Benjamim de Oliveira, Negro e Rei Dos Palhaços Do Brasil

download Benjamim de Oliveira, Negro e Rei Dos Palhaços Do Brasil

of 10

Transcript of Benjamim de Oliveira, Negro e Rei Dos Palhaços Do Brasil

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 1

    BENJAMIN DE OLIVEIRA: NEGRO E REI DOS PALHAOS DO BRASIL

    Fernando Antnio Fontenele Leo e Maria de Lourdes Macena Filha2

    Graduado em Artes Cnicas/IFCE, Professor substituto no Programa de Licenciatura em Teatro/IFCE. E-mail: [email protected]; 2 Doutoranda em Artes/UFMG, Professora no Programa de Licenciatura em

    Teatro/IFCE. E-mail: [email protected] .

    Artigo submetido em ______/2013 e aceito em ______/2013

    RESUMO

    As aes de polticas afirmativas causa da populao negra brasileira sempre enfrentaram forte reao de parte da sociedade. Assim o foi no Sculo XX e se mantm nesse incio de Sculo XXI. O mito criado em torno da harmonia entre as trs raas que do origem ao povo brasileiro no se sustenta na prtica, em meio a uma sociedade em que a maior parte dos negros brasileiros permanece alijada do direito cidadania plena. Diante dessa percepo, advm uma pergunta: o que teria levado, ento, um negro, filho de escravizados, condio de artista respeitado, chegando mesmo a ser considerado o Rei dos Palhaos do Brasil no incio do Sculo XX? Nosso objetivo reconhecer a importncia de Benjamin de Oliveira para o contexto artstico nacional, como um dos primeiros palhaos negros do

    pas, como o impulsionador de uma tendncia que incrementava o espetculo circense com elementos do teatro e da opereta e, sobretudo, como um grande agitador e militante dos movimentos artstico-culturais da poca. Partindo de uma pesquisa bibliogrfica que inclui, principalmente, a literatura especializada de Ermnia Silva e Miriam Garcia Mendes, artigos de Daniel Marques da Silva e Antnio Srgio Alfredo Guimares, alm de depoimentos em revistas, crticas e crnicas publicadas em jornais do pas, apresentamos um histrico de Benjamim de Oliveira, do nascimento aquisio da tcnica circense; um breve panorama do pas em seu momento ps-abolio; e uma srie de inovaes estimuladas pela genialidade de Benjamim de Oliveira.

    PALAVRAS-CHAVE: teatro brasileiro, circo-teatro, Benjamim de Oliveira.

    BENJAMIM DE OLIVEIRA: THE CLOWNS BLACK KING FROM BRAZIL

    ABSTRACT The public policies directed to black people in Brazil have always faced reactions. The myth of a Racial Paradise where there is no conflict between the races, becomes brittle in the face of society which denies them citizenship rights. Therefore, how can a black artist, son of a slave, be respected and acclaimed as King of Brazils Clowns at the beginning of the twentieth century? We intend to recognize the importance of

    Benjamin de Oliveira for the national artistic context, as an artist actuating on artistic movements period. The main references for this study are the researchs from Ermnia Silva, Miriam Garcia Mendes, Daniel Marques da Silva e Antnio Srgio Alfredo Guimares, besides published articles in newspapers and magazines. We present a short biography of Benjamin de Oliveira, including his innovations and experimentations.

    KEY-WORDS: Brazilian theater, circus theater, Benjamim de Oliveira.

