BATTISTI Et Al (2007) - Palatalizacao Das Oclusivas Alveolares e a Dimensao Subjetiva Da Variacao

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Palatalização das Oclusivas Alveolares e a Dimensão Subjetiva da Variação Elisa Battisti Universidade de Caxias do Sul/CNPq [email protected] Adalberto Ayjara Dornelles Filho Universidade de Caxias do Sul [email protected] João Ignacio Pires Lucas Universidade de Caxias do Sul [email protected] Nínive Magdiel Peter Bovo Escola Adventista de Caxias do Sul [email protected] 1 Introdução No português brasileiro, a vogal alta subjacente /i/ tônica ou átona, bem como [i] fonético elevado de /e/ átono e glide anterior podem palatalizar a oclusiva alveolar precedente (dica~d i ica, tipo~t i ipo, difícil~d i ifícil, tirar~t i irar, vinte~vint i i, onde~ond i i, ódio~ód i io, pátio~pát i io). Os diversos falares brasileiros diferem quanto às taxas de aplicação dessa regra variável–94% em Salvador, BA (ABAURRE e PAGOTTO, 2002) e Porto Alegre, RS (KAMIANECKY, 2003), 62% em Alagoinhas, BA (HORA, 1990), 8% em Florianópolis, SC (KAMIANECKY, 2003)–como também quanto às taxas de elevação de /e/ átono, processo que alimenta a palatalização (HORA,1990; BISOL, 1991; ALMEIDA, 2000; PAGOTTO, 2001). Em Antônio Prado (AP), pequeno município da serra gaúcha fundado por imigrantes italianos no final do século XIX, a freqüência total de palatalização das oclusivas alveolares é de 30%. O /e/ átono é preservado ou desvozeado, raramente elevado, razão pela qual se pode afirmar que a palatalização das coronais restringe-se ao contexto de vogais altas anteriores subjacentes em AP 1 . Numa tal situação, a palatalização é geralmente considerada regra inovadora no sistema da comunidade (BISOL, 1991; ALMEIDA, 2000). No presente trabalho, em que se mostra que a palatalização não é mudança em progresso em AP, pretende-se discutir a tendência à estabilização da regra na comunidade. Além do forte condicionamento lingüístico exercido pela vogal e acima referido, contribui para a estabilização da regra a ideologia presente nas práticas sociais locais (entre elas as lingüísticas), que pode ser investigada focalizando-se aspectos ligados à globalização. Parte-se de uma breve caracterização de AP, passa-se aos resultados da análise de regra 1 A aplicação da palatalização depende da posição da vogal alta na palavra, de seu grau de proeminência, algo que pode ser explicado por um conjunto de restrições não-hierarquizadas e pela representação híbrida das vogais átonas (HERMANS e BATTISTI, 2007). Caderno de Pesquisas em Lingüística : Variação no Português Brasileiro, Porto Alegre, Volume 3, Número 1, 2007 Leda Bisol, Cláudia Regina Brescancini (org.), ISSN 1808-3137

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Palatalização das Oclusivas Alveolares e a Dimensão Subjetiva da Variação

Elisa Battisti Universidade de Caxias do Sul/CNPq

[email protected]

Adalberto Ayjara Dornelles Filho Universidade de Caxias do Sul

[email protected]

João Ignacio Pires Lucas Universidade de Caxias do Sul

[email protected]

Nínive Magdiel Peter Bovo Escola Adventista de Caxias do Sul

[email protected]

1 Introdução No português brasileiro, a vogal alta subjacente /i/ tônica ou átona, bem como [i] fonético elevado de /e/ átono e glide anterior podem palatalizar a oclusiva alveolar precedente (dica~d

iica, tipo~t

iipo, difícil~d

iifícil, tirar~t

iirar, vinte~vint

ii, onde~ond

ii,

ódio~ódiio, pátio~pát

iio). Os diversos falares brasileiros diferem quanto às taxas de

aplicação dessa regra variável–94% em Salvador, BA (ABAURRE e PAGOTTO, 2002) e Porto Alegre, RS (KAMIANECKY, 2003), 62% em Alagoinhas, BA (HORA, 1990), 8% em Florianópolis, SC (KAMIANECKY, 2003)–como também quanto às taxas de elevação de /e/ átono, processo que alimenta a palatalização (HORA,1990; BISOL, 1991; ALMEIDA, 2000; PAGOTTO, 2001). Em Antônio Prado (AP), pequeno município da serra gaúcha fundado por imigrantes italianos no final do século XIX, a freqüência total de palatalização das oclusivas alveolares é de 30%. O /e/ átono é preservado ou desvozeado, raramente elevado, razão pela qual se pode afirmar que a palatalização das coronais restringe-se ao contexto de vogais altas anteriores subjacentes em AP1. Numa tal situação, a palatalização é geralmente considerada regra inovadora no sistema da comunidade (BISOL, 1991; ALMEIDA, 2000). No presente trabalho, em que se mostra que a palatalização não é mudança em progresso em AP, pretende-se discutir a tendência à estabilização da regra na comunidade. Além do forte condicionamento lingüístico exercido pela vogal e acima referido, contribui para a estabilização da regra a ideologia presente nas práticas sociais locais (entre elas as lingüísticas), que pode ser investigada focalizando-se aspectos ligados à globalização. Parte-se de uma breve caracterização de AP, passa-se aos resultados da análise de regra

1 A aplicação da palatalização depende da posição da vogal alta na palavra, de seu grau de proeminência, algo que pode ser explicado por um conjunto de restrições não-hierarquizadas e pela representação híbrida das vogais átonas (HERMANS e BATTISTI, 2007).

