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ISSN 1982-5994 ISSN 1982-5994 UFPa • aNo XXX • N. 131 • JUNHo e JULHo, 2016 “Lá vem meu boi, lá vem pelas ruas de Belém” Páginas 16 e 17. Nesta edição • Trabalho infantil • Sotaques paraenses • Farinha de Bragança

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Beira do Rio edição 131

Transcript of Beira 131

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ISSN

198

2-59

94IS

SN 1

982-

5994

UFPa • aNo XXX • N. 131 • JUNHo e JULHo, 2016

“Lá vem meu boi, lá vem pelas ruas de Belém”

Páginas 16 e 17.

Nesta edição • Trabalho infantil

• Sotaques paraenses • Farinha de Bragança

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JORNAL BEIRA DO RIOcientifi [email protected]ção: Prof. Luiz Cezar Silva dos SantosEdição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE)Reportagem: Daniel Sasaki, Hojo Rodrigues e Maria Luisa Moraes (Bolsistas), Walter Pinto (561-DRT/PA)Fotografi a: Adolfo Lemos e Alexandre MoraesFotografi a da capa: Alexandre MoraesCharge: Walter PintoProjeto Beira On-line: Danilo SantosAtualização Beira On-Line: Rafaela AndréRevisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia LopesProjeto gráfi co e diagramação: Rafaela AndréMarca gráfi ca: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/AscomSecretaria: Silvana VilhenaImpressão: Gráfi ca UFPATiragem: Mil exemplares

UniVeRSidAde FedeRAL dO PARÁ

Vice-Reitor: Horácio SchneiderPró-Reitor de Administração: Francisco Jorge Rodrigues Nogueira Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Edilziete Eduardo Pinheiro de AragãoPró-Reitora de Ensino de Graduação: Maria Lúcia HaradaPró-Reitor de Extensão: Fernando Arthur de Freitas NevesPró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha SampaioPró-Reitora de Planejamento: Raquel Trindade BorgesPró-Reitor de Relações Internacionais: Cláudio Fabian SzlafszteinPrefeito: Alemar Dias Rodrigues Junior

Assessoria de Comunicação Institucional - ASCOM/UFPACidade Universitária Prof. José da Silveira NettoRua Augusto Corrêa, n.1 - Prédio da Reitoria - TérreoCEP: 66075-110 - Guamá - Belém - ParáTel. (91) 3201-8036www.ufpa.br

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Em junho, os dias ensolarados anunciam a chegada do ve-rão amazônico e, aos domingos, tambores, estandartes e chapéus com fitas coloridas invadem as ruas da cidade. São

os brincantes do Arrastão do Pavulagem tomando conta das ruas do centro histórico de Belém. Para compreender o valor simbó-lico dessa manifestação cultural, o pesquisador Edgar Monteiro Chagas Júnior defendeu a Tese Pelas ruas de Belém: produção de sentido e dinâmica cultural nos Arrastões do Pavulagem em Belém do Pará. Estamos falando de um espetáculo em que a plateia é parte do show.

Já imaginou barcos fabricados com a fibra da juta? Na Faculdade de Engenharia Mecânica, ITEC/UFPA, o professor Le-onardo Rodrigues está fazendo teste em pequenas embarcações para saber se é viável o uso desse compósito. Depois de realizar os testes em escala real, o pesquisador pretende verticalizar o projeto envolvendo as comunidades.

Leia também: Estudo aponta universo de exploração e baixa aprendizagem na Região Metropolitana de Belém; Pesqui-sadores criam Atlas prosódico da língua portuguesa; Entrevista com o professor Ernani Chaves festeja as obras do filósofo Michel Foucault.

Rosyane RodriguesEditora

Índice

PCNA: História, Resultados e Perspectivas ...........................4

Novas maneiras de navegar .............................................5

Crianças sem direito à infância .........................................6

Estudo cria Atlas da língua portuguesa ..........................................8

A relação entre o sujeito e a verdade ............................... 10

Matemática para alunos especiais ................................... 12

Farinha de Bragança sem falsificações .............................. 13

Juventude e tecnologia no Murucutu ................................ 14

Arrastão de cores nas ruas de Belém ................................ 16

Diversas formas de Ver-o-Peso ........................................ 18

O espetáculo das grandes e das pequenas embarcações contrastando com a miséria da gente grande e da gente peque-na, na luta diária pela sobrevivência, na rica beleza do Estreito de Breves.

Alexandre Moraesfotógrafo

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OpiniãO

PCNA: História, Resultados e Perspectivas

ALEx

AND

RE M

ORA

ES

Em fevereiro de 2011, inicia-ram as conversações entre a Diretoria de Assistência e

Integração Estudantil da Pró-Rei-toria de Extensão (DAIE-Proex) e a comunidade acadêmica do Instituto de Tecnologia (ITEC) da UFPA, com vistas a enfrentar, já nos primeiros ciclos acadêmicos da graduação, o sério problema de evasão e de reprovação em cursos básicos das engenharias. Surgiu, então, o Pro-jeto de Cursos de Nivelamento da Aprendizagem em Ciências Básicas para as Engenharias (PCNA) como estratégia de intervenção pedagó-gica, com a finalidade de trabalhar tópicos essenciais para os cursos de Física, Cálculo e Química e, desta forma, minimizar carências nos domínios conceitual e operacional dessas ciências básicas.

Após meses de preparação, em agosto de 2011, ocorreu a pri-meira edição do PCNA. Desde então, o projeto tem crescido tanto em termos qualitativos quanto quan-titativos. Ao todo, mais de 1.800 alunos já concluíram os cursos de ni-velamento, totalizando quase 4.000 certificados emitidos nesses cinco anos de projeto, os quais valem para o aluno cursista como carga horária de atividade complementar na sua

faculdade. Os cursos não possuem caráter obrigatório e funcionam também como um acolhimento ins-titucional para os calouros.

A fim de aferir o real impacto dos cursos de nivelamento nos indi-cadores de desempenho acadêmico na graduação, foi feito um amplo levantamento das disciplinas Física I, Cálculo I e Química Geral, oferta-das para o ITEC. Até o momento, o levantamento com base em análise de todas as ofertas de turmas para o ITEC nas citadas disciplinas foi concluído para os anos de 2013, 2014 e 1º semestre de 2015. A com-paração consiste em confrontar o rendimento acadêmico dos cursistas PCNA com o dos alunos que, por algum motivo, não fizeram ou não concluíram os referidos cursos. Por exemplo, para a disciplina de Física I, estabelecemos uma comparação de rendimento acadêmico entre os alunos que concluíram o curso de Física Elementar do PCNA (cursistas PCNA) e os alunos que fizeram esse curso da graduação sem passar pelo referido curso de nivelamento (não cursistas PCNA).

Os cursistas PCNA têm percen-tuais de aprovação significativamen-te mais elevados quando comparados aos dos não cursistas. Os percentuais

de aprovação cursistas PCNA x não cursistas PCNA na disciplina Física I para o ITEC, nos anos de 2013, 2014 e 2015, são, respectivamente: 70% x 48%; 84% x 49% e 85% x 56%, ou seja, com base no desempenho dos alunos não cursistas, os percentuais anuais de aprovação dos cursistas PCNA são superiores pelos seguintes valores percentuais: +46% (ano 2013); +72% (ano 2014) e +52% (ano 2015). Re-sultados semelhantes foram obtidos na comparação para as disciplinas de Cálculo I e Química Geral, com percentuais anuais de aprovação invariavelmente mais elevados para os cursistas PCNA.

A assistência estudantil do PCNA, que começou com os cursos de nivelamento, conta, atualmente, com um amplo leque de serviços, que incluem atendimentos de Psicologia e de coaching acadêmico. Além disso, a assistência estudantil promovida pelo PCNA, com forte presença de ações de ensino, vem sendo fundida com diversas ações de pesquisa e de extensão universitária, de maneira que todas elas se retroalimentam mutuamente, em prol da melhoria efetiva do aprendizado do aluno ingressante e dos indicadores de de-sempenho acadêmico da graduação.

No final de 2014, a congre-gação do ITEC aprovou, por unani-midade, a passagem de status do PCNA de projeto para programa. O desafio atual da coordenação deste programa passa pela necessidade de institucionalizar essa iniciativa em nível mais amplo. Nesse sentido, o conjunto de ações concatenadas de assistência estudantil plena e integrada, envolvendo inclusive pesquisa e extensão, incentiva-nos para o esforço de construir um arcabouço jurídico, na tentativa de obter reconhecimento de tais ações em todas as esferas da UFPA, a fim de potencializar o alcance e consolidá-las na nossa instituição, de forma perene.

