BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACÃO EM NY

download BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACÃO EM NY

of 4

Transcript of BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACÃO EM NY

  • 7/30/2019 BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACO EM NY

    1/4

    Bem-vindo ao deserto do realFrance Presse

    Bombeiro descansa

    durante as buscas

    por sobreviventes

    aps o atentado em

    Nova York, ocorrido

    no ltimo dia 11

    Queda do World Trade Center ruiu percepo de que EUA poderiam viver em um

    mundo de especulaes desconectadas da esfera da produo material e fora pas aatravessar tela fantasmtica que o separa do exterior

    A fantasia paranica americana mxima a de um indivduo vivendo em uma pequena eidlica cidade californiana, um paraso consumista, indivduo que de repente comea asuspeitar que o mundo no qual vive seja falso, um espetculo encenado para convenc-lo de que ele vive em um mundo real, enquanto todas as pessoas sua volta soefetivamente atores e figurantes em um programa gigante. O exemplo mais recentedisso "The Truman Show" (1998), de Peter Weir, com Jim Carrey no papel de umvendedor de seguros da cidadezinha que gradualmente descobre ser o protagonista deum programa de TV permanente e transmitido 24 horas por dia: sua cidade natal construda dentro de um gigantesco set de filmagem, com cmeras que o seguempermanentemente.Entre seus predecessores, vale a pena mencionar o livro "Time Out of Joint" (TempoFora dos Eixos), de Philip K. Dick, no qual o protagonista, vivendo uma vida cotidianamodesta na mesma idlica cidade californiana no final dos anos 50, gradualmentedescobre que a cidade inteira um embuste encenado de forma a mant-lo satisfeito... A

    experincia subjacente de "Time Out of Joint" e "The Truman Show" que o parasoconsumista californiano do capitalismo tardio , em sua prpria hiper-realidade, de certaforma irreal, insubstancial, privado de inrcia material.Ento no apenas Hollywood que encena uma aparncia de vida real privada do peso eda inrcia da materialidade -na sociedade consumista do capitalismo tardio, a prpria"vida social real" de algum modo adquire caractersticas de uma sociedade encenada,com nossos vizinhos na vida "real" agindo como atores e figurantes... Novamente averdade mxima do universo capitalista, utilitrio e desespiritualizado, adesmaterializao da prpria "vida real", a inverso desta em um show espectral.Entre outros, Christopher Isherwood deu expresso a essa irrealidade da vida cotidiananorte-americana, exemplificada no quarto de motel: "Motis norte-americanos so

    irreais! (...) Eles so deliberadamente projetados para serem irreais. (...) Os europeusnos odeiam porque ns nos retiramos para viver dentro de nossas propagandas, como

  • 7/30/2019 BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACO EM NY

    2/4

    ermites entrando em cavernas para se dedicar contemplao". O conceito de PeterSloterdijk de "esfera" aqui literalmente realizado, como a gigantesca esfera de metalque envolve e isola a cidade inteira. Anos atrs, uma srie de filmes de fico cientficacomo "Zardoz" (1974) e "Logan's Run" (1976) prognosticou a condio ps-modernaatual ao estender essa fantasia prpria comunidade: o grupo isolado vivendo uma vida

    assptica em uma rea isolada ambiciona a experincia de um mundo real de decadnciamaterial."Matrix" (1999), o hit dos irmos Wachowski, trouxe essa lgica ao seu pice: arealidade material que todos ns experimentamos e vemos nossa volta uma realidadevirtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador ao qual estamos todosconectados; quando o heri (papel desempenhado por Keanu Reeves) desperta na"realidade real", ele v uma paisagem arrasada plena de runas queimadas -o que restoude Chicago aps uma guerra mundial. O lder da resistncia Morpheus pronuncia asaudao irnica: "Bem-vindo ao deserto do real". No foi algo da mesma ordem queocorreu em Nova York no dia 11 de setembro? Seus cidados foram apresentados ao"deserto do real" -para ns, corrompidos por Hollywood, a paisagem e as cenas que

    vimos das torres arruinadas no puderam deixar de nos lembrar das sequncias maisimpressionantes dos grandes filmes de catstrofe.Ao ouvir como os ataques foram um choque totalmente imprevisto, como oinimaginvel impossvel aconteceu, deve ser lembrada outra catstrofe definidora, docomeo do sculo 20: aquela do Titanic. Tambm foi um choque, mas o espao para ele