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variável (LABOV, 1972, 1994, 2001), passo primeiro do estudo, e finalmente à análise crítica da ideologia (CERQUEIRA FILHO, 1982; ZIZEK, 1996).

2 A palatalização das oclusivas alveolares em Antônio Prado

2.1 Antônio Prado Antônio Prado situa-se a cerca de 180 quilômetros de Porto Alegre, capital do

Rio Grande do Sul, Brasil, e a 61 quilômetros de Caxias do Sul, maior cidade do estado além de Porto Alegre (Figura 1). Antônio Prado possui uma área de 347,6 quilômetros quadrados e uma população de 14.344 habitantes2, dos quais 65,2 % vivem na zona urbana.

Figura 1 – Localização de Antônio Prado, Caxias do Sul e Porto Alegre.

Antônio Prado teve uma formação sociohistórica exógena. Sua população foi

implantada em uma região isolada. Lá permaneceu em virtude das precárias vias de acesso ao restante do estado e ao país. Essa situação, que começou a mudar somente há 30 anos pela construção de estradas, contribuiu para o desenvolvimento de um localismo (não-globalizado, de acordo com Santos, 20003) similar ao descrito por Milroy (1980).

Sexta e última colônia italiana no nordeste do Rio Grande do Sul, Antônio Prado surgiu como núcleo de colonização por ordem de Dom Pedro II in 1886 e recebeu o nome do Ministro da Agricultura que introduziu imigrantes italianos no Brasil, a maior parte vinda do norte da Itália. Passou a município em 1899. Aos fundadores italianos

2 Estimativa do IBGE para 2006. www.ibge.gov.br. Acesso em 21 de maio de 2007. 3 Segundo o autor, localismo globalizado representa a situação de uma comunidade que consegue difundir globalmente produtos e processos que reforcem a sua identidade local e que garantam ganhos econômicos e políticos, além de potencializar a preservação de sua própria identidade. No globalismo

localizado tem-se o contrário: a comunidade acaba sendo fortemente influenciada por outras comunidades a ponto de abrir mão parcial ou totalmente de sua identidade original, perdendo também poder e recursos econômicos. No final, produtos e processos semelhantes estão presentes nas duas situações, mas as localidades que conseguem produzir mais do que receber (localismo globalizado) lucram mais, obtêm mais poder e recursos econômicos globais.

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Antônio Prado deve muitas de suas características, como as práticas religiosas católicas e as micropropriedades rurais com mão-de-obra familiar.

2.2 Análise de regra variável

A análise de regra variável (LABOV, 1972, 1994, 2001) de 26.600 contextos de palatalização levantados de entrevistas de 48 informantes de AP do Banco de Dados de Fala da Serra Gaúcha (BDSer, UCS) foi feita com o software Goldvarb 20014 e complementada por análises estatísticas de correlação realizadas com o software SPSS5. Metade dos informantes vive na zona urbana, metade na zona rural. Pertencem aos gêneros masculino e feminino e a quatro faixas etárias (15 a 29 anos de idade, 30 a 49 anos de idade, 50 a 69 anos de idade, 70 ou mais anos de idade), numa distribuição de três informantes por célula.

Houve palatalização em 30%6 dos contextos, i.e., 7.971 dos 26.600 contextos foram palatalizados. Três variáveis sociais–Gênero, Idade, Local de Residência–e cinco variáveis lingüísticas–Contexto Fonológico Precedente e Seguinte, Status da Vogal, Tonicidade da Sílaba e Qualidade da Consoante-Alvo–foram controladas. Das oito variáveis, três mostraram-se estatisticamente significativas7 em todas as rodadas: Idade, Local de Residência e Status da Vogal. Na Tabela 1, os resultados da variável Idade mostram que os fatores 15 a 29 anos de idade e 30 a 49 anos de idade favorecem a palatalização (0,76 e 0,75, respectivamente):

Fatores Aplic./Total % Peso relativo

15 a 29 anos de idade 2426/5707 42 0,76 30 a 49 anos de idade 3223/7448 43 0,75 50 a 69 anos de idade 1873/7187 26 0,46 70 ou mais anos de idade 449/6258 7 0,09 TOTAL 7971/26600 30

Input 0,198 Significância 0,005 Tabela 1- Resultados da variável Idade.