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 2

    BENJAMIN DE OLIVEIRA: NEGRO E REI DOS PALHAOS DO BRASIL

    1. INTRODUO

    O Brasil vive um momento importante em relao s polticas de promoo da igualdade racial e s polticas afirmativas. O governo federal tem se esforado na ltima dcada para o estabelecimento de uma democracia racial, implementando o discurso da recuperao da dvida histrica com sua populao negra e lanando uma srie de programas e projetos por meio de seus Ministrios. No entanto, tais aes acabam por elevar a tenso em uma sociedade cuja elite ainda predominantemente branca e preconceituosa. Para exemplificar, no ms de maio ltimo, a Justia Federal resolveu suspender quatro editais de incentivo cultura negra, lanados pelo Ministrio da Cultura (MinC), sob a alegativa de que os editais destinados exclusivamente aos negros abrem um acintoso e perigoso espectro de desigualdade racial1. No mesmo dia, o Sr. Reinaldo Azevedo, colunista da Revista Veja, publicou um texto em seu blog afirmando que cultura negra, assim como cultura indgena ou cultura branca so mistificaes criadas pelo pensamento politicamente correto. No existem!2. Reao bastante semelhante relatada pelo socilogo Antnio Srgio Guimares (2003), quando, em meados da dcada de 1990, o ento Presidente Fernando Henrique Cardoso pressionado em fruns internacionais para apresentar estratgias de enfrentamento s desigualdades raciais decidiu promover aes afirmativas e acabou por gerar forte oposio da sociedade civil, representada pelos seus principais intelectuais e meios de comunicao de massa, (...) contrria adoo de polticas de cunho racialista (p. 253-254).

    Essa parcela da sociedade que apresenta resistncia s polticas de aes afirmativas argumenta que isso poderia acabar por reforar a ideia de discriminao e aumentar o preconceito e a excluso, ao tempo que reedita o desgastado mito do paraso racial no Brasil3, tal as elites do incio do Sculo XX, que escondia a escravido e falava de um Brasil alegre e moleque, (...) das paisagens e dos requebros das mulatas, bem como dos belos quitutes servidos com o suor negro (SARAIVA, 2012, p. 111). Na prtica, h uma tentativa de um escamoteamento de uma ainda patente discriminao, mantendo o sonho de democracia e justia racial no Brasil no plano da utopia, como podemos identificar no desabafo do historiador e militante negro Emanoel Araujo

    Vivemos numa sociedade que insiste em postergar para sempre a forma de ver o outro, livre dos jarges alimentados por um olhar s vezes perverso, s vezes ambguo, resultado de um passado escravocrata do qual ainda hoje marcas indelveis continuam como obstculos que nos incapacitam de resolver questes muito graves, como o preconceito racial e a excluso social. (ARAUJO, 2011, p. 11)

    1 (O Globo, 22/05/2013). Disponvel em http://oglobo.globo.com/cultura/editais-do-minc-para-cultura-negra-sao-suspensos-8454747 2 (Veja.com Blog Reinaldo Azevedo, 22/05/2013). Disponvel em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/corajoso-juiz-suspende-projeto-racista-de-marta-suplicy-e-marta-suplicy-chama-a-decisao-de-racista/ 3 No Brasil moderno, a ideia do paraso racial, de acordo com GUIMARES (2001), deu lugar construo mtica

    de uma sociedade sem preconceitos e discriminaes raciais (p. 148).

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 3

    Essa discusso distante mais de um sculo do fim da escravido no Brasil nos traz a questo para este artigo. O que teria levado um negro, filho de escravos, condio de artista respeitado, chegando mesmo a ser considerado o Rei dos Palhaos do Brasil, j em fins do Sculo XIX? O que possibilitou o surgimento deste afamado artista popular brasileiro, como anunciou o Dirio de Campinas em janeiro de 1892, quando o sentimento quase gera l experimentado pelo branco era o de vergonha pelo fato do pas ostentar uma colorao to acentuada em grande parte do seu territrio, por culpa exatamente do negro? (MENDES, 1993, p. 156). A busca de respostas para essas questes motivaram esta pesquisa.

    2. MATERIAL E MTODOS Utilizamos a pesquisa bibliogrfica em literatura especializada recorrendo principalmente aos argumentos de Ermnia Silva e Miriam Garcia Mendes, artigos de Daniel Marques da Silva e Antnio Srgio Alfredo Guimares, alm de depoimentos em revistas, crticas e crnicas publicadas em jornais do pas. Usamos o mtodo histrico comparativo, para estabelecer uma trama de relaes com fatos relativos historicidade negra no pas e correlaes com e entre os autores e obras, buscando responder as perguntas-problema. 3. RESULTADOS E DISCUSSO