Alexandre Guimarães Rodrigues é doutor em Física pela USP, professor associado (ITEC/UFPA) e coordena-dor do PCNA. [email protected]

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Tecnologia

Juta pode ser utilizada na fabricação de embarcações

Novas maneiras de navegar

Testes com protótipos foram realizados com ajuda de computador. Em breve, o projeto terá modelo em escala real.

Além da fibra têxtil, o compó-sito usado na fabricação dos barcos é também composto por uma resina que dá firmeza ao material. “A fibra não tem resistência mecânica, a não ser a tração. Rompê-la é difícil. Por ser to-talmente flexível, não conseguiríamos fazer nada estrutural com ela. Quando você mistura isso com uma base, que chamamos de matriz epóxica ou po-limérica, você tem um compósito”, explica Leonardo Rodrigues.

Segundo o pesquisador, essa estrutura feita de polímeros já é uti-lizada na indústria, porém com fibras de vidro e carbono, que são sintéti-cas. “Essas pequenas embarcações ainda são protótipos, em tamanho reduzido. Para fechar o projeto, faremos em escala real”, planeja.

Os testes são feitos, sepa-radamente, nas fibras e nas resinas, para, depois, juntar os dois e formar o compósito. Há regras que definem o tamanho dos corpos de prova, o tempo de cura da resina e quais testes serão realizados. Apesar dos avanços nos testes, ainda estão sendo estudados os melhores métodos de

fabricação dos barcos.“O modelo ideal deve ter um

aspecto visual bom, funcionar e flutuar bem na água, além de aguentar o peso indicado para um barco desse tama-nho”, explica o professor. O primeiro protótipo foi feito usando um barco de miriti.

“Laminamos o tecido com a re-sina por fora do barco. Não nos agradou esse primeiro método, porque o barco apresentou alguns vazamentos. Então fizemos uma laminação ‘sanduíche’: cobrimos o barco de miriti, por dentro e por fora, com o compósito. O miriti fica sendo parte da estrutura perma-nente do barco”, explica o professor. O método foi bem-sucedido, pois o miriti contribui para a flutuabilidade.

O futuro está sendo planeja-do: “o primeiro plano é concluirmos os testes, inclusive com um modelo em escala real, e elaborarmos uma cartilha detalhada de fabricação. Poderemos fazer um treinamento in loco, para quem tiver interesse. Isso sem perder de vista a verticalização do projeto com o envolvimento das comunidades”.

ALEx

AND

RE M

ORA

ES

� Maria Luisa Moraes

O homem, com o passar dos anos, vem descobrindo ma-neiras cada vez mais inovado-

ras de utilizar os recursos da natureza em prol do desenvolvimento tecno-lógico. São incontáveis os produtos e materiais que podem ser fabrica-dos com matérias-primas naturais. Aqui, na Região Norte, onde esses recursos são abundantes, há vários projetos voltados para esse tipo de exploração.

Um dos principais meios de locomoção dos paraenses são os barcos, geralmente, feitos de madeira. Para tornar essa produção mais sustentável, o professor da Faculdade de Engenharia Mecânica, ITEC/UFPA, Leonardo Dantas Rodri-gues criou o Projeto de Extensão

“Novos materiais obtidos a partir de recursos naturais da Amazônia para fabricação de embarcações de pequeno porte: substituição de fibras sintéticas por fibras naturais vege-tais”. O pesquisador realiza testes com fibras naturais para a fabricação de barcos pequenos.

O material utilizado por Leo-nardo Rodrigues é a juta, fibra vegetal têxtil bastante usada em artesanato. “Consegui esses tecidos por meio de doação da Companhia Têxtil de Castanhal (CTC). A ideia inicial era usar juta produzida em alguma comu-nidade local. Na CTC, fiquei sabendo que o tecido é importado da Índia”, lamenta.

Diante da dificuldade de encontrar fibras produzidas aqui, o projeto manterá o foco no trabalho com a fibra de juta. “Aqui, ela é

encontrada no Ver-o-Peso, não nesse modelo de tecido que conseguimos na CTC, mas em outras formas tam-bém aplicáveis”, diz o professor. Leonardo Rodrigues recorda que, em termos de resistência para essa apli-cação, o material era uma incógnita. Após os testes bem-sucedidos, foi definido que a juta seria o principal material utilizado.

Além de contar com a ajuda da Companhia Têxtil de Castanhal, Leonardo Dantas Rodrigues também tem o apoio do Instituto Peabiru, organização não governamental dedicada à Amazônia Oriental. A parceria com a ONG possibilitará o envolvimento de comunidades na produção dos tecidos. Para essa ta-refa, ele planeja elaborar e distribuir cartilhas nas comunidades, além de realizar treinamentos.

Miriti é utilizado para laminação sanduíche

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Educação

Estudo aponta universo de exploração e baixa aprendizagem

Crianças sem direito à infância

� Walter Pinto

Um estudo com crian-ças sujeitas a regime de trabalho infantil

comprovou que elas possuem grande difi culdade de apren-dizagem, muitas chegando à adolescência praticamente sem saber ler nem escrever. O universo trabalhado reuniu 157 crianças na faixa etária de 10 a 14 anos, todas, de alguma forma, envolvidas no chamado trabalho infantil, matriculadas em quatro escolas estaduais dos bairros Canudos e Terra Firme, ambos na zona perifé-rica de Belém.

O estudo embasou a tese O discurso das crianças e dos adolescentes sobre o trabalho infantil, defendida pela pedagoga Ana Paula

Vieira e Souza, no Programa de Pós-Graduação em Educação, sob orientação do profes-sor Ronaldo Marcus de Lima Araújo. A seleção também levou em conta as famílias assistidas pelo Programa Bolsa Família, uma política pública educacional que exige dos pais a manutenção das crianças e dos adolescentes na escola.

“Uma coisa que pude perceber foi que, apesar de estarem estudando, a escola está muito distante das vidas daquelas crianças. Elas vão à escola, mas não conseguem aprender. Acabam revelando o cansaço e a violência a que estão expostas”, informa Ana Paula.

A criança estudante submetida à situação de tra-

balho, seja para contribuir com o sustento da família, seja como empregada de terceiros, está sempre atu-ando em benefício de algum adulto. Entre as atividades desenvolvidas pelas crianças, a pesquisadora encontrou até mesmo as que cumpriam papel de “aviãozinho” – no jargão policial, nomina a pessoa que leva o tóxico para um com-prador e volta com o dinheiro para o trafi cante.

A pesquisa identifi cou crianças trabalhando em ati-vidades diversas na feira da Terra Firme, como em máquinas de assar frango e em improvisadas lavagens de veículos; um pré--adolescen-te trabalhava como chapeiro numa venda noturna de san-duíches. No caso das meninas,

a pesquisadora encontrou muitas trabalhando como babá ou doméstica. Ana Paula acompanhou, durante quatro anos, aqueles pequenos tra-balhadores em seus afazeres.

A observação em sala evidenciou o fosso existente entre crianças que só es-tudam e as que estudam e trabalham. No caso destas, a aprendizagem é sensivel-mente prejudicada. Para Ana Paula Souza, “o trabalho infantil se caracteriza por uma alienação das crianças que não reconhecem seus direitos à proteção e à es-cola de qualidade. Elas são vítimas das suas próprias famílias, da escola pública e da ausência do Estado, que é o grande aparelho que devia protegê-las”.

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Alienação, baixa remuneração e riscos de todo tipo

Educação

Ana Paula Souza, mesmo de-fendendo o Programa Bolsa Família, chegou à conclusão de que o progra-ma não está conseguindo afastar as crianças do mundo do trabalho, ou, pelo menos, não está conseguindo isso com todas elas. Nas escolas em que realizou o estudo, a pesquisado-ra observou que 50% dos estudantes estavam envolvidos em atividades de trabalho. A pesquisadora con-versou com os pais dos estudantes e promoveu três palestras sobre a temática do cuidar das crianças e dos adolescentes.