O fator 50 a 69 anos de idade é neutro (0,46), e o fator 70 ou mais anos de idade claramente desfavorece a palatalização (0,09).

A correlação negativa de -0,5718 entre as variáveis Idade e Freqüência de Palatalização pode ser percebida no Gráfico 1.

4 Programa para análise multivariada desenvolvido por Robinson, Lawrence e Tagliamonte (2001) e usado em estudos sociolingüísticos quantitativos. 5 Statistical Package for Social Sciences, pacote de programas estatísticos empregados em ciências humanas e sociais (www.spss.com). 6 ± 0,55 % (IC 95 %). 7 Ao nível de 0,05. 8 Significância inferior a 0,001.

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Idade

908070605040302010

Fre

ên

cia

de

Pa

lata

liza

çã

o

1,0

,8

,6

,4

,2

0,0

-,2

Gráfico 1 – Diagrama de dispersão Idade e Freqüência de Palatalização. Cada ponto representa um informante. A reta de ajuste linear indica a tendência de decréscimo da freqüência de palatalização com o aumento da idade.

Esses resultados confirmariam uma hipótese inicial do presente estudo, de que

os jovens favorecem a palatalização em AP e, assim fazendo, introduzem a mudança na comunidade. Mas os valores próximos dos jovens (15 a 29 anos de idade) e de pessoas de meia-idade (30 a 49 anos de idade) não permitem que se confirme aquela hipótese: a primeira faixa etária replica a segunda9. Quando a variação é parte de um processo de mudança, seu correlato primário é a idade. De acordo com Chambers (2002, p.355), “change reveals itself prototypically in a pattern whereby some minor variant in the speech of the older generation occurs with greater frequency in the middle generation and with still greater frequency in the youngest generation.”10 Em AP há um aumento da palatalização dos idosos aos informantes de meia-idade, mas não desses aos jovens. Esse padrão, quase uma curva em S (Gráfico 2), é peculiar à finalização das mudanças. É por isso que não se pode afirmar que palatalização seja mudança em progresso em AP, pode-se apenas dizer que a regra tende a estabilizar-se no sistema em índices moderados.

9 Não há diferença significativa entre os grupos (Teste t, sig=0,958). 10A mudança revela-se prototipicamente num padrão em que uma variante menor na fala da geração mais velha ocorre com maior freqüência na geração do meio e com ainda maior freqüência na geração mais jovem.

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Gráfico 2 – Gráfico de barras de Freqüência de Palatalização por Faixa Etária.

O padrão é compatível com a estabilização da mudança. A oposição urbano-rural também é significativa para a palatalização em AP. Na Tabela 2, os resultados da análise de regra variável confirmam outra hipótese inicial: os informantes urbanos favorecem a palatalização, os informantes rurais desfavorecem-na.

Fatores Aplic./Total % Peso relativo Zona urbana 4839/13593 35 0,61 Zona rural 3132/13007 24 0,38 TOTAL 7971/26600 30

Input 0,198 Significância 0,005 Tabela 2 - Resultados da variável Local de Residência.

Acredita-se que esses resultados relacionem-se a práticas sociais distintas. Trabalhar em pequenas propriedades rurais em AP não requer um alto grau de escolaridade. A não ser por um pólo de Educação à Distância que a Universidade de Caxias do Sul mantém em AP com oferta de Pedagogia para profissionais das redes de ensino, não há Instituição de Ensino Superior na cidade. Os estudantes necessitam deslocar-se a municípios vizinhos, a maior parte a Caxias do Sul, para freqüentar faculdades ou Universidade, algo que os habitantes da zona rural raramente fazem. O cruzamento de Escolaridade (variável não controlada na análise de regra variável) com outros grupos de fatores sociais revela a influência da educação na variação em questão. A correlação entre Freqüência de Palatalização e Escolaridade é mais intensa entre informantes que vivem na zona urbana (+0,541) do que entre os informantes que vivem na zona rural (+0,069). A correlação na zona urbana é ela própria significativa (0,005), enquanto que na zona rural ela não é (0,753). No Gráfico 3 vê-se por quê: a palatalização aumenta à medida que a escolaridade aumenta na zona rural, mas não na zona urbana.

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Escolaridade

Superior

Médio

Fundamental

Primário

Fre

qüência

(m

édia

) de P

ala

taliz

ação

,6

,5

,4

,3

,2

,1

0,0

Local de Residência

Zona urbana

Zona rural

Gráfico 3 – Freqüência Média de Palatalização por Escolaridade e Local de Residência. A variável lingüística Status da Vogal foi selecionada em todas as rodadas. Os resultados estão na Tabela 3:

Fatores Aplic./Total % Peso relativo

Vogal alta subjacente /i/ (mentira) 5661/9533 59 0,89 [i] fonético (gente) 2310/17067 13 0,23 TOTAL 7971/26600 30

Input 0,198 Significância 0,005 Tabela 3 – Resultados da variável Status da Vogal.