    j havia sido preparado em fantasias ideolgicas, j que o Titanic era o smbolo dopoder da civilizao industrial do sculo 19. O mesmo no verdade para essesataques? No apenas a mdia nos bombardeava o tempo todo falando da ameaaterrorista; essa ameaa era tambm obviamente libidinalmente investida -basta lembrara srie de filmes, de "Fuga de Nova York" a "Independence Day". O impensvel queaconteceu era portanto o objeto de fantasia: de certo modo, os EUA receberam aquiloque era o objeto de suas fantasias, e isso foi a surpresa maior. precisamente agora, quando estamos lidando com o real cru da catstrofe, quedevemos ter em mente as coordenadas ideolgicas e fantasmticas que determinam apercepo dela. Se h algum simbolismo no colapso das torres do World Trade Center,ele no tanto a antiga noo de "centro do capitalismo financeiro", mas, ao contrrio, anoo de que as duas torres representavam o centro do capitalismo virtual, deespeculaes financeiras desconectadas da esfera da produo material. O impactoestilhaador dos ataques s pode ser medido contra a fronteira que hoje separa oPrimeiro Mundo digitalizado do Terceiro Mundo "deserto do real". a conscincia deque ns vivemos em um universo artificialmente isolado que gera a noo de que um

    agente ominoso nos ameaa todo o tempo com a destruio total.Foi, consequentemente, Osama bin Laden a mente criminosa que surgiu como aprincipal suspeita dos ataques, e no a contraparte na vida real de Ernst Stavro Blofeld,o mestre criminoso na maioria dos filmes de James Bond, envolvido em atos dedestruio global. O que deve ser lembrado aqui que o nico lugar em filmeshollywoodianos em que ns vemos o processo de produo em toda a sua intensidadeaparece quando James Bond penetra o domnio secreto do mestre criminoso e localizaali o lugar de trabalho intenso (destilao e embalagem das drogas, construo do mssilque destruir Nova York...). Quando o mestre criminoso, aps capturar Bond, o leva emum passeio por suas instalaes ilegais -no isso o mais prximo que Hollywoodchega de uma orgulhosa apresentao socialista-realista da produo em uma fbrica? E

    a funo da interveno de Bond, claro, explodir em fogos de artifcio o local deproduo, permitindo a ns o retorno ao aspecto dirio de nossa existncia em um

  • 7/30/2019 BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACO EM NY

    3/4

    mundo com a "classe trabalhadora em desaparecimento". No foi isso que aconteceu naexploso das torres do World Trade Center, essa violncia, comumente dirigida aoameaador Exterior, voltada contra ns?A esfera segura em que os americanos vivem experimentada como sob uma ameaaconstante do Exterior de ataques terroristas, que so impiedosamente auto-sacrificantes

    e tambm covardes, que so afiadamente inteligentes e tambm brbaros primitivos.Sempre que encontramos um mal to puro no Exterior, ns devemos reunir a coragempara apoiar a lio hegeliana: nesse Exterior puro, ns devemos reconhecer a versodestilada de nossa prpria essncia. Pois nos ltimos cinco sculos a prosperidade e paz(relativas) do Ocidente "civilizado" foram compradas pela exportao de impiedosaviolncia e destruio ao Exterior "brbaro": a longa histria desde a conquista daAmrica ao massacre no Congo. Por mais que soe cruel e indiferente, ns tambmdeveramos, agora mais do que nunca, ter em mente que o efeito desses ataques defato muito mais simblico do que real. Os EUA apenas provaram o que acontece noresto do mundo diariamente, de Sarajevo a Grozni, de Ruanda e do Congo a Serra Leoa.Se forem adicionados situao em Nova York atiradores de elite e estupros em massa,

