uma

aposta de que “a influência de Nietzsche não se resume às formas exteriores que ela

exibe; provavelmente, ao contrário, foi o que de Nietzsche escapou a qualquer

transmissão manifesta, essa parte dele estranha às influências diretas, que exerceu a

mais profunda influência”34.

Parte-se de um anúncio, feito por nós, e que diz:

“Nós estamos de volta. Sim, é verdade. Apesar de tão longamente ausentes, nós estamos de volta e não somos os exóticos por que talvez esperáveis. Entre nós, não há ninguém que vos consiga explicar, de ciência certa, o que conosco sucedeu. Conjecturemos.”35 O texto quer, recriando as maneiras da lembrança, gerar (textualmente) uma

nova forma de tradição. Os rebeldes estarão no texto reunidos num vocabulário

distante daquele da “ciência certa”. No prefácio d’O Livro das Comunidades o texto

lança a “Tradição, segundo o espírito da Restante Vida”36 como uma busca de criar

entre eles ligações, aproximar a escrita de um à de outro. Essa forma de lembrar os

rebeldes implica, no entanto, uma mudança na idéia de tradição. Sabe-se que a

herança dos rebeldes não aparece no texto como forma dogmática nem exerce nele

uma força de autoridade. Isso porque aquilo que eles historicamente lançaram não

foram dogmas nem sistemas fechados de pensamento e porque o rompimento do qual

nasce a sua rebeldia é o da confinação na forma da unidade do que é incessante

movimento de diferenciação. Criar com os rebeldes relações de herança, ou chama-

los como tradição, não pode ser, portanto, instituir o seu pensamento como norma, já

que isso seria ir na direção contrária ao que se quer recuperar. Essa tradição com eles

tecida traz perdida aquilo que o termo poderia carregar de força estabilizadora, já que

não há nela uma forma de herança que sirva para fazer perdurar um determinado

33 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.10. 34 Maurice Blanchot. No Caminho de Nietzsche. p. 277. 35 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig. p.88. 36 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.10.

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estado das coisas nem um conjunto de pressupostos estendidos de um outro tempo

ao presente da escrita. Retomando os rebeldes, a escrita dessa tradição parte do

questionamento sobre o modo de aproximá-los: Como recuperar figuras cujos gestos

são da ordem da ruptura? Como criar entre elas uma ligação que não as detenha

numa linearidade? Como aproximar os que são avessos à continuidade? Como

continuar aquilo que não tem forma estável?

“Não destes luz ao Nada. Não tereis amamentado o Ser E a sua terrível Trama O vosso corpo não serviu para continuar, singular simples, deixou bermas.”37

A Tradição da Restante Vida parte do abandono das premissas que

frequentemente servem como critério de permanência na narrativa histórica. O texto

faz explodir a continuidade e desfaz a hipótese de que um evento passado apenas

encontre o seu sentido na relação que estabelece com aquilo que o seguiu – o seu

reconhecimento, a presença dos que declararam serem seus seguidores, a sua

importância para o desfecho ou inauguração de um período – mas desde sempre

trazem em si o que pode sobre eles ser infinitamente dito. Essa forma da tradição

retira os seus nomes da continuidade, e está atenta ao que é dissonante, ao que

difere, ao que rasura, porque não se reduz, a linha histórica. Toma como tarefa rever o

que escapa a esse discurso, questiona-lo pelo que anda disperso nas dobras e sobras

dessa continuidade, colocar-se à escuta da variabilidade das vozes que com ela não

coincidem. Essa resistência não é geradora, no entanto, de uma outra norma narrativa

que viesse substituir a continuidade: é com a própria idéia de norma que o cuidado

com a rebeldia rompe. A Tradição segundo o espírito da Restante Vida procura

lembrar e recordar sem classificar nem ordenar, sem tomar por contínuo o que é

interrompido e nem fazer passar por completo o que é inacabado.

“Parece que procuro deixar inacabadas as imagens de que me sirvo para habitar por dentro o vosso sentir. (...) Não vos inquieteis com as volutas e cortes bruscos das vossas vidas, minha correspondência entre nós, que o fogo, Elo, não é história que possamos contar.” 38

Os nomes dos rebeldes estão rodeados pelos seus textos, vestígios que deles

sobreviveram. É essa a matéria herdada pela tradição: frases e índices de rebeldes

37 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.8. 38 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.9.

