Bastardos Reais - Os Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal - Isabel Lencastre.pdf

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Ao longo de quase oitocentos anos, duas mulheres e 32 homens sentaram-se no trono de Portugal. Destes soberanos, apenas seis não tiveram filhos. E dos 26 restantes, só dois não terão tido filhos ilegítimos. Segundo os testemunhos que a História nos deixou, todos os outros foram pais de bastardos. Estes filhos ilegítimos dos reis de Portugal assumiram papéis de relevo e cargos influentes, tanto na corte como no estrangeiro. Desempenharam ofícios importantes e diversos - um foi mordomo mor, outro capitão na conquista de Ceuta, outro ainda foi arcebispo de Braga. Dom João I, sendo bastardo, foi um dos reis mais proeminentes de Portugal. E outros houve, por seu lado, que foram líderes da oposição, criando instabilidade e promovendo a rebeldia do povo contra os seus pais e irmãos no poder. Reconstituindo a vida de todos estes homens e mulheres, Bastardos Reais revela-nos uma parte escondida e apaixonante da História de Portugal.

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INTRODUÇÃO

NotronodePortugalsentaram-se,aolongodequaseoitoséculos,duasmulheres e trinta edoishomens.Destes, seis, solteirosou casados,nãotiveram filhos: D. Sancho II, D. Sebastião, D. Henrique, D. Afonso VI, D.PedroVeD.ManuelII.Dosvinteeseisrestantes,apenasdois–D.ManuelI eD. José–não terão tido filhos ilegítimos.Todososoutros foram(oudiz-se que foram) pais de bastardos, «nome porque são entendidos jádesdeaIdadeMédianãosóosfilhosespecificamentechamadosnaturaismastambémosespúrioseemgeraltodosaquelesquenãosãogeradosdeverdadeiroelegítimomatrimónio»–comoescreveuodoutoPascoalJosédeMeloFreirenassuasInstituiçõesdeDireitoCivilPortuguês.Oroldestesbastardos,havidosforadocasamentodosseuspais,nunca

estarácompleto,tantomaisquemuitosdelesnuncaforamreconhecidos,oquetornadifícilestabelecercomprecisãoonúmerodosfilhosdamãoesquerdaqueosreisdePortugaltiveram.Emtodoocaso,podeafirmar-secomsegurançaqueosbastardosreais,desdeafundaçãodaMonarquiaatéàimplantaçãodaRepública,secontamporváriasdezenas.Namaiorbase de dados genealógicos portuguesa, aGeneall1, estão referenciados77 filhos ilegítimos de 19 príncipes que reinaram em Portugal. Estenúmeropode,noentanto,pecarpordefeito:sóaD.PedrodeAlcântara,imperadordoBrasilereidePortugal,houvequematribuísse,em1826,apaternidadede43bastardos!2OsbastardosreaisatravessamahistóriadaMonarquiaLusitanadesde

a sua fundação até quase ao seu termo. O primeiro rei nasceu de umabastarda, afirmando alguns que não era filho de seu pai, o condeHenriquedeBorgonha;bastardoeratambémoreideBoaMemóriaquedeuorigemàsegundadinastia;eumbastardoestánaorigemdaCasadeBragança, que, a partir de 1640, foi a Casa Real portuguesa. O mesmosucede,aliás, coma terceiradinastia, adosFilipesdeEspanha,directosdescendentes deHenrique deTrastâmara, que reinou emCastela comoHenriqueIIeerafilhoilegítimodoreiAfonsoXI.

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Muitosdessesbastardosreaisocuparamposiçõesderelevonacorteenopaís,sobretudonaprimeiradinastia,quandoforammaisnumerosos.Como se compreende: na Idade Média, a bastardia inscrevia-se nas«estruturas da boa sociedade»3. Os filhos ilegítimos de D. AfonsoHenriques,talcomoosdeD.Dinis,porexemplo,desempenharamfunçõesde tanta importânciaeconsequênciacomoeram,poresse tempo,asdemordomo-moroudealferes-mor.ObastardodeD.JoãoIfoi,emsuavida,oprincipalsenhordoreino–posiçãoqueD.Jorge,filhoadulterinodeD.João II, sónãoalcançouporqueD.Manuelnãocumpriu inteiramenteasúltimas vontades do seu antecessor. Outros bastardos régios foramfigurasderelevonaIgrejaportuguesa,eumdeles,filhodeD.JoãoV,deuorigemàilustreCasadeLafões.Os filhos ilegítimos dos reis concorreram, além disso, com os seus

casamentosparareforçaropoderdosreisseuspaisouirmãos,aliando-seem Portugal às famíliasmais poderosas – e, regra geral, renitentes emacatarospodereseasprerrogativasreais.Comonotou JoséAugustodeSotto Mayor Pizarro, os bastardos reais constituíram «um patamarintermédio por onde passavam alguns dos contactosmais importantesentre a realeza e as linhagensdaaltanobreza».Enão forampoucososmonarcas que, casando os seus bastardos em grandes casas senhoriais,alimentaram«comoseusangueaprosápiadasfamíliasmaispoderosas,ganharamo seu apoio, declaradoou silencioso, e nele escudarama suapolíticacentralizadora»4.A esse propósito obedeceram, entre outros, os casamentos dos

bastardos deD. Afonso III ou deD.Dinis,mas tambémo deD. Afonso,bastardodeD.JoãoI,comafilhadeNunoÁlvaresPereira(emboraoutrasrazõespossamexplicarmelhorestematrimónio)e,ainda,séculosdepois,odeD.Luísa,filhailegítimadeD.PedroII,comoduquedeCadaval.Omesmo objectivo de afirmação do poder real, aquémmas também

além-fronteiras, foiprosseguidocomoscasamentosdebastardosrégiosemreinosvizinhosouamigos,paracujarealização,aliás,concorreramaslegítimas esposas dosmonarcas reinantes (e pais dos bastardos). Foi oquesucedeu,porexemplo,comocasamentodeD.PedroAfonso,condede Barcelos, filho ilegítimo de D. Dinis, realizado em Aragão com aempenhada ajuda da Rainha Santa Isabel, sua madrasta, ou com ocasamentoemInglaterradeD.Beatriz,filhailegítimadeD.JoãoI,paraoqualfoidecisivooconcursodeD.FilipadeLencastre.Masolugareopapeldosbastardosreaisforambastasvezesfontede