Nessa etapa, contou com a colaboração de um delegado, que falou sobre o uso e as consequências das drogas; de uma psicóloga, que tratou do cuidado da família com os fi lhos; e de uma assistente social. “Nestes três momentos, trabalhei para que as famílias, de alguma for-ma, assumissem os trabalhos desen-volvidos por suas crianças”, afi rma.

Uma das formas praticadas para medir o nível de leitura das crianças foi a utilização de palavras cruzadas das revistinhas da Mônica, além de utilizar fi lmes e atividades

em que o trabalho esteve sempre presente. Essas atividades explicita-ram um grave problema no processo de aprendizagem: elas não conse-guiam identifi car as letras.

“As crianças que estão envol-vidas no trabalho infantil não sabem ler nem escrever, como comprovei na minha tese. Aliás, também não sabem contar. Para elas, 20, 40 reais é muito dinheiro. Isso demonstra que elas também não têm noção de valor”, afi rma a pesquisadora.

Das 48 crianças que inicia-ram o grupo focal da pesquisa, 16 chegaram ao fi nal. A maioria alegou que os pais não haviam permitido. Durante a pesquisa, houve um caso de grande impacto. Um ado-lescente de 14 anos foi arrancado da sala de aula pela Polícia Militar, sob a acusação de trabalhar para o tráfi co. Na verdade, a acusação era direcionada aos pais, que eram trafi cantes. “Depois, ele contou ter sido violentado sexualmente por um dos policiais, e não contou só para mim, mas para toda a turma. Foi algo muito duro para todos nós”, lembra Ana Paula Souza.

Uma das categorias de análi-se utilizada pela pesquisadora foi o trabalho infantil como alienação. De acordo com os dicionários de língua portuguesa, a alienação pode ser defi nida como um estado de des-personalização em que o sentimento e a consciência da realidade se encontram fortemente diminuídos. De Karl Marx, a pesquisadora utili-zou as categorias trabalho concreto e trabalho abstrato para tratar da pedagogia do trabalho infantil.

“Por que o fi lho de uma clas-se tem que trabalhar e o fi lho de outra classe tem direito à natação, ao futebol, à dança, ao inglês e à escola de qualidade?”, questiona Ana Paula Vieira e Souza. A resposta pode ser encontrada na Pedagogia do Trabalho Infantil, aquela que inculca a criança em situação de vulnerabilidade a trabalhar. Por essa

perspectiva, o trabalho infantil é visto como bom para os da classe trabalhadora ou mais vulnerável, mas não é visto da mesma forma para os da classe mais abastada. Ao alienar as crianças, o trabalho infantil acaba por fazê-las não se reconhecerem como crianças, como adolescentes.

Além de serem exploradas pelo trabalho infantil, quando deveriam estar estudando e brin-cando, elas também são exploradas quanto à remuneração. Durante a pesquisa, a maior remuneração paga às crianças trabalhadoras não era superior a 120 reais ao mês (tendo como base setembro de 2015), valor pago ao garoto que trabalhava, à noite, como chapeiro. Os valores são muito variados. A maioria recebe entre 5 e 10 reais por semana.

Além da baixa remuneração, as crianças estão submetidas à situação de risco à saúde, como a pesquisadora constatou. Um garoto que trabalhava como borracheiro sofreu um acidente ao tentar tirar o pneu de um carro e foi atingido por um parafuso que entrou no seu braço. Mesmo ferido e sem qualquer direito, o garoto teve que continuar trabalhando, pois contava com a remuneração para sobreviver.

As drogas também fazem par-te do universo de muitos adolescen-tes em situação de trabalho infantil. Nenhum deles admitiu que consu-misse drogas, mas não negou que trabalhava na venda, como “avião”. Os adolescentes são usados pelos trafi cantes para burlar a polícia. A pesquisadora ficou impressionada com a intimidade que os jovens de-monstram com o uso de armas.

Nas escolas, 50% dos alunos também trabalhavam

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Prosódia

UFPA é responsável por dados da Região Norte do Brasil

Estudo cria Atlas da língua portuguesa

� Maria Luísa Moraes

Você já percebeu que o paraense fala cantan-do? Quando convivemos

com pessoas de outros lugares ou saímos do Estado, perce-bemos quão forte é o nosso sotaque. Cheio de chiados e bastante melódico, o paraen-se tem sua própria forma de falar o português, assim como o carioca, o paulista, o lisbo-eta e o angolano. O Projeto Atlas Multimídia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) nasceu na Europa, com o ob-jetivo de investigar as línguas oriundas do latim, e ganhou,

recentemente, uma ramifi ca-ção na América Latina.

Esse projeto interna-cional foi trazido ao Brasil em 2007, tendo, em 2009, ganha-do fi nanciamento do CNPq. A própria equipe portuguesa, ao entrar no projeto, insistiu na inclusão do Brasil. “Numeri-camente, o Brasil tem maior concentração de falantes de português. Então, não se pode fazer um estudo sobre falantes de português desconsiderando a variedade brasileira”, justifi -ca Regina Cruz, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA e coorde-nadora da equipe responsável

pela pesquisa na Região Norte do Brasil.

O foco da professora é a melodia da fala. As fa-mílias linguísticas, como a anglo-saxônica e a latina, são agrupadas dentro de deter-minados aspectos prosódicos, que são o ritmo e a melodia. “As línguas latinas, no geral, são mais musicais. Sempre fazem brincadeiras sobre o falar alemão, que é muito seco, o russo também. Então nós estamos fazendo um ma-peamento dessa musicalidade das línguas latinas e vendo em que aspecto elas são pareci-das”, explica.

São 21 pesquisadores na equipe de língua portuguesa, somando Brasil e Portugal. A maioria deles, no entanto, é brasileira. O projeto cobre todas as regiões do Brasil, exceto o Centro-Oeste. “No Norte, te-mos Pará e Amazonas sendo cobertos, mas enviamos recen-temente um projeto ao CNPq para incluir o Amapá”, conta Regina. Na Região Nordeste, participam: Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Sergipe. No Sudeste, todos os estados são estudados. No Sul, a pesquisa ocorre em Santa Cata-rina e no Paraná, com planos de inclusão do Rio Grande do Sul.oriundas do latim, e ganhou, nadora da equipe responsável das”, explica. inclusão do Rio Grande do Sul.

ILUSTRAçãO PRISCILA SANTOS

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Prosódia

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Para a escolha dos municípios, os pesquisadores consideraram o histórico de migração que o Estado sofreu. Regina Cruz explica que o português foi, efetivamente, falado no Brasil, somente no início do século xIx. Até então, a língua falada pelos nativos era a chamada língua geral, uma variedade do Tupinambá, surgida no Pará e no Maranhão e expandida por toda a Amazônia. Com a chegada da família real, em 1808, Marquês de Pombal impôs a língua portuguesa, tirando índios e mestiços das escolas e ensinando o português somente aos brancos. Depois disso, a língua começou a ser falada amplamente.

Nos anos 1970, a Amazônia sofreu outra migração, com a política de “integrar para não entregar”, do regime militar. Em decorrência disso, a região começou a receber pessoas de todos os lugares do Brasil, que se concentaram no sul e sudeste do Estado. “Santarém, Bra-gança, Belém, entre outras, estão numa região que não foi atingida por esse fl uxo migratório e, por isso, preservariam um português que chamamos de paraense regional”, explica a professora.

A metodologia aplicada na pesquisa é a mesma utilizada em todos os países. Trata-se de um estudo acústico, em que são feitas gravações de pessoas nativas falando dife-rentes frases. A intenção do projeto é captar falas espontâneas, por isso os pesquisadores gravam na casa das pessoas. Essas frases são elaboradas considerando o tipo de acento, usando palavras oxítonas, paroxítonas e pro-paroxítonas.

Dois tipos de frases são formuladas: a afi rmativa neutra, que fornece uma informa-ção, exemplo “O Renato gosta do pássaro”; e a interrogativa total, cuja resposta admitida é sim ou não, “O Renato gosta do pássaro?”. “É a mesma frase. A única diferença é que, em uma, eu afi rmo e, na outra, eu pergunto”, diz.

Ao todo, são 66 frases, entre afi rmativas e interrogativas. Elas são feitas de combinações entre três personagens, que são: o Pássaro (proparoxítona), o Renato (pa-roxítona) e o Bisavô (oxítona); três qualidades: Bêbado (proparoxítona), Pateta (paroxítona) e Nadador (oxítona); três adjuntos adverbiais: de Mônaco (proparoxítona), de Veneza (pa-roxítona) e de Salvador (oxítona); um único verbo, gostar.

