BeneditoNunes-Clarisse Lispector

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Capítulo do livro de B. Nunes sobre Clarisse Lispector,

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NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. So Paulo: tica, 1995, p. 99-101.

1 UMA TEMTICA DA EXISTNCIADe Perto do corao selvagem a O livro dos prazeres possvel seguirmos uma linha de continuidade temtica, que os contos includos nas principais coletneas da autora ainda tornam mais ntida. Autoconhecimento e expresso, existncia e liberdade, contemplao e ao, linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relaes intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais so os pontos de referncia do horizonte de pensamento que se descortina na fico de Clarice Lispector, como a diania intrnseca de uma obra na qual relevante a presena de um intuito cognoscitivo, espcie de eros filosfico que a anima. Mas a permanncia desses temas nas diversas partes que a constituem, no poderia garantir, por si s, uma concepo do mundo. O que importa, independentemente da generalidade com que a se apresentam, a modulao que lhes impem determinados motivos, entrevistos nas anlises da primeira parte deste ensaio, e que aparecem freqentemente combinados ou de maneira isolada, mas com a insistn- [p.99]

cia de leitmotifs que atravessam a obra, repetidos de romance a romance ou de conto a conto: a inquietao, o desejo de

ser, o predomnio da conscincia reflexiva, a violncia interiorizada nas relaes humanas, a potncia mgica do olhar, a exteriorizao da existncia, a desagregao do eu, a identidade simulada, o impulso ao dizer expressivo, o grotesco e/ou o escatolgico, a nusea e o descortnio silencioso das coisas.Esses motivos, que diferentes situaes reconfiguram, no apenas se relacionam diretamente com os pontos de referncia mais gerais da obra, mas se articulam entre si formando a totalidade significativa de uma concepo do mundo. Nenhum desses motivos tem pleno sentido se desligado dos outros, e cada qual, dentro do conjunto por todos formado, remete-nos unidade do pensamento comum que os engloba, e por onde passa a linha de continuidade temtica da obra de Clarice Lispector. A temtica assim compreendida uma temtica marcadamente existencial. Muitos de seus registros especficos esto intimamente ligados, conforme veremos nos captulos seguintes, a certos tpicos da filosofia da existncia, e mais particularmente ao existencialismo sartriano. Admitir esse relacionamento no implica admitir-se a interferncia direta (ou a influncia) de uma dada filosofia sobre a escritora, para explicar (ainda que essa influncia pudesse ser determinada como matria de fato) os aspectos peculiares de sua criao literria. Trata-se de uma afinidade concretizada no mbito da concepo do mundo de Clarice Lispector, mas que no determina de fora para dentro essa concepo. existencial a temtica que lhe serve de arcabouo. Mas o sentido global que essa totalidade significativa nos oferece j diverge - e largamente - quer da filosofia da existncia centrada em torno da ideia de existncia como realidade fctica, quer do existencialismo propriamente dito, vinculado ao pensamento de L 'tre et le Nant. A divergncia est na perspectiva mstica que prevalece afinal e redimensiona os nexos temticos formadores da concepo do mundo de Clarice Lispector nexos [p. 100]

que comeam a ser repensados e desfeitos em O livro dos prazeres, "romance de romances, como o denominamos (cf. Do monlogo ao dilogo), onde a temtica da obra reflui, para ser reavaliada e suspensa a uma negao iminente que ameaa rompe-Ia. Apreciaremos, nos captulos seguintes, os motivos constantes que se repetem nos contos e romances da autora. Mas como esses motivos, que conduzem a experincia interior, tambm qualificam a conduta das personagens, atribuindo a todas, independentemente das situaes particulares que ocupam, uma mesma configurao que as define do ponto de vista de suas relaes com os outros e com as prprias coisas, comearemos pela descrio do modo de ser afetivo que as caracteriza, para chegarmos, por fim, ao mundo em que se movimentam. S ento poderemos entrever, na articulao dos motivos, a forma de sentir e de pensar que constitui a totalidade significativa de uma concepo do mundo .O valor da nusea em Clarice Lispector remete-nos a uma atitude perante as coisas e o ser em geral, que difere da sartriana. Conforme veremos, a perspectiva mstica suplanta a existencial inerente temtica da obra. Mas em consequncia disso, a subjetividade, e portanto a experincia interior, perdero o privilgio ontolgico que o existencialismo propriamente dito lhes outorga. As relaes prticas parecem consolidar e agravar, no mundo de Clarice Lispector, uma alienao sem remdio enraizada na prpria existncia individual. [p. 101]