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problemas e conflitos, que chegaram a provocar verdadeiras guerrascivis, como sucedeu no reinado de D. Dinis. E, mesmo quando não sechegou a tais extremos, os filhos ilegítimos dos reis de Portugalprejudicarammuitasvezesoprestígioeaautoridadedamonarquia.Osbastardosreaiseram,comoAntónioCaetanodeSousasublinhana

sua História Genealógica da Casa Real Portuguesa, «escândalo domatrimónio»; representavam uma afronta à rainha consorte; econstituíamumaameaçaaosfilhosdelanascidos.Emsuma:punhamemcausaaordemconstitucionalvigente.É verdadeque essesbastardos «deviamao seu sanguedeterminadas

prerrogativas», como notou Georges Duby5. Por serem ilegítimos, nãodeixavam de ter sido gerados por reis, tendo por isso de ser honradosadequadamente, como o autor da História Genealógica tambémsublinhou. E Pascoal deMelo Freire chegoumesmo a escrever que, emPortugal, era «pequena a diferença entre os filhos legítimos e os filhosbastardosdosReis;comefeito,todossechamampordireitofilhosdoReivisto que de Reis foram procriados». Por isso, aliás, «desde o início doreino[osbastardos]sempreforamtidosemgrandehonra»,precedendo«emdignidadeosGrandeseMagnatesdoReino»6.Mas,comoPascoaldeMelotambémsublinhou,aosfilhoslegítimosdos

reispertenciam«algunsdireitosprincipais,quetodasasleis,incluindoasnossas,denegamaosbastardos».Estes,situando-senumplano«inferior»,naquele«patamar intermédio»emque JoséAugustoPizarrooscolocou,nãomereciam,porexemplo,otítulodeInfantenempordireitosucediama seu pai no trono – mesmo quando tinham o tratamento de Altezas,comosucedeu,porexemplo,comosbastardosdeD.JoãoV.Aesterespeito,AntónioCaetanodeSousafoiclaroeperemptório:

«OsfilhosqueosReistêmforadomatrimónionãologramocarácterdeInfantes,nãosónonossoReinonemnosoutrosdeEspanhanememtempoalgumtiveramessa prerrogativa, como se vê das Escrituras, Doações e Privilégios rodados queassinavam junto com os Reis e Infantes, para o que não é necessário produzirexemplos, por ser matéria sem controvérsia para os que são professores deHistória;eparaosquesãocuriosossomentefaçoestaadvertênciaparaquesenão

embaracemquandolerememalgunsAutorestrataremdeInfantesaosilegítimos»7.

Não parece verdade que, nesta matéria, a situação portuguesa fosseexactamenteigualàdosoutrosreinosdeEspanha.Salvomelhoropiniãoe

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investigaçãomaisaprofundada,osbastardosreaisdeCastelanãosofriamasmesmas limitações que os portugueses. Pode ser que não tivessem,como os nossos não tinham, o carácter de infantes. Mas gozavam dedireitos sucessórios bem mais amplos do que os nossos. Podiamnomeadamente herdar a coroa e suceder no trono – o que entre nós,comojásedisse,estavavedadoaosfilhosilegítimosdosreis.Comefeito,seHenriquedeTrastâmara,bastardodeAfonsoXI,acedeu

aotronocastelhanoporsucessão,D.João,MestredeAvis,bastardodoreiD. Pedro I, só chegou ao trono português por eleição. É toda umadiferença. Cumpre aliás notar que, para ganhar essa eleição, o DoutorJoãodasRegrasassentouasuadefesadeD. João Inaafirmaçãodequetodos os candidatos ao trono vagante pormorte de D. Fernando erambastardos – e que, por isso, nenhum tinha direito a suceder ao reiFormoso.EmFrança,asucessãodacoroatambémestavavedadaaosbastardos

reais. Mas Luís XIV resolveu, a certa altura, mudar as regras do jogo,concedendo aos filhos havidos fora do seu casamento o tratamento deAltezas Sereníssimas e, depois, o direito de sucessão ao trono porextinçãodadescendêncialegítima.CaíramoCarmoeaTrindade.ESaint-Simon, recordando o escândalo, escreveu nas suas Memórias páginascarregadas de indignação. Omais poderosomonarca do seu tempo foiforçadoadaroditopornãodito.EosbastardosdoRei-Solperderamodireitodesucederaotronodeseupai.É de notar que o exemplo francês teve algumas repercussões em

Portugal, ondeos filhos ilegítimosdeD. JoãoV, os famososMeninosdePalhavã, tiveramtratamentodeAltezas,queosbastardosdeD.PedroIItambém receberam. Mas o Corpo Diplomático então acreditado emLisboa nunca assim os tratou, invocando justamente uma lei do reiMagnânimo,datadade1720,quereservavaessetratamentoaosinfantes.MasinfanteséqueosMeninosnãoeram.Aindaassim,nuncaocorreuaninguémreconheceraosfilhosilegítimos

dosreisdePortugalodireitodesucederaotronodosseuspais.EaCartaConstitucional,outorgadaem1826pelomaiorcriadordebastardosreais(eimperiais)dahistóriapátria,excluía-osexpressamentedasucessão.

***

Naslinhasqueseseguem,publicam-seosnomeseabrevehistóriados

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bastardos reais portugueses – ou seja, dos filhos ilegítimos dos reis dePortugal. Mas entendeu-se que se justificava abrir uma excepção: a doPriordoCrato,filhoilegítimodoinfanteD.LuísenetodoreiD.ManuelI,porforçadopapelquedesempenhounaépocaemqueviveue,sobretudo,na sucessãodo cardeal-rei, seu tio. Paramuitoshistoriadores, ele deve,aliás,serconsideradoreidePortugal.Éaprimeiravezqueosbastardosrégiosaparecemreunidosnumlivro.

Este não ambiciona esgotar o tema, que poderá evidentemente serdesenvolvido se novos dados forem recolhidos e publicados. Mas, noestado actual da crítica histórica, não parece que fosse possível fazermais.Opúblicoeacríticadirãoseerapossívelfazermelhor.

I.L.

1www.geneall.net

2Cf.CarlSchlichthorst,ORiodeJaneirocomoé,1824-1826(RiodeJaneiro:Kosmos,1943).

3GeorgesDuby,OCavaleiro,aMulhereoPadre(Lisboa:PublicaçõesDomQuixote,1988),p.185.

4JoséAugustodeSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.238.

5GeorgesDuby,OCavaleiro,aMulhereoPadre(Lisboa:PublicaçõesDomQuixote,1988),p.185.

6PascoalJosédeMeloFreire,InstituiçõesdeDireitoCivilPortuguês(Lisboa:BoletimdoMinistériodaJustiça,1967).Cf.http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=120&id_obra=76&pagina=268

7AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.114.