As pessoas não leem as frases, pois, de acordo com a professora, a leitura já pede uma entoação e modulação diferentes na voz, o que prejudicaria a análise. São mostradas imagens com diversas combinações para que a pessoa produza a frase espontaneamente. A professora justifica que o protocolo de gravação possibilita que os participantes se desconectem dos instrumentos de gravação e falem mais naturalmente.

A próxima fase da pesquisa será levar os dados coletados em gravação aos paraenses e checar se eles reconhecem a própria fala. “Vamos ver se as pessoas sabem identifi car o seu falar e se sabem diferenciá-lo do de outro”, conta a professora. O objetivo dessa fase é ter um retorno, e não fi car apenas com a opinião do pesquisador.

Falar paraense tem similaridade com o português carioca

Registros da fala espontânea dos nativos

Em novembro de 2015, a coordenadora geral do grupo de estudos do AMPER da língua portuguesa, professora Lour-des Moutinho (Universidade de Aveiro), veio a Belém fazer uma apresentação geral do projeto. Ela informou que o grupo paraense foi responsá-vel por 50% dos dados sobre o português do Brasil, fato que deixou Regina Cruz orgulhosa e empolgada para dar conti-nuidade ao estudo.

A professora Regina credita essa porcentagem às várias dissertações produzidas por seus alunos sobre o tema. Essas dissertações foram pro-

duzidas focando as análises em várias cidades paraenses, como Mocajuba, Bragança, Mosqueiro, Baião, Abaetetuba e Cametá. Também existem pesquisas em andamento em Santarém. Sobre Belém, há três artigos publicados.

Os resultados indicam que o comportamento prosódi-co do paraense guarda algumas similaridades com o português carioca, por exemplo. Ambos possuem o padrão denomina-do de formato circunfl exo da curva melódica ocorrendo na última sílaba tônica da frase.

Regina Cruz exemplifi -ca: “Uma das frases que usa-

mos na pesquisa é ‘O Renato gosta do bisavô’. Então quan-do falamos ‘O Renato gosta do bisavô’, a sílaba tônica fi nal, “vô”, baixa de tom. Já na pergunta ‘O Renato gosta do bisavô?’, ela sobe o tom”. Além da curva melódica, ou-tros parâmetros explorados são a duração, o tempo que se leva para pronunciar cada sílaba e a intensidade, a força com que se pronunciam as sílabas.

Anal isando estudos dialetológicos anteriores, a professora percebe que o Pará tem, de fato, um padrão dife-renciado do de outros Estados.

“Todos esses dialetos mostram que temos uma identidade forte. O primeiro estudo dia-letológico mais completo foi de Antenor Nascentes e foi publicado em 1926, ou seja, é muito antigo. Ele dividia o Brasil em dois blocos, Norte e Sul. O falar do Norte incluía nordestinos e nortistas, como se todos falassem igual. Anos mais tarde, o fi lólogo Serafi m Silva Neto esteve no Pará e disse que ‘O Pará é uma ilha dialetal na classificação de Nascentes’. Então os paraen-ses não falam como os nordes-tinos nem como o restante do Norte”, explica.

Na casa dos entrevistados, pesquisadores gravam frases formadas da combinação das imagens acima, que contêm três personagens, três qualidades, três adjuntos adverbiais e o verbo "gostar".

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Entrevista Ernani ChavEs

Ciclo de eventos festeja obras do filósofo Michel Foucault

A relação entre o sujeito e a verdadeADOLFO LEMOS

� Walter Pinto

As palavras e as coisas, livro do filósofo Michel Foucault, está comple-

tando 50 anos. Sua importância para compreensão de temas atuais e transgressores vem sendo ressaltada por meio de eventos realizados em diferen-tes partes do mundo. Em Be-lém, cidade que, por duas ve-zes, acolheu o filósofo francês, uma programação está sendo realizada sob a coordenação do filósofo Ernani Chaves. Trata-se também de uma oportunidade para homenagear o pioneirismo do filósofo paraense Benedito Nunes, que, em 1968, publicou Arqueologia da arqueologia, o primeiro artigo brasileiro sobre o livro de Foucault. Além de várias atividades que incluem eventos em escolas públicas, haverá um colóquio internacio-nal no final do ano e a partici-pação de uma equipe de pro-fessores e pós-graduandos da UFPA num colóquio em Madri. Na entrevista abaixo, Ernani Chaves ressalta a atualidade do filósofo francês, lembra a sua passagem por Belém e destaca o papel fundamental de Bene-dito Nunes como intérprete de Foucault.

Foucault e a sociedade

A contribuição de Fou-cault para a compreensão do mundo é enorme e imensurá-vel. Isso se deve, em grande parte, ao fato de ele ter mobi-lizado o pensamento filosófico para questões que sempre es-tiveram presentes no horizonte filosófico, mas nunca tinham se tornado objeto específico de investigação, temas, à primeira vista, não filosóficos, como a loucura, a sexualidade, a pri-são, o hospital. A singularidade

de Foucault está em mostrar, o tempo todo, que o estudo desses objetos está relacionado à pergunta mais importante da Filosofia, a pergunta pela verdade, pela razão, qual a relação entre o sujeito e a verdade. Mas Foucault fez isso num horizonte muito específi-co, começando por questionar o

pensamento tradicional, aquilo que chamamos metafísica. Ele nos mostrou que nela falta uma coisa muito importante: a his-toricidade. Então, baseado em uma referência fundamental a Nietzsche mas também a Marx, ele fez uma investigação de caráter histórico, cujo modo foi criticado pelos historiado-

res profissionais, para mostrar que o sujeito possui uma his-tória. Para nós, da Filosofia, o que importa é a tentativa de historicizar aquilo que parecia não historicizado. O objeti-vo de Foucault foi encontrar instrumentos e armas para entender o nosso presente, aquilo que está acontecendo

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hoje. Ao historicizar e desnatu-ralizar questões como loucura, sexualidade e prisão, ele deu enorme contribuição a todos os movimentos – o antimanico-mial, o feminista, o LGBT, entre outros, assim como à crítica ao sistema carcerário, além de contribuir com o estudo da História. A contribuição de Foucault, baseada no concei-to de biopolítica, faz dele um interlocutor fundamental.

Foucault em Belém

Foucault esteve em Belém duas vezes. A primei-ra, em 1973, como turista, para conhecer a Amazônia, logo depois da conferência no Rio de Janeiro. A segun-da, em novembro de 1976. A impressão que teve da cidade foi maravilhosa, conforme escreveu a Daniel Defert, seu companheiro. Isso está registrado. No ano passado, no dia 1º de maio, encontrei Daniel, em Paris. Tivemos uma longa conversa-entrevista. Ele ficou muito impressionado com o fato de eu ter conhe-cido Foucault pessoalmente. Isso aconteceu quando ele visitou Belém, em 1976. Eu era estudante de Filosofia e trabalhei como monitor nas conferências que ministrou no antigo auditório do Centro de Letras e Artes da UFPA. Era o responsável pelas listas de presença, que a Polícia Fede-ral requisitou à Reitoria, mas o professor Benedito Nunes disse ter queimado. Para a PF, a pre-sença na conferência era um indicativo de subversão. 1976 foi um ano em que Foucault foi muito vigiado pelos órgãos de segurança. A ficha dele no SNI já foi publicada e tem até estudo acadêmico sobre ela. Meus colegas do Seminário Foucault, um seminário inter-nacional localizado em Madri, também ficaram surpresos por eu ter conhecido Foucault pessoalmente. Assim como eu, eram todos jovens à época.

Encontro com Defert

Daniel Defert encon-trou-se comigo em Paris, em um lugar que frequentava com Foucault, perto da casa em que eu estava morando. Depois, fez um passeio comigo pela cidade. L e v o u - m e , principalmen-te, aos luga-res frequen-t a d o s p o r ambos. Fo i um momento maravilhoso. Durante nos-sa conversa, mostrei- lhe as fotografias de Foucault em Belém e lhe falei de Soure, no Ma-rajó. Daniel imediatamente se emocionou, lembrou que Foucault havia adorado o Marajó. Daniel não estava com ele na viagem, porque ficou em Manaus, com uma amiga. Foucault foi para o Marajó na companhia do diretor da Aliança Francesa. O reen-contro aconteceu em Belém, depois das conferências no campus da UFPA. Recentemen-te, encontrei Roberto Machado, grande intérprete e amigo de Foucault, num colóquio em São Luís do Maranhão. Roberto vol-tou a dizer que as cidades que Foucault mais adorou no Brasil foram Rio, Salvador e Belém.