A maior parte dos contextos de palatalização envolve vogais médias átonas candidatas a [i]. Como se afirmou anteriormente, embora em vários falares brasileiros a redução seja freqüente assim criando ambiente para a palatalização, a redução vocálica de /e/ átono não é alta em AP11. Por exemplo, além de [i’dade], com [e], uma alternante com vogal desvozeada [I] ([i’dadI]) também pode ocorrer em AP, mas sem

11 Roveda (1998) investigou a redução vocálica de /e/ e /o/ átonos finais em Chapecó e Flores da Cunha, o último um município vizinho de AP. Nessa posição da palavra e considerando somente /e/, os resultados do estudo são 71 % de redução em Chapecó e 64 % em Flores da Cunha. Há, portanto, vogais que não se reduzem nessas comunidades. Esse comportamento é explicado pela autora através do contato do português com a fala dialetal italiana, ainda presente naquelas cidades. A conseqüência de tal contato seria a preservação de /e/ em português devido à influência do sistema morfológico do italiano (no qual a qualidade vocálica é distintiva). Tal hipótese poderia ser válida para AP, mas deve-se considerar o fato de que em outras comunidades brasileiras em que tal contato nunca existiu a redução vocálica com palatalização é igualmente baixa.

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palatalização. É o que se verificou numa análise de regra variável da alternância [e]~[I] do /e/ átono realizada paralelamente12 na fala dos mesmos 48 informantes do estudo de palatalização. Somente os contextos onde a palatalização não se aplicou foram controlados. A freqüência total de preservação do /e/ foi de 71% (10.323 de 14.464 contextos), a redução a [I] foi de 29%. Isso vai ao encontro do que se afirmou anteriormente, que a palatalização em AP não somente tende a aplicar com /i/, restringe-se à vogal alta /i/ subjacente.

Pelo que se viu, além do forte condicionamento lingüístico exercido pela vogal, as variáveis sociais desempenham papel relevante na palatalização em AP. Parece que a tensão entre as práticas sociais que difundem a palatalização (o novo, a mudança) na comunidade e as que previnem o espraiamento das formas palatalizadas resolve-se com índices moderados de aplicação da regra. Num estudo anterior sobre a rede social dos informantes de cujas entrevistas foram levantados os dados de palatalização (BATTISTI, DORNELLES FILHO, LUCAS, BOVO, 2007), isso se confirma. A equipe comprovou não só a existência de uma linha divisória entre rural e urbano, como também o papel dos laços em rede entre os indivíduos na estabilização da regra em AP: a rede urbana, densa mas com laços menos íntimos, difunde a palatalização, enquanto a rural, também densa mas com laços íntimos, mantém a fala local, sem palatalização. A estrutura da rede, portanto, tem impacto na difusão (ou refreamento) da regra na comunidade, e sua análise permitiu compreender por um lado a tendência à estabilização verificada. Por outro, o da dimensão subjetiva, ainda há o que investigar. De acordo com Labov (2001): “... the first task must be to investigate the subjective dimension of changes in progress, and see what evidence can be advanced that would be consistent with the curvilinear origins of these social changes and would motivate speakers of other social groups to adopt them.” 13(LABOV, 2001, p.192)

Há uma dimensão subjetiva da variação e mudança relacionada à identidade construída através do uso da linguagem pelos indivíduos em sua vida social. Essa dimensão, apesar da necessidade expressa por Labov, pouco tem sido explorada nos estudos sociolingüísticos porque, como explica Milroy (1980), é complexo correlacionar sistematicamente resultados estatísticos aos vários aspectos da identidade social do falante. Essa autora afirma: “The extent to which he [the speaker] allows his speech to symbolize his social identity in this way may vary according to other factors (social and psychological) which investigators have not been able to examine quantitatively.”14 (MILROY, 1980, p.114)

Em relação à palatalização em AP e a necessidade de atingir a dimensão subjetiva da variação, o que tem intrigado a equipe de pesquisadores são os sinais de estabilização da regra na comunidade, a despeito do fato de serem os jovens urbanos os que mais palatalizam–a orientação ao urbano, por seu maior prestígio, tem explicado a difusão da variação em outras comunidades (CARVALHO, 2004). Na seção que segue,

12 Estudo realizado pelos bolsistas de iniciação científica e acadêmicos do curso de Letras da UCS Natália Brambatti Guzzo (PIBIC/CNPq), Sabrina Pasticelli (BIC/Fapergs), Vanessa Bertuol (BIC/UCS), Gabriel Duso Matté (BIC/UCS), sob supervisão de Elisa Battisti. 13 ... a primeira tarefa deve ser investigar a dimensão subjetiva das mudanças em progresso, e ver que evidências passíveis de ser obtidas seriam consistentes com as origens curvilineares dessas mudanças sociais e motivariam os falantes de outros grupos sociais a adotá-las. 14 A extensão a que ele [o falante] permite que sua fala simbolize sua identidade social dessa forma pode variar de acordo com outros fatores (sociais e psicológicos) que os investigadores não têm conseguido examinar quantitativamentente.