    possvel ter uma idia do que era Sarajevo uma dcada atrs.Foi quando assistimos na tela de TV ao colapso das duas torres do World Trade Centerque se tornou possvel experimentar a falsidade dos "reality shows" da TV: mesmo seesses shows forem "de verdade", as pessoas ainda atuam neles -elas simplesmenteatuam como elas mesmas. O aviso padro em um romance ("as personagens deste textoso ficcionais, qualquer semelhana com pessoas da vida real mera coincidncia")tambm verdade para os participantes dessas novelas "reality": o que vemos l sopersonagens ficcionais, mesmo se eles atuam como si prprios "de verdade". claro, o"retorno ao real" pode receber diferentes desvios: comentadores de direita, comoGeorge Will, quase imediatamente proclamaram o fim das "frias" que os EUA haviamtirado da histria -o impacto da realidade tendo estilhaado a torre isolada da atitudeliberal tolerante e o enfoque dos "estudos culturais" na textualidade. Agora ns somosforados a revidar, a lidar com inimigos reais no mundo real... Entretanto revidar contraquem? Qualquer que seja a resposta, ela nunca atingir o alvo exato, trazendo-nossatisfao completa. H uma verdade parcial na noo de "choque de civilizaes"atestada aqui -um testemunho exemplifica a surpresa do americano mdio: "Como possvel que eles tenham tanto desapego a suas prprias vidas?". No o outro ladodessa surpresa o triste fato de que ns, em pases do Primeiro Mundo, achamos cada vezmais difcil at imaginar uma causa pblica ou universal pela qual sacrificar a prpriavida?

    Ideologia hegemnica Quando, aps os atentados, at mesmo o ministro das RelaesExteriores do Taleban disse que podia "sentir a dor" das crianas americanas, isso nofoi uma confirmao do papel ideolgico hegemnico dessa "frase registrada" de BillClinton? Alm disso, a noo dos Estados Unidos como um porto seguro, claro, tambm uma fantasia: quando um nova-iorquino comentou sobre como, aps osatentados, no mais possvel andar com segurana pelas ruas da cidade, a ironia dissofoi que, bem antes dos ataques, as ruas de Nova York eram famosas pelo perigo de seratacado ou, no mnimo, assaltado -se alguma mudana houve, o que esses atentadoscriaram foi um novo sentimento de solidariedade, com cenas de jovens afro-americanosajudando um velho senhor judeu a atravessar a rua, cenas inimaginveis h alguns dias.Agora, nos dias imediatamente subsequentes aos ataques, como se ns estivssemos

    em um tempo nico entre um evento traumtico e o seu impacto simblico, comonaqueles momentos em que nos cortamos profundamente e a dor ainda no nos atingiu

  • 7/30/2019 BEMVINDO AO DESERTO DO REAL - FURACO EM NY

    4/4

    por completo -ainda est em aberto o modo como os eventos sero simbolizados, qualser sua eficcia simblica, que atos eles sero chamados a justificar. Mesmo aqui,nestes momentos de incomparvel tenso, essa associao no automtica e simcontingente. J h os primeiros maus pressgios; no dia aps os ataques, eu recebi umamensagem de um jornal que estava prestes a publicar um longo texto meu sobre Lnin,

    dizendo que haviam decidido adiar a publicao -haviam considerado inoportunopublicar um texto sobre Lnin imediatamente aps os atentados. Ser que isso noaponta para ominosas rearticulaes ideolgicas que se seguiro?

    Uma ilha includa Ns ainda no sabemos que consequncias, na economia, naideologia, na poltica, na guerra, ter esse evento, mas uma coisa certa: os EUA, que,at este momento, se acreditavam uma ilha excluda desse tipo de violncia,testemunhando acontecimentos como esse pela distncia segura da tela de TV, estoagora diretamente envolvidos.Ento a alternativa : vo os americanos decidir fortificar ainda mais sua "esfera" ouvo arriscar-se a sair dela? Ou os Estados Unidos vo persistir nessa atitude de "por que

    isso deveria acontecer a ns? Coisas assim no acontecem por aqui!", quem sabe atfortalecer essa atitude, levando a mais agressividade contra o Exterior ameaador, emresumo: a uma atuao paranica.Ou os Estados Unidos vo finalmente arriscar-se a atravessar a tela fantasmtica que ossepara do mundo exterior, aceitando a chegada deles ao mundo real, fazendo apassagem j por demais atrasada do "uma coisa assim no deveria acontecer por aqui!"para "uma coisa assim no deveria acontecer em lugar nenhum!". As "frias da histria"dos EUA foram um embuste: a paz americana foi comprada por meio de catstrofes queaconteceram em outros lugares. A reside a verdadeira lio dos atentados: o nicomodo de assegurar que no acontecero novamente evitar que aconteam em qualquerlugar.

    Slavoj Zizek filsofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana,autor de "Eles No Sabem O que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seo"Autores", do Mais!.

    Traduo de Victor Aiello Tsu.