    Benjamim Chaves nasceu em 11 de junho de 1870, em Par de Minas, mesorregio metropolitana de Belo Horizonte, sendo o quarto filho de Malaquias Chaves e Leandra de Jesus. Crioulos escravos de Roberto Evangelista de Queiroz, conforme registro de batizado de 29 de junho de 1870. (in SILVA, E., 2007, p. 353). Nasce, pois, antes da promulgao da Lei do Ventre Livre4, que estabelecia em seu artigo primeiro que os filhos de mulher escrava que nascessem no Imprio a partir daquela data seriam considerados de condio livre. Porm, de acordo com a pesquisadora Ermnia Silva (2007, p. 90), Benjamim e seus irmos foram considerados alforriados desde o nascimento, por serem filhos de Leandra de Jesus, escrava de estimao dos senhores Roberto de Queirz e Maria Madalena de Jesus5.

    Aos doze anos de idade, conforme relato em entrevista, Benjamim j havia feito de tudo na Fazenda dos Guardas, todas as profisses possveis, desde madrinha de tropa, em que ia frente do carro de boi com lampio para alumiar o caminho, at amansar burro bravo (Revista da Semana, 1944, p. 14). E, depois do dia duro de trabalho, muitas vezes, ainda saia no incio da noite para vender bolo na porta dos circos que com alguma frequncia se instalavam na regio.

    E foi em um desses dias que saiu para vender os quitutes feitos por sua me, que Benjamim decidiu abandonar a vida ancorada na escravido e fugir com a troupe de Sotero Villela. Ali, no modesto circo feito de pau-a-pique, o jovem conhecido por moleque Beijo teve suas primeiras lies de arte circense, orientadas pelo mestre Severino Oliveira, de quem

    4 Lei N 2.040, de 28 de Setembro de 1871. 5 No livro Memrias do Cativeiro, de Hebe Mattos e Ana Lugo Rios, verificamos o quanto o uso do sobrenome sintomtico da relao patriarcal entre o senhor e os escravos de estimao, sendo permitido o uso pelos escravos como uma espcie de premiao. Em um depoimento, um escravizado comenta: Os sinhs do lado do pai eram todos muito bons! O sobrenome deles Mendes... a minha me tambm tem o sobrenome Mendes. Porque os escravos tinham o sobrenome dos sinhs. (Mattos e Rios, 2005, p. 91.)

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 4

    acredita-se adotou o sobrenome. Silva, E. (2003, p. 81), nos diz que (...) alm das tarefas [cotidianas] e do aprendizado dos primeiros saltos e acrobacias, ele tornou-se tambm o palhao-cartaz do circo: montado a cavalo saa com a cara enfarinhada anunciando o espetculo e cantando chulas. Ainda no se tratava de sua estreia como palhao no picadeiro, o que no aconteceria no Circo Sotero. Dali tambm precisou fugir. Primeiro, porque o dono do circo lhe espancava frequentemente6; depois, porque surgiu uma desconfiana por parte de Sotero de que sua esposa o estava traindo com Benjamim. Fugiu, ento, com um grupo de ciganos e ficou com aquele grupo at que descobriu que os ciganos intentavam negoci-lo, trocando-o por um cavalo. Partiu e, dessa vez, foi capturado por um fazendeiro, que o julgou fugido de alguma fazenda7. E, para provar ao fazendeiro que no era escravo e que era de circo, teve que fazer acrobacias. O fazendeiro, convencido de que se tratava realmente de um artista circense, o deixou ir embora. Daniel Marques da Silva apresenta uma importante reflexo de como a arte (ou a tcnica artstica) pode ser e o foi nessa situao utilizada como estratgia de definio de uma posio social.