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I

OsbastardosdeBorgonha

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F

OSPRIMEIROSBASTARDOSREAIS

ilhodeumabastardareal–D.Teresa,queoreiAfonsoVIdeCastelaeLeão houve de Ximena Nuñez de Guzmán, sua amante –, D. AfonsoHenriques,oprimeiroreidePortugal,poderiatersido, tambémele,umbastardo.Ou,pelomenos,nãoseriafilhodeseupai,ocondeD.Henriquede Borgonha. Agustina Bessa-Luís assevera que «as deduções em voltadesteboatosãobastantesignificativas,pondodepartefavoresdossantosedoscronistas»8.Masoboatosobreamaisqueimprovável«bastardia»doprimeirorei

de Portugal surgiu exactamente para rebater os favores que o céu teráderramado sobre ele e que fazem parte de uma lenda antiquíssima,publicadacomoverdadeirahistóriaporDuarteGalvãonasuaCrónicadoMuitoAltoeMuitoEsclarecidoPríncipeD.AfonsoHenriques9.Dizocronistaqueoprimeiro reinasceu«grandee formoso,quenão

podiamaisser»,padecendo,porém,degravedefeito:umas«pernas tãoencolheitasque, aoparecerdemestres e de todos, julgaromquenuncapoderia ser são delas». Não era essa, no entanto, a convicção de EgasMoniz, «mui esforçado e nobre fidalgo», a quemomenino foi entregueparaeleocriar.OaiodeD.AfonsoHenriquesconfiava«emDeusquelhepodiadarsaúde».Ora, uma noite em que Egas Moniz dormia, apareceu-lhe a Virgem

Mariaedisse-lheparairadeterminadolocalescavaratéencontrarumaigreja que, noutro tempo, tinha sido começada em seu nome. Devia«correger» o templo, recuperando também uma imagem de NossaSenhora que lá existia. Cumpridas essas tarefas, Egas Moniz havia defazerumavigília, «poendoomeninoque [criava] sobreo altar». Cristo,explicou Sua mãe, queria por D. Afonso Henriques «destruir muitosimigos da fé». O aio, «muito consolado e alegre», correu a cumprir osditames da Mãe do Céu. E quando, finalmente, pôde colocar D. AfonsoHenriquessobreoaltar,omeninoficoucomose«nadativera».EstefoiomilagredeSantaMariadeCárquere–quelevantoususpeitasamuitoboa

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gente.Porumlado,nãofaltaquemduvidedamalformaçãocongénitadorei

Fundador, «descoberta» por Duarte Galvão no ano de 1505, quasequatrocentosanosdepoisdonascimentodopríncipe.Poroutrolado,háquemtorçaonarizaomilagre.AgustinaBessa-Luís,porexemplo,escreve:«Dá para pensar que Egas Moniz o fez substituir por um dos seuspróprios filhosou filhodalgumrico-homemdependãoecaldeira,comosedizia[…]»10EstatrocadoverdadeirofilhodocondeD.Henriqueporoutracriança

qualquer, filha ou não de Egas Moniz, parece ter sido inventada porSantanaDionísio,umprofessordefilosofia,queapublicounumartigodejornal, em 1969. Segundo ele, o príncipe aleijado teria sido substituídopor uma criança robusta, ficando Egas Moniz a cuidar do enfermoenquantoD.HenriqueeD.Teresapassavama terumfilhoemperfeitascondiçõesdelhessucedernagovernançadoCondadoPortucalense.Ahistória,àsemelhançadoenfermiçoinfantedalenda,nãotempernas

paraandar.Pormaishábilesecretaquetivessesidoatrocadascrianças,D.Henriquetinhaoutrosfilhos,legítimosebastardos,paraalémdeumamão-cheia de netos – e não é de crer que estes seus descendentesaceitassem sem protesto e sem luta que a sucessão do CondadoPortucalense fosse deferida a quem não fizesse seguramente parte dafamília de seu pai. Ora, se é sabido que D. Afonso Henriques teve decombateramãeparaficarcomaherançadopai,nãohánenhumanotíciade que tivesse de enfrentar outro qualquer membro da sua numerosafamília,oqueporforçateriadesucedersehouvesseoutrosdescendentesdeD.HenriquecommelhorestítulosdoqueeleparareivindicarapossedoCondadodePortucale.Resta,por isso, ahipótesedacuramilagrosa–quesó faz sentido,no

entanto,desdequeseaceiteteroprimeiroreidePortugalnascidocomaspernas encolhidas. Ora, essa hipótese, nunca provada, suscita entre osmelhoreshistoriadoresmuitasdúvidas e reservas.Algunshá, aliás, quenãoperdemumminutoaexaminá-la.Nãoparecepor issoprudente–e,mais do que prudente, sensato – falar de um D. Afonso Henriques«bastardo»oumiraculado.Também não vale a pena dizer que ele foi um santo (embora tenha

havido quem o quisesse canonizar) porque, antes e depois do seucasamento com D. Mafalda, filha de Amadeu III, conde de Sabóia eMoriana,«aqueosestrangeiroschamamMatilde»,D.AfonsoHenriques

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foipaideváriosbastardos.Maisexactamente:quatro,segundoasseveraaHistória Genealógica da Casa Real Portuguesa, dois rapazes e duasraparigas.As bastardas do primeiro rei seriam ambas filhas de Elvira Gualter,

chamando-seTeresaAfonso,uma,eUrracaAfonso,aoutra.Terãonascidoquandoomonarcajáestavacasado,sendoporissofilhasadulterinas.Há,porém, quem sustente que só vieram ao mundo depois de D. AfonsoHenriquesenviuvar,a4deNovembrode115711.D.TeresaAfonsocasouduasvezes–comD.SanchoNunesdeBarbosa

e, depois, com D. FernandoMartins Bravo –masmorreu sem geração,emboraAntónioCaetanodeSousaafirmequedoseuprimeirocasamentonasceuumaD.UrracaSanches12.Masesta,mulherdeD.GonçalodeSousaemãedeD.MendodeSousa,oSousão,erafilhadeD.SanchaHenriques,irmãdeD.AfonsoI,e,portanto,sobrinhadoprimeiroreidePortugal.QuantoaD.UrracaAfonso,foisenhoradeAvô,querecebeuem1185e

trocouposteriormentepelaviladeAveiro13, tendocasadocomD.PedroAfonsoViegas,netodeEgasMoniz.FoimãedeAbrilPiresdeLumiares,AldaraPireseSanchaPires.Destaúltimaprocedem«muyilustresCasasdonossoReyno,eodeCastella»14.QuantoaosdoisfilhosilegítimosdeD.AfonsoHenriques,referidospela

HistóriaGenealógica,umchamava-seAfonsoeooutroFernandoAfonso.Este,dizAntónioCaetanodeSousa, foialferes-mordoreinoedele«nãosabemos outra notícia». D. Afonso, por seu turno, foi «11.º mestre dainsigneOrdemMilitardeSãoJoãodeRhodes,eleitonoano1194»15.A verdade, porém, é que estes dois bastardos podem ser uma e a

mesma pessoa – segundo afirma José Mattoso, na peugada de ArielCastro,umprofessorbrasileiroque«identificouoalferes-régioFernandoAfonsocomaquelequeatéentãoseconsideravaoutrobastardo,Afonso,equesetornariagrão-mestredaOrdemdoHospital»16.Fernando Afonso é «o filho que os livros de linhagem atribuem ao

concubinato de Afonso Henriques com Chamôa Gomes, filha de GomesNunesdePombeiro,oantigocondedeToroño»17,esobrinhadeFernãoPeresdeTrava,oamantedeD.Teresa,mãedorei.EstaChamôaGomes,aquemDiogoFreitasdoAmaral,nasuabiografia

do monarca, prefere chamar Flâmula, terá sido, segundo o professorapurou, não se sabe como, o grande amordeD.AfonsoHenriques, quecom ela terá vivido em «união de facto» entre 1138 e 114518. Só nãocasoucomela–sustentaaindaFreitasdoAmaral,comfundamentosque

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tambémnãodesvenda–porqueaIgrejaseopôsaessecasamento.A «barregã» régia, antes de o ser, casara com Paio Soares da Maia,

havendotrêsfilhosdessecasamento,umdosquaisfoialferes-mordoreiFundador. Após enviuvar, afirma o Livro Velho de Linhagens, Chamôa«meteu-semonjaemVairão»efez«emdrudaria»,querdizer,semestarcasada, um filho com D. Mem Rodrigues de Togues, chamado SoeiroMendesFacha.Depois,tambémem«drudaria»,fezumfilhocomoreiD.AfonsodePortugal,quehouveonomedeFernandoAfonso.Este Fernando Afonso terá nascido por 1140, o ano em que seu pai

concedeuforalaBarcelosesetravouotorneiodeArcosdeValdevez.Por1159 apareceu pela primeira vez na corte e, em1169, foi feito alferes-mor,depoisdaderrotasofridaemBadajozporD.AfonsoHenriques,quelevou,aliás,àsuaprisãopeloreideLeão,seugenro.Com o pai fisicamente muito debilitado e irremediavelmente

inabilitado para combater, Fernando Afonso poderá então ter surgido,aosolhosdemuitos,comoodefensordoreino–eonaturalsucessordeD.AfonsoHenriques,dequemeraofilhoprimogénito.Talseriaaposiçãodoscavaleirostempláriosedosfidalgosminhotos.MasprevaleceramosdireitosdeD. Sancho, o filho lídimo (ou legítimo)do rei Fundador, quecontava como apoiodos freiresdeÉvora, dos cavaleirosde Santiago edos magnatas do sul de Portugal. O pai armou-o cavaleiro em 1170 epartilhoucomeleopoderem1173,umanodepoisdeFernandoAfonsoter sido desautorizado e despromovido, passando de alferes-mor asimplesalferesdoherdeirodotrono.Após a morte de D. Afonso Henriques, em 1198, Fernando Afonso

abandonouo reinode seumeio-irmãopara se tornar vassalo do rei deLeão,seucunhado–oque,segundoalgunshistoriadores,provariaqueobastardonãoacatavaopodereaautoridadedeD.Sancho.Mastudoistoé,segundoMattoso,«confusoeincerto».Certoéque,tendosaídodePortugal,D.FernandoAfonsofoimestreda

OrdemdoHospital«naHispânia,pelomenosapartirde1198,edepoiseleitogrão-mestreem1202,eventualmenteemvirtudedainfluênciaquesua meia-irmã, a condessa Matilde da Flandres, exercia junto do papaInocêncio III. Tomou parte na 4.ª Cruzada (1202-1204), que, como sesabe,desviouoseuobjectivoparaconquistarConstantinopla,emvezdesedirigiràTerraSanta»19.Em1204estavaemAcree, noano seguinte, recebeuumadoaçãode

Balduíno,imperadordeConstantinopla.Em1206renunciouaoseucargo

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eregressouaPortugal–onde,dizaChronicamagistrorumdefunctorum,foi «envenenado pela sua gente». O Livro Velho de Linhagens, esse,asseguraqueFernandoAfonso,ousóAfonso, foimortoemÉvorapeloscavaleiros de Santiago, «num contexto que parece quase de guerracivil»20. Sepultado na Igreja de S. João de Alporão, em Santarém, o seuepitáfio diz quemorreu emMarço de 1207, o que «concorda comumainformaçãodoChroniconconimbricensecompoucosdiasdediferença»21.MascomamorteesepulturadeFernandoAfonsonãoficaencerradaa

história dos primeiros bastardos reais de Portugal. Ainda queAfonso eFernando Afonso, os dois bastardos referidos por António Caetano deSousanasuaHistóriaGenealógica, tenhamsidoumae amesmapessoa,vários são os historiadores, genealogistas e biógrafos do rei Fundadorque sustentam ter ele tido, de facto, fora do seu casamento, dois filhosvarões.Pelomenos.Frei António Brandão assegura na Monarquia Lusitana que este

segundo bastardo de D. Afonso Henriques ter-se-á chamado PedroAfonso, estando a sua existência comprovadapor uma «doação que eleprópriofezaD.Fernando,abadedeAlcobaça,eaoseuconventodecertaquintanotermodaviladeTomar»22.JoséMattosoconcordacomoautorda Monarquia Lusitana em que se chamou Pedro Afonso o «outrobastardo»doprimeirorei.MasafirmatambémquefoisenhordeAregaePedrógão,lugaresaquedeuforalem1201e1206.«Trata-sedecertodomesmoPedroAfonsoquefoialcaidedeAbrantesem1179ealferesdoreientre1181e1183»23.Esteúltimocargocontinuouaexercernoreinadodeseuirmão,oreiD.SanchoI,dequemfoiumfielededicadoservidor.TeráparticipadonaconquistadeSilves.ED.Sanchodesignou-oporseutestamenteiro.DosegundobastardodeD.AfonsoHenriquesnãohámuitomaisquese

possadizer.

DosbastardosdeD.AfonsoHenriques, sóD.UrracaAfonso terácasado–comPedroAfonsoViegas,umnetodeEgasMonizquefoitenentedeTrancosoeNeiva.Desse casamento nasceram três filhos, um rapaz e duas raparigas. Uma delas, D.SanchaPeresdeLumiares,tevecopiosaemuitoilustredescendênciaemEspanha.ÉporelaquedescendemdoprimeiroreidePortugaladuquesadeAlba,oduquedeFeria,RafaelMedina(filhodeNatiAbascal),omarquêsdeGriñoneomarquêsdeCubas,entremuitosoutros.

8AgustinaBessa-Luís,FamaeSegredonaHistóriadePortugal(Lisboa:GuerraePaz,2010),p.27

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9DuarteGalvão,ChronicadoMuitoAlto,EMuitoEsclarecidoPrincipeD.AffonsoHenriques(Lisboa:OficinaFerreyriana,1726),pp.4ss

10AgustinaBessa-Luís,FamaeSegredonaHistóriadePortugal(Lisboa:GuerraePaz,2010),p.27.

11Cf.DiogoFreitasdoAmaral,D.AfonsoHenriques(Lisboa:Bertrand,2000),p.122

12AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.38.

13AnaCristinaTavaresdaFonseca,BarregãseBastardasRégiasnaIDinastiaPortuguesa(Textopolicopiado:Lisboa,2005),p.82.

14AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.39.

15Idem,ibidem,p.37.

16JoséMattoso,D.AfonsoHenriques(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.164.

17Idem,ibidem.

18Cf.DiogoFreitasdoAmaral,D.AfonsoHenriques(Lisboa:Bertrand,2000),p.122.

19JoséMattoso,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.89.

20Idem,D.AfonsoHenriques(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.232.

21Idem,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.89.

22FreiAntónioBrandão,TerceirapartedaMonarchialusitana:quecontémahistoriadePortugaldesdoCondeDomHenrique,atétodooreinadodelReyD.AfonsoHenriques(Lisboa:PedroCraesbeeck,1632),p.157v.

23JoséMattoso,D.AfonsoHenriques(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.165.

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D

OSOITOENTEADOSDARAINHADOCE

omSanchoI,oPovoador, nascidoem1154, casouem1175 comD.Dulce (ou Aldonça ou, simplesmente, Doce), que era filha do conde deBarcelonaedarainhadeAragãoepodiaser,masnãoháacertezadequefosse,viúvadeArmengal,condedeUrgel24.Dessecasamentonasceramnadamenosdoque11filhos:(1)D.Afonso,

que sucedeua seupai; (2)D.Pedro,que foi condedeUrgel e tevedoisbastardos,D. Rodrigo, «eminente em letras»25, e D. Fernando Pedro dePortugal,dequemnãohámaisnotícias;(3)D.Fernando,quefoicondedaFlandres;(4)D.Henriquee(5)D.Raimundo,quemorrerammeninos;(6)D.Teresa,beatificadapelaIgreja,quefoirainhadeLeão;(7)D.Mafalda,também beata, que foi rainha de Castela; (8) D. Sancha, senhora deAlenquer, que foi freira no Mosteiro de Celas e a Igreja igualmentebeatificou; (9) D. Branca, senhora de Guadalajara, em Espanha; (10) D.Berenguela,ouBerengária,quefoirainhadaDinamarca,ondenãodeixousaudades mas deixou uma descendência que expandiu o sangue dePortugalporessaEuropafora;e(11)D.Constança,quemorreusolteira,aos20anosdeidade.EstanumerosaproledefilhoslegítimosnãoimpediuoPovoadordeter

vários bastardos – mais exactamente: oito – que D. Sancho há-de terestimadomasnuncaconfundiucomosfilhosnascidosdoseucasamento,como se prova pelo seu testamento. Com efeito, «enquanto aos filhoslegítimosdeixa,atodosigualmente,aquantiade40.000morabitinos,talcomofazàsfilhas,acrescentandoaindapropriedadesemais200marcosde prata, aos ilegítimos destina apenas 8.000 aos varões e 6.000 àsmulheres»26.Doisdeles,MartimSancheseD.UrracaSanches,nasceramdarelação

domonarca comMariaAiresdeFornelos, «nobili pulchra concubina»27quefoi«filhada»porD.SanchoaindaemvidadadoceediscretaD.Dulce.Talvez por isso o autor da Crónica Breve do Arquivo Nacional tivesse

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escritoqueamãedestesbastardosera«umadonadequesenompodesaber o nome». Terminada a relação, o rei tratou de casá-la comD. GilVasquesdeSoverosa,umdosfidalgosmaispoderososdeAlém-Douro.D.Urraca Sanches foi criada como irmão emPonte de Lima e casou

comLourençoSoares,«tenente»deLamegoeViseu.EsteeranetodeEgasMoniz mas também de D. Urraca Henriques, irmã do primeiro rei dePortugale,portanto,tia-avódeD.UrracaSanches.Estavaviúvaem1220eaindaviviaem1256.Masnãodeixoudescendência.MartimSanches,esse,éconsiderado«omaisnotáveldosbastardosde

D.SanchoI»28.Homemde«grandeseelevadosespíritos»29,tevepapeldegrande destaque na guerra que se travou entre o rei D. Afonso II, seuirmão,eopartidosenhorial,queEstêvãoSoaresdaSilva,oarcebispodeBraga,encabeçavaeondeMartimSanchestambémmilitava.ApósamortedeD.SanchoI,dequemtinharecebidodinheiroebens

na região de Guimarães,Martim sentiu-se agravado por D. Afonso II e,saindodePortugal,tornou-sevassalodoreideLeão,AfonsoIX,queera,aliás, seuprimoco-irmão,por ser filhoda infantaD.Urraca, irmãdeD.Sancho.Foi nomeado adiantado-régio nos reinos de Leão e Castela. E nessa

qualidadeinterveioemPortugalnosconflitosqueopuseramD.AfonsoIIàsinfantassuasirmãs–queirmãstambémeramdeMartimSanches–e,depois,aoarcebispodeBraga.D.EstêvãoSoaresdaSilvasofreuas represáliasdoreipelasposições

que contra ele tinha tomado, incluindo a sua excomunhão, que o papaHonório III confirmou. Essas represálias foramexercidas sobreos bensqueoarcebispopossuíaemBragaeCoimbra,mastambémnoterritóriogalego de Límia. Ora, deste território era governador Martim Sanches,quepegouemarmasedirigiu-separaPontedeLima,ondeD.Afonso IIentãoseencontrava.«Esteretirou-separaoCastelodeGaia,confiandoadefesadoterritório

a Mendo Gonçalves de Sousa, João Pires da Maia e Gil Vasques deSoverosa.OsportuguesesforamderrotadosetiveramdeseretirarparaBragaeGuimarães,enquantoosgalegosdevastavamaregião.»30Depois de humilhar o rei de Portugal, Martim Sanches foi muito

favorecidopeloreideLeão,quelhedeuquatrocondados,incluindoodeTrastâmara. Casado com D. Eulália Perez de Castro, não teve «semel»,querendodizersementeougeração.OsrestantesseisfilhosqueD.SanchoItevedegança(comoentão se

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dizia31) foram fruto dos seus amores com D. Maria Pais Ribeiro, aRibeirinha,queoreiconheceunaGuardaouemCoimbraeerasobrinhadaqueleMartimMonizquedefendeuaportadeLisboa.A Ribeirinha, «mulher fidalga, de grande formosura»32, também foi

amante de D. Sancho quando a rainha suamulher vivia. Mas a ligaçãoprolongou-se após a morte de D. Dulce, em 1198, com suficienteescândalo público para o papa admoestar o rei contra «a feiticeira quetodos os dias consultava» e o bispo de Coimbra lhe solicitar que aexpulsassedopaçoparaqueeleopudessefrequentar…SenhoradeViladoConde,queD.Sancho,homemciumento,lhedeixou

em testamento com a condição de ela não casar, a Ribeirinha deu aoPovoadorváriosfilhos.Oprimeirochamou-seRodrigoSanchesefoiumdoschefesdopartido

senhorial durante o reinado de D. Sancho II. Fez frente à política deafirmação e centralização do poder real intentada por seu sobrinho emorreuacombatê-la,nalidedeGaia,em1245.Há-detersidoummodelodequalidadesevirtudes,aacreditarnuma

inscrição cuja memória aMonarquia Lusitana conservou: «[…] grandecortesão, insigne nas armas, semelhante a Rolando, amável para todos,gracioso e de conversação alegre, folgado de rir e de falar, evitando oincesto(sic),verdadeironaspromessas,severoparacomosinimigosmaspacífico,humilde,derarabondadeesemengano[…]»33Não casou. Mas teve de Constança Afonso de Cambra um filho

bastardo: Afonso Rodrigues, que os livros de linhagens não referem.FradedeSãoFrancisco,«guardiãodoConventodeLisboa»,obastardodeRodrigoSanchesfezpartedodesembargodeD.Dinis34.OsegundofilhodaRibeirinhachamou-seGilSanches,que,dizoconde

de Sabugosa, «foi o clérigo mais honrado de Espanha e viveu embarreganiacomD.MariaGarciadeSousa»,dequemnãoteve filhos.Foitambém trovador. Seu pai deixou-lhe em testamento oito milmorabitinos,«dosqueestãoemBelver»35.Morreua14deSetembrode1236.Seguiram-seNunoSanches,que«morreudetenraidade»,numdia16

deDezembro,eD.MaiorSanches,que,segundooslivrosdelinhagens,erafilha deMariaAires de Fornelos, e que, segundo aMonarquiaLusitana,teriamorrido criança, tal como um seu irmão, Nuno Sanches, de quemnunca mais se ouviu falar36. Finalmente, nasceram D. Constança e D.TeresaSanches.

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D.Teresa foi a segundamulherdeD.AfonsoTelesdeMeneses, rico-homem, senhor de Albuquerque, Medelim, Montalegre, Valhadolid eMadrid,etc.,aquemdeuquatrofilhos:JoãoAfonso,AfonsoTeles,MartimAfonsoeMariaAfonso.FoiavódoprimeirocondedeBarcelose trisavódeD.LeonorTeles,amulherdoreiD.FernandoI.Morreuem123037.QuantoaD.ConstançaSanches,nasceuemCoimbra,cercade1204.Foi

criadaporJustaDiase,quandoperfez20anos,professounoMosteirodasDonasdeSãoJoão,emCoimbra.Contempladacomsetemilmorabitinosnotestamentodeseupai(1210),adquiriumuitosbensemTorresVedrase, sobretudo, na vila e termo de Alenquer. Além disso, herdou de suamãe38.Foi grande benfeitora de várias ordens religiosas, a quem deixou

chorudoslegadosaomorrer.OMosteirodeGrijóganhouparticularmentecom a sua generosidade: num documento datado de Abril de 1263, D.Constança fez-lhe muitas mercês, impondo, no entanto, algumascondições,entreasquaisquealifosserezadaumamissadeaniversário,cada ano, pela sua alma; e que umamissa de aniversário fosse rezadatambémporalmadeseuirmão,D.RodrigoSanches,devendoalémdissomanter-seumalâmpadaacesadiantedoaltardeSantaMaria.D.ConstançaSanches,«donamuitonobreedemuitograndesantidade

e virtudes, e toda perfeita em virgindade e em fazer esmola aospobres»39, faleceu em 1269. E dela se diz (diz pelo menos D. AntónioCaetano de Sousa) que «mereceu aparecer-lhe São Francisco e SantoAntónio,certificando-adasuasalvação».

coroa.jpg

Dos oito bastardos do rei Povoador, só três é sabido que casaram:D.MartimSanches, que não teve filhos; D. Urraca Sanches, com copiosa descendência emEspanha; e D. Teresa Sanches, mulher de Alfonso Tellez, senhor de Menezes eAlbuquerque,cujosdescendentessãomuitonumerosos–eilustres.

ÉocasodeChicoBuarqueoudeMiguelSousaTavares,mastambémdeNicolauBreyner, Margarida Rebelo Pinto, Ricardo Salgado, Isabel Mota, Leonor Beleza,TeresaGouveiaouLuísFilipeMenezes,oactualpresidentedaCâmaraMunicipalde

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Gaia,quetambémdescendedeAfonsoDinis,filhoilegítimodeD.AfonsoIII.Omesmo sucede, aliás, com a actriz Ana Brito e Cunha, o actor e encenador

Diogo Infante, os advogados José Miguel Júdice e José Pedro Aguiar Branco, oempresárioAntónioPiresdeLimaeopoetabrasileiro JoãoCabraldeMeloNeto.TambémAntónioLoboXavierdescende,pormuitas linhas,deD.TeresaSanches.Masconta,entreosseusantepassados,commaistrêsbastardosrégios,pelomenos:D.UrracaAfonso,AfonsoDiniseMartimAfonsoChichorro(filhosdeD.AfonsoIII).

DeD.TeresaSanches(mastambémdeoutrosbastardosreais)descendemaindaaescritoraMariaTeresaHorta,oadvogadoNunoMoraisSarmento,oactorPedroGrangereohistoriadorBernardodeVasconceloseSousa,7.ºmarquêsdeCasteloMelhor.

De D. Teresa Sanches (antepassada também de Manuel d’Arriaga, o primeiropresidente da República portuguesa, ou de Francisco Sá Carneiro, o fundador doPSD) descende igualmente, pelo lado paterno, a actual duquesa de Bragança, D.IsabeldeHerédia,que,entreosseusantepassados,contaigualmentecomD.UrracaAfonso, bastarda de D. Afonso I. O bastardo de que D. Isabel descende pelo ladomaternonãoédesanguereal.

24FredericoFranciscodelaFiganièresustentaqueasenhoracasadacomocondedeUrgelnãoeraamulherdeD.SanchomasafilhadeRogérioII,condedeFoix,quetambémsechamavaDulce.Cf.MemóriasdasRainhasdePortugal(Lisboa:TipografiaUniversal,1859),p.61.

25AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.62.

26MariaJoãoViolanteBranco,D.SanchoI(Lisboa:CírculodeLeitores,2011),p.211.

27AntónioPereiradeFigueiredo,ElogiosdosReisdePortugalemlatim,eemportuguezillustradosdenotashistoricasecríticas(Lisboa:OficinadeSimãoThaddeoFerreira,1785),p.40.

28AfonsoEduardoMartinsZuquete,NobrezadePortugaledoBrasil(Lisboa:EditorialEnciclopédia,1960)p.239.

29AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.55.

30JoséMattoso,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.115.

31Amelhortraduçãodestapalavraparaportuguêsmodernopareceserganhança(lucro,ganho,proveito).Cf.JoséPedroMachado,GrandeDicionáriodaLínguaPortuguesa,(Lisboa:AmigosdoLivroEditores,1981),vol.V.

32AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.55.

33JoséMattoso,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.131.

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34Cf.JoséAugustodeSottoMayorPizarro,LinhagensMedievaisPortuguesas(Porto:1997),vol.I,p.166.

35AfonsoEduardoMartinsZuquete,NobrezadePortugaledoBrasil(Lisboa:EditorialEnciclopédia,1960).

36Cf.AnaCristinaTavaresdaFonseca,BarregãseBastardasRégiasnaIDinastiaPortuguesa(Lisboa:Textopolicopiado,2005),p.91.

37AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.57.

38AnaCristinaTavaresdaFonseca,BarregãseBastardasRégiasnaIDinastiaPortuguesa(Lisboa:textopolicopiado,2005),p.93.

39AlexandreHerculano,ChronicasbrevesememoriasavulsasdeS.CruzdeCoimbra,inPortugaliaeMonumentaHistorica–Scriptores(Lisboa:AcademiaRealdasCiências,1856),p.31[http://purl.pt/12270/2/]

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O

OSBASTARDOSDOBOLONHÊS

rei D. Afonso II (1185-1223) teve dois filhos bastardos, de quempoucoounadasesabe:D.JoãoAfonso,oúnicoqueaHistóriaGenealógicarefere e está enterrado noMosteiro de Alcobaça, tendo falecido a 9 deOutubrode123440;eD.PedroAfonso,queteráparticipadonaconquistade Faro, em 1249, e sido pai de Constança Pires, «uma filha talvezbastarda»41.Masos filhos ilegítimosdo reiGordopodem ter sidomais.Poisnãoéverdadeque,noseutestamento,oprópriomonarcaserefereaos«filhosefilhasquetenhodeoutrasmulheres»?42D. Sancho II, o infeliz rei Capelo que lhe sucedeu no trono, não teve

filhosnemfilhasdoutrasmulheres.Etambémnãoostevedesuaesposa,D.MéciaLopesdeHaro,tendomorridosemdescendência.Pelocontrário,seuirmão,D.AfonsoIII,oBolonhês, foihomemdeváriasmulheresedemuitos filhos, legítimos e ilegítimos. Casou duas vezes. Sua primeiramulherfoiD.Matilde,condessadeBolonha,comquemseuniunoanode1235. Mas, na opinião da maioria dos genealogistas portugueses, acondessa, se lhe deu o cognome, não lhe deu filhos – embora, além-fronteiras,oficiaisdomesmoofíciogarantamqueD.AfonsoIIIhouve,deD. Matilde, dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que morreramcrianças43.Em1246,D.Afonso trocouosdomíniosde suamulherpelo reinode

seu irmão, de que o papa o fizera curador e defensor, depois deexcomungarD.SanchoII.Portugalardiaentãonumaguerracivil,quesóterminarápeladerrotadoreiCapelo,queseexilaemToledo,ondeviráamorrer,emJaneirode1248.Sentadonotrono,D.AfonsoIII,quecontinuavacasadocomacondessa

deBolonha,decidiuem1253contrairmatrimóniocomarainhaD.Brites– ou Beatriz, como hoje preferimos dizer –, também ela uma bastardareal, por ser filhado reiAfonsoXdeCastela edeD.MaiordeGuzmán,senhora de Alcocer, sua amante. Era uma forma de consolidar a suamonarquia.

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«E (diz a Crónica de 1419) forom as gemtes muyto maravilhadasdaquele casamento, porquanto el-rey dom Afonso era casado com acondesadeBolonha[…]emguisaquehumseupaniguadolhedissehumdia que fizera muito mal receber outra molher sabendo bem que eracasadocomacondesadeBolonha.Eel-reylhedeuemrespostadizendoque,seemoutrodiaachaseoutramolherquelhedesemoutratantaterranoregnoperaoacresçentar,queloguocasariacomela[…]»44Averdadeéque,casandocomD.Beatriz–emChaves,a20deMaiode

1253–,D.AfonsoIIIincorreuembigamia(eemadultério,eemincesto),que o papaAlexandre IV se apressou a condenar, excomungando-o – ainstâncias,decerto,deD.Matilde,quereclamouaseparaçãodomaridoerestituiçãododote.Ocastigopontifícioduroudezanos.Mas,em1259,D.Matildemorreue,emboraopapativesseordenadoaD.AfonsoIIIqueseseparassedeD.Beatriz,amortedacondessadeBolonhacontribuiuparaqueRomafosseabrindocaminhoaumasolução,forçadapelosinstantespedidos dos bispos portugueses e pelos esforços diplomáticos do reiBolonhês.A 19 de Junho de 1263, o papa Clemente IV, entretanto eleito,

autorizouomonarcaportuguêsacontinuara«conjugaliscopula»comafilhabastardadeAfonsoX,osábioreideCastela.E,ummêsdepois,pelabula In nostra proposuistis, levantou o interdito que o seu antecessortambémlançarasobreoreinoportucalense45.Por esse tempo, já D. Afonso III tinha três filhos do seu segundo

casamento:D.Branca,senhoradeMontemor-o-VelhoeCampoMaior,queserá abadessa de Lorvão (e terá um filho da relação havida, segundoalguns genealogistas, com Pedro Esteves Carpinteiro); D. Dinis, quesucederáaotrono;eD.Afonso,queserásenhordePortalegre.Umquartofilho, D. Fernando, nascido em 1260, havia entretanto falecido. Depoisdestes, nascerãomais três: D. Sancha (1264 -c. 1302); D.Maria (1264-1304);eD.Vicente(n.1268).Mas, além destes filhos legítimos, D. Afonso III tinha também um

rancho de bastardos, havidos dos seus amores, sucessivos ou mesmosimultâneos, com diversas «barregãs» régias. Foram elas muitonumerosas–enem todasderam filhosaomonarca, comosucedeucomTeresaMendesdeSeabra, freiranoMosteirodeLorvão,oucomSanchaFernandesDelgadilha,queoLivroVelhodesignapor«mulad’elrei»46.Outra das amantes de D. Afonso III que não o presenteou com um

descendente foi Urraca Abril de Lumiares, neta de D. Urraca Afonso,

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bastardadeD.AfonsoHenriquese,portanto,primadoBolonhês.Mas,senãolhedeuumfilho,deu-lheumgenro:PedroAnesGago,comquemD.AfonsoIIIcasouumadassuasfilhasbastardas,tambémchamadaUrracaAfonso.E istoprova, como JoséMattosoescreveu,quea vida sexualdacortesecaracterizavaentãoporuma«efectivapromiscuidade»47…Vale a pena acrescentar que muitas destas «barregãs» foram

regiamente presenteadas pelo monarca, sendo as doações feitas pordocumentos públicos e solenes, «confirmados pelos membros da cúriarégiaepelosbisposdoreino»,numaclarademonstraçãodeque«todaacorteseregozijavacomavirilidadedorei»!48Dessa exuberante virilidade foram fruto nove bastardos. De mães

desconhecidasnasceram,pelomenos:(1)D.FernandoAfonso,cavaleirodaOrdemdoTemplo;(2)D.GilAfonso,cavaleirodamesmaOrdem,quefoibaliodaIgrejadeSãoBrás,emLisboa;(3)D.RodrigoAfonso,priordeSantarém, «nascido antes de 1258» e falecido «antes de 12 deMaio de1272»; e (4) D. Urraca Afonso, primeira do nome, falecida a 4 deNovembro de 1281, no Mosteiro de Lorvão, onde «permaneceu até àmorte no estado de donzela». Ou, como diz o seu epitáfio, no claustrodaquelemosteiro:«Innocenspuella&sinamacula.»49OutravirtuosabastardadeD.AfonsoIIIfoiD.LeonorAfonso,primeira

donome,havidaemElviraEsteves.FreiradaOrdemSeráfica,noMosteirode Santa Clara de Santarém, tomou em religião o nome de Helena deSantoAntónio.Nuncaquisserabadessa,preferindoserenfermeira.E,deacordo com Frei Manuel da Esperança, autor da História Seráfica daOrdemdosFradesMenoresdeS.FrancisconaProvínciadePortugal, terávividoatécercade1302,«emgrandesantidade»50.Uma segunda filha ilegítima do Bolonhês recebeu o mesmo nome

desta. Morreu sem geração, mas casou duas vezes: primeiro com D.EstêvãoAnesdeSousa,senhordePedrógãoetenentedeChaves,edepoiscomo«conde»D.GonçaloGarciadeSousa,senhordeNeivaealferes-mordeD.AfonsoIII,queera tiodoprimeiromaridodeD.LeonorAfonso.Eisto demonstra, como José Mattoso sublinha, que «as regras canónicasdos impedimentos matrimoniais não preocupavam excessivamente osmembrosdacorte»deD.AfonsoIII51.EstaD.LeonorAfonso,quedeixouos seus bens ao Hospital de São João, em Lisboa, terá falecido a 26 deFevereirode129152.O Bolonhês teve também um filho chamado Afonso Dinis, que, em

muitos nobiliários, aparece como filho do primeiro casamento do

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monarca.Mas,sabemoshoje,porumadoaçãofeitaporD.AfonsoIIIem1278, que o bastardo nasceu de Maria (ou Marinha) Peres de Enxara.«MarinaPetrideEnxara»,dizodocumento.Afonso Dinis, que terá sido criado por Martim Pedro, clérigo, casou

com D. Maria Peres Ribeira, bisneta da famosa Ribeirinha, que foraamantedeD.SanchoI.Sobreaquelaveioarecair,pormortedetodososseusirmãos,arepresentação–massóarepresentação–dailustreCasadeSousa53.Obastardo,quefoimordomo-mordaRainhaSantaIsabel,suacunhada,

tevecincofilhos:(1)D.PedroAfonsodeSousa,«rico-homemdacortedoseuprimo,D.AfonsoIV»54, tendogeraçãodoseucasamentocomElviraAnes daNóvoa; (2) D. Rodrigo Afonso de Sousa, senhor de Arraiolos ePavia,quecasoucomViolantePonçodeBriteiroseteveumafilha;(3)D.DiogoAfonsodeSousa,senhordeMafra,quecasouetevegeração;(4)D.GarciaMendesdeSousa,priordaAlcáçovadeSantarém;e(5)D.GonçaloMendesdeSousa,quemorreusemgeração.Os dois primeiros tiveram também filhos fora de seus casamentos:

Gonçalo Rodrigues de Sousa, Fernão Gonçalves de Sousa e AiresRodriguesdeSousa,nocasodoprimeiro;eDiogoLopesdeSousa,nocasodosegundo.Dois dos outros bastardos de D. Afonso III, Martim e Urraca Afonso,

teriam nascido de umamoura que o rei conheceu e amou aquando daconquista do Algarve. Essa moura chamar-se-ia Madragana e, diz FreiAntónio Brandão, seria filha