Beata Maria Do Egito

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A Revolta do Juazeiro aconteceu no sertão cearense em 1914, foi gerada pela intervenção do poder do governo federal na política dos estados e teve como símbolo o Padre Cícero. Durante a Primeira República, a política brasileira era comandada pelos grupos oligárquicos que detinham o poder em suas regiões. A transição para o sistema republicano no Brasil também acarretou na implantação de um Estado federalista, no qual cada estado desfruta de seus poderes e autonomia para suas decisões, mesmo que atrelados ao governo central. Para solucionar a questão do apoio político necessário ao presidente para governar o país, o presidente Campos Sales criou a chamada política dos governadores . Através desta, o presidente dava liberdade de ação aos grupos oligárquicos em cada estado em troca de apoio na eleição do presidente de interesse para ocupar o cargo na sucessão. Em 1914 o presidente do Brasil era o Marechal Hermes da Fonseca . Sob seu governo foi criada a política das salvações , a qual ampliava os limites de monopólio do poder estruturados a partir da política dos governadores. Com tal medida o presidente tinha a capacidade de interferir na política dos estados e impedir que opositores ocupassem cargos não desejáveis, como o governo do estado. Como reflexo da medida criada pelo presidente, Hermes da Fonseca tentou impedir que as oligarquias de oposição no estado do Ceará ocupassem o governo do estado. Tais grupos estavam sob o comando do senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, que mesmo do extremo sul do país possuía grande influência sobre os coronéis do Norte e Nordeste. A atitude causou insatisfação entre os

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ARevolta do Juazeiroaconteceu no serto cearense em 1914, foi gerada pela interveno do poder do governo federal na poltica dos estados e teve como smbolo o Padre Ccero.Durante a Primeira Repblica, a poltica brasileira era comandada pelos grupos oligrquicos que detinham o poder em suas regies. A transio para osistemarepublicano no Brasil tambm acarretou na implantao de um Estado federalista, no qual cada estado desfruta de seus poderes e autonomia para suas decises, mesmo que atrelados ao governo central. Para solucionar a questo do apoio poltico necessrio ao presidente para governar o pas, o presidenteCampos Salescriou a chamadapoltica dos governadores. Atravs desta, o presidente dava liberdade de ao aos grupos oligrquicos em cada estado em troca deapoiona eleio do presidente de interesse para ocupar o cargo na sucesso.Em 1914 o presidente doBrasilera oMarechalHermes da Fonseca. Sob seu governo foi criada apoltica das salvaes, a qual ampliava os limites de monoplio do poder estruturados a partir da poltica dos governadores. Com tal medida o presidente tinha acapacidadede interferir na poltica dos estados e impedir que opositores ocupassem cargos no desejveis, como o governo do estado.Como reflexo da medida criada pelo presidente, Hermes da Fonseca tentou impedir que asoligarquiasde oposio no estado do Cear ocupassem o governo do estado. Tais grupos estavam sob o comando do senador gachoJos Gomes Pinheiro Machado, que mesmo do extremo sul do pas possua grande influncia sobre os coronis do Norte e Nordeste. A atitude causou insatisfao entre os polticos cearenses e teve como grande liderana oPadre Ccero Romo Batista.Floro Bartolomeu e Padre CceroEm 1911 comea a disputa do Padre Ccero com o presidente na tentativa de manter a famliaAciolyno poder da poltica cearense, mas o governo do pas interveio em 1912 e a retirou do poder. Padre Ccero, entretanto, ocupava os cargos de prefeito de Juazeiro do Norte e vice-governador do estado.Foi em 1914 que o coronelMarcos Franco Rabelo, interventor nomeado pelo governo nacional, passou a perseguir o Padre Ccero, destituindo-o de seus cargos e ordenando sua priso. A medida foi imediatamente reprovada por grupos oligrquicos do Cear, que, liderados porFloro Bartolomeu, organizaram um batalho formado por jagunos e romeiros em defesa do Padre Ccero.A expedio ordenada pelo interventor Franco Rabelo dirigiu-se para Juazeiro do Norte para prender o proco, mas quando chegaram esbarraram em uma imensa muralha que cercava a cidade. Tal defesa era chamada de "Crculo da Me de Deus" e foi construda em apenas sete dias. Foi o suficiente para impedir a penetrao das tropas do governo, que teve de voltar para angariar mais reforos.Durante vrios combates a vitria permaneceu com o grupo de revoltosos organizados emJuazeiro do Norte. Floro Bartolomeu se dirigiu ento ao Rio de Janeiro em busca de apoio enquanto os revoltosos rumaram para Fortaleza com o intuito de depor o interventor. No Rio de Janeiro conseguiram o apoio de Pinheiro Machado e em Fortaleza Franco Rabelo foi realmente deposto.Aps a revolta e a deposio do interventor no Cear, o presidente Hermes da Fonseca convocou novas eleies para o governo do estado, as quais resultaram na eleio de Benjamim Liberato Barroso para o cargo de governador e na volta do Padre Ccero ao posto de vice-governador.Pelo envolvimento no evento poltico, o Padre Ccero foi excomungado pela Igreja Catlica no fim da dcada de 1920. Todavia sua influncia no Cear e na regio Nordeste fizeram com que sua imagem como homem santo fosse mantida, at hoje venerado pela populao da regio e atrai milhares de pessoas a Juazeiro do Norte.Fontes:Zaluar, Alba (1986), "Os Movimentos 'Messinicos' Brasileiros: Uma Leitura",inAnpocs,O Que se Deve Ler em Cincias Sociais no Brasil. So Paulo, Cortez/Anpocs.Monteiro, Duglas Teixeira (1977), "Um Confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado",inS. B. de Holanda (dir.),Histria Geral da Civilizao Brasileira. Tomo III, vol. 2. Rio de Janeiro/So Paulo, DIFEL.DELLA CAVA, Ralph. (1975), "Messianismo Brasileiro e Instituies Nacionais: Uma Reavaliao de Canudos e Juazeiro".Revista de Cincias Sociais - UFC, vol. VI, n 1 e 2.BRANDO, Carlos Rodrigues. (1980),Os Deuses do Povo. So Paulo, Brasiliense.

SANTA MARIA EGPCIA

Maria do Egito ou Santa Maria Egipcaca ou Santa Maria Egpcia (c. 344 c. 421 ou 422) foi uma asceta dos sculos IV e V que se retirou para o deserto aps uma vida de prostituio. venerada como patrona das mulheres penitentes, em especial na Igreja Copta, mas tambm na Igreja Catlica, Igreja Ortodoxa e Igreja Anglicana. A Igreja Ortodoxa celebra o seu dia festivo no dia do seu descanso, em 1 de abril e no "Domingo de Santa Maria do Egito", o sexto domingo da Grande Quaresma.

A principal fonte de informao sobre Santa Maria do Egito a Vita escrita por Sofrnio, Patriarca de Jerusalm (634 - 638).

Santa Maria nasceu algures no Egito, e aos doze anos foi para a cidade de Alexandria, onde viveu uma vida dissoluta. Muitos escritos se lhe referem como prostituta durante este perodo, mas, Sofrnio na sua obra Vita afirma que se negou frequentemente a aceitar o dinheiro oferecido em troca dos seus favores sexuais. Ter sido, segundo a hagiografia, impulsionada por um desejo insacivel e uma imparvel paixo. Na mesma linha, a Vita expe que vivia principalmente da mendicidade, trabalhando na fiao de linho.

PEREGRINAO A JERUSALMAps 17 anos a viver este estilo de vida, viajou para Jerusalm para a festa da Exaltao da Santa Cruz. Empreendeu a viagem como uma espcie de "anti-peregrinao", afirmando que esperava encontrar na multido de peregrinos ainda mais parceiros para a sua luxria. Conseguiu o dinheiro para a viagem oferecendo favores sexuais a outros peregrinos, e continuou o seu habitual estilo de vida por um curto tempo em Jerusalm. Na Vita relata-se que, quando tentava entrar na Igreja do Santo Sepulcro para a celebrao, uma fora invisvel a ter impedido de o fazer. Consciente de que este estranho fenmeno era por causa da seu impureza, sentiu um forte arrependimento e, ao ver um cone da Theotokos fora da igreja, rezou implorando perdo e prometeu renunciar ao mundo convertendo-se em asceta).

CONVERSO E ASCETISMOZsimo da Palestina encontra-se com uma Maria do Egito nua no deserto e d-lhe o seu manto para a tapar. Fresco na baslica de Assis.Mais tarde tentou de novo entrar na igreja, e desta vez conseguiu-o. Depois de venerar a relquia da Cruz de Cristo, regressou ao cone em ao de graas, tendo escutado uma voz que lhe dizia "Se cruzares o Jordo, encontrars um glorioso descanso". De imediato dirigiu-se para o mosteiro de So Joo Batista na margem do rio Jordo, onde recebeu a comunho.Na manh seguinte cruzou o Jordo e retirou-se para o deserto para viver o resto da sua vida como uma eremita. Segundo a lenda, levou para si apenas trs pes (smbolo da Eucaristia), e viveu do que podia encontrar na natureza. Aproximadamente um ano antes da sua morte, aps cerca de 47 anos em retiro de solido, contou a sua vida a So Zsimo da Palestina, que se tinha encontrado com ela no deserto. Este, quando conheceu inesperadamente esta mulher no deserto, viu que estava completamente nua e quase irreconhecvel como humana. Maria pediu a Zsimo o seu manto para se cobrir com ele, de pois contou-lhe a histria da sua vida, manifestando uma maravilhosa clarividncia.

MORTECombinaram encontrar-se de novo no rio Jordo na Quinta-feira Santa do ano seguinte, e levar-lhe a comunho. Assim, no ano seguinte, Zsimo deslocou-se ao mesmo lugar onde se reunira pela primeira vez com ela, a vinte dias de viagem do seu mosteiro, e a a encontrou morta. De acordo com uma inscrio escrita na areia ao lado da cabea, tinha morrido na mesma noite em que tinha recebido a santa comunho e de algum modo tinha sido milagrosamente transportada para o lugar onde a encontraram, e o seu corpo ficou preservado incorrupto. Zsimo, ainda segundo a lenda, enterrou o seu corpo com a ajuda de um leo do deserto. No regresso ao mosteiro, relatou a historia de Maria aos irmos, e entre eles ficou a tradio oral at ter sido escrito o relato de So Sofrnio. H divergncias entre as diversas fontes sobre a data da vida de Maria do Egito. Os Bolandistas datam a sua morte no ano 421, mas outros do como data 522 ou 530. O nico indcio dado na sua vida que o dia do seu repouso foi 1 de abril, Quinta-feira Santa. Segundo o calendrio juliano em uso na poca, h 24 anos em que o dia 1 de abril foi quinta-feira. Destes, os anos nos quais a Pscoa seria em 4 de abril so 443, 454, 527, 538, e 549. notvel que o Synaxarion exponha que Zsimo viveu durante o reinado do imperador Teodsio II o Jovem, que reinou de 408 a 450 no Imprio Romano do Oriente. Segundo a tradio, Zsimo viveu quase cem anos, morrendo no sculo VI, e na Vita diz-se que tinha cinquenta e trs anos de idade quando se reuniu com Santa Maria do Egito.

VENERAOO Templo de Portunus de Roma foi preservado como igreja de Santa Maria do Egito no ano de 872.Na iconografia clssica, Santa Maria do Egito representada como uma anci de cabelo branco e de pele escurecida pelos longos anos no deserto, nua ou coberta pelo manto que pediu a Zsimo. representada muitas vezes com os trs pes que comprou antes de empreender a sua viagem ao deserto.H uma capela dedicada a Santa Maria do Egito na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalm, que comemora o momento da sua converso.

INFLUNCIA NA ARTEFOLCLOREAlguns escritores vincular Maria do Egito com a Morris dance, uma dana tpica inglesa. Em 1280 Adam de la Halle escreveu "Li Gieues de Robin et de Marion" (O Jogo de Robin e Marion). Nos escritos deste folclorista funde-se a Vita de Santa Maria do Egito com a histria de Robin Hood e Marion, que se convertem em personagens associados com o ms de maio. A popular rainha de maio converte-se numa forma encoberta de perpetuar uma divindade pag do amor. Esta teoria tem sido recentemente proposta por Margaret Alhenby-Jaffe na sua obra National Dance (2006).