    Aqui vida e profisso se entrelaam, e v-se um circense que faz uso de estratgias de sobrevivncia pelo acionamento de seu acervo tcnico individual, provando que no pertencia a nenhuma fazenda. Seu pertencimento se estabelecia em uma outra ordem: era mesmo de circo. No de nenhum circo em particular, mas simplesmente de circo, explicitando um parentesco que no se vincula a laos biolgicos. (SILVA, D.M., 2006, p. 57)

    Dali, Benjamim rumou para o Estado de So Paulo, e trabalhou em vrios circos antes de sua estreia como palhao, que se deu pelo fato de que o palhao principal da Companhia de Albano Pereira, Freitinhas, havia adoecido. A estreia foi desanimadora. De acordo com Araujo (2011),

    um palhao negro no era coisa que algum j tivesse visto, nem no Brasil nem no resto do mundo. A apario de Benjamim foi trgica. Primeiro uma chuva de vaias, depois uma chuva de ovos, batatas, tomates e o mais que os frequentadores de circo conseguissem levar na mo. (p. 102).

    Depois de algumas semanas de recuperao, Freitinhas voltou a seu posto de palhao principal, porm com um auxiliar que lhe ressaltaria as graas, Benjamim. O prprio Benjamim (apud SILVA, E., 2007) afirma que, aos poucos,

    foi aperfeioando suas pilhrias, melhorando sua performance e caindo no agrado do pblico: comeou a ser bisado, recebendo calorosa ovao, principalmente quando comeou a se apresentar como palhao tocador de violo e danador de chula e lundu (p. 130).

    6 A pesquisadora Ermnia Silva (2007) levanta uma importante questo. Segundo ela, havia, de fato, uma suspeio contra escravos e libertos, ou melhor, contra todas as pessoas que traziam na cor da pele a marca da escravido, no entanto, no podemos atribuir a isso a nica causa dos espancamentos relatados por Benjamim. Silva, retomando relatos de Ferdinando Seyssel, pertencente a uma tradicional famlia mambembe e pai do famoso Palhao Arrelia, lembra que apanhar e ser castigado no eram privilgios de alguns, mas de todas as crianas dentro do circo, filhos ou no dos proprietrios, rapazinhos ou mocinhas (p. 97). 7 Relatos do prprio Benjamim (in GUSMO, 1940) situam esse perodo aproximadamente entre os anos de 1885 e

    1886, ou seja, anterior promulgao da Lei urea (Lei N 3.353, de 13 de maio de 1888), em que declarada extinta a escravido no Brasil.

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 5

    No incio da dcada de 1890, Benjamim dominava tcnicas de canto, msica instrumental, dana, representao e surgia como sinnimo de bom pblico aos circos em que trabalhava, levando diversos empresrios a disputarem por seu trabalho.

    O Brasil vivia um momento de profundas mudanas: a monarquia brasileira perdera o prestgio; findara a escravido e o imprio; o pas se tornava republica. De acordo com Emilia Costa (1982), com o fim oficial da escravido, em 1888,

    os ex-escravos foram abandonados a sua prpria sorte. Caberia a eles, da por diante, converter sua emancipao em realidade. Se a lei lhe garantia o status jurdico de homens livres, ela no lhe fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva (p. 15).

    A parcela branca da sociedade brasileira, vivendo entre o preconceito e as doutrinas cientficas divulgadas poca8, estabelecia uma relao distanciada com o negro, s o admitindo se o negro se mantivesse no seu lugar, se no tentasse estabelecer com o branco um relacionamento que transpusesse esse limite (MENDES, 1993, p. 138). No campo da arte e dos espetculos, a tenso era tambm patente, a despeito de grandes e talentosos artistas do quilate do j consagrado Pixinguinha, por exemplo. Jeferson Bacelar, resenhando o livro Coraes de Chocolat: a histria da Companhia Negra de Revistas, nos diz

    (...) havia uma resistncia considervel aos negros e sua cultura, muitas vezes revelada de maneira exacerbada no mundo do espetculo. O problema do artista negro, ao que parece, consistia em se mostrar no palco, uma vez que no havia impedimento de que os msicos negros tocassem nas orquestras dos teatros, ocultos no fosso, ou parte, sem destaque nem foco de luzes. (BACELAR, 2007, p. 438)

    Ainda Miriam Garcia Mendes (1993) quem exemplifica a situao a partir de duas peas teatrais de Artur Azevedo, A Capital Federal, de 1897, e O dote, de 1907. Na primeira, temos a personagem Benvinda que a mulatinha, cria da casa, gozando da confiana e da amizade dos patres, mas tambm conhecendo o seu lugar (id. ibid., p. 139); na segunda, a personagem Pai Joo, dcil nonagenrio, dedicado e humilde, que acalentava ngelo (filho do Sinh) em criana. De acordo com Mendes, Pai Joo, com o despojamento de si mesmo, na dedicao total ao sinh-moo e seus descendentes, perpetua a figura do escravo fiel, um dos mais importantes esteretipos criados pela escravido (...) (id. ibid., p. 139).