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passa-se a relatar a análise crítica da ideologia feita com o intuito de dar conta de tal dimensão, pelo menos em um de seus aspectos. 2.3 Análise crítica da ideologia

Entende-se no presente trabalho que atingir a dimensão social da variação corresponde a aproximar-se do significado social das próprias variantes. Esse significado nasce das experiências diárias dos indivíduos em comunidade, de seu engajamento em grupos cujas práticas comuns vão da linguagem ao modo de vestir-se, de comportar-se. Como Eckert (2000) explica:

“We notice people’s clothing, their hair, their movements, their facial expressions, and we notice a speech style–a complex construction of lexicon, prosody, segmental phonetics, morphology, syntax, discourse. And we come to associate all of these with the things they do and say –with the attitudes and beliefs they project, and with the things they talk about.”15 (ECKERT, 2000, p.1) A palatalização é um dos aspectos fonético-segmentais que podem constituir a fala em língua portuguesa. Por sua realização variável, a palatalização é, na linha de Eckert (2000), passível de ser associada a atitudes e crenças dos indivíduos, àquilo sobre o que eles falam. O passo que se dá no presente estudo16 dá conta desse último aspecto: aborda-se o conteúdo das entrevistas sociolingüísticas utilizadas no estudo de palatalização. Analisa-se aquilo que os informantes afirmam sobre suas práticas diárias. O intuito é o de identificar as condições de existência dos indivíduos e a sua representação da relação imaginária que mantêm com tais condições, procurando associar a prática da palatalização a essas condições e assim aprofundar a compreensão da tendência à estabilização da regra em AP em índices moderados. Realiza-se uma análise de natureza discursiva seguida nas ciências sociais, a análise crítica da ideologia (CERQUEIRA FILHO, 1982; ZIZEK, 1996), a ser esclarecida na seção que segue através de noções teóricas a ela fundamentais. 2.3.1 Ideologia, globalização e variação lingüística As implicações da globalização para os processos sociais17 vêm sendo analisadas com freqüência cada vez maior. Uma das principais perspectivas de análise tem sido a da ideologia, ainda que para Santos (2000) a globalização englobe muitas áreas, como a política, a economia, e a cultura, no mínimo. Com a globalização reforçam-se variáveis sociais que, além de influências locais, sofrem influências gerais (ou globais). Esse é o caso da ideologia, que se relaciona tanto ao próprio indivíduo e sua localidade quanto à globalização. Antônio Prado (RS), como qualquer comunidade, permite verificar isso: tanto a variável ideologia quanto a variável globalização influenciam as práticas sociais, entre elas a fala.

A globalização aqui é considerada não como um processo de uniformização aos padrões externos, mas uma complexa relação entre o local e o global (SANTOS, 2000),

15 Nós notamos as roupas das pessoas, seu cabelo, seus movimentos, suas expressões faciais, e nós notamos um estilo de fala–uma construção complexa de léxico, prosódia, fonética segmental, morfologia, sintaxe, discurso. E nós acabamos por associar tudo isso com as coisas que as elas [as pessoas] fazem e dizem–com as atitudes e crenças que elas projetam, e com as coisas sobre as quais elas falam. 16 O estudo da palatalização das oclusivas alveolares como prática social, além da análise de regra variável, do estudo da rede social dos informantes e da análise crítica da ideologia, envolve estudo etnográfico através de procedimentos como observação participante, esse último ora em andamento. 17 Além de Santos (2000) já citado anteriormente, destacam-se as reflexões de Bauman (1999) e Milton Santos (2000).

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quando há um aumento significativo entre os fluxos das localidades. Nessa relação, a variação lingüística pode ser uma forma de a comunidade temperar localmente o global, isto é, usar as variantes como recursos simbólicos para pôr em relevo o que é local, como marca de identidade. É assim que se concebe a relação entre variação, ideologia e globalização. Ideologia, conforme Althusser (1990), é uma representação da relação imaginária das pessoas com suas condições reais de existência. Embora seja em parte uma ilusão, pois contém elementos imaginários, a ideologia faz alusão à realidade, traz muitos elementos referentes a informações e dados reais. Isso permite interpretá-la em seus componentes ilusórios e alusivos. Já Zizek (1992) afirma que, embora tradicionalmente a crítica à ideologia admita que todas as práticas sociais sejam reais e que as crenças utilizadas para justificá-las é que são falsas ou ilusórias, essa oposição pode ser invertida: a ideologia é uma ilusão que estrutura nossas práticas sociais; ela está naquilo que fazemos, não necessariamente naquilo que dizemos. Assim, a própria realidade social é ideológica. Os participantes não conhecem a essência da realidade social de que fazem parte e que reproduzem: “... o sujeito só pode ‘gozar com seu sintoma’ na medida em que sua lógica lhe escapa–a medida do sucesso da interpretação do sintoma é, precisamente, sua dissolução [grifos do autor]” (ZIZEK, 1996, p.306). Cerqueira Filho (1982) também reforça a idéia de que a ideologia não seja puramente ilusão, mas um efeito social de desconhecimento. “O termo ideologia, em outras palavras, parece fazer referência não somente a sistemas de crenças, mas a questões de poder [grifo do autor]...lutas de poder que são até certo ponto centrais a toda uma forma de vida social e aquelas que não o são.” (EAGLETON, 1997, p.18;21). Estudar criticamente ideologia significa, então, não considerá-la meramente ilusão. Importam o conteúdo afirmado pelo sujeito e, principalmente, o “modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação”. (ZIZEK, 1996, p. 13-14). Significa tomá-la também pelo seu caráter funcional com respeito a alguma relação de dominação social oculta, não-transparente, o que está na lógica de legitimação da relação de dominação.