LITERATURAA Vida de Santa Maria Egipcaca (primeira metade o sculo XIII) um poema castelhano que narra a vida de santa Maria do Egito, e que uma adaptao da obra francesa Vie de Sainte Marie l'Egyptienne.Ben Jonson na sua obra de teatro Volpone (1606) utiliza a expresso "Marry Gip". Alguns comentadores tomaram esta no sentido de Maria do Egito.Robert Graves especula em La diosa blanca (1948) que Maria do Egito se pode identificar com a "Gipsy Mary", uma virgem com uma tnica azul e um colar de prolas, conhecida como como Marina, Marian o "Maria Stelhis". Ela , supostamente, uma descendente remota de Afrodite, a deusa do amor.O escritor mexicano Miguel Sabido, escreveu a sua prpria verso da histria de Maria em As tentaes de Maria Egipcaca. Eventualmente levou a sua obra ao teatro com a atriz Beatriz Sheridan.O escritor espanhol Jos Maria Menndez Lpez recriou uma viso pessoa da vida da santa na sua obra Retablo impo.1

MSICAMaria do Egito tema de duas peras de Ottorino Respighi e Sir John Tavener. Tambm aparece em The Salt Roads de Nalo Hopkinsons.

PINTURA Episdios da vida de Maria do Egito esto pintados nos frescos do Mosteiro de So Salvador de Oa (Burgos), Espanha. A sua lenda descrita nos vitrais da catedrais de Chartres, Bourges e Auxerre.

INFLUNCIA NA SOCIEDADEEm torno das ordens religiosas inspiradas por Maria do Egito comearam a construir-se em Espanha desde o sculo XIV diversos estabelecimentos ou casas denominadas genericamente de Egipcacas. Em 1372 foi fundada uma "casa de Egipcacas" em Barcelona.Em Espanha denominavam-se indistintamente como Arrependidas, Recolhidas ou Egipcacas as mulheres que abandonavam o exerccio pblico da prostituio, ou seja, as que eram antes da converso denominadas mulheres pblicas.

BIBLIOGRAFIA

Erich Poppe and Bianca Ross (eds.), The Legend of Mary of Egypt in Medieval Insular Hagiography (Dublin: Four Courts Press, 1996), 299 pp.Virginia Burrus, "Sacrifice in the Desert: Mary of Egypt," in Eadem, The Sex Lives of Saints: An Erotics of Ancient Hagiography (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004), pp 147-155.Patricia Cox Milher, "Is There a Harlot in This Text? Hagiography and the Grotesque," in Dale B. Martin, Patricia Cox Milher (eds), The Cultural Turn in Late Ancient Studies: Gender, Asceticism, and Historiography (Durham, NC: Duke University Press, 2005), pp 419-435.Francisco Marcos Marn, ESTORIA como 'representacin secuencial', Archivum (AO), XXVII-XXVIII, 1977-78, pp 523-528. Sobre as pinturas de Oa.