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que, afirmando a sua existência, ainda se mantém distantes. O efeito de

descontinuidade sugerido pela variedade dos nomes históricos e estendido até a

forma de um texto fragmentário indica a presença ausente que gera a tradição – “o

texto [é] a ausência que se manifesta”39. A passagem da matéria rebelde pelo texto

gera uma apresentação que não se confunde com a inteireza da presença, mas que

os fazem se insinuar, pela escuta, como murmúrios: “Na casa, havia muitas vozes

que, dos vários cantos, pareciam todas vir ao seu corpo e que se não calavam quando

falava”40. A tradição recebe os rebeldes como vozes que lhe falam, e que se insinuam

e se apagam, e é na companhia deles que ela se escreve “como uma morada do que

está de passagem”41.

“A escrita era as vozes em coro dos trinta mil camponeses que depois de abolirem os juízes se dirigem para o massacre de Frankenhausen e cujas pegadas ficaram perdidas no deserto”42. Diante da fragilidade da sua manifestação, a leitura dos textos rebeldes não

quer buscar o que estaria supostamente oculto sob a sua aparência. A escrita da

tradição não “impunha soluções para o que dele não carecia, nem as podia suportar,

por não ser senão superfície, não ter outra verdade senão a dos seus signos e dos

abismos neles tecidos.”43. A tradição não pede a nenhum texto que a compõe a

garantia do que está a ser dito, mas faz do que resta uma superfície de ligações não

dadas, mas possíveis de serem trabalhadas e reescritas: “A longa narrativa que ia ter

lugar não provinha da descrição interpretada das suas vidas, mas do evoluir de suas

passagens íntimas”44. A distância entre o agora da escrita e os rebeldes é no texto

trabalhada como um desejo de recuperá-los, de escrever contra a sua anulação,

através da composição da sua lembrança por forças não-objetiváveis: a memória, o

apagamento, a rebeldia, os escritos, o esquecimento.

39 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p.131. 40 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.12. 41 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p.126. 42 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.48. 43 Silvina Rodrigues Lopes. A Comunidade sem Regra. P. 203-4. 44 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.14.

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O texto chama e faz conviver figuras afastadas pelo tempo linear - Nietzsche,

Pessoa, Müntzer, Ana de Peñalosa, São João da Cruz. Rompendo desde logo a

rigidez do tempo cronológico, essa tradição compõe-se de imagens dispersas em

tempos e lugares distantes entre si e distantes do agora no qual se escreve. A

variabilidade temporal decorre da possibilidade de mover-se entre os tempos com os

quais se tem ligação: “tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela

palavra. Também pelo tempo, pois desde os tempos de sua bisavó, voltar a qualquer

época era sempre possível”45. Os rebeldes migram dos séculos históricos até um outro

lugar, onde o tempo já não funciona como seqüência de antes e depois, e no qual

encontram os que, de outra maneira, permaneceriam afastados. Escrever a Restante

Vida é optar por deslocá-los e reuni-los no texto, “porque todos são rebeldes a querer

dobrar o tempo histórico dos homens”46.

A tradição é a possibilidade de levar-los a encontrar paisagens compostas por

textos de outros rebeldes e pela simplicidade dos lugares de encontro. A dimensão

linear do tempo cronológico é desfeita por uma distribuição espacial do texto que faz

com que a distância irreparável que separa os rebeldes e o agora da escrita não seja

mensurável pela unidade de tempo, mas se revele como formas distintas da inscrição.

O mais longe e o mais próximo, categorias do tempo linear, se desfazem de maneira a

que toda distância seja mantida naquilo que tem de imensurável, e não como

indicadora do grau de proximidade de cada uma em relação ao texto. Nos 25 lugares

d’O Livro das Comunidades, os nomes reconhecíveis historicamente habitam casas,

estão próximos a um rio, no quarto, unem-se no gesto da escrita. Nesses lugares,

qualquer frase pode desencadear efeitos imprevisíveis, tal como a partilha de um

sonho ou a simples companhia porque tudo é nela tomado pela lógica do encontro. A

tradição se compõe em cenas nas quais “uma morada de imagens – dobrando o

espaço e reunindo diversos tempos, procura manifestar-se”47.

A marca do rebelde é uma linha interrompida que faz com que entre ele e

aqueles que lhe seguiram exista uma distância, um espaço vazio e uma abertura. A

ligação que a tradição com ele pode estabelecer não é nem a única possível e nem se

faz por dedução ou por efeitos simples de causalidade. A relação com a morte é uma

das maneiras de inscrever a distância que separa a escrita da tradição dos rebeldes

que a compõem. É sempre, no entanto, num trabalho dessa distância que a escrita se

faz. Continuá-los não é criar-lhes uma linha de coerência até o presente da escrita,

45 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.11. 46 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p.126. 47 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p.128.