Ao focalizar globalização, tenta-se verificar como as estruturas de poder locais sobrevivem à globalização, integrando-se, desaparecendo, e quais os desdobramentos na formação das classe sociais (identidade, rituais, códigos, posturas, etc)18 e na regra variável em questão, a da palatalização. No Brasil, nos estudos pioneiros de Cerqueira Filho (1982), o agir (prática social) é parte do sentir (estrutura psico-afetiva) e do pensar (ideologia). Sentimento, ideologia e ação estão, dessa forma, num todo complexo. Dependendo da análise, pode-se trazer à tona um dos aspectos, apenas: somente a ideologia, ou a prática, ou o sentimento. É o que se faz neste estudo com a análise das práticas dos informantes, conforme seus relatos nas entrevistas sociolingüísticas. 2.3.2 Palatalização das oclusivas alveolares e a dimensão subjetiva da variação

Retomando a afirmação feita anteriormente, o intuito da análise crítica da ideologia foi o de aprofundar a compreensão da estabilização da regra em AP, desta vez na perspectiva dos usuários da língua. A hipótese seguida foi a de que, apesar de as elites19 pradenses tenderem a manter padrões de dominação que não sirvam diretamente à globalização, os padrões locais são cooptadas pela globalização, isto é, há dominação sem destruição. Isso corresponderia à tendência à produção da variante não-palatalizada (forma tradicional) na fala de AP, a despeito das freqüências maiores de palatalização

18Acredita-se que a formação das classes sociais seja um fenômeno muito mais ideológico e cultural do que meramente sócio-econômico. 19 Sobre a teoria das elites, ver Bottomore (1974) e Mills (1962).

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em outros falares de português brasileiro, inclusive nos de municípios vizinhos com os quais os habitantes de AP interagem diariamente.

A análise foi feita nas 48 entrevistas sociolingüísticas consideradas na análise de regra variável da palatalização. Seguindo Cerqueira Filho (1982), levantaram-se das entrevistas afirmações dos informantes sobre suas práticas diárias para verificar, na superfície discursiva, sintomas de sua identificação com a comunidade pela reprodução de práticas tradicionais, ou sua orientação para além de AP pelo abandono dessas práticas.

As entrevistas, semi-estruturadas, motivam o entrevistado a discorrer sobre seu cotidiano, sobre sua infância e momentos marcantes de sua vida, bem como expressar sua opinião a respeito de variados temas–religião, política, juventude, trabalho, entre outros. Os trechos de interesse para este estudo são os referentes ao cotidiano. As categorias que se passa a abordar são os tópicos em torno dos quais giraram os relatos–família, trabalho, lazer, religião. Neles há afirmações sobre a própria comunidade, que foi incluída como uma quinta categoria.

De modo geral, percebem-se nos relatos dos entrevistados de AP indícios ideológicos de vivência numa comunidade que já sofreu impactos de outras localidades, embora não tenha aberto mão de muitas práticas tradicionais (localismo globalizado). Os sinais de estabilização da palatalização em AP podem ser vistos como efeito de um hibridismo20 das culturas local e global, muito influenciado pelo espetáculo multimídia. Por exemplo, mantidas as faixas etárias consideradas na análise quantitativa (15 a 29 anos, 30 a 49 anos, 50 a 69 anos e 70 ou mais anos), quando os entrevistados falam sobre lazer, o peso dos meios de comunicação de massa é maior na fala dos entrevistados jovens e da faixa de 30 e 49 anos, diminuindo nas demais faixas etárias. Assistir a filmes no cinema e usar computador com acesso a Internet é mais freqüente entre os jovens, principalmente os da zona urbana que se deslocam a outras comunidades para realizar estudos em nível superior. Informantes de todas as faixas etárias assistem a programas de televisão e ouvem rádio. A leitura só é menos freqüente entre os idosos, que alegam “problemas nas vistas”; todos os outros informantes afirmam ler, muda o tipo de texto lido: os mais jovens afirmam ler livros, os demais lêem jornais e revistas, usualmente. O acesso à Universidade–de que boa parte dos informantes de 15 a 29 anos ora usufrui, e que foi possível para alguns dos informantes de 30 a 49 anos, mas raro para os das faixas etárias maiores–parece fortemente ligado à prática da leitura para além dos jornais e revistas.