SANTA MARIA EGIPCACA (outra verso)Maria Egipcaca, chamada a Pecadora, passou 47 anos no deserto em austera penitncia, comeada por volta do ano do Senhor de 270, no tempo do Imperador Cludio. Certa vez, um abade chamado Zzimo atravessou o rio Jordo e percorria um grande deserto procurando um santo eremita, quando viu caminhando uma pessoa nua e de corpo enegrecido pelo sol. Era Maria Egipcaca, que imediatamente fugiu, com Zzimo correndo atrs dela, por isso perguntou: Abade Zzimo, por que me persegue? Desculpe-me, no posso mostrar meu rosto porque sou mulher e estou nua; d-me seu manto para que eu possa olh-lo sem me envergonhar. Ouvindo ser chamado pelo nome, ele ficou surpreso e depois de dar seu manto prosternou-se aos seus ps e pediu a ela que o abenoasse. Ela disse: voc, padre, que deve me abenoar, voc que ornado pela dignidade sacerdotal.Ao perceber que ela sabia seu nome e sua condio, ficou ainda mais impressionado e insistiu para que o abenoasse. Mas ela disse: Bendito seja Deus, redentor de nossas almas. Enquanto ela orava de mos estendidas, Zzimo viu que ela tinha se erguido a um cvado do cho. Vendo aquilo, o ancio ps-se a pensar se no era um esprito que estava fingindo rezar. Ento ela disse: Que Deus o perdoe por ter tomado uma mulher pecadora por um esprito imundo. Zzimo conjurou-a em nome do Senhor a lhe contar sua vida. Ela retorquiu: Perdoe-me, padre, mas se contar minha histria voc fugir apavorado, como se visse uma serpente. Seus ouvidos sero maculados por minhas palavras e o ar contaminado por coisas srdidas. Mas diante da veemente insistncia, ela contou: Nasci no Egito, irmo, e aos doze anos de idade fui para Alexandria, onde durante dezessete anos entreguei-me publicamente libertinagem e nunca me recusei a quem quer que fosse. Quando alguns homens da regio embarcaram para Jerusalm a fim de adorar a Santa Cruz, pedi aos marinheiros que me levassem com eles. Como me pediram para pagar a passagem, respondi: No tenho dinheiro, irmos, mas posso entregar meu corpo como pagamento. Eles me levaram e usaram meu corpo. Chegando a Jerusalm, fui com as outras pessoas at a igreja para adorar a cruz, mas imediatamente uma fora invisvel me repeliu e me impediu de entrar. Vrias vezes fui at a soleira da porta, e continuava a ser repelida, enquanto todo mundo entrava sem dificuldade e sem encontrar nenhum obstculo. Pus-me a pensar e conclu que tudo aquilo tinha como causa a enormidade de meus crimes. Comecei a bater no peito com as mos, a derramar lgrimas amargas, a dar profundos suspiros do fundo do corao e, ao erguer a cabea, vi uma imagem da bem-aventurada Virgem Maria. Pedi ento, com lgrimas, que ela obtivesse o perdo de meus pecados e me deixasse entrar para adorar a Santa Cruz, prometendo renunciar ao mundo e levar, dali em diante, uma vida casta. Aps essa prece, confiando na bem-aventurada Virgem, fui mais uma vez at a porta da igreja, pela qual passei sem o menor obstculo. Quando terminei de adorar a Santa Cruz com grande devoo, algum me deu trs moedas, com as quais comprei trs pes, e ouvi uma voz que me dizia: Se atravessar o Jordo, estar salva. Atravessei o Jordo e vim para este deserto, no qual fiquei 47 anos sem ter visto homem algum. Os trs pes que levei comigo, embora com o tempo tenham se tornado duros como pedras, bastaram para me alimentar por 47 anos, mas minhas roupas h muito tempo apodreceram. Durante os primeiros dezessete anos passados neste deserto fui atormentada pelas tentaes da carne, mas hoje j as venci, com a graa de Deus. Agora que contei toda a minha histria, peo que reze a Deus por mim. O ancio ajoelhou-se e abenoou a escrava do Senhor. Ela lhe disse: Peo que no dia da ceia do Senhor voc venha para a margem do Jordo e traga o corpo do Senhor. Eu irei encontr-lo ali e receber de sua mo esse corpo sagrado, porque desde o dia em que vim para c no recebi a comunho do Senhor. O ancio voltou para seu mosteiro e no ano seguinte, ao se aproximar o dia da Ceia, pegou o corpo do Senhor e foi at a margem do Jordo. Do outro lado estava de p uma mulher que fez o sinal-da-cruz sobre as guas e veio ao encontro dele. Ao ver isso, tomado de surpresa, prosternou-se humildemente a seus ps. Disse ela: No faa isso, pois voc carrega os sacramentos do Senhor e tem a dignidade sacerdotal. No entanto, padre, eu suplico que no prximo ano voc se digne a me ver novamente no mesmo lugar em que nos encontramos pela primeira vez. Depois de fazer o sinal-da-cruz, ela atravessou de volta as guas do Jordo para ganhar a solido do seu deserto. Quanto ao ancio, retornou a seu mosteiro e no ano seguinte foi ao lugar combinado, mas encontrou Maria morta. Ps-se a chorar e no ousou toc-la, mas disse consigo mesmo: Eu sepultaria de bom grado o corpo desta santa, mas temo que isso a desagrade. Enquanto pensava assim, viu as seguintes palavras gravadas na terra, perto da cabea dela: Zzimo, enterre o corpo de Maria, devolva terra sua poeira e ore por mim ao Senhor, por ordem do qual deixei este mundo no segundo dia de abril. Meditando o fato, o ancio concluiu que ela terminara sua vida no deserto, no ano anterior, logo aps ter recebido o sacramento do Senhor. Ora, antes de ir para junto de Deus, Maria tinha ido em uma hora do Jordo ao deserto, distncia que Zzimo com muita dificuldade levava trinta dias para percorrer. Vendo um leo que mansamente vinha em sua direo, o ancio disse-lhe: Esta santa mulher mandou sepultar aqui seu corpo, mas no posso cavar a terra porque sou velho e no tenho ferramentas. Cave voc a terra para que possamos sepultar seu santssimo corpo. O leo comeou a cavar e a fazer uma cova adequada, depois do que foi embora manso como um cordeiro, enquanto o ancio voltava para o seu mosteiro glorificando a Deus. ---------------VARAZZE, Jacopo de. Legenda urea: Vida de Santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 352-354.Vida de nossa Santa Me Maria do Egito" bom esconder o segredo de um rei, mas glorioso revelar e praticar as obras de Deus" (Tobias 12:7). Assim disse o Arcanjo Rafael a Tobias quando o curou de sua cegueira. Na verdade, no guardar o segredo de um rei um grande e perigoso risco mas, silenciar sobre as obras de Deus uma grande perda para a alma. E eu (diz So Safrnio), ao escrever a vida de Santa Maria do Egito, fico temeroso de esconder os feitos de Deus pelo silncio. Lembrando da desventura do servo infiel que escondeu os talentos dados por Deus na terra (Mt 25: 18-25), estou seguro para contar a sagrada estria a que tive acesso. E no pensem (continua S. Safrnio), que ousei escrever alguma inverdade ou fato duvidoso sobre essa grande maravilha - que eu nunca minta sobre coisas santas! Se acontecer que pessoas leiam esse relato e no acreditem, que o Senhor tenha piedade delas, porque, refletindo sobre a fraqueza da natureza humana, eles consideram impossvel estas coisas maravilhosas acontecerem com pessoas santas. Mas agora, devemos iniciar o relato dessa incrvel estria que aconteceu em nossa gerao:"Havia um certo ancio em um dos mosteiros da Palestina, um padre de vida e palavra santas, que desde a infncia foi criado no caminho e nos costumes monsticos. Este ancio chamava-se Zzimo. Em toda sua vida asctica e em tudo o mais, ele aderiu Regra dada a ele pelos seus mestres, no que dizia respeito aos trabalhos espirituais e a isso ele acrescentou por si mesmo mais trabalhos, a fim de sujeitar a carne vontade do esprito. E ele no falhou no seu objetivo. Ele era to renomado por sua vida espiritual que muitos vinham a ele dos mosteiros vizinhos e outros de bem longe. Durante sua vida nunca deixou de estudar as Divinas Escrituras. Seja descansando ou de p, trabalhando ou comendo (se as migalhas que ele comia podiam ser chamadas alimento), ele incessantemente e constantemente tinha um nico objetivo: sempre cantar a Deus e praticar os ensinamentos das Divinas Escrituras. Zzimo costumava contar que desde que foi retirado do seio de sua me e foi entregue ao mosteiro, ele se submeteu ao treinamento asctico at a idade de 53 anos. Depois disso, ele comeou a ser atormentado com o pensamento de que ele era perfeito em tudo e no necessitava de instruo alguma de ningum, dizendo a si mesmo mentalmente, "existir algum monge na terra que pode ser til a mim e mostrar-me um tipo de ascetismo" que eu j no tenha realizado? Haver algum homem no deserto que tenha me superado?"Assim pensava o ancio, quando de repente um anjo lhe apareceu e disse:"Zzimo, voc lutou valentemente, tanto quanto esteja na capacidade humana, valentemente voc trilhou o caminho asctico. Mas, no h homem algum que tenha atingido a perfeio. Antes que voc minta, batalhas no conhecidas, maiores do que as suas foram realizadas. Para que voc conhea quantos outros caminhos levam salvao, deixe sua terra natal, como o patriarca Abrao e v para o mosteiro margem do Rio Jordo."Zzimo fez como lhe fora dito. Deixou o mosteiro no qual vivera desde a infncia e foi para o Rio Jordo. Finalmente chegou comunidade para onde Deus o enviara. Batendo porta do mosteiro, disse ao monge porteiro quem ele era e este reportou ao abade. Sendo admitido presena do abade, Zzimo fez a prostrao usual e suas oraes. Vendo que ele era um monge o abade perguntou:"De onde vens irmo, e porque vieste a ns pobres ancios?" Zzimo replicou:"No h necessidade de dizer de onde eu vim, mas vim, Pai, buscando ajuda espiritual pois ouvi grandes maravilhas sobre sua habilidade em conduzir almas para Deus.""Irmo", disse o abade , "apenas Deus pode curar a enfermidade da alma. Que Ele ensine a ti e a ns seus divinos caminhos e nos conduza a todos. Mas j que o amor de Cristo que te trouxe para visitar-nos, pobres ancios, ento fique conosco, se por isso que tu vieste. Que o Bom Pastor Que deu sua vida pela nossa salvao encha-nos a todos com a graa do Santo Esprito.Depois disso, Zzimo se inclinou diante do abade, pediu suas oraes e beno e ficou no mosteiro. L ele conheceu ancios zelosos, tanto na ao quanto na contemplao do Senhor. Eles cantavam incessantemente, permaneciam em orao toda a noite, o trabalho sempre em suas mos e salmos em seus lbios. Nunca uma palavra v era ouvida entre eles, nada sabiam sobre adquirir bens temporais ou dos cuidados da vida. Tinham apenas um desejo - ter seus corpos como cadveres. Seu alimento constante era a Palavra de Deus, e mantinham seus corpos a po e gua apenas; tanto quanto seu amor a Deus lhe permitiam. Vendo isto, Zzimo ficou grandemente edificado e preparou-se para o combate que o esperava.Muitos dias se passaram e chegou o tempo, quando todos os cristos jejuam e se preparam para adorar a Divina Paixo e Ressurreio de Cristo. Os portes do mosteiro eram sempre fechados e se abriam apenas quando algum da comunidade era enviado para alguma incumbncia. Era um local deserto, onde nunca apareciam visitantes do mundo e sequer era conhecido deles.Havia uma regra no mosteiro que foi a razo pela qual Deus enviara Zzimo para l. No incio do Grande Jejum (no Domingo do Perdo) o padre celebrava a sagrada Liturgia e todos participavam do sagrado corpo e sangue do Senhor. Depois da Liturgia eles iam ao refeitrio e podiam comer um pouco de comida quaresmal.Em seguida, todos se reuniam na igreja e depois de rezarem fervorosamente com prostraes, os ancios se beijavam e pediam-se mutuamente perdo. E cada um fazia uma prostrao diante do abade, pedia sua beno e oraes para o combate que iam enfrentar. Depois disso, os portes do mosteiro se abriam e cantando, "O Senhor minha luz e meu Salvao; a quem temerei? O Senhor o defensor de minha vida; de quem terei medo?" (Salmo 26:1) e o resto daquele salmo, todos saiam para o deserto e atravessavam o Rio Jordo. Apenas um ou dois irmos permaneciam no mosteiro, no para guardar a propriedade (pois nada havia para ser roubado), mas para no deixar a igreja sem o Divino Ofcio. Cada um levava consigo o quanto podia ou desejava em alimento, de acordo com as necessidades de seu corpo: um tomaria um pequeno po, outro alguns figos, um outro algumas tmaras ou trigo misturado em gua. Alguns nada levavam, mas apenas seus corpos cobertos com trapos e quando a natureza os forava, se alimentavam de plantas que nasciam no deserto.Depois de atravessar o Jordo, eles se espalhavam em diferentes direes, longe uns dos outros. E esta era a regra de vida que eles tinham e que todos observavam - nenhum deveria falar com o outro, nem saber como o outro vivia ou jejuava. Se acontecesse de um avistar o outro, deveria este se afastar para outra parte da regio, vivendo s e sempre cantando a Deus e na hora definida comer uma pequena poro de comida. Desse modo passavam toda a Quaresma e geralmente retornavam ao mosteiro uma semana antes da Ressurreio de Cristo, no Domingo de Ramos. Cada um retornava tendo apenas sua prpria conscincia como testemunha de seu labor e nenhum perguntava a outro como ele passara seu tempo no deserto. Tais eram as regras no mosteiro. Cada um deles, enquanto no deserto, pelejava consigo mesmo, diante do Juiz da batalha - Deus - no buscando agradar a homens, nem jejuar diante dos olhos de todos. Pois o que feito para agradar aos homens, ganhar elogios e honrarias, no s intil para quem o faz mas muitas vezes causa de grande castigo.Zzimo fez como os demais. E foi para longe, bem longe no deserto com um desejo secreto de encontrar algum Pai que estivesse vivendo ali e que pudesse satisfazer sua sede e desejo de Deus. E vagou sem descanso como se corresse para algum lugar definido. J tinha andado por vinte dias e quando veio a sexta hora ele parou e voltando-se para o oriente, comeou a cantar a Sexta Hora e recitar as oraes costumeiras. Ele costumava interromper sua jornada em determinados horrios para descansar um pouco, para cantar salmos de p e rezar de joelhos.Assim cantava, sem tirar os olhos dos cus quando subitamente, viu direita da colina em que se encontrava, algo semelhante a um corpo humano. No incio ele ficou confuso, pensando tratar-se de uma viso do demnio e chegou a ter medo. Mas, tendo feito o sinal da Cruz e banido todo o medo, volveu o olhar naquela direo e na verdade viu algo deslizando na direo sul. A forma estava nua, a pele escura, como se queimada completamente pelo calor do sol; o cabelo em sua cabea era branco como l e no comprido, indo somente at abaixo do pescoo. Zzimo ficou to cheio de alegria ao perceber uma forma humana que correu atrs em perseguio, mas a forma fugiu dele. Ele a seguiu, contudo. Finalmente, quando estava prximo a ponto de ser ouvido, ele gritou:"Por que tu foges de um homem velho e pecador? Escravo do Deus Verdadeiro, espere por mim, quem quer que sejas, em nome de Deus eu te digo, pelo amor de Deus, pelo amor de Quem voc vive nesse deserto!""Perdoa-me, pelo amor de Deus, mas no posso me voltar em tua direo e mostrar-te minha face, Pai Zzimo. Pois sou uma mulher e estou nua como vs, com as partes vergonhosas descobertas. Mas se podes satisfazer um desejo de uma pecadora, atira-me tua capa de modo que eu possa cobrir meu corpo e voltar-me para que possas abenoar-me."Aqui o pavor se apoderou de Zzimo, pois ele ouviu ela cham-lo pelo nome. Mas compreendeu que ela no poderia ter feito isso sem conhec-lo, se no possusse uma clarividncia espiritual.Ento ele atendeu ao que ela pedia. Retirou sua velha e gasta capa e atirou-lhe, afastando-se enquanto fazia isso.Ela pegou-o e cobriu pelo menos uma parte de seu corpo. Quando se voltou para Zzimo disse:"Por que desejaste, Pai Zzimo, ver uma mulher pecadora? O que desejas ouvir ou aprender de mim, tu que no te encolheste diante de grandes obstculos?"Zzimo atirou-se ao cho e pediu-lhe a beno. Ela igualmente se curvou diante dele. E assim, ficaram no cho, prostrados, pedindo a bno um do outro. E apenas uma palavra podia ser ouvida de ambos: "Abenoe-me!" Depois de um tempo a mulher disse a Zzimo: "Pai Zzimo, s tu quem deves abenoar e rezar. Tu s dignificado com a ordem do sacerdcio e por muitos anos tens estado diante do altar sagrado, oferecendo o sacrifcio dos Divinos Mistrios."Isto deixou Zzimo apavorado. Finalmente, com lgrimas ele disse a ela:"Oh Me, cheia do esprito, por teu modo de vida evidente que vives com Deus e morreste para o mundo. A Graa a ti concedida aparente - pois me chamaste pelo meu nome e soubeste que sou um sacerdote, embora nunca me tenhas visto antes. A Graa reconhecida no por uma ordem mas pelos dons do Esprito, ento, conceda-me tua beno pelo amor deDeus, pois necessito de tuas preces."Ento, cedendo ao desejo do ancio ela disse:"Abenoado Deus que zela pela salvao dos homens e de suas almas."Ao que Zzimo respondeu: "Amem."Ento ambos se levantaram. E ela lhe disse:"Por que vieste, homem de Deus, a mim que sou to pecadora? Por que desejas ver uma mulher nua e despida de toda virtude? Embora eu saiba uma coisa - a Graa do Esprito Santo trouxe-te a mim para prestares-me um servio no tempo devido. Diga-me pai, como esto vivendo os cristos? E os reis? Como est sendo conduzida a Igreja?"Zzimo disse:"Por suas preces, me, Cristo tem concedido paz duradoura a todos. Mas, realize um pedido indigno de um velho homem para o mundo inteiro e ore por mim que sou pecador, de modo que meu vaguear no deserto no seja infrutfero."Ela respondeu-lhe:"Tu, que s um sacerdote, Pai Zzimo, quem deves rezar por mim e para todos - pois este o teu chamado. Mas como devemos todos ser obedientes, farei alegremente o que me pedes."E com estas palavras ela se voltou para o oriente e levantando seus olhos para o cu e estendendo suas mos, comeou a rezar num murmrio. No se podia ouvir palavras distintas, de modo que Zzimo no conseguiu entender coisa alguma do que ela dizia em suas preces. Enquanto isso, ele permanecia de p, de acordo com sua prpria palavra, palpitando, olhando para o cho, sem dizer nada. E ele jurou, chamando a Deus por testemunha, que quando finalmente, pensando que a prece se alongava muito, elevou seus olhos do cho viu que ela permanecia elevada no solo cerca de um brao de distncia e orava suspensa no ar. Quando ele viu isso mais pavor se apoderou dele e ele caiu ao cho soluando e repetindo vrias vezes, "Senhor, tenha compaixo."E assim prostrado no cho foi tentado por um pensamento: isto um esprito e talvez sua orao seja hipocrisia. Mas no mesmo instante a mulher se voltou, elevou-o do solo e disse:"Por que o pensamento te confunde, Pai, e te tenta a meu respeito, como se eu fosse um esprito e uma fingidora na orao? Saiba, santo pai, que eu sou apenas uma mulher pecadora, embora guardada pelo santo Batismo. E no sou um esprito, mas terra, cinza e carne apenas."Com estas palavras ela se protegeu com o sinal da Cruz em sua testa, olhos, boca e peito, dizendo:"Defenda-nos Deus contra o maligno e de seus desgnios, pois feroz sua batalha contra ns."Ouvindo e vendo isto, o ancio caiu ao cho e abraando seus ps, disse entre lgrimas:"Eu te suplico, pelo Nome de Cristo, nosso Deus, que nasceu de uma Virgem, por cujo amor te despojaste, por cujo amor exauriste tua carne, no te escondas de teu servo; quem s tu, de onde vens e como vieste a este deserto. Diga-me tudo de modo que as maravilhas realizadas por Deus sejam conhecidas. Uma sabedoria escondida e um tesouro secreto - qual proveito h neles? Diga-me tudo, eu te imploro. No por vaidade ou por exibicionismo falars, mas para revelar a verdade a mim, um pecador indigno. Creio em Deus, para quem vives e a quem serves. Acredito que Ele me conduziu a este deserto para mostrar-me Seu caminho no que diz respeito a ti. No est em nosso poder resistir aos planos de Deus. Se no fosse por vontade dele que tu e tua vida fossem conhecidas, Ele no teria me permitido ver-te e no teria me concedido foras para empreender essa jornada, a um como eu que nunca antes ousou deixar sua cela."Muito mais disse Pai Zzimo. Mas a mulher o ergueu e disse:"Estou envergonhada, Pai, de falar-te de minha desgraada vida, perdoe-me, por amor de Deus! Mas j que viste meu corpo nu, devo do mesmo modo, desnudar minhas aes, de modo que saibas com quanta vergonha e obscenidade minha alma est cheia. Eu no corria por vaidade, como pensaste, pois de que devo orgulhar-me - eu que fui um vaso escolhido pelo demnio? Mas quando eu comear minha estria, corrers de mim como se de uma serpente, pois seus ouvidos no suportaro a vileza de meus atos. Mas devo contar tudo sem esconder nada, apenas implorando antes a ti, que rezes por mim, incessantemente, de modo que eu obtenha a misericrdia no dia do Julgamento."O ancio chorou e a mulher iniciou sua estria."Minha terra natal, santo Pai, o Egito. Ainda quando meus pais eram vivos e eu tinha doze anos, renunciei ao amor deles e fui para Alexandria. Estou envergonhada de relembrar como ento, eu primeiro perdi minha virgindade e em seguida, incontida e insaciavelmente, entreguei-me sensualidade. Falarei disso brevemente, de modo que apenas saibas da minha paixo e lascvia. Por cerca de dezessete anos, perdoe-me, vivi desse modo. Eu era como um fogo de depravao pblica. E no era por amor ao ganho - aqui eu falo a pura verdade. Frequentemente, quando eles desejavam pagar-me, eu recusava o dinheiro. Agia dessa maneira para fazer com que, tantos homens quantos fosse possvel desejassem possuir-me, fazendo de graa o que me dava prazer. No pense que eu fosse rica e essa fosse a razo pela qual eu no pegasse o dinheiro. Eu vivia de pedir e de tecer, mas tinha um desejo insacivel e uma paixo irreprimvel por deitar-me na lama. Isto era vida para mim. Todo tipo de abuso da natureza eu considerava ser vida.Assim eu vivia. Ento, num vero eu vi uma grande multido de lbios e egpcios correrem em direo ao mar. Perguntei a um deles, 'para onde esto indo todos esses homens?' Ele respondeu, 'eles esto indo a Jerusalm, para a Exaltao da Cruz Preciosa e Vivificante, que ocorrer dentro de alguns dias.' Eu disse a ele, 'tu me levas junto se eu desejar ir?' 