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mas inscrever uma relação de herança que exige a força da criação. A imagem das

linhas que saem de cada rebelde, passa entre eles e chega ao texto não é a da

continuidade, mas é um emaranhado de linhas interrompidas, insistentemente

recriadas e capazes de, no momento em que se fazem recuperar, gerar o que ainda

não havia sido dito. Nietsche nasce n’O Livro das Comunidades despido, torna-se nu e

sem pêlos, tal como uma criança. Recuperado naquela que foi a última fase da

metamorfose no seu pensamento, ele é relançado a um novo caminho, no qual não

cessará de transformar-se. Recupera-lo num dos pontos do seu pensamento e fazer

dele a sua entrada no texto é desfazer os contornos que limitam a sua lembrança e

esperar que o que dele advém como herança é também a sua forma inacabada, a sua

capacidade de provocar o que por ele não foi dito.

“ ‘Depois de morto terei a minha vingança: sabemos voltar, nós os prematuros. É um dos nossos segredos. Voltarei vivo, mais vivo do que nunca.’ (...) Mas era uma criança: -Donde vens? – Do corpo. Do lugar das recordações e das vibrações. – Não sei o que queres dizer. – Tenho recordações de que não me lembro: são as mais belas; as vicissitudes das idéias e dos sistemas afectam-me mais tragicamente do que as vicissitudes da vida real. – Sentaram-se encostados um ao outro. Depois Friederich N. deitou-se no colo de Ana de Peñalosa, disposto a adormecer.”48 (lc, 68)

Se algumas indicações temporais – frequentemente reduzidas ao “há” –

indicam o irrepetível, elas apontam também para uma distância intransponível que faz

passar da idéia de descrição para a de criação. Essa distância diz tanto de uma falha

no que diz respeito à aproximação da totalidade dos seres dos quais diz, quanto a um

excesso vindo da multiplicidade que permanece por ser dita. Tornar-se herdeiro de um

gesto rebelde – da Tradição da Restante Vida – é

“não se limitar a repetir as suas críticas ou desmistificações, que afinal, para terem a sua importância histórica, isto é, para não serem estéreis, precisam da contra-assinatura dos que vieram depois. Herdar, ou contra-assinar, é ‘apropriar- se’ do que foi nas suas potencialidades de metamorfose necessariamente diferenciadoras”49.

A escrita da Restante Vida desfaz o que a história deixou fixado nas suas

categorias para fazer aparecer o que se mantém ainda como inquietude e que só pode

eclodir em acontecimentos afastados da cadência dos fatos. Os fatos – ou aquilo que

deve ser destacado na história ou no registro da informação – são sempre dados no

modo de narração do poder, que lhes confere significado e os dota da legitimidade do

48 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.68. 49 Silvina Rodrigues Lopes. A Comunidade sem Regra. p. 202.

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que é incontornável, inegável, evidente, e que serve de prova ou documento. A

tradição da restante vida é feita de acontecimentos e aquilo que nela está escrito não

é a narração do que já foi, ou do que, uma vez sendo, definitivamente é. A tradição

toma o passado não como algo inscrito ou não inscrito, mas, escapando à lógica do

documento, toma-o como o “irreversível que infinitamente se reescreve: enquanto

navegação, essa reescrita está para além de diagnósticos, profecias e doutrinações,

modos de cercear a errância”50. Os fatos históricos, ainda que não sejam negados,

não entram nessa tradição com o peso do verdadeiro ou do definitivo. Os encontros

entre os rebeldes geram acontecimentos simultâneos à escrita – na/ da escrita – e que

não contribuem para um sentido geral exterior ao texto, mas geram o próprio texto. O

texto não toma por objeto um passado histórico e nem está separado daquilo que

narra. Tudo se passa num espaço de convívio de textos - o novo texto - e ali está não

pelo que foi, pelo que poderia ser ou será, mas pelo que cumpre no confronto em que

é exposto, pela exposição e troca de palavras, memórias, gestos e silêncios.

O espírito que muda onde sopra

A busca pela trajetória rebelde não é estabelecer com ele uma continuidade - a

interrupção nega essa possibilidade – mas recriar as formas de aproximação. “Sua

mulher ocasional e eterna era um fenômeno estritamente relacionado com a distância:

freqüentes vezes se perguntava qual seria a qualidade da recordação”. 51A escrita da

Restante Vida retoma o seu movimento numa repetição criadora e, sem se apropriar

deles, permite com que se desviem incessantemente. “Alice e Alissubo não se falavam

pela maneira comum, deixavam repousar entre os dois o distanciamento, o que de

certo modo era idêntico ao tipo de relações que eu desejava manter com Margarida”52.