Os informantes de mais idade (50 a 69 anos e 70 ou mais anos), de zona rural e gênero masculino, relatam jogar cartas na bodega ou no salão da comunidade21 nos finais de semana; as mulheres dessa zona da cidade e mesma faixa etária afirmam conversar com os vizinhos, quando a prática da fala dialetal italiana pode ocorrer. Nesses dois grupos rurais, como nos mais jovens (15 a 29 anos, 30 a 49 anos) dessa área, o convívio com familiares das horas de folga, principalmente para refeições–jantar aos sábados, churrasco aos domingos–é bastante intenso, o que propicia desenvolver o

20 Um estudo sobre hibridismo local e regional encontra-se em Canclini (1999). 21 Como nos demais municípios povoados por imigrantes italianos na serra gaúcha, inicialmente a igreja era o centro da vida social em AP. Na extensa zona rural, as comunidades distantes organizavam-se em torno de capelas construídas coletivamente, cujo papel foi decisivo na aglutinação dos imigrantes. Hoje continuam a fazer parte da vida dos pradenses, principalmente os de zona rural, cujos minifúndios ainda são identificados por seu pertencimento a uma dada capela. Nessas comunidades, as capelas contam com um salão comunitário onde são realizadas festividades e outros eventos que reúnem os moradores. Próximo ao salão fica a bodega, local de encontro freqüentado quase exclusivamente por homens.

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localismo já referido, reforçado pelo fato de os parentes e vizinhos serem também colegas de trabalho nas micropropriedades rurais.

Nos grupos urbanos, muda apenas o fato de o convívio com familiares não se dar no trabalho, ocorrendo nos finais de semana e datas festivas. Em festas de padroeiro, quer na zona urbana quer na rural, é comum a família toda deslocar-se juntamente e participar em grupo das festividades, que em geral envolvem um grande almoço. Muitos habitantes urbanos possuem parentes na zona rural. Entre os de mais idade (50 a 69 anos e 70 ou mais anos), mesmo morando na cidade, há muitos que possuem horta no quintal das casas e nelas lidam nas horas de folga; as mulheres mais idosas inclusive afirmam gostar de fazer geléias, que elas chamam de marmelada, com os frutos que plantam e colhem, para dar aos parentes e amigos. Essas são práticas que identificamos como tradicionais, reproduzindo em boa medida as dos primeiros habitantes de AP, os imigrantes italianos.

Percebe-se a importância da família como referência para práticas do trabalho e, de variadas maneiras, para os momentos de lazer. Todos os informantes, se não afirmam textualmente que gostam do que fazem, dão a entender isso. Até os jovens urbanos, aqueles que têm maior trânsito fora dos limites de AP e relatam não haver na cidade bares e boates para freqüentar, relatam passar momentos agradáveis com amigos e familiares nos finais de semana, com quem praticam esportes e têm contato com a natureza acampando, fazendo rafting ou caminhadas em trilhas nos arredores do município. Muitos afirmam que vão à praia no verão, mesmo os informantes de zona rural e pertencentes a faixas etárias mais avançadas.

Sobre AP, é unânime a afirmação de que gostam da cidade, embora entre os jovens, principalmente urbanos e universitários, alguns digam que deixarão o município no futuro por falta de opções profissionais. A localidade é descrita como calma, tranqüila, nela todos se conhecem. É comum a comparação com Caxias do Sul, tida como uma boa cidade em termos de comércio, oferta de trabalho e saúde, mas freqüentemente descrita como barulhenta, poluída, com trânsito ruim e violenta. AP ao contrário não tem problemas de trânsito, é limpa e segura. Quando dizem algo a respeito de assaltos na cidade, os informantes em geral atribuem-nos aos de fora, isto é, aos trabalhadores sem vínculo empregatício que ajudam nas lides rurais apenas em época de colheita, mas não deixam o município na entressafra. Esses habitam a pequena periferia da cidade e, pela interpretação dos informantes, são culpados dos poucos delitos que eventualmente ocorrem em AP.