Pioneirismo de Benedito

No final de 1966, per-seguido pela Ditadura Militar, o professor Benedito Nunes, diretor do Serviço de Teatro da UFPA, pensou sair do Brasil e fazer o doutorado na França, mas encontrou grande dificul-dade para tirar o passaporte. Foi o reitor Silveira Neto quem o ajudou. Silveira Neto era uma figura ambígua. Por um lado, era alguém muito pró-ximo da Ditadura, mas, por outro, fez coisas importantes,

como ajudar a tirar Benedito Nunes do Brasil naquele mo-mento delicado.

Em outubro de 1967, fi-nalmente, Benedito Nunes che-gou a Paris, próximo ao maio de 68 e em meio ao grande sucesso da publicação de As palavras

e as coisas, por Foucault. Uma enque-te feita pelo Jornal Nouvel Observateur havia apon-tado aquele livro como o mais vendi-do do ano. A manchete “ F o u c a u l t como pãezi-nhos” dizia muito da re-ceptividade

daquele livro de Filosofia, de 600 páginas. Lembrei-me dessa história em texto recente. Foi como se o professor Benedito tivesse saído para comprar um pãozinho e voltado com As palavras e as coisas, livro que o impressionou muito. Logo escreveu o primeiro artigo no Brasil sobre o livro de Foucault, o qual se chamou Arqueologia da arqueologia, publicado em quatro partes, no suplemento literário do Jornal O Estado de São Paulo, entre outubro e novembro de 1968, às portas do AI-5, e, depois, em 1969, na primeira edição do Dorso do Tigre.

Então, no momento em que o mundo inteiro festeja os 50 anos de As Palavras e as coisas, a importância da crítica pioneira de Benedito Nunes deve ser ressaltada no Brasil, e penso que o dever de mostrar a importância daquele texto é meu. Dever, no sentido kantia-no da palavra, de observar o que é interessante, o que é ori-ginal e o que envelheceu nele, pensando sempre na época em que foi produzido.

O professor Benedito adorava As palavras e as coi-

sas. No prefácio que escreveu para o meu livro Foucault e a Psicanálise, ele definiu o livro de Foucault como de rara be-leza de estilo. Hoje, reconheço que As palavras e as coisas é um livro fundamental, mas, durante o mestrado, pareceu-me monstruoso, enorme, difícil demais. Mas foi o livro que eu li, indicado pelo professor Be-nedito, em 1980. Ele me, disse “você vai gostar de Foucault”.

O professor Benedito era um cara assim, aceitou e acolheu todas as minhas transgressões. Sempre tivemos uma conversa muito franca um com o outro, mesmo quando eu tinha 18, 19 anos. Era uma conversa que tinha o respeito pela figura, pela autoridade, mas, ao mesmo tempo, tinha algo de muito espontâneo de ambas as partes.

Foucault, Heidegger e Benedito

O que pegou o professor nas Palavras e as coisas foi o fato de ter encontrado lá os traços de Heidegger, que, já nessa época, o tinha escolhido como a sua grande referência filosófica. Em Arqueologia da arqueologia, ele procura mostrar que Heidegger é fun-damental e, de certa maneira, decisivo para entender o livro de Foucault. Publicar isso no Brasil de 1968/69 não fazia o menor sentido para os brasi-leiros. Pouquíssimos tinham lido As palavras e as coisas. Foucault não tinha o lugar que ele tem hoje, quando pode ser visto em toda a sua grandio-sidade, e a grandiosidade de um texto na Filosofia não está ligada, apenas, àquilo que per-manece dele, de interessante, mas àquilo que ele coloca como problema. Então a rela-ção entre Foucault e Heidegger é um problema que permanece para os intérpretes, ainda hoje. Benedito Nunes leu o livro, viu de imediato o pro-blema e apontou uma solução.

Entrevista

Em 1968, Benedito

Nunes escreveu

artigo sobre As palavras e

as coisas

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12 - Beira do rio - Junho e Julho, 2016

Professores desenvol-vem ações de inclusão em 13 escolas da rede

pública de Belém

Matemática para alunos especiais

Um dos orientandos e colaborador do projeto, o pro-fessor Marcos Evandro Lisboa de Moraes, em sua Dissertação A leitura tátil e os efeitos da desbrailização em aulas de Matemática, foi desafiado, em sua banca de Qualificação, a referenciar o ensino de ângulos para cegos, a partir de “giro” completo de circunferência.

Em sua pesquisa, Mar-cos Moraes verificou que o conceito de desbrailização não pode e não deve ser vei-culado ao abandono do uso do Braille, por se constituir de um conjunto do que chamou de episódios de desbrailização. No estudo, ele defende o uso do código Braille de forma

compartilhada, assim como as novas tecnologias.

Na pesquisa, um dos efeitos da desbrailização foi a criação e o desenvolvimento do transferidor adaptado T360A, que veio como enfrentamento ante os episódios de desbraili-zação, constituindo-se em uma ferramenta para o estudo de ângulos. Sua criação, por Mar-cos Evandro, não teria sentido se não fosse pensado para a aplicação do material por uma aluna cega. A aluna legitimou as primeiras impressões táteis do T360A e teceu críticas a res-peito do produto, contribuindo, sobremaneira, com os primei-ros ajustes para a melhoria do transferidor.

Nexos e reflexos do en-sino de Matemática a estudan-tes cegos: Um estudo sobre o ensino de números decimais em uma turma inclusiva no municí-pio de Belém (PA) é a tese que está sendo desenvolvida pelo professor Marcelo Marques de Araújo, também colaborador do projeto. A pesquisa trata do ensino de números decimais para pessoas cegas, utilizando duas metodologias: o Tabuleiro de Decimais, também criado pelo grupo, e o MusiCALcolori-da, um software com a função de ensinar esses números para crianças cegas.

A pesquisa está em fase de finalização e os resultados revelaram que as duas meto-

dologias serviram não apenas para os alunos cegos, mas também para os alunos sem deficiência visual, o que possi-bilitou a melhor compreensão do assunto matemático, além de fortalecer a socialização entre os alunos, diminuindo o processo de segregação.

O coordenador conside-ra os resultados das pesquisas e dos produtos que o projeto desenvolve como excelentes experiências para serem divul-gadas e compartilhadas com professores da educação básica e do ensino superior. “Não são experiências para serem repli-cadas, mas para serem motiva-doras de novas experiências”, diz Elielson Sales.

Ensino

� Hojo Rodrigues

Cerca de 6,2% da popula-ção brasileira tem algum tipo de deficiência, seja

auditiva, visual, física, seja intelectual. Os dados são do ano passado e foram levanta-dos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos últimos anos, houve um crescimento considerável de números associados à inclusão de pessoas com algum tipo de necessidade educacional espe-cial nas salas de aula regulares, provocando inquietações e trazendo novos desafios para o cenário escolar brasileiro.

Nesse contexto, foi cria-do o Projeto de Pesquisa “Edu-cação Matemática para Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais”, coordenado pelo professor Elielson Ribeiro de Sales, do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas, IEMCI/UFPA. O objetivo do projeto, que teve início em 2014, é de-senvolver pesquisas acerca dos processos de ensino e aprendi-zagem em Matemática voltados para pessoas com necessidades educacionais especiais.

As ações da pesquisa são desenvolvidas em 13 escolas de ensino regular da rede pública

(municipal e estadual) e espe-cializadas, hoje chamadas de Centros de Referência. “Existe uma discussão acerca de qual o melhor ambiente para educar essas pessoas. O nosso grupo não está preocupado com isso, mas com os processos de ensino e aprendizagem para as pessoas com necessidades educacionais especiais, independentemente do ambiente no qual elas estão inseridas”, conta o pesquisador.

“A importância legal da pesquisa é incontestável, pois, desde 1948, temos legislação que fala da educação dessas pessoas. Mesmo que, por um bom tempo, nós tenhamos fe-

chado os olhos para esse tipo de obrigação legal, hoje, ca-minhamos para o avanço desse processo de educação”, afirma o professor.