Se o texto deseja a inscrição rebelde, e a chama enquanto evento do passado

é porque o faz como reinscrição e lembra que, para o rebelde, só é possível se

manifestar como outro, em metamorfose, reconhecer-se no movimento de

transformação que lhe é inseparável. É como se os textos rebeldes fizessem com que,

no ato de herdá-lo, fosse exigido à escrita llansoliana o gesto de se transformar com

eles, pois a sua recordação é sempre uma incitação à mudança, ao deslocamento, a

perda do único para a emergência do múltiplo. A tradição não se deve contentar em

50 Silvina Rodrigues Lopes. Resistir às Máquinas Identitárias. p. 64. 51 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.13. 52 Maria Gabriela Llansol. Na Casa de Julho e Agosto. p.46.

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apropriar-se dos textos que herda apenas para retocá-los e faze-los reafirmar o que

supostamente já haviam dito. Os rebeldes insistem que a sua herança supõe que a

tradição os deva repensar, criar e aproximar do que lhes era afastado. Se o valor

histórico é próximo à confiança e à fidelidade, a escrita da restante vida requer criação

e transformação. Toda criação é singular: o texto não se distancia do que diz, mas se

faz junto com ele, o desloca em direções que não existiam e que até então não eram

possíveis. A tradição não se faz como a recordação legítima, mas como a recordação

singular. A recordação dos rebeldes, desapegada ao passado tal qual foi, torna-se

paragens que atraem o “tenro; o novo; o audacioso; o potente” (L1, 126)

O texto rebelde, por qualquer lado que tomemos seu deslocamento na escrita

llansoliana, ecoa e se espalha. Não diz algo, mas indica, não gera continuidade, mas

traça uma linha interrompida, não se orgulha da inteireza, mas avança com fragilidade

e incompletude. A herança do rebelde é uma tarefa. Afirmar a sua capacidade de

deixar um excedente que ultrapassa cada inscrição é dizer que para o rebelde não há

descanso, não há princípio ou fim, mas torna impossível a forma do definitivo, e torna-

se para sempre a caminho: “Nós suspeitamos todos que não há Norte, nem alguém

que no-lo diga. Pôr-se de novo a caminho é o único caminho”53. A escrita do rebelde é

a dissolução incessante da idéia de fim no que essa palavra tem de tom definitivo.

“Era o fim do texto, mas fim provisório. Recomeçou na manha seguinte o diálogo com o novo ser, diálogo mudo constituído por olhares, carícias, ausências, pensamentos, sorrisos e medo”54.

53 Maria Gabriela Llansol. Lisboaleipzig 1. p.96. 54 Maria Gabriela Llansol. O Livro das Comunidades. p.87.

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BIBLIOGRAFIA CITADA:

DA AUTORA:

LLANSOL, Maria Gabriela, 1994, Lisboaleipzig 1: o Encontro Inesperado do Diverso, Lisboa,

Rolim.

LLANSOL, Maria Gabriela, 1977, O Livro das Comunidades, Porto, Afrontamento.

LLANSOL, Maria Gabriela, 1984. Na Casa de Julho e Agosto, Porto, Afrontamento.

TEXTOS DE REFERÊNCIA:

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BARRENTO, João, 2005, A Voz dos Tempos e o Silêncio do Tempo – o Projecto Inacabado da

História n’O Livro das Comunidades. Lisboa-Sintra, Jade – cadernos llansolianos 6.

BENJAMIN, Walter, 1992, Teses Sobre a Filosofia da História. In: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e

Política, Lisboa, Relógio D’Água.

BLANCHOT, Maurice, 1997, No Caminho de Nietzsche. In: A Parte do Fogo. Rio de Janeiro, Rocco.

EIRAS, Pedro, 2005, Esquecer Fausto: a Fragmentação do Sujeito em Raul Brandão,

Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol, Porto, Campo das Letras.

LOPES, Silvina Rodrigues, 2003, A Comunidade sem Regra. In: Exercícios de Aproximação, Lisboa,

Vendaval.

LOPES, Silvina Rodrigues, 2007, Resistir às Máquinas Identitárias. In: Revista Intervalo n. 3, p. 54-86.