    A Proclamao da Repblica trazia tambm em seu bojo uma ideologia de modernizao e civilidade, que queria transformar as grandes cidades, em especial, a capital do pas, Rio de Janeiro, numa Paris Tropical como denunciou de forma bem-humorada Juca Chaves, anos depois. Os intelectuais, por sua vez, assumiam esse discurso e se mostravam intransigentes com os modelos populares. As produes artsticas

    8 Nina Rodrigues, maranhense, mdico e pioneiro dos estudos africanos no Brasil, a despeito de sua defesa apaixonada da causa negra, comungava do pensamento cientfico da poca, como confirma seu livro Os africanos no Brasil. O critrio cientfico da inferioridade da raa negra nada tem de comum com a revoltante explorao que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos. Para a cincia no esta inferioridade mais do que um fenmeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogentico da humanidade nas suas diversas divises ou sees. (RODRIGUES apud VOGT, 2005, p. 1-2)

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 6

    eram tema de discusses entre polticos, literatos, crticos e intelectuais, que tentavam analisar como era ou deveria ser o gosto do pblico, como e quais deveriam ser os gneros, textos, encenaes a serem produzidas, e como elas contribuiriam para a formao de um povo que se desejava educado e civilizado (SILVA, E., 2003, p. 88).

    H, nesse momento, uma impressionante ampliao de espaos de sociabilizao, como cafs, cinemas, music-halls, livrarias, teatros e, com esses espaos, o incremento de uma intensa e diversa produo artstica. O circo, porm, no perdeu seu posto de veculo de massa. Ao contrrio, ganhou ainda mais adeptos ao se recriar, incorporando influncias de diversas novas formas de espetculo. O circo, do Sculo XIX at a primeira metade do Sculo XX, era das expresses artsticas a que tinha um pblico mais numeroso.

    No incio da dcada de 1890, chegava Benjamim ao Rio de Janeiro, junto troupe do Comendador Manuel Gomes, ou Comendador Caamba, como era conhecido. Ali, o palhao Benjamim se firmaria como artista respeitado. Seria mesmo assistido pelo presidente da Repblica, o Marechal Floriano Peixoto. Sobre esse caso, nos conta Araujo (2011), que Benjamim chegou a ir visitar o presidente no Palcio do Catete e feito um acordo para divertir os soldados, em plena Revolta da Armada9. Para tanto,

    (...) o circo precisava vir para o centro da cidade. E veio para a praa da Repblica, trazido em carroas do exrcito, por soldados do exrcito. Mais que isso, passou a receber subveno oficial de 150 mil-ris mensais, para que os soldados entrassem sem pagar. Moreira Csar, pessoalmente, fazia os pagamentos. E soltaria muito preso a pedido de Benjamim (...) (p.102).

    Na mesma dcada, foi do Circo do Comendador para o Circo Spinelli, armado na Praa da Bandeira, no Rio de Janeiro, onde o palhao-cantor se fixaria por mais de duas dcadas e se faria conhecer e ser respeitado pela sociedade e pelos artistas cariocas. Ali, a dupla Spinelli e Benjamim consolidam o circo-teatro no Brasil, mais tarde conhecido por Pavilho, e SILVA, D. M. (2006) acredita ser Benjamim de Oliveira o primeiro dramaturgo do gnero10.