Elielson Ribeiro de Sales diz que existe a importância do ponto de vista acadêmico. “Na UFPA, o nosso grupo é o pri-meiro e único. Percebemos que discutir o ensino de Ciências e Matemáticas para pessoas com necessidades educacionais especiais era algo por que a comunidade acadêmica estava sedenta”, revela o professor. Hoje, o grupo conta com o apoio de 17 orientandos, entre eles, dois mestrandos surdos.

Novas metodologias atendem necessidades específicas

ALExANDRE MORAES

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Junho e Julho, 2016 - Beira do rio - 13

Direito

Pesquisa analisa Projeto de Indicação Geográfica para o produto tradicional

Farinha de Bragança sem falsificações

Para os consumidores, a "crocância" é o diferencial da farinha de Bragança.

No Brasil, a Indicação Geográfica tem duas modali-dades: “Indicação de Proce-dência”, quando existe uma notoriedade e um reconheci-mento da qualidade dos pro-dutos desenvolvidos no lugar de origem; ou “Denominação de Origem”, quando o produto carrega consigo as característi-cas do lugar, seja por conta das propriedades do solo, seja por conta do clima, garantindo-lhe um diferencial por aspectos próprios da região. A Indicação Geográfica de determinado produto, após o registro no

Instituto Nacional de Proprie-dade Industrial, constitui-se em um selo utilizado por todos os produtores instalados na área delimitada, os quais respeitam as regras de uso. Um selo é colocado no rótulo do produto e não interfere na marca que distingue os produtores.

A discussão sobre a Indi-cação Geográfica para a farinha de Bragança iniciou-se em 2013. Amanda de Oliveira conta que alguns produtores de farinha da região começaram a perceber que farinhas produzidas em ou-tras áreas estavam sendo vendi-

das, especialmente em Belém, como se fossem de Bragança.

Assim, as Secretarias de Estado de Ciência e Tecnologia e de Turismo realizaram um workshop, em Bragança, para explicar aos produtores o que é uma Indicação Geográfica. A partir daí, foi formado um grupo de trabalho para discutir o tema. “A Indicação Geográfica deve proteger a farinha como um produto derivado do conhe-cimento tradicional, da história da região e não apenas um meio de trazer recursos financeiros”, avalia a pesquisadora. O desen-

volvimento territorial, a infraes-trutura, a cadeia produtiva, o cultivo da mandioca e a questão fundiária também devem ser discutidos.

“Ainda estão tentando descobrir o que torna a farinha deles diferenciada. Pode ser uma característica natural ou o modo de preparo”, explica. Ela conta que algumas pessoas di-zem que o processo de produção interfere no sabor e na “crocân-cia” da farinha, o que apontaria para a escolha da categoria Indicação de Procedência como Indicação Geográfica.

� Hojo Rodrigues

A farinha de mandioca faz parte da alimentação diária dos pa-raenses. É fácil encontrar uma

variedade de farinhas de mandioca nas feiras e nos mercados de Belém, cada uma com sabor e “crocância” particulares. Mas existe uma farinha conhecida por sua qualidade: a farinha de Bragança. O aposentado Manoel Ferreira, 78 anos, é um dos aprecia-dores dessa farinha. “Em Bragança, não existe farinha ruim”, afirma ele.

Mas será que esse produto está sendo protegido contra as ações de falsificação? A assessora jurídica Amanda Borges de Oliveira discute essa questão na Dissertação Indica-ções Geográficas, produtos tradicio-nais e desenvolvimento territorial na Amazônia: um olhar sobre o Projeto de Indicação Geográfica da farinha de Bragança, orientada pela professora Eliane Cristina Pinto Moreira, do Pro-grama de Pós-Graduação em Direito, da UFPA.

Recentemente, muitos pro-dutos derivados do conhecimento tradicional foram indevidamente apropriados por empresas e orga-nizações. As comunidades, muitas vezes, não têm retorno dos be-nefícios oriundos da exploração econômica de tais produtos. Com base nesse contexto, começaram a ser discutidas as possibilidades de proteção dos produtos tradicionais e do próprio conhecimento. O Sistema de Propriedade Industrial, que, no Brasil, é regulado pela Lei 9.279/96, é um conjunto de mecanismos voltados à proteção de produtos industriais, estando, entre eles, as patentes, as marcas e os desenhos industriais. Também, dentro desse sistema, existe um instrumento de proteção diferenciado por ter um caráter mais coletivo: a Indicação Geográfica.

As Indicações Geográficas protegem os produtos que carregam a sua origem, como o champanhe, vinho espumante que recebe esse

Selo da Indicação Geográfica é colocado no rótulo

nome por ser produzido na região de Champagne, na França. “No Brasil, estamos caminhando para fortalecer este mecanismo de proteção. Dizer que a farinha é de Bragança remete à qualidade do produto, de maneira que o lugar lhe agrega valor”, explica Amanda de Oliveira.

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14 - Beira do rio - Junho e Julho, 2016

Amazônia

Smartphones modificam dia a dia dos moradores da ilha

Juventude e tecnologia no Murucutu

FOTOS ACERVO DA PESQUISA

� Daniel Sasaki

Hoje as pessoas se sentem fora da realidade sem ter, em mãos, os seus smartphones

ou tablets. Esses aparelhos tecnoló-gicos tornaram-se elemento central na vida dos indivíduos, principal-mente dos jovens, que também os utilizam como forma de expressão e criação. Com a popularização da internet, ações como compartilhar informações nas redes sociais, enviar mensagens, fotos ou vídeos ficaram comuns.

O uso desses aparelhos rom-peu os limites da cidade, alcan-çando, também, contextos rurais. Analisar a forma como o smartphone se insere nas interações comunicati-vas de jovens moradores de uma das ilhas em torno da capital paraense foi o que motivou a pesquisadora

Monique Igreja a elaborar a Disser-tação Tecnologia e Interações na Amazônia Paraense: Um estudo com jovens da ilha do Murutucu - Belém/PA, pelo Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM), orientada pela profes-sora Alda Costa.

“O meu objetivo era pesqui-sar de que forma são pautadas as interações comunicativas dos jovens ilhéus, que têm práticas marcadas pela relação entre o urbano e o rural e vivenciam um processo de intensa articulação com o smartphone. Des-sa forma, pude compreender como se estabelece a mediação cultural produzida pelo aparelho e observar a importância desse dispositivo em suas vidas”, explica Monique Igreja. A Ilha do Murutucu está localizada às margens do rio Guamá, situando-se entre a Ilha do Combu e a Ilha Gran-

de, a nove quilômetros, em linha reta, do centro de Belém.

A pesquisa foi desmembrada em três dimensões de interação: tecnológica, espaço-temporal e sociocultural. Na dimensão tecno-lógica, foram abordadas as formas de acesso à internet, os significados atribuídos ao uso do smartphone, os meios de comunicação mais utiliza-dos e as maneiras como os jovens de Murutucu se apropriam destes. Na sociocultural, foram analisados aspectos relacionados ao lazer e ao cotidiano. Com relação à perspec-tiva espaço-temporal, a pesquisa contemplou a experiência de morar na ilha, o deslocamento até Belém, o sentido do “passar do tempo” na ilha e na capital e também buscou desvelar as representações sociais sobre os espaços de Belém e Muru-tucu, incorporadas pelos jovens.

Para os jovens, morar na Ilha não é problema O universo pesquisado foi

composto por 14 jovens do sexo feminino e seis do sexo masculino. Dos 20 entrevistados, dez perten-cem à faixa etária de 15 a 17 anos, seis têm de 18 a 23 anos, dois de 12 a 14 anos e dois de 24 a 27 anos. Todos estão em constante fluxo en-tre a ilha e Belém. De acordo com Monique Igreja, eles vivem em uma

área que o Poder Público denomina ser “rural”, conceito debatido pela pesquisadora em seu estudo. “Na pesquisa, discutimos muito o que seria esse ‘rural’, pois seu sentido não deve ser compreendido ba-seado na oposição com ‘urbano’, ou seja, interligado apenas às tradições, à produção agrícola e resistente a mudanças. O rural pre-

cisa ser refletido como um espaço que está em constante construção social”, conta.