AP possui um casario em madeira preservado desde a fundação da cidade e tombado pelo patrimônio histórico. Percebem-se algumas contradições dos informantes em relação a isso, quer sejam eles da zona urbana, quer da rural, e pertencentes a diferentes faixas etárias: ao mesmo tempo em que a maioria reconhece a importância de preservar os prédios, situados no centro da cidade, alguns afirmam que “aquelas casas velhas e podres” (palavras de um idoso) deveriam ser derrubadas e em seu lugar construídos prédios novos e modernos. Nisso se percebe um desconforto com o tradicional, uma abertura a valores e produtos não identificados com o local, um desejo de mudança em relação à materialidade física da cidade. Mesmo assim, por conta do casario, a prefeitura da cidade e outros órgãos como a associação comercial local promovem o município, tentam atrair turistas. Há dois grandes eventos municipais que têm esse papel, a Noite Italiana, que ocorre anualmente no inverno, e a Mostra Del Paese, evento bianual. No primeiro, oferece-se um jantar com comida, música e dança italianas em quatro finais de semana. O segundo é uma feira em que comerciantes, produtores agrícolas e industriais de AP e municípios vizinhos expõem sua produção e fazem negócios. Há uma considerável afluência de visitantes de outras cidades a esses

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dois eventos de AP, e a comunidade dela participa, em todas as suas faixas etárias, o que é freqüentemente referido nas entrevistas. Nelas não se percebe um desconforto em relação às festas, nem mesmo entre os jovens, que poderiam negar as práticas tradicionais associadas aos eventos.

Os informantes são católicos em sua grande maioria. Entre os grupos mais jovens (15 a 29 anos, 30 a 49 anos), é comum a afirmação de que não são praticantes, isto é, não vão à missa. Os informantes dos grupos etários mais velhos afirmam com mais freqüência irem à missa, cantarem, participarem de festas religiosas como organizadores, como coletores de doações. Mas todos sabem da ocorrência das festas de santos e santas padroeiras em que há os almoços precedidos de missa, de que a maioria participa. Não se percebe na fala dos entrevistados um desencanto com a religião católica ou qualquer resistência às práticas religiosas, apenas um certo desinteresse motivado pelo mais forte apelo de outras atribuições ou opções de convívio. Identificadas com o tradicional, as práticas religiosas são o exemplo claro de elemento local que faz parte da representação da relação imaginária que os indivíduos mantêm com suas condições de existência, que é assim componente da identidade que constroem na comunidade, mas que tem sua força minimizada por outros elementos, talvez não-locais. É em cenários como esse que o novo, o não-tradicional entra, embora não com muita liberdade ou intensidade.

Nos relatos dos entrevistados sobre família, trabalho, lazer, religião e AP, então, há registro de práticas tradicionais associadas à cultura local (Noite Italiana, por exemplo) e, ao mesmo tempo, à modernidade do acesso aos meios de comunicação de massa, do acesso à Universidade, dentre outras. Não há, todavia, uma discrepância absoluta nas práticas das diferentes faixas etárias, são distintas apenas as intensidades com que são praticadas as ações sociais. Se a fala faz parte do quadro maior das práticas sociais e segue as tendências desse quadro, é de se esperar o hibridismo no exercício da linguagem, mas um hibridismo moderado que tende a se estabilizar porque os inovadores–jovens de zona urbana–não realizam na vida em comunidade práticas completamente distintas das demais faixas etárias. Os introdutores da palatalização o fazem pela naturalidade com que o processo a eles se espraia nos contatos sociais que estabelecem fora de AP, mas na localidade a inovação que a fala carrega, variável no próprio indivíduo, é equilibrada pelas práticas lingüísticas locais, sem palatalização. Nesse sentido, como a fala das pessoas indica, a comunidade local integra-se à globalização, mas mantém traços culturais tradicionais.

3 Conclusão

A análise de regra variável da palatalização em AP revelou que, além da vogal alta subjacente, condicionam favoravelmente o processo os indivíduos jovens de zona urbana. Esperar-se-ia, então, que, controlada a variável Idade, fosse possível afirmar que se estivesse frente a uma mudança em progresso. No entanto, dada a estabilização do índice de freqüência de palatalização na fala dos mais jovens em comparação com a faixa etária seguinte (30 a 49 anos de idade), pôde-se afirmar apenas que o processo dá sinais de estabilizar-se na fala da comunidade.

A análise crítica da ideologia foi empreendida com o intuito de, na dimensão subjetiva da fala, isto é, nas representações identificadas a partir do conteúdo das entrevistas sociolingüísticas, buscar elementos que permitissem compreender a estabilização. Partiu-se de uma hipótese que foi confirmada: considerando-se as práticas sociais afirmadas pelos informantes, verificou-se que, apesar de se manterem em AP

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padrões tradicionais que não servem diretamente à globalização, esses são cooptados pela globalização, isto é, há inovação sem destruição. Isso auxilia a explicar a produção modesta da variante palatalizada (forma inovadora) na fala de AP, e a tendência de esse padrão estabilizar-se na comunidade. A tensão entre local e global em Antônio Prado não se resolve pela uniformização: práticas sociais tradicionais ainda são mantidas, entre elas a fala com suas características locais.

Os resultados da análise feita a partir das entrevistas sociolingüísticas permitiram atingir a dimensão subjetiva da palatalização variável em AP por um de seus ângulos. Deverão ser integrados a outros que estão sendo obtidos mediante realização de etnografia na comunidade. É o que se divulgará futuramente.

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