    Os textos produzidos para o circo-teatro, adaptados ou originais, tiveram grade popularidade nas primeiras dcadas do Sculo XX, sendo, alguns deles, levados ao cinema, a grande novidade no perodo. J no ano de 1908, Benjamim de Oliveira estreia no cinema, sendo o responsvel pela mise-em-scne11 e o papel principal de Os guaranis. De acordo com Sandra Reimo (2006),

    O primeiro filme brasileiro que teria tido por origem um romance de um autor brasileiro foi Os guaranis, de 1908. Porm, nesse caso, no se tratava de uma adaptao literria propriamente dita, mas sim da filmagem de uma pantomima circense, esta sim,

    9 A chamada Revolta da Armada foi um movimento de rebelio promovido por unidades da Marinha do Brasil, supostamente apoiadas pela oposio monarquista recente instalao da Repblica, contra o governo do marechal Floriano Peixoto. 10 Benjamim de Oliveira, em depoimento concedido ao jornalista Brcio de Abreu, diz ter sido o criado do circo-teatro. No entanto, Silva, D.M. (2006) afirma que em suas pesquisas encontrou vrios autores, em especial Paulo Mersio (1999) e Regina Horta Duarte (2005), informando que o repertrio dos circos j abrigava pantomimas cmicas e melodramticas, dilogos cmicos entre palhaos, apresentaes de danas e nmeros musicais, mesmo antes de Benjamim de Oliveira comear sua carreira no circo (p.56). 11 A expresso, originria do francs, significa colocado em cena. De um modo geral, utilizada para se referir encenao teatral ou cinematogrfica.

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 7

    inspirada no romance de Jos de Alencar. Este filme era um curta-metragem e teve como operador Roberto Leal. No elenco, alm de atores, encontrava-se a troupe do circo Spinelli12 (p. 5)

    As divulgaes em jornais da poca informavam que essa montagem anunciada como D. Antnio e os Guaranis tinha 22 quadros, 70 pessoas em cena e 22 nmeros de msica. Era, naquele momento, o teatro ligeiro musicado melodrama, vaudeville, burleta, opereta que movimentava a produo cultural no Rio de Janeiro, e o palhao-cantor no se furtava em absorver e resignificar essas influncias, adaptando ou escrevendo novos textos e ensaiando grandiosos espetculos. E, se alguns crticos literrios e intelectuais no aceitavam a amlgama de gneros artsticos, o pblico leigo das regras de esttica europeia se fascinava com as produes do espetculo cnico popular. Um dos pontos altos dessa produo foi a adaptao para o picadeiro da opereta A viva alegre, de Franz Lehar, escandalizando a engravatada elite que a assistia no Teatro Lrico, cantada pelos maiores nomes daqui e de fora (ARAUJO, 2011, p. 103). Como era de supor,

    o circo j no lhe bastava, e ele [Benjamim] teve de andar tambm pelos teatros, requisitado pelo pblico. Em Niteri faria a alegria dos frequentadores do Cine Teatro den e, mais tarde, do velho Coliseu, onde ainda em 1927 estaria para inaugurar as soires chics, ao lado de Isabel da Cmara. E no Santana, do Rio, fora assistido por Arthur Azevedo, que o saudou de mos juntas, tocado de entusiasmo (id., ibid., p. 103)

    Benjamim continuou a montar suas farsas, melodramas, revistas, operetas, pantomimas, comdias e dramas com grande popularidade at a dcada de 1930. Tornou-se um grande divulgador da obra de grandes msicos, caso do maranhense Catulo da Paixo Cearense com quem estabeleceu uma fecunda parceria. Conseguiu, pela simpatia e personalidade agregadora, promover a aproximao e uma trgua nas disputas entre artistas de circo e de teatro, que consideravam a prtica circense uma arte menor. Inclusive, os crticos teatrais passaram a considerar o pavilho como produo passvel de reflexes e anlises. Em uma dessas, tratando de uma montagem de O Colar Perdido, texto de Arthur Azevedo para o Circo Spinelli, podemos notar a revoluo empreendida, significativamente, pela genialidade do palhao Benjamim:

    O pblico afluiu em massa. A enchente era real, notando-se entre os espectadores senhoras e cavalheiros da melhor sociedade. O espetculo constou de 2 partes; na 1, exclusivamente ginstica e acrobtica, (...) A 2 parte constou da pea O Colar Perdido, que participa da mgica, da farsa, da opereta e da pantomima. um gnero, pode-se dizer, criado pelo popular Benjamim, o Tabarin do Circo Spinelli. (...) No papel de Leandro, campons, o Benjamim foi a alegria da noite. No abria a boca, no fazia um gesto sem provocar uma gargalhada! (...) O pblico que belo pblico! aplaudia entusiasticamente todas as vezes que a virtude era recompensada. J no se ouvem desses aplausos nos nossos teatros, onde a virtude passou h muito tempo para o ltimo plano. Enfim, um delicioso espetculo, que lisonjeou bastante o nosso Arthur Azevedo (in SILVA, 2007, p. 235)

    No fim da dcada de 1930, os tempos ureos do circo iam se extinguindo. O grande Circo Spinelli se transformou em companhia teatral, a receita diminuiu e as produes perderam o

    12 Interessante notar aqui a diferenciao que a autora faz entre atores e a troupe do circo. De acordo com Ermnia Silva (2007, p. 157), os artistas circenses dificilmente eram considerados atores, pois sua prtica diferia dos critrios de apreciao daquilo que se supunha ou se idealizava como uma boa representao.

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 8

    glamour. Benjamim ainda buscou outros circos, caso do Dorby e do Circo Dudu, onde encerrou sua carreira de palhao-cantor e tocador de violo. Com o fechamento dos circos, chegaram tambm as dificuldades financeiras. Benjamim sobreviveu os ltimos anos de vida s custas de uma penso do governo conforme nos diz Araujo (2011):

    Quando veio a Constituinte de 46, Brcio de Abreu retratou-o numa reportagem antolgica, convocando os ento deputados Rui de Almeida, Afonso Carvalho e Jorge Amado a lutarem por uma penso para o Rei dos Palhaos do Brasil. Convocao aceita, o projeto foi aprovado e Dutra sancionou-o em 3 de outubro de 1947, garantindo a Benjamim uma penso vitalcia de mil cruzeiros. Era um dinheiro razovel na poca, para quem transitara da glria para a misria (p. 103).

    O famoso e genial palhao negro Benjamim de Oliveira morreu em 3 de maio de 1954.

    4. CONCLUSO

    Este trabalho pretendeu estudar a importncia de Benjamim de Oliveira para o contexto artstico nacional na transio do Sculo XIX para o Sculo XX, ao mesmo tempo que perseguiu a questo sobre o que levou esse artista, negro, condio de respeitado e aclamado pela sociedade como o Rei dos Palhaos do Brasil.

    De condio humilde, filho de escravizados, Benjamim fugiu com um circo aos 12 anos na tentativa de escapar do destino de cativo. A tcnica artstica apreendida no circo lhe permitiu integrar-se socialmente e ir alm, fomentando e consolidando significativas mudanas no universo cnico-popular, revelia do pensamento crtico da poca que lamentava o gosto do pblico interessado pelos espalhafatos dos espetculos de feira, que apenas falava aos sentidos e instintos inferiores.

    Percebemos, a partir dos documentos que acessamos, que Benjamim de Oliveira foi um artista assaz relevante para sua poca. Por consolidar uma tendncia de circo-teatro, que ampliou a teatralidade circense, popularizou cenas e textos clssicos do universo teatral, caso de Otelo, de Shakespeare, por exemplo, e influenciou na prpria formao dos artistas circenses, ampliando suas possibilidades de ao; por ter estimulado e defendido uma grande e vistosa tambm bastante cara produo do espetculo, chegando ele mesmo a assumir os custos dos alugueis dos figurinos nas primeiras montagens, perodo em que Spinelli, ainda receoso, no investira na compra de um guarda-roupa; por ser um artista mltiplo (palhao, ator, ginasta, acrobata, dramaturgo, diretor artstico, msico, cantor, etc.), dotado de grande senso de criatividade e originalidade, e motivado sempre a experimentaes; por ser um animador e militante dos movimentos culturais da poca, conseguindo por seu carisma e prestgio promover o dilogo entre artistas e entre artistas e a classe poltica sabido que Benjamim era admirado e tinha acesso a autoridades polticas como o Marechal Floriano Peixoto, Washington Lus e Hermes da Fonseca. Acreditamos, pois, que a aclamao como Rei dos Palhaos do Brasil advm das posturas e realizaes de Benjamim de Oliveira acima elencadas.