A pesquisadora relata que o intenso vínculo dos jovens com a ilha foi um dos pontos da pesquisa que mais a instigaram. “Todos disseram que amam morar na ilha e aponta-ram aspectos como tranquilidade, paz e silêncio como os maiores

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Junho e Julho, 2016 - Beira do rio - 15

Amazônia

O uso do aparelho celular tornou-se mais popular entre os habitantes de Murutucu a partir de 2011, ano em que o serviço de eletricidade passou a ser distribu-ído na ilha. Antes desse período, os moradores utilizavam geradores movidos a óleo diesel para abastecer a energia elétrica de suas residên-cias, por esse motivo, muitos não tinham aparelhos como geladeira, televisão e celular.

Com a chegada da energia e dos smartphones, muitos aspectos do cotidiano foram modificados. “Os jovens de Murutucu passaram a construir variados laços de associa-ção no ambiente virtual e tiveram a possibilidade de tecer, cotidia-namente, interações com diversas finalidades: agendar encontros para a realização de trabalhos da escola, interagir com amigos de Belém e da região das ilhas e programar ativida-des de lazer, que envolvem, muitas vezes, a reunião de amigos para banhar-se nas águas do rio. Então vemos que o uso do smartphone

perpassa um caráter individual, de manutenção das relações pessoais”.

Para Monique Igreja, o mais interessante foi observar como o uso da tecnologia por estes jovens não interfere em questões relacio-nadas ao regionalismo. “Os jovens permanecem conectados aos seus smartphones, mas também à nature-za: os rios, principalmente, exercem um significado representativo em suas vidas. Essa constatação coloca em xeque um aspecto presente no discurso dominante que, por vezes, é tomado como óbvio no senso comum: o fato de a tecnologia des-conectar os sujeitos de seus locais de origem”.

Outro ponto importante para a pesquisadora foi a forma como os jovens observam os meios de comu-nicação. Para eles, o sentido da pa-lavra comunicação está relacionado à interação. “Quando os entrevista-dos mencionavam a comunicação, apenas o smartphone era associado. Eles enfatizaram o diálogo e o signi-ficado de falar com alguém distante

pelo aparelho, os quais determina-ram que o celular fosse considerado um meio de comunicação. Para os participantes da pesquisa, um meio de comunicação representa inte-ração e não informação, por causa disso, a televisão, muitas vezes, não foi identificada como um meio, já que sua configuração não possibilita um diálogo. Na visão deles, o celular é mais importante que a televisão, por, justamente, permitir um conta-to imediato com os amigos”, relata.

Para Monique Igreja, a pes-quisa permitiu que novos olhares fossem lançados sobre a juventude da ilha. “A busca de relação de com-partilhamento com o outro traduz o sentido da comunicação e deve se tornar ainda mais presente quando os sujeitos pertencem ao local em que estamos inseridos. Esses agentes sociais se encontram tão próximos da espacialidade física da capital, porém distantes, muitas vezes, de um olhar mais atento dos morado-res da cidade e do poder público”, conclui a pesquisadora.

Celulares intensificaram interações cotidianas

trunfos do local. Foi algo que me fez refletir, pois se imagina o jovem como alguém que adora a agitação e o movimento da cidade”.

Os participantes destaca-ram as dificuldades vivenciadas. “Eles se ressentem do acesso a serviços básicos (saneamento, saú-de e educação) e de uma área de cobertura telefônica mais ampla, para que a internet seja captada

com melhor qualidade em seus smartphones, aspecto articulado como necessidade básica pelos entrevistados. Apesar disso, os jo-vens não relacionaram à ilha uma condição de atraso e não teceram comentários negativos a seu res-peito”, aponta Monique.

Os jovens relataram que o fato de residirem em uma ilha é visto de maneira preconceituosa por gran-

de parte dos moradores de Belém. “Uma das situações em que ocorre esse preconceito está relacionada à forma como eles costumam ser chamados. Os depoimentos dos jo-vens evidenciaram a problemática que envolve o termo ‘ribeirinho’, o qual, muitas vezes, vem atrelado à palavra ‘caboquinho’ e carrega um sentido de inferioridade”, afirma a pesquisadora.

Jovens entrevistados usam o celular para agendar encontros e interagir com amigos de Belém e da região das ilhas.

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Pavulagem está, há 28 anos, fortalecendo a cultura popular

Arrastão de cores nas ruas de Belém

� Daniel Sasaki

Domingo, mês de junho em Belém. O dia amanhece na Praça da República e, aos poucos, as pessoas começam a chegar com

seus chapéus de fi tas coloridas e blusa estampada, movimentando o corpo ao som dos tambores, que podem ser ouvidos ao longe. Quebrando a rotina da praça, essas pessoas farão parte de um espetáculo de rua seguindo um cortejo de cultura popular que, há quase três décadas, vem dinamizando as ruas do Centro Histórico de Belém: o Arrastão do Pavulagem.

Há 28 anos, o Arrastão se consolidou como um dos mais importantes espetáculos do cenário cultural de Belém. Entender a representatividade dessa manifestação cultural e o seu valor simbólico foi o que motivou o pesquisador Edgar Monteiro Chagas Júnior, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, a elaborar a Tese Pelas ruas de Belém: produção de sentido e dinâmica cultural nos Arrastões do Pavulagem em Belém do Pará, orientada pela professora Carmen Izabel Rodrigues.

Não foi à toa que Edgar escolheu o Arrastão do Pavulagem como seu objeto de estudo. Durante a maior parte de sua vida, o pesquisador esteve envolvido com manifestações culturais. “Eu tenho uma relação de muitos anos com a cultura popular do nosso Estado. Desde muito novo, acompanhava o carimbó, o boi-bumbá, mas sempre como uma coisa distante. Por ser muito jovem, não compreendia a importância daquelas manifestações culturais”, conta.

Pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional (IPHAN), o pesquisador participou de vários inventários culturais, como o da Ilha do Marajó e o do Carimbó, este último deu base para que esta forma de expressão da cultura paraense se tornasse patrimônio cultural brasileiro.

A escolha do Arrastão do Pavulagem para a pesquisa de doutoramento teve uma motivação especial. Antes de se dedicar à vida acadêmica e ao estudo da cultura popular, Edgar Chagas Júnior já era componente da banda Arraial do Pavulagem e um dos organizadores do Arrastão. “Quando passei no vestibular, em 1997, eu já estava na banda e, enquanto estudava as manifestações culturais na Academia e, posteriormente, no IPHAN, continuava como músico e aproveitava todas as informações que conseguia sobre as manifestações culturais do Estado e passava para dentro do Arraial do Pavu-lagem, por meio de palestras e ofi cinas”, lembra.

Tambores, estandartes e chapéu de

fi tas coloridas são símbolos

dos arrastões do Arraial do

Pavulagem.

ALExANDRE MORAES

Arrastão de cores nas ruas de Belém

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Junho e Julho, 2016 - Beira do rio - 17

monialização, “e o Arrastão faz parte desse contexto”. A ressignificação do Centro Histó-rico, o seu uso festivo e a socia-bilidade entre os participantes dos Arrastões também foram analisados pelo pesquisador.

Para Edgar, não há como entender uma manifestação cultural fora do seu contexto. “O Arrastão do Pavulagem não é uma manifestação restrita ao seu espaço de ação, ele obedece a um contexto mais

amplo. Algumas pessoas dizem que o Pavulagem já é tradição, mesmo que ele não se proponha a isso. Ele se inspira em outras manifestações culturais, ao mesmo tempo fazendo as suas próprias letras e os seus pró-prios ritmos musicais. Ele pos-sui a sua própria identidade. O Pavulagem não é um boi-bum-bá, não é uma quadrilha junina, não é um cordão de pássaro, o Pavulagem é o Pavulagem”, conclui o autor.

Primeiramente, os ar-rastões eram realizados apenas em junho, na quadra junina, mas logo se espalharam por outros festejos. Em outubro, surgiu o Arrastão do Círio, que, além dos elementos tradicionais, traz elementos da Festa do Círio de Nazaré, como os brinquedos de miriti. Os instrumentos musicais também são modificados, além da conjuntura musical. “Cada cortejo tem uma imagem, tem uma identidade própria”, afirma Edgar Chagas Júnior. Também surgiu o Cordão do Peixe-Boi, com uma temática voltada para o meio ambiente. Atualmente, não há uma data fixa para a realização do cor-tejo. Ele é realizado durante o ano, em parceria com alguns eventos de natureza pública, normalmente, associados à temática social e cultural.