'Ningum te impedir de ir se tens dinheiro para pagar a viagem e a comida.' E eu lhe disse: 'para dizer a verdade, no tenho dinheiro, nem alimento. Mas irei com eles e estarei bordo. E eles me alimentaro, queiram ou no. Eu tenho um corpo - eles o tomaro ao invs de pagar pela viagem.' De repente enchi-me de desejo de ir, Pai, para ter mais amantes que pudessem satisfazer minha paixo. Eu disse a ti, Pai Zzimo, que no me forasses a contar-te sobre minha desgraa. Deus minha testemunha, estou receosa de corromper-te e at ao ar, com minhas palavras."Zzimo, soluando, replicou:"Fala, pelo amor de Deus, Me, fala e no quebra o fio de to edificante estria."E, continuando sua estria, ela prosseguiu:"Aquele jovem, ouvindo minhas palavras desavergonhadas, riu e foi-se embora. Enquanto que eu, jogando fora o tear, corri em direo ao mar na direo que todos pareciam seguir e vendo alguns rapazes de p na praia, cerca de dez ou mais, cheios de vigor e prontido em seus movimentos, decidi que eles serviam aos meus propsitos; (parecia que alguns esperavam por mais passageiros enquanto outros tinham ido terra). Desavergonhadamente, como sempre, misturei-me multido, dizendo, 'levem-me consigo para onde esto indo; vocs no vo me achar suprflua.' Tambm acrescentei mais algumas palavras provocando o riso geral. Vendo minha prontido para a falta de vergonha, eles prontamente colocaram-me a bordo na embarcao. Aqueles que eram esperados tambm vieram e finalmente partimos.Como posso relatar o que aconteceu depois disso? Que lngua pode contar, que ouvidos podem receber tudo o que aconteceu naquela embarcao durante aquela viagem! Dizer que eu frequentemente forava aqueles pobres moos, at contra sua prpria vontade!? No h depravao alguma, mencionvel ou no, que eu no lhes tenha ensinado. Estou surpresa, Pai, como o mar suportou nossa licenciosidade, como a terra no abriu suas mandbulas, e como o inferno no me engoliu viva, enquanto eu prendia em minha teia tantas pessoas. Mas, acredito que Deus estava buscando meu arrependimento. Pois ele no deseja a morte do pecador, mas magnanimamente espera seu retorno a Ele. Finalmente chegamos a Jerusalm. Passei os dias antes do festival na cidade, vivendo o mesmo tipo de vida, talvez at pior. Eu no estava contente com os jovens que tinha seduzido em alto mar e que me ajudaram a chegar a Jerusalem; tambm seduzi a muitos outros, tanto da cidade quanto estrangeiros que l estavam.O dia sagrado da Exaltao da Cruz despontou, enquanto eu ainda estava caa de jovens. Ao amanhecer, vi que todos corriam para a igreja ento, corri com o resto deles. Quando a hora da sagrada elevao se aproximou eu estava tentando abrir caminho entre a multido, que lutava para chegar s escadarias. Finalmente, com grande dificuldade, consegui ir me espremendo quase at s portas da igreja, de onde a Vivificante rvore da Cruz estava sendo mostrada ao povo. Mas quando eu pisei no limiar da porta, por onde todos entraram, fui impedida por uma fora que no me deixou entrar. Entretanto, completamente ignorada pela multido me encontrei sozinha no prtico da igreja. Pensando que isto tivesse acontecido devido minha fraqueza de mulher, comecei novamente a abrir caminho com os cotovelos no meio da multido. Mas era em vo meu esforo. Novamente meus ps pisaram no limiar onde outros iam entrando na igreja, sem encontrar nenhum obstculo. Eu somente parecia no ser aceita na igreja. Era como se um destacamento de soldados estivesse l de p, se opondo minha entrada. Mais uma vez fui excluda pela mesma fora poderosa e novamente fiquei no limiar.Havendo tentado por trs ou quatro vezes, finalmente me senti esgotada e no tendo mais foras para empurrar e ser empurrada, fui para o lado e permaneci num canto do prtico. E ento, com grande dificuldade, comeou a despontar algo em mim e comecei a perceber a razo pela qual eu estava sendo impedida de ver a Cruz Vivificante. A palavra da salvao gentilmente tocou os olhos do meu corao e revelou-me que era minha vida impura que fechava a entrada para mim. Comecei a chorar e lamentar e bater no meu peito e a suspirar das profundezas do meu corao. E assim permaneci chorando, quando vi acima, um cone da Santssima Me de Deus. E voltando para ela meus olhos do corpo e da alma eu disse:' Senhora, Me de Deus, que deste luz na carne a Deus, a Palavra; eu sei, quo bem eu sei, que no h nenhuma honra ou louvor para vs quando algum to impura e depravada como eu, olha para teu cone, sempre Virgem, que mantiveste vosso corpo e alma na pureza. Certamente inspiro desprezo e desgosto ante vossa pureza virginal. Mas j ouvi que Deus, que nasceu de vs, se tornou homem para chamar pecadores converso. Ento, ajude-me, pois no tenho outro auxlio. Ordene que os portais da igreja se abram para mim. Permita-me ver a venervel rvore na qual Ele que nasceu de vs, sofreu na carne e na qual Ele derramou seu preciosssimo Sangue pela redeno dos pecadores e para mim, indigna como sou. Seja minha testemunha fiel diante de Teu Filho que eu nunca mais corromperei meu corpo na impureza da fornicao, mas to logo eu veja a rvore da Cruz, renunciarei ao mundo e s suas tentaes e irei onde quer que me conduzas.'Assim falei e como se recobrasse nova esperana, com f firme e sentindo alguma confiana na misericrdia da Me de Deus, deixei o lugar onde tinha ficado rezando. E fui novamente, misturada multido que fazia seu caminho dentro do templo. E ningum parecia impedir-me, ningum estorvou minha entrada na igreja. Fiquei possuda de tremor e estava quase beira do delrio. Tendo chegado to prximo das portas, o que eu no conseguira antes, como se a mesma fora que me impedira agora abrisse caminho para mim, eu agora entrava sem dificuldade e me encontrei no lugar santo. E ento vi a Cruz Vivificante. Vi tambm os Mistrios de Deus e como o Senhor aceita o arrependimento. Jogando-me ao cho, adorei aquela terra santa e tremendo, beijei-a. Ento sa da igreja e fui quela que prometeu ser minha segurana, ao lugar onde eu selei meu voto. E dobrando meus joelhos diante da Virgem Me de Deus dirigi a ela estas palavras:' Amvel Senhora, vs mostrastes-me vosso grande amor por todos os homens. Glria a Deus, que aceita o arrependimento de pecadores atravs de vs. O que mais posso lembrar ou dizer, eu que sou to pecadora? hora para mim, Senhora, de cumprir meu voto, de acordo com o vosso testemunho. Agora, conduza-me pela mo pelo caminho do arrependimento!' E ao dizer estas palavras ouvi uma voz do alto:'Se tu atravessares o Jordo irs encontrar glorioso repouso.'Ouvindo esta voz e crendo que eram para mim, gritei para a Me de Deus: Senhora, Senhora, no me abandones!'Com estas palavras deixei o prtico da igreja e parti para minha jornada. Quando eu ia deixando a igreja um estranho olhou-me e deu-me trs moedas, dizendo:'Irm, tome isto.'Pegando o dinheiro, comprei trs pes e levei-os comigo como um presente abenoado. Perguntei pessoa que vendeu os pes: 'Qual o caminho para o Jordo?' Fui direcionada para o porto da cidade que conduzia quele caminho. Correndo atravessei os portes e ainda chorando iniciei minha jornada. Perguntei o caminho queles que encontrei e depois de caminhar pelo resto daquele dia, (penso que eram nove horas quando eu vi a Cruz), finalmente, ao por do sol, alcancei a igreja de So Joo Batista, que ficava na margem do Jordo. Depois de rezar no templo, desci o Jordo e lavei o rosto e as mos nas guas santas. Participei dos santos e vivificantes Mistrios na Igreja do Precursor e comi a metade de um dos pes. Em seguida, aps beber um pouco de gua do Jordo, deitei-me e passei a noite no cho. Pela manh encontrei um pequeno bote e cruzei para o lado oposto. Novamente, rezei Nossa Senhora para conduzir-me onde desejasse. Ento, encontrei-me nesse deserto e desde ento at o dia de hoje sou estranha a todos, mantendo-me longe das pessoas e delas fugindo. E vivo aqui, agarrando-me ao meu Deus Que salva a todos que se voltam para Ele, os de corao fraco e nas tempestades."Zzimo perguntou-lhe:"Quantos anos se passaram desde que comeaste a viver neste deserto?"Ela replicou:"Quarenta e sete anos se passaram, creio, desde que deixei a cidade santa."Zzimo inquiriu:"Mas qual alimento encontraste?"A mulher disse:"Eu tinha dois pes mais a metade quando cruzei o Jordo. Logo eles ficaram duros como pedra. Comendo aos pouquinhos eles acabaram em alguns poucos anos."Zzimo continuou:"Como se explica que tenhas vivido por to longos anos, assim, sem ficares doente, sem sofrer de algum modo uma mudana to completa?"Ela respondeu:"Tu me lembras, Zzimo, do que eu no ouso falar. Pois quando me lembro dos perigos que superei, todos os pensamentos violentos que me confundiram, novamente tenho receio de que eles venham a me dominar."Zzimo falou:"No escondas nada de mim; fala-me sem ocultar coisa alguma."E ela respondeu-lhe:"Creia-me, Pai, por dezessete anos vivi nesse deserto lutando contra feras selvagens - desejos loucos e paixes. Quando ia me alimentar eu costumava lamentar a carne e o peixe que eu tinha em abundncia no Egito. Lamentava tambm no ter vinho que eu apreciava tanto, pois eu bebia muito vinho quando vivia no mundo, enquanto aqui eu nada tinha, nem mesmo gua. Queimava-me at sucumbir de sede. Um desejo atroz de canes libertinas tambm me perturbavam e me confundiam grandemente, levando-me quase a cantar canes satnicas, que eu tinha aprendido antes. Mas quando esses desejos me vinham, eu batia no peito e me recordava do voto que tinha feito antes de vir para o deserto. Em meus pensamentos voltava-me para o cone da Me de Deus que me tinha recebido e a quem clamava na orao. Implorava-lhe para dar caa a esses pensamentos, diante dos quais minha alma estava sucumbindo. E depois de chorar por longo tempo e batendo no peito, eu costumava ver uma luz que parecia brilhar sobre mim de algum lugar. E depois da violenta tempestade finalmente vinha a paz.E como posso dizer-lhe sobre os pensamentos que me instavam fornicao, como posso express-los a ti, Pai? Um fogo inflamava meu miservel corao que parecia queimar-me completamente e me despertava uma sede de abraos. To logo esse desejo me surgia, eu jogava-me ao solo e molhava-o de lgrimas, como se visse diante de mim minha testemunha, que tinha me aparecido em minha desobedincia e que parecia ameaar punio para o castigo. E eu no me erguia do cho (algumas vezes ficava l prostrada por um dia e uma noite), at que a calma e a doce luz descesse e me iluminasse e pusesse em fuga os pensamentos que me possuram. Mas sempre eu voltava os olhos de minha mente para minha protetora, pedindo-lhe para estender seu auxlio a uma que estava afundando rpido nas dunas do deserto. E sempre a tive como meu socorro e aquela que aceitava meu arrependimento. E assim vivi por dezessete anos, entre constantes perigos. E desde ento a Me de Deus me auxilia em tudo e me conduz como se pela mo fosse."Zzimo perguntou:"Como pode ser que no tenhas necessitado de alimento e roupas?"Ela respondeu:"Quando terminaram os pes que trouxe, de que j falei, por dezessete anos me alimentei de ervas e tudo que pudesse ser encontrado no deserto. As roupas que eu trazia quando atravessei o Jordo se tornaram rotas e gastas. Sofri grandemente o frio e tambm o calor extremo. s vezes o sol me queimava completamente e em outras eu estremecia enregelada e frequentemente caia ao cho onde permanecia inerte, sem respirar. Eu lutava contra muitas aflies e com terrveis tentaes. Mas desde ento e at agora, o poder de Deus numerosas vezes guardou minha alma pecadora e meu pobre corpo. Mas quando penso nos perigos dos quais Nosso Senhor me livrou, tenho alimento imperecvel de esperana e salvao. Sou alimentada e vestida pela toda poderosa Palavra de Deus, o Senhor de todos. Pois no somente de po que se vive. E aqueles que se despojaram dos trapos do pecado no encontram refgio, escondendo-se nos vos das rochas (Job 24; Heb 11:38)."Ouvindo-a citar as Escrituras, de Moiss a Job, Zzimo perguntou-lhe:"E ento tens lido os Salmos e outros livros?"Ela sorriu a isto e disse ao ancio:"Creia-me, desde que atravessei o Jordo no vi um rosto humano, exceto o teu hoje. No vi uma fera ou uma criatura viva desde que vim ao deserto. Nunca aprendi nos livros. Tambm nunca ouvi algum que cantasse ou lesse deles. Mas a palavra de Deus que viva e ativa, por si mesmo, ensina a um homem o saber. E assim chega ao fim minha estria. Mas como te pedi no incio, e tambm agora, imploro pelo amor da Palavra encarnada de Deus, reze ao Senhor por mim que sou to grande pecadora."Assim terminando, ela se inclinou diante dele. Com lgrimas ele exclamou:"Bendito Deus Que cria o grande grande e o maravilhoso, o magnfico e o glorioso sem fim. Bendito Deus que me mostrou como Ele recompensa aqueles que O temem. Verdadeiramente, Deus, Vs no abandonais aqueles que vos buscam!"E a mulher, no permitindo ao ancio curvar-se diante dela, disse:"Eu te peo, santo Pai, pelo amor de Jesus Cristo, nosso Deus e Salvador, no contes a ningum o que ouviste, at que Deus me tire desse mundo. E agora v em paz e novamente me vers no prximo ano e eu a ti , se Deus nos preservar em Sua grande misericrdia. Mas, pelo amor de Deus, faas como te peo. No prximo ano, durante a Quaresma, no atravesses o Jordo, como costume no mosteiro."Zzimo ficou surpreso ao ver que ela conhecia as regras do Mosteiro e s pde dizer:"Glria a Deus que concede grandes dons queles que O amam."Ela continuou:"Permanea, Pai, no mosteiro. E mesmo que desejes partir, no o conseguirs. E ao por do sol do dia santo da ltima Ceia, coloque um pouco do vivificante Corpo e Sangue de Cristo dentro de um clice sagrado, digno de conter tais Mistrios e traga-os para mim. E espere por mim na margem do Jordo, nas vizinhanas das partes habitadas da terra, de modo que eu possa vir e participar dos Dons vivificantes. Pois, desde a vez que comunguei no templo do Precursor, antes de atravessar o Jordo at este dia, no mais me aproximei dos Sagrados Mistrios. E tenho sede deles com irreprimvel amor e desejo. E assim, peo e imploro a ti que me concedas essa graa, traga-me os Mistrios vivificantes nessa mesma hora, quando Nosso Senhor fez com que seus discpulos participassem de sua Divina Ceia. Diga ao Abade Joo do mosteiro onde vives: 'Cuida de si e de teus irmos, pois h muito o que se corrigir'. Apenas no digas isto agora, mas quando Deus te conduzir. Ora por mim!"Com estas palavras ela desapareceu nas profundezas do deserto. E Zzimo, caindo de joelhos e curvando-se em direo ao cho onde ela havia estado, deu glria e graas a Deus. E depois de vagar atravs do deserto, ele voltou ao mosteiro no dia em que todos os irmos retornavam. Duante todo o ano ele manteve silncio, no ousando contar a ningum o que tinha visto. Mas rezava a Deus para conceder-lhe outra chance de ver o querido e asctico rosto. E quando finalmente chegou o primeiro domingo do Grande Jejum, todos partiram para o deserto com as oraes costumeiras e os cantos dos salmos. Apenas Zzimo ficou retido, doente - estava em febre. E ele se lembrou do que a santa lhe dissera: "e mesmo se desejares partir, no conseguirs."Muitos dias se passaram e finalmente, recuperando-se de sua doena ele permaneceu no mosteiro. E quando aconteceu que os monges retornaram e o dia da ltima Ceia despontou, ele fez como fora ordenado. E colocando um pouco do purssimo Corpo e Sangue dentro de um pequeno clice e colocando alguns figos, tmaras e lentilhas mergulhadas em gua dentro de um cestinho, partiu para o deserto e alcanou as margens do Jordo e se sentou esperando pela santa. Ele aguardou um bom tempo e depois comeou a duvidar. Ento, levantando os olhos para o cu comeou a rezar:"Concede-me Senhor, ver aquela que me concedeste uma vez contemplar. No me deixes partir em vo por causa do peso de meus pecados."E ento, outro pensamento lhe ocorreu:"E se ela vier? No h nenhum barco; como ela ir atravessar o Jordo para vir a mim, que sou to indigno?"Ainda assim pensava, quando viu a santa mulher aparecer e parar do outro lado do rio. Zzimo se levantou, alegrando-se, dando glria e agradecendo a Deus. E novamente veio a ele o pensamento de que ela no poderia atravessar o Jordo. Ento ele viu-a fazer o sinal da Cruz sobre as guas do rio Jordo (e a noite era de lua, como ele relatou mais tarde) e ento ela pisou nas guas e comeou a caminhar sobre a superfcie, em direo a ele. E quando ele desejou se prostrar ela gritou para ele, ainda caminhando sobre a gua:"O que ests fazendo, Pai, tu s um sacerdote e ests levando os divinos Dons!"Ele obedeceu-lhe e ao chegar praia ela disse ao ancio:"Pai, abenoa-me, abenoa-me!"Ele respondeu tremendo, pois um estado de confuso tomara conta dele ao presenciar o milagre:"Verdadeiramente Deus no mentiu ao prometer que quando estivssemos puros seramos como Ele. Glria a Vs, Cristo nosso Deus, Que me mostraste atravs dessa vossa serva, quo distante eu estou da perfeio."Aqui a mulher pediu-lhe para rezar o Credo e o Pai Nosso. Ele iniciou, ela terminou orao e de acordo com o costume daquela poca, deu-lhe o beijo da paz nos lbios. Tendo participado dos Santos Mistrios, ela elevou suas mos para o cu e suspirou com lgrimas em seus olhos, exclamando:"Agora, deixai vossa serva ir em paz, Senhor, de acordo com Vossa palavra, pois meus olhos viram a Vossa salvao."Depois ela disse ao ancio:"Perdoa-me, Pai, por pedir-lhe, mas conceda-me outro favor. V agora para o mosteiro e que a graa de Deus te guarde. E no prximo ano, venha novamente ao mesmo lugar onde primeiro encontrei-te. Venha, por amor de Deus, pois tu me vers novamente, pois tal a vontade de Deus."Ele disse a ela:"A partir desse dia eu gostaria de seguir-te e sempre ver teu rosto santo. Mas por ora realize o nico desejo desse velho homem e tome um pouco do alimento que eu te trouxe."E ele mostrou-lhe a cesta, sendo que ela apenas tocou com a ponta dos dedos as lentilhas e pegando alguns gros disse que o Esprito Santo guarda a substncia da alma impoluta. Ento acrescentou:"Reza, pelo amor de Deus, por mim e lembre-se de uma miservel pecadora."Tocando os ps da santa e pedindo suas oraes pela Igreja, pelo reino e por si prprio, ele deixou-a partir com lgrimas, enquanto ele se ia suspirando e muito sentido, pois ele no podia esperar vencer o invencvel. Enquanto isso ela novamente fez o sinal da Cruz sobre o Jordo, pisou nas guas e atravessou-o como antes. E o ancio voltou, cheio de alegria e terror, acusando-se a si mesmo de no ter perguntado santa o seu nome. Mas decidiu faz-lo no prximo ano.E quando outro ano se passou, ele foi novamente para o deserto. Alcanou o mesmo lugar mas no pde ver ningum. Ento, levantando os olhos ao cu como antes, rezou:"Mostra-me, Senhor, vosso puro tesouro, que escondeste no deserto. Mostra-me, eu vos peo, o anjo na carne, de quem o mundo no digno."Ento, no lado oposto do rio, sua face voltada para o sol nascente, ele viu a santa, morta no cho. Suas mos estavam cruzadas de acordo com o costume e sua face voltada para o Leste. Correndo, ele chorava sobre os ps da santa e beijava-os, no ousando tocar mais nada.Por um longo tempo ele chorou. Depois recitando os salmos apropriados, disse as oraes fnebres e pensou consigo : "Devo enterrar o corpo de uma santa? Ou isto seria contrrio aos seus desejos?" E ento ele viu palavras traadas no cho, perto da cabea dela:"Pai Zzimo, enterra neste local o corpo da humilde Maria. Volte ao p o que p e reza ao Senhor por mim, que parti no ms de Fermoutin do Egito, chamado Abril pelos Romanos, no primeiro dia, na mesma noite da Paixo de Nosso Senhor, depois de participar dos Divinos Mistrios." (Sta. Maria morreu em 522 A.D.)Lendo isto o ancio ficou feliz de conhecer o nome da santa. Ele compreendeu tambm que, to logo ela participou dos Divinos Mistrios na margem do Jordo, ela foi transportada ao lugar onde faleceu. A distncia que Zzimo levou vinte dias para cobrir, Maria evidentemente atravessou em uma hora e finalmente entregou sua alma a Deus.Ento Zzimo pensou: "Est na hora de fazer o que ela pediu. Mas como vou cavar uma sepultura sem nada nas mos?"E ento ele viu nas proximidades um pequeno pedao de madeira deixado por algum viajante do deserto. Pegando-o comeou a cavar o cho. Mas a terra era dura e seca e no correspondia aos esforos do velho. Ele ficou cansado e molhado de suor. Suspirava das profundezas de sua alma e levantando os olhos viu um grande leo, prximo ao corpo da santa, a lamber-lhe os ps. vista do leo ele tremeu de medo, especialmente quando se lembrou das palavras de Maria de que ela nunca havia visto feras selvagens no deserto. Mas, protegendo-se com o sinal da Cruz, ele pensou que o poder daquela que ali jazia, o protegeria e o guardaria inclume. Enquanto isso, o leo se aproximou dele, mostrando afeio em cada movimento.

Zzimo disse ao leo:"O Grande Um ordenou que o corpo dela seja enterrado. Mas eu sou velho e no tenho foras para cavar a sepultura (pois no tenho p e demoraria muito para ir conseguir uma), ento, poderias realizar o trabalho com suas garras? Ento, poderemos entregar terra o templo mortal da santa."Enquanto ainda falava, o leo comeou a cavar com suas patas dianteiras um buraco suficientemente fundo para enterrar o corpo.Novamente o ancio lavou os ps da santa com suas lgrimas e pedindo-lhe que rezassse por todos, cobriu o corpo com terra na presena do leo. Foi como tinha sido, nu e descoberto de tudo, com apenas o manto esfarrapado que Zzimo lhe dera e com o qual Maria se voltara para tentar cobrir parte do seu corpo. Ento ambos partiram. O leo desapareceu nas profundezas do deserto, como um carneirinho, enquanto Zzimo retornou ao mosteiro glorificando e bendizendo a Cristo Nosso Senhor. E ao alcanar o mosteiro contou a todos os irmos sobre tudo, diante do que todos se maravilharam ao ouvir os milagres de Deus. E com respeito e amor eles guardaram a memria da santa.O Abade Joo, como santa Maria havia previamente dito ao Pai Zzimo, encontrou um nmero de coisas erradas no mosteiro e se livrou delas com a ajuda de Deus. E So Zzimo morreu no mesmo mosteiro, quase atingindo a idade de cem anos e passou para a vida eterna. Os monges guardaram esta estria sem escrev-la, passando-a de viva voz de um para outro.Mas eu, (acrescenta Safrnio), to logo a ouvi, escrevi-a. Talvez algum mais, melhor informado, j tenha escrito a vida da santa, mas tanto quanto possa, registrei tudo, acreditando acima de tudo o mais. Que Deus que realiza milagres incrveis e generosamente concede dons queles que se voltam para Ele com f, recompense aqueles que buscam luz para si mesmos nessa estria, que ouvem, lem e so zelosos em escrev-la, e que Ele conceda a esses, o destino da bemaventurada Maria, junto com todos os que em diferentes pocas, agradaram a Deus com seus trabalhos e pensamentos piedosos.E demos tambm glria a Deus, o Rei eterno, que Ele nos conceda tambm Sua misericrdia no dia do Julgamento pelo amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor, a Quem pertencem toda glria, honra, domnio e adorao com o Pai Eterno e o Santssimo e Vivificante Esprito, agora e sempre, e atravs dos tempos. Amm!

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Santa Maria do Egito, que celebramos no dia 3 de abril, um exemplo perfeito do que pode a graa divina, mesmo a pessoa sendo grande pecadora. No sabemos quase nada de seus pais e de sua famlia. Ela nasceu no Egito; tendo apenas 12 anos fugiu de casa e foi para a cidade de Alexandria, onde levou uma vida desregrada. Era de uma beleza encantadora, temperamento vivo, afvel, levando seus dias no pecado. Durante 17 anos levou uma vida ftil e afastada de Deus.

Um dia, seguindo um impulso do corao, associou-se aos piedosos romeiros, que se dirigiam Terra Santa. No dia da festa, quando os peregrinos foram visitar o Santurio, Maria do Egito os acompanhou,por curiosidade,. Entrou no meio da multido e, de repente, veio sua mente este pensamento: "Teus pecados tornam-te indigna de pisar em lugar santo, de ver o Santo Lenho e comparecer na presena de Deus!" Ela, profundamente tocada por Deus, escondeu-se num canto da igreja e chorou amargamente. De repente, lanou seu olhar a uma imagem de Nossa Senhora. Lembrou-se que Maria chamada refgio dos pecadores, Me de misericrdia. Ali mesma, ajoelhou-se e pediu Virgem Maria , auxlio, e prometeu emendar-se e fazer penitncia dos seus pecados.

Sentiu paz na sua alma, aproximou-se do Santo Lenho e chorou copiosamente. Pediu a Nossa Senhora que a protegesse, na sua nova vida. Ouviu uma voz que lhe dizia: vai ao rio Jordo! Sem perder tempo, dirigiu-se ao rio, onde passou a noite em orao, numa igreja dedicada a So Joo Batista. Pela manh confessou-se, recebeu a Santa Comunho e viveu 47 anos margem do rio Jordo, entregue orao e penitncia.

Ela entregou-se Me de Deus e em todas as horas, nas fortes tentaes, nos momentos de sofrimento, recorria a Maria Santssima, sua terna me. No dia de sua morte, ergueu os olhos e as mos para o cu, cheia de alegria, exclamou como o velho Simeo: "Agora,deixai partir, Senhor, vossa serva."

HISTRIA DE BEATA

A gente, de noite, com insnia, tem uma idia. Alis, no bem isso, porque a idia no brota de repente na nossa cabea, resulta de velhas lembranas, conceitos, problemas, conflitos, imaginaes que voc ruminava desde anos e que naquela noite se viram numa idia organizada em figuras e palavras. Nesta noite em que falo, a minha idia deu corpo a um tema que me interessara sempre, que eu j tentara mais de uma vez em outras experincias e em diferentes situaes: o comportamento da criatura que a si se considera excepcional (que se considera um santo, por exemplo), posta dentro da correnteza de paixes e conflitos em que se debatem os outros mortais ou no-santos. Tomei como ponto de partida uma velha lenda crist (Santa Maria Egipcaca) que sempre me invocara, e que depois de posta em balada por Manuel Bandeira o Bardo grande entre todos, tomara formas de fascinante beleza e crescera mais na sua seduo misteriosa.Amanhecido o dia, passadas outras noites, amanhecidos outros dias, comeou o trabalho de levar ao papel o drama da Santa. Fixara-me numa Maria Egipcaca nordestina, uma daquelas beatas de hbito de freira que outrora pululavam pelo Cariri; dei-lhe o nome de Maria do Egito nica analogia direta que permiti com a santa verdadeira; criada pelos penitentes da Serra de Mombaa, devota do Padre Ccero, a quem pretende socorrer com um grupo de romeiros, quando os soldados rebelistas cercam a cidade santa do Juzeiro. Prsa em caminho, ela tal como a santa, v-se obrigada a lanar mo do corpo, fazer o sacrifcio da sua pureza, a fim de obter passagem livre, na sua cega marcha para a terra santa. Mas isso sem participao e sem pecado a paixo do homem e suas obras passando por ela como o sol pela vidraa. sse o tema que me fascinou. Consegui dizer o que le me fazia sentir? Francamente, no sei. As mais das vzes receio que no, pois, como exclamava o homem do sonto, a palavra pesada abafa a idia leve e o pssaro de asas sltas com que voc sonhava, psto no papel, reduzido a tscas palavras, vira bicho rasteiro incapaz de vo.Em todo caso, diferente do que acontece com um simples livro, que passa apenas por duas etapas para se realizar o ser escrito e o ser publicado uma pea teatral tem destino muito mais complexo. Escrita, posta em livro, viveu apenas uma metade do seu destino, e no a principal das duas metades; porque a sua vida verdadeira s comea depois da chamada prova de palco, quando o drama escrito sobe ribalta, e gente de carne e osso encarna as personagens imaginadas, e o mistrio cnico transforma em realidade as sombras, os dilogos, os gestos que voc apenas indicara no papel, dando-lhes substncia, presena viva. A comparao sedia, mas funciona: enquanto est no papel, a pea apenas a lagarta, quando muito a crislida. S vai criar asas e cres e tomar fora de vo e enfrentar a luz, depois que o palco a transforma em borboleta.Tudo isso vem como uma explicao antecipada, talvez um elaborado e prvio pedido de perdo. Porque na primeira quinzena de outubro, aqui no Rio, no Teatro Serrador, Edmundo Moniz, diretor do Servio Nacional de Teatro, e Agostinho Olavo, diretor do Teatro Nacional de Comdia, iniciam a sua temporada com a minha Beata Maria do Egito. Quatro excelentes intrpretes dividem os papis da pea: Glauce Rocha na Beata, Sebastio Vasconcelos no Tenente-Delegado, Jayme Costa no Coronel-Chefe-Poltico, Rodolfo Arena no Cabo-Ordenana. A direo de Jos Maria Monteiro, o cenrio e trajes de Bel Pais Leme. Como vem, o draminha tem, para a sua estria, o melhor do melhor. Se fracassar, a culpa no ser da produo, da direo, da cenarista nem dos intrpretes, mas das fraquezas do texto e da pequena capacidade da autora. Minha esperana que, posta a funcionar no palco, a Beata se liberte de mim e das minhas limitaes e tire fra da participao dos outros, que tanto tm para dar. E assim veremos se voa mesmo, se rompe o seu casulo, a minha obscura lagarta da Serra da Mombaa, filha longnqua do Flos Sanctorum da minha av, de uma balada de Manuel, lembrana de figuras vistas na infncia. Santa frustrada, irm rejeitada de cangaceiros e fanticos, por ela peo passagem e imploro complacncia.

O Cruzeiro - 10 de outubro de 1959A BEATA MARIA DO EGITO

SINOPSE: Na trama, em 1914, a beata Maria do Egito, recm-chegada delegacia de uma pequena cidade do Cear, recruta populares para se juntarem rebelio que Padre Ccero lidera em Juazeiro. Seu carter revolucionrio faz com que o latifundirio coronel Chico Lopes obrigue o tenente Joo a prend-la, o que traz pea uma grande tenso, causada pela iminncia de um ataque dos romeiros.A situao agravada pela atrao que o tenente sente pela moa, e, certa de assim conseguir a liberdade, Maria do Egito se entrega a ele. Ao perceber o interesse da beata, o tenente vai loucura e decide mant-la presa, a despeito do ataque popular delegacia. Porm, o cabo Lucas simpatiza com o carisma e a causa da Beata e entra em conflito com o tenente at o momento em que a delegacia est quase sendo invadida. Na situao, o tenente toma a beata como refm e o cabo tenta desarm-lo, chegando, assim, na deciso entre dois amigos em uma luta de morte. O tenente morto pelo cabo. A beata finalmente libertada e sai, na companhia do cabo. O povo a recebe nos braos e a romaria segue na direo do Padre Ccero.

SOBRE RACHEL DE QUEIROZ: Nascida em Fortaleza, Cear, em novembro de 1910, a escritora viveu parte de sua infncia na capital do estado e parte no interior. Depois da seca de 1915, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou por pouco tempo at ir para Belm do Par. De volta ao Cear, em 1921, formou-se professora e ingressou no jornalismo como cronista. Em 1930 lanou O Quinze, romance que recebeu o primeiro prmio concedido pela Fundao Graa Aranha. Quando Raquel foi ao Rio de Janeiro para receber a premiao, travou contato com o Partido Comunista Brasileiro, participando da ao poltica de esquerda, pela qual foi presa em 1937. Sem abandonar a fico, continuou colaborando regularmente com jornais e revistas, dedicando-se crnica jornalstica, ao teatro e traduo. Foi a primeira escritora a ingressar na Academia Brasileira de Letras, um grupo que, at ento, tinha sido exclusivamente masculino. Suas principais obras so: O Quinze, Joo Miguel, Caminho de Pedras, As Trs Marias, Dra Doralina, Lampio e A Beata Maria do Egito.

PERSOMAGENS FEMININAS DE RACHEL DE QUEIROZ: (Estuda-se Maria Moura e Beata Maria do Egito) Maria Moura e Beata Maria do Egito evocam uma multiplicidade de influncias que as tornaram fortes e transgressoras das ordens vigentes, seja o patriarcalismo, seja a moral e virtude crists. Maria Moura caracterizada como a chefe de um bando imerso no mundo do cangao e aproxima-se da donzela-guerreira, trazendo as vestimentas masculinas e o cabelo cortado. Ao transgredir a lei, colocando-se na defesa dos perseguidos pela justia e praticando inmeros roubos e assassinatos, revela uma matriz maior, a da matriarca, caracterizada por ser: fazendeira, grande proprietria, destemida e dona do poder. Maria do Egito subverte a religio, entregando seu corpo como forma de continuar lutando pelo Juazeiro de Padre Ccero. Evoca uma matriz hagiogrfica, a da Santa Maria Egipcaca e lembra as hierdulas, cortess sagradas do mundo antigo. So apresentadas as diversas matrizes para a concepo das personagens estudadas. Desta forma, so trazidas, quando necessrias, outras personagens da autora, como Guta, Noemi e Dora, e tambm D. Guidinha do Poo, de Manuel de Oliveira Paiva. So tomados da realidade vrios modelos, que a auxiliaram na construo de suas personagens: figuras histricas, como a Rainha Elizabeth I; familiares, como dona Rachel e Brbara de Alencar; matriarcais, como Dona Federalina de Lavras e Marica Macedo.SEXTA-FEIRA, 15 DE FEVEREIRO DE 2013A BEATA MARIA DO EGITO

Crtica Dirio de So Paulo por Oscar Nimitz 04/07/1961A Beata Maria do Egito personagem principal da pea do mesmo nome escrita por Rachel de Queiroz, aparece como uma das figuras mais curiosas da nossa dramaturgia. Vinda do seio do povo, autntica como ele. O teatro brasileiro atravessa no momento uma fase em que se d grande nfase ao popular. Emprega-se essas palavras com vrias acepes. popular, no sentido de saborosa observao do povo, o teatro de Suassuna. popular o teatro de Ablio Pereira de Almeida, que h pouco, na peaEm Moeda Corrente do Pasmostrou-se capaz de interessar o pblico por uma situao dramtica. So populares, no sentido poltico, as experincias do Teatro de Arena, culminando com a peaA Semente. Popular, no sentido mais genuno, esta Beata, surgindo vestida de freira, e ao mesmo tempo que solta frases piedosas e ergue as mos em prece, arregimenta peregrinos para guerrear ao lado do Padre Ccero. Misto de santa e de louca, ouvindo vozes que a aproximam de uma doente mental, atormentada pelo desejo de luta e pela pregao religiosa, a beata colhida ao vivo nas pequenas cidades cearenses, demonstra a pujana que pode ter o teatro, cujas razes repousam de fato no quadro social brasileiro. Maria do Egito, transportada da barca e do barqueiro de Santa Maria Egipcaca para o Nordeste, surge como a mais autntica personagem tirada dentre os simples. Calcada na realidade, assume outras dimenses. Representa o prprio esprito do povo. A mistura de religiosidade e superstio, to comuns em nossa gente, faz de sua pessoa. O misticismo do brasileiro transparece nos quatro nicos personagens da pea; cada um, a seu modo, enfrenta o problema do sobrenatural. O Coronel Chico Lopes, chefe poltico local, integra-se menos no problema: preocupa-o mais a manuteno do posto. Cabo Lucas representa o homem comum, cuja crena irrompe diante da presena da santa. O Tenente aparece como porta-voz do raciocnio e da razo, o nico que procura conhecer a verdade e que, por isso mesmo, acaba sendo destrudo. A Beata, famosa pelos milagres, conhecida como agitadora do povo, encarna o fanatismo e todas as consequncias deste. Esta figura de mulher presta-se a uma srie de anlises. Do ngulo psicolgico, a menina enjeitada em casa de religiosos, crescendo sem pai e sem me, adotando o dever sagrado como causa nica da existncia. Mas Maria do Egito vai alm da fiel, que assiste missa e acredita nos mandamentos. Junto com o rosrio pode usar o punhal. E f, para ela, s a f que envolve seu padrinho, o poderoso Padre Ccero, do Juazeiro, e os estranhos romeiros que o seguem. A Beata pertence ao quadro agitado da poca, tanto poltico como social. Aproxima-se mais de uma combatente. Como diz o tenente em uma de suas falas, propondo admiravelmente o problema: afinal de contas, que a jovem? Santa? Louca? Mistificadora? Ou a mistura das trs? Psiquiatricamente, poderia ser uma doente, paranoide, dominada por ideias de grandeza, com mania religiosa e falta de senso crtico e moral. Entrega-se ao tenente apaixonado antepondo ao corpo aquilo que julga ser a f, na esperana que a libertem para cumprir a misso. Seu procedimento revela perda das propores reais dos acontecimentos. Mas ao lado da bem-aventurada ou doida, Maria do Egito mulher; para o Tenente, s a mulher de tranas compridas, perturbadora, que lhe concede uma noite e depois, misteriosamente, recusa-se a admitir o amor. Acima de tudo, com esta obra Rachel de Queiroz compe um esplndido estudo sobre a mentalidade popular, focalizando o prisma religioso com inusitada grandeza e potico vigor. A pea funciona dramaticamente; e preciso realar a linguagem, cuidada, literria e ao mesmo tempo, compreensvel e coerente. Os dilogos provam que se pode usar a lngua corretamente, sem perder o senso popular e as caractersticas teatrais. Merece louvou a iniciativa do diretor Osmar Rodrigues Cruz que escolheu a pea para o Teatro Experimental do Sesi. Dentro do nvel amador, o espetculo em si bastante bom. Salientam-se Wanda Orsi como a Beata, embora lhe falte a transcendncia que deve ter o papel; e a sinceridade interpretativa de Ednei Giovenazzi, que apresenta qualidades de ator. (inOsmar Rodrigues Cruz Uma Vida noTeatroHucitec 2001)

Wanda Orsi eEdnei Giovenazzi

PERSONAGENS:Beata Maria Do EgitoTenente JooCabo LucasCoronel Chico Lopes(O cenrio nico em toda a pea. Em cena o Tenente e o Cabo Lucas. de tarde hora de expediente na delegacia. O Tenente-Delegado est sentado mesa. Veste farda (de polcia estadual do Cear, l por 1913), sem grande apuro, colarinho aberto, leno ao pescoo. Cabea descoberta v-se o quepe pendurado a um torno, na parede. O Tenente porta revlver e faca cintura. O Cabo Lucas, fardado tambm, sabre cinta, quepe na cabea, de p, inclina-se sobre a mesa, acompanhando as explicaes que lhe d o Tenente. Este, com os objetos de sobre a mesa tinteiro, mata borro, etc. organiza um plano de cidade cercada, completando as faltas por indicaes feitas com o lpis.)

CENA I

TENENTE Est vendo? Faz de conta que isto aqui a cidade do Juazeiro... (gesto circular) a casa do Padre Ccero fica mais ou menos aqui... e, aqui, a Igreja das Dores...

CABO Sim, senhor.

TENENTE O valado foi aberto em toda a volta da cidade por aqui... por aqui... Agora, a tropa da polcia estadual tem vrias estradas para escolher. Mas naturalmente vem por esta... aqui... que a principal.

CABO E ser que eles tm gente para cercar o Juazeiro todo?

TENENTE Falam em mais de mil, em dois mil... E ainda esperam tropa e armamento do Governo de Pernambuco.

CABO Desculpe Tenente. Mas o senhor acha direito mandar cercar de soldado a cidade santa do Juazeiro e jurar de trazer o Padre Ccero preso ou morto? Afinal o Padre velho nunca fez mal a ningum todo o mundo sabe que ele santo, mandado por Deus a este mundo para ajudar quem sofre...

TENENTE O caso no esse, Cabo Lucas. O governo no tem rixa com o Padre. H mais de quarenta anos que ele a bem dizer dono do Juazeiro, e o governo no se mete. Mas agora diferente. Foi o Padre que atacou o governo, no reconheceu o presidente eleito, juntou um exrcito de Jagunos, e chegou ao cmulo de inventar outro governo outro presidente e outra assembleia, com sede no Juazeiro!

CABO Mas se tem um governo na capital e tem outro no Juazeiro, por que no fica cada um mandando na sua terra?

TENENTE Juazeiro faz parte do Estado do Cear, tem que acatar as ordens da Capital. No pode haver dois governos no mesmo Estado o Cear um s. Ou o Padre Ccero reconhece governo legal, ou o presidente do Estado tem que obrigar o reconhecimento, nem que seja a ferro e a fogo.

CABO Tenente, Deus que me perdoe, mas quem Franco Rabelo para obrigar a sujeio um santo e que santo! Meu Padrinho Padre Ccero!

TENENTE Bem, essa a dificuldade. O governo tem que recrutar, pagar, obrigar... Enquanto que pelo Padre aquela cegueira.

CABO (confidencial). Ouvi dizer que s daqui da cidade j tem mais de doze homens dispostos a acompanhar a Beata e irem acudir o Juazeiro!

TENENTE Eu sei muito bem quem so eles! (irritado) Mas s se sarem escondidos! E eles que no brinquem comigo, por que a primeira que eu prendo a tal Beata!

CENA II

CORONEL (Entrando) Pois isso mesmo que eu estou esperando. Que prenda a Beata. TENENTE o que eu estou providenciando, Coronel.

CORONEL (Brusco) O senhor sabe que j deram at um burro para ela poder levar as tais esmolas?

TENENTE Mas, meu amigo, eu no posso impedir que dem esmolas Beata...

CORONEL A sua obrigao impedir que ela perturbe a ordem. Por sinal, o telegrafista foi l em casa mostrar a cpia do telegrama do chefe de polcia. Que que o senhor me diz agora?

TENENTE O telegrama era para mim, Coronel Chico Lopes.

CORONEL (Muito irritado) No se esquea Tenente, de que eu sou o chefe poltico do municpio! Se a autoridade telegrafou ao senhor, foi atendendo minha ponderao! Ningum pode guardar segredo poltico de mim, nesta cidade!

TENENTE (Irnico) O que tenho a lhe dizer, Coronel, que eu tambm li o telegrama. E o senhor pode ficar descansado.

CORONEL S posso ficar descansado quando vir a sua ao, Tenente! Essa mulher no h de andar na cidade impunemente, provocando ajuntamentos, e o pior de tudo! Aliciando homens para combaterem o Governo! (Exaltado.) Essa mulher tem que ficar por trs de grades!

TENENTE J mandei intimar a Beata a que comparecesse aqui na Delegacia.

CORONEL Ora, Delegado! E o senhor acha que ela atende a uma simples intimao? Devia ter mandado logo prender!

TENENTE Coronel, eu s posso pensar pela minha cabea. Mandei dois homens, e eles tm ordens...

CORONEL Dois homens! Que que o senhor pensa que so dois homens para aquele bando de desordeiros? Fanticos! E armados! A estas horas os seus dois homens j devem ter sido sangrados.

TENENTE No creio. A Beata no tem interesse em provocar conflito. Est de passagem, h de querer sair daqui em paz, com os homens que j reuniu.

CORONEL A responsabilidade sua! o que diz o telegrama!

TENENTE Eu sei Coronel. Eu tambm sei ler.

CABO LUCAS (Da porta, dirigindo-se ao Tenente) Com licena, Tenente. A Beata est chegando. Vem s.

TENENTE Deixe entrar. (O tenente se levanta a fim de receber a Beata, mas o Coronel se deixa ficar sentado, deliberadamente).

(Entra a Beata). (A Beata Maria do Egito mulher nova nos seus vinte e cinco anos, mas ou menos. De certo modo bonita, apesar da roupa que veste: espcie de hbito de freira, ou tnica, cor de tabaco, longa, afogada, mangas compridas. Traz cintura um cordo, como os de frade, do qual pende um grande rosrio de contas claras. Tem ao peito uma cruz de prata, do tamanho de uma cruz de bispo. Sobre os cabelos cados s costas, em tranas frouxas, um pano fino, escuro. esguia, plida. Atravessa a sala em passo firme e se dirige ao Coronel Chico Lopes).

CENA III

BEATA Foi o senhor que mandou me chamar pelos soldados?TENENTE (Adianta-se) No, fui eu. Sou eu o delegado da cidade.

BEATA No precisava os soldados me trazer na rua. Eu vim por que quis.

CORONEL (Levanta-se e interpela a Beata) A senhora est perturbando a ordem!

BEATA A ordem de quem?

CORONEL A ordem pblica!

BEATA Eu s estou querendo que me deem passagem. Mandei a minha gente pedir esmola porque precisamos comer

CORONEL (Exaltado) Pedindo, mas de armas na mo! E para onde que a senhora leva essa gente?

BEATA Por que pergunta? Ento o senhor no sabe para onde que ns vamos?

CORONEL Pois diga! Eu quero que a senhora diga aqui, em frente do delegado, para onde que vai com essa cabroeira armada!

BEATA Todo o mundo sabe que dir o delegado. Mas a verdade no faz medo a quem teme a Deus. Ns vamos acudir o Santo do Juazeiro, que est cercado pelos hereges rabelistas.

CORONEL Ouviu Delegado, ouviu? Est a a confisso! O senhor como autoridade policial, tem obrigao de prender essa mulher!

TENENTE (Que acompanhou o dilogo de braos cruzados, a olhar alternadamente a Beata e o Coronel) Coronel Chico Lopes, o senhor quer me dar licena de interrogar a moa? Com exaltao no adianta.

CORONEL Interrogar mais, para qu? Ela j no confessou? O senhor tem a confisso completa, feita diante de duas testemunhas!

TENENTE (Procurando ter pacincia) Mas tem que se fazer tudo pela forma. Para isso estou aqui. O senhor vai me dar licena...

CORONEL Delegado, o senhor quer que eu me retire! Pois fique sabendo: Vou-me embora, e o senhor aguente as consequncias. Eu lavo as mos!

BEATA (Provocando-o) Como Pilatos!

CORONEL (Volta-se para ela, furioso) Como Pilatos, no senhora! Porque eu lavo as mos desse interrogatrio, mas vou agir! Se esse moo no cumpre o que deve, eu, como chefe poltico desta terra, tomarei minhas medidas, nem que faa correr sangue!

BEATA (Continuando a provocar) Como Herodes... (O Coronel d um passo em direo Beata, mas o Tenente se interpe).

TENENTE Por favor! Essa discusso no adianta! Coronel, j lhe pedi, tenha a bondade...

CORONEL Eu saio! Pode fazer o seu interrogatrio como quiser, que eu no incomodo mais! (Vai saindo, o Cabo lhe abre a porta, mas o Coronel ainda fala ameaador) Mas tenha cuidado, Tenente! Eu estou avisando! (Sai o Coronel)CENA IV

(O Tenente volta a sentar-se mesa. O cabo mantm-se em posio mais ou menos de sentido, no seu ligar, junto porta. A Beata conserva-se de p no meio da sala, ereta, as mos cruzadas sob as mangas do hbito).

TENENTE Faa o favor de se sentar. (Indica Beata a cadeira que o Coronel ocupou)

BEATA No senhor, eu nunca me sento.

TENENTE (Encolhe os ombros, despeitado) Como queira. (Puxa a gaveta, tira de l um livro grande, preto, abre-o em cima da mesa, pega a caneta, molha a pena, prepara-se para escrever) Seu nome?

BEATA Me chamam de A Beata Maria do Egito.

TENENTE Eu quero saber o seu nome verdadeiro e no o apelido.

BEATA Como que eu podia saber? Deixaram-me no quintal de uma casa. Quem me pegou foi ver na folhinha e, em vez do santo do dia, estava escrito: Fuga para o Egito. Assim me batizaram por Maria do Egito.

(O cabo, ao ver a BEATA de p por tanto tempo, no se contm e chega-lhe a cadeira).

CABO Minha santa, se sente, por caridade! (A Beata sorri para o Cabo e senta-se. O Cabo, satisfeito, volta ao seu lugar).

TENENTE (Vendo-a sentar-se. Volta ao livro.) Sabe ler e escrever?

BEATA Quem me criou tinha capricho: me ensinaram a ler nas letras da Histria Sagrada. (Recordando.) Naquela casa s se vivia pelo temor de Deus... Eram devotos. Nas noites de sexta-feira ningum dormia, ouvindo o choro e a reza dos homens, ajoelhados no terreiro ao p da cruz. E de madrugada as mulheres preparavam salmoura, para lavar o sangue dos aoites...

(O cabo Lucas, do seu lugar, escuta com ateno profunda.)

TENENTE No admira que a senhora, criada no meio desse povo, um belo dia vestisse o hbito de beata, sasse pelo mundo... juntasse gente ao seu redor... E agora tem fama de santa.

BEATA No sou santa. Santo, s Deus no cu e meu Padrinho no Juazeiro.

TENENTE Mas o que corre por a que a senhora faz tantos milagres quando o Padre. Adivinhou que um homem ia morrer de repente; depois devolveu os olhos a um menino cego de nascena...

BEATA Quem cura Deus. Eu sou a escrava dos pobres.

TENENTE E eu sou um tenente, no entendo de santidade. S tenho a obrigao de manter a ordem. (Volta ao livro.) solteira, no? Que idade tem?

BEATA Vou entrar nos vinte e sete.

TENENTE (Procurando falar o mais oficialmente possvel) Bem, a senhora acusada de reunir um bando de homens armados e se dirigir com eles em auxlio dos rebeldes do Juazeiro. Confessa a acusao?

BEATA Quando a palavra no pode mais, chega a vez das armas. O Padre pediu e implorou, mas o Governo no quis ouvir.

TENENTE Mas isso l com a polcia isso luta de homens! E a senhora, uma mulher, uma moa...

BEATA Judite tambm era mulher, e no teve medo de atacar o tirano Holofernes.

TENENTE (Impacientando-se) Escute aqui, minha filha quero dizer, escute aqui, Beata: a gente no podia conversar direito, eu perguntando, a senhora respondendo, como duas pessoas de juzo? Assim como ns vamos, ningum se entende. Cada coisa que eu pergunto a senhora vem com o catecismo, com a Histria Sagrada...

BEATA Por falta de catecismo e de Histria Sagrada que o mundo est assim perdido. Os hereges levantando a mo contra os santos.

TENENTE (Encolhe os ombros) Eles dizem que a senhora maluca. Ou ento, que se finge de louca, para arrastar o povo ignorante. Mas isso j no seria loucura tambm? E dizem outros que a senhora recebe o dinheiro das esmolas, e guarda tudo consigo...

BEATA (Irada ante a acusao, levanta a cabea). Isso falso!

TENENTE (Atalha com um gesto) Espere, no sou eu que digo! Eu at lhe confesso que, por mim, no acredito. Ao contrrio, posso-lhe contar que conversei com a me daquele ceguinho que a senhora curou. Fiquei muito impressionado.

BEATA Ento, se tem f, por que me chamou aqui?

TENENTE Bem, uma coisa ser santa, rezar e at fazer milagres, outra coisa andar com jaguno e ajudar revoluo. Por isso que tenho de impedir a sua sada da cidade.

BEATA (Levantando-se) Quem o senhor para me impedir de socorrer o santo?

TENENTE (Levantando-se tambm) Mas, criatura, eu sou o delegado! Quer que lhe mostre o telegrama do Chefe de Polcia?

BEATA E quem o Chefe de Polcia? Tambm ter misso de Deus?

TENENTE Polcia uma coisa e misso de Deus outra.

BEATA (Sem querer ouvir) Ento, se no misso de Deus, misso do demnio. (Encarando-o) No tem vergonha de dar mo forte aos prepostos de Satans?

TENENTE (Erguendo as mos) Um momento! Um momento! Parece que est tudo trocado! Eu que estou procurando cumprir a minha obrigao. E a senhora que, sendo uma mulher, uma moa, juntou um bando de cabras que se dizem romeiros...

BEATA So romeiros!

TENENTE ... e vem, de estrada abaixo, alegando que pede esmola, mas na verdade exigindo comida, dinheiro...

BEATA Dinheiro, no.

TENENTE ... e agora invade a cidade, que eu tenho a obrigao de policiar, procura atrair mais homens, mais cangaceiros...

BEATA O senhor sabe muito bem que no so cangaceiros. Cangaceiro quem se arma para matar e roubar e fazer o mal. Estes so homens direitos, pais de famlia, devotos daquele Santo que os rabelistas querem matar.TENENTE Isso o que a senhora diz. Mas para o Governo, que o patro que me paga, so revoltosos. E, usando ameaa a senhora consegue mais armas, mais munio, e quer ter passe livre para sair da cidade. No possvel!

BEATA E que que o senhor vai fazer?

TENENTE Mando desarmar os seus cabras.

BEATA (Desdenhosa). Quatro soldados contra um bando de homens dispostos, bem armados!

TENENTE Estou esperando reforo, tropa da capital. E, enquanto no chega, mantenho a senhora presa aqui.

BEATA Ora, reforo! Soldado que o Governo tem, pouco para o cerco do Juazeiro! E de que lhe servia esse reforo, Tenente? Matasse o senhor os meus companheiros todos, os poderes de Deus me mandavam outros! Por cada um que morra, talvez me apaream at mil.

TENENTE A senhora no devia tomar essa atitude de provocao. Olhe que eu tenho ordens para fazer muito pior. Quer ver? Oua o que diz o telegrama do Chefe de Polcia: (L.)Determinamos priso mulher que chefia fanticos. Caso ache necessrio pode envi-la acompanhada escolta para Capital. Fortaleza!

BEATA Quero ver quem tem a coragem de levantar a mo contra a serva dos pobres!

TENENTE (Caminhando at perto dela) No desafie, Beata! A senhora pode ser o que diz, mas se lembre...

BEATA (Encarando-o) No tem medo de castigo, irmo? O brao que me prende pode se cobrir de chagas... os olhos que me enfrentam podem cegar de repente... Se eu levantasse esta mo e dissesse: Cegai, olhos atrevidos...

TENENTE (Recuando) Que santa ser essa que roga praga nos outros?

BEATA No praga. aviso. No brinque com os poderes de Deus!

(A porta abre-se bruscamente. Entra Coronel Chico Lopes. Vem mais exaltado do que saiu, brandindo um jornal. Todos se voltam para ele, que se dirige em linha reta ao Tenente, atirando o jornal sobre a mesa.)

CENA V

CORONEL Essa mulher ainda est solta? Ponha essa criatura no xadrez e disperse a gente dela, Tenente! (Pega o jornal, mostra uma manchete) Veja! (L.) Derrota da fora que atacou o Juazeiro!

TENENTE Mas houve choque? No era um cerco? Juazeiro todo no estava entrincheirado atrs dos valados?

CORONEL (Quase incoerente, de to emocionado) J se v que no estava... No sei! Sei que atacaram. E foram batidos! Est aqui. Leia. (D o jornal ao Tenente.)

TENENTE (L.) As obras de fortificao detiveram as foras atacantes. Por trs do muro de barro, os romeiros fuzilavam os soldados legalistas. noitinha, j estava desbaratada a 1. Companhia... A estrada ficou cheia de soldados fugitivos... Oitenta e quatro mortos entre as tropas do Governo...

BEATA (Levantando as mos para o cu) Viva quem teme a Deus!

TENENTE (Virando-se rapidamente para a BEATA) E eu torno a perguntar: que santa essa que se alegra com a morte duns infelizes cristos? BEATA Cristos? Soldados do Anticristo!

CORONEL (Furioso) Delegado, prenda essa mulher!

BEATA (Fita o CORONEL, com desprezo) Quem levanta a mo contra o Santo do Juazeiro tem que morrer de morte ruim!

CORONEL No se alegre to depressa: a tropa est se reorganizando no Crato e vai fechar o cerco outra vez!

BEATA Tantas vezes for, tantas perder! Morrem a bala ou a ferro frio, em pecado mortal, sem confisso, sem nem ao menos uma vela acesa, no escuro, sem luz de Deus!

CORONEL (Quase aos gritos) Tenente, prenda essa louca, j lhe disse!

TENENTE (calmo) No grite comigo, Coronel Chico Lopes. Lembre-se de que eu no recebo ordens do senhor. CORONEL Engano seu! Se eu disser uma palavra, amanh mesmo voc no mais delegado nem nada! Tiro-lhe at os gales, boto-o a soldado raso!

TENENTE Pode ser. Mas ainda estamos no dia de hoje. (Os dois homens se encaram raivosos)

BEATA (Intervindo em voz tranquila) Ento posso ir-me embora, Tenente? Meu pessoal deve estar aflito...

TENENTE (Para a BEATA) No senhora, no pode se retirar. (Para o Coronel) E o senhor, por obsquio se retire.

CORONEL Pela segunda vez o senhor me manda embora, a mim! Aproveite enquanto pode. Porque isto vai acabar!

TENENTE - Cabo Lucas, acompanhe o Coronel Chico Lopes.

(O CABO se pe ao lado do CORONEL, que num repelo, sempre furioso, se dirige porta e vai abri-la; mas o CABO se adianta, abre a porta, perfila-se lhe dando passagem. O CORONEL sai. O TENENTE senta-se na cadeira de braos pe os cotovelos sobre a mesa, segura o queixo entre as mos. O CABO e a BEATA fitam-no perplexos).

TENENTE (Para a BEATA) A senhora pensou mesmo que essa notcia do jornal alterava alguma coisa a seu favor? S podia piorar. Alis, acho que a senhora entende muito bem. S disse aquilo para enfurecer o homem, no foi?

BEATA E o senhor, se assustou com os gritos dele? Tem medo de um velho, e no tem medo da voz de Deus!

TENENTE (Sombrio) Comigo Deus no fala.

BEATA Tenente!

TENENTE (Fatigado) Cabo Lucas!

CABO (Aproxima-se) Pronto, Tenente!

TENENTE Leve a presa para o xadrez.

(O CABO, hesitante, ergue os olhos para o DELEGADO. Este o fita tambm, com ar decidido. O CABO, vencido, aproxima-se da BEATA, mas no ousa toc-la. Timidamente, levanta a mo, com se lhe pedisse a bno. A BEATA faz ostensivamente o sinal-da-cruz, tira o rosrio da cintura e se encaminha a