    A literatura especializada em torno de artistas e grupos artsticos negros no Brasil ainda pequena. Por isso mesmo, somos impulsionados a continuar as pesquisas na rea, certos de poder oferecer uma contribuio real causa negra em meio s atrocidades perpetradas pela sociedade brasileira contra essa parcela da populao, ao mesmo tempo em que tiramos o vu

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 9

    que nos impede de ver a importncia da presena negra nas artes brasileiras em nosso caso especial, o teatro.

    REFERNCIAS

    1. ARAUJO, Emanoel (org.). Textos de negros e sobre negros. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo/Museu Afrobrasil, 2011.

    2. BACELAR, Jeferson Afonso. Resenha de "Coraes de Chocolat. A Histria da Companhia Negra de Revistas (1926-1927)". In: Revista de Antropologia, So Paulo, USP, v. 50, n 1, p. 437 443, 2007.

    3. CORSI, Margarida da Silveira. Cinema e literatura: aliados na construo da stima arte nacional. Revista Eletrnica Polidisciplinar Vos, v. 04, p. 03-20, 2012.

    4. COSTA, Emlia Viotti. A Abolio. So Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda. 1982.

    5. GUIMARES, Antnio Srgio Alfredo. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Estudios Sociolgicos, So Paulo, v. XX, n.61, p. 147-162, 2001.

    6. GUIMARES, Antnio Srgio Alfredo. Acesso de negros s universidade pblicas. Cadernos de Pesquisa (Fundao Carlos Chagas), So Paulo, n.118, p. 247-268, maro/2003.

    7. GUSMO, Clvis de As grandes reportagens exclusivas O rei dos palhaos, in Jornal Literrio Dom Casmurro. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1940.

    8. HOFBAUER, Andreas . Aes afirmativas e o debate sobre racismo no Brasil. Lua Nova (Impresso) So Paulo, 2006. p. 9-56,

    9. MATTOS, Hebe; RIOS, Ana Lugo. Memrias do Cativeiro: famlia, trabalho e cidadania na ps-abolio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.

    10. MENDES, Miriam Garcia. O negro e o teatro brasileiro. So Paulo: Hucitec, 1993.

    11. MOURA, Clvis. 'Histria do negro brasileiro'. So Paulo: tica, 1989.

    12. REIMAO, Sandra Lcia Amaral de Assis. Cinema brasileiro e adaptao de literatura ficcional de autores nacionais- algumas observaes. Comunicao & Inovao, v. 6, p. 4-8, 2006.

    13. Revista A Noite Ilustrada, Tragdia de Palhao, N 469, de 28 de junho de 1938.

    14. Revista da Semana. Reportagem: E o palhao, o que ?. Rio de Janeiro, n. 41, 07.08.1944.

    15. SARAIVA, Jos Flavio Sombra. frica parceira do Brasil Atlntico. Belo Horizonte: Fino Trao, 2012.

    16. SILVA, Daniel Marques da. O palhao negro que danou a chula para o Marechal de Ferro. In: Sala Preta. So Paulo, Departamento de Artes Cnicas, Escola de Comunicaes e Artes, USP. n. 6, 2006. pp. 55-63.

    17. SILVA, Ermnia. As mltiplas linguagens na teatralidade circense: Benjamin de Oliveira e o circo-teatro no Brasil no final do sculo XIX e incio do XX (tese de doutorado). Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, 2003.

  • LEO & MACENA FILHA (2013)

    Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovao, 2013 10

    18. SILVA, Ermnia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. So Paulo: Altana, 2007.

    19. SOUSA JUNIOR, Walter de. As farsas de Piolin: entre o grotesco e a contemporaneidade. Repertrio Teatro & Dana, v. 13, p. 74-82, 2010.