Neste contexto, um sím-bolo visual ganhou espaço: o chapéu de fita. Ele criou uma identidade para o movimento e é usado pela banda e pelas

pessoas que participam do Arrastão. “Aquela parte do centro histórico fica colorida, com cada pessoa, de uma ma-neira ou de outra, se sentindo pertencente à festa e, de fato, pertencem. Cria-se um ato mo-tivacional, uma plateia que não apenas vai assistir a um show, mas também vai interagir com ele”, afirma o pesquisador.

Uma das preocupações do pesquisador foi identificar as motivações dos participantes em relação ao Arrastão. “Eu queria entender o que faz um grupo de pessoas da cidade promover uma ação cultural de rua, em formato de cortejo, mas não é uma manifestação cultural igual ao boi-bumbá, ao pássaro junino ou ao carimbó”, explica.

Para o pesquisador, o movimento de busca pelas raízes culturais tradicionais por causa de questões que envolvem a globalização e a gradativa perda de identidade dos lugares fez aflorar discus-sões sobre patrimônio e patri-

ACERVO DO PESQUISADOR

“A banda desceu do palco e o público virou espetáculo”De acordo com Edgar

Chagas Júnior, o Grupo Arraial do Pavulagem foi criado no final da década de 1980, com o formato de banda. A partir de um determinado momento, surgiu a necessidade de inverter a ordem. “Há práticas culturais que são estagnadas, nas quais o espetáculo é ativo e a pla-teia é passiva. De acordo com as entrevistas que fiz com os fundadores e representantes do movimento, houve a necessida-de de se inverter essa ordem. ‘Queríamos descer do palco e ir para a rua’, foi o que eles disseram”, conta o pesquisador.

A proposta era criar um motivo, algo que fizesse com que as pessoas acompanhassem a banda. Daí surgiu a ideia do

boi-bumbá, pois muitos parti-cipantes da banda já tinham uma experiência com essa ma-nifestação cultural. O Arrastão teve seu processo embrionário na Praça da República, nos arredores do Teatro Waldemar Henrique, como um pequeno cortejo com a intenção de levar ou “arrastar” as pessoas atrás de um boizinho feito de miriti, ao som de barricas e cantorias, mas também como uma maneira de contestação pelo fechamen-to de espaços públicos para as manifestações culturais locais.

“As pessoas começam a andar na Praça da República com um boizinho espetado numa tala e a ideia era ir convi-dando as pessoas ou, como eles dizem, ‘arrastando’. A ideia do

arrastão surgiu daí, das pessoas se movimentarem e, de repen-te, isso foi ganhando corpo. A banda desceu do palco e o públi-co virou o espetáculo”, explica Edgar. Com o passar do tempo, o Pavulagem saiu da Praça da República e foi para a Avenida Presidente Vargas.

Em 2000, foi inaugurado o Instituto Arraial do Pavulagem, uma instituição não governa-mental, que tem por objetivo estabelecer uma organização institucional dos eventos pro-movidos pelo grupo, com vistas à divulgação de suas ações em conjunto com as demais mani-festações culturais do Estado.

Além da musicalidade, também há uma identidade vi-sual característica do Arrastão.

O boi-bumbá, os vaqueiros, os cavalinhos, os cabeçudos são alguns dos elementos que dão uma visualidade plástica ao evento. “A estes elementos cha-mados de objetos brinquedos, somam-se os estandartes com as imagens dos santos juninos, que vão à frente abrindo o cortejo. O próprio batalhão (tocadores) organiza-se baseado em uma uniformização com camisas estampadas com gravuras alu-sivas ao universo simbólico do cortejo. O Arrastão é formado por alas e em cada uma delas existe um mote de significação, que dá o sentido do cortejo. Tudo ocorre pela manhã, pois a intenção é atingir todos os públicos e de todas as idades”, explica Edgar Chagas Júnior.

Símbolo: chapéu de fita é usado por integrantes e plateia

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18 - Beira do rio - Junho e Julho, 2016

� Walter Pinto

Eleito recentemente o lugar que mais identifi-ca Belém, o Ver-o-Peso

atrai diariamente milhares de pessoas, entre trabalhadores, consumidores e visitantes. Trata-se de uma enorme feira a céu aberto, composta por vários elementos, na qual se destaca o velho mercado com suas quatro torres de ferro, marco característico histórico e arquitetônico do lugar. Coordenadora do Projeto “Ver-o-Peso: Estudos antropológicos no mercado de Belém”, a antropóloga Wilma Marques Leitão orga-nizou duas publicações que reúnem artigos escritos por pesquisadores de diferentes áreas sobre aquele espaço que sintetiza a cultura e a culinária amazônica.

O segundo volume chega às livrarias em meio à intensa discussão sobre um polêmico projeto de reforma da Prefeitura Municipal de Belém, que, segundo os crí-ticos, retira do Ver-o-Peso a sua principal característica, a de ser uma feira a céu aberto. Con-forme observa a organizadora do livro, praticamente todos os artigos, cada um ao seu modo, apresentam a preocupação de tratar o Ver-o-Peso sob a perspectiva do patrimônio.

Dos nove artigos que compõem o segundo volume, oito tratam do mercado sob aspectos diferentes, como história, valor, culinária, economia, conheci-mentos tradicionais, relações sociais, transmissão de saberes, imagens e cores. O nono, escrito por Sérgi Garriga e Ma-noel Guárdia, da Universitat Politécnica de Catalunya, trata de um modelo de modernização de mercados colocado em prática na cidade catalã de Barcelona, que certamente deveria ser lido pelos gestores municipais de Belém, ávidos por reformarem o velho mercado paraense com as marcas próprias das suas adminis-trações, muitas vezes, descaracterizando as linhas daquele símbolo que identifica

a cidade e, até mesmo, confunde-se com ela.

A origem do Ver-o-Peso remonta aos primeiros nove anos de fundação da quatrocentona Belém do Pará, quando, em 1625, foi instalada uma balança às proxi-midades do alagadiço da Juçara, depois, denominado Igarapé do Piri, na esquina da antiga rua dos Mercadores. A balança tinha por finalidade verificar o peso dos produtos que chegavam nas embarcações para efeito de cobrança de impostos devidos à Coroa. Um pouco dessa história é reconstruída no artigo de Celma Pont Vidal, da Faculdade de Arquitetura da UFPA, que trata dos mercados públicos de Belém.

Em “O valor que o Ver-o-Peso tem”, Paola Maués e Tereza Scheiner analisam o espaço segundo seu valor de musealida-de, defendendo a ideia de Museu Integral como forma de abrir uma nova perspectiva de entendimento para o velho mercado, contribuindo para ações que podem ser

realizadas com o objetivo de valorização e preservação. Rosângela Britto e Flávio Le-onel Silveira trazem reflexões sobre a exposição museológi-ca “Paisagens do Ver-o-Peso: lugar, práticas e ofícios”, re-alizada em 2011, discutindo os processos de produção e de recepção daquela mostra e contribuindo com as pos-sibilidades de representar, via exposição, os lugares de memórias da cidade.

O processo de escolha da cor aplicada ao Mercado do Ver-o-Peso foi o tema do artigo assinado por Benedito Silva, mestrando do Progra-ma de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. Trata-se de uma análi-se sobre a contribuição dada pelo site Ver-o-Site, criado em 2012. Foi por meio desse site que o público pode se manifestar em relação à cor que o Mercado deveria rece-ber, uma iniciativa do Institu-to de Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional.

Em seu artigo sobre a culinária e economia, Wilma Leitão circula por entre as

barracas de frutas, legumes, farinha, açaí, camarão e vendas de peixe frito, para res-saltar que o Ver-o-Peso consegue também “ser uma aventura para os sentidos, uma vez que os produtos ali comercializados são mais que mercadorias: são riquezas da floresta, elaboradas e mantidas pelas populações tradicionais”.

Os dois últimos artigos tratam da comercialização de peixes e da transmis-são de saberes no setor de farinhas. O primeiro, escrito a quatro mãos, analisa as regras estabelecidas num negócio ge-ralmente percebido como informal. O se-gundo mostra o cotidiano como construtor e transmissor de um saber que está além da escola, mesmo que a maior parte dos entrevistados não reconheça tal saber.

Serviço: Ver-o-Peso: estudos antropoló-gicos no mercado de Belém – Volume II. Wilma Marques Leitão (organizadora). Editora Paka-Tatu, 2016.

rEsEnha

Diversas formas de Ver-o-PesoREPRODUçãO

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Junho e Julho, 2016 - Beira do rio - 19

A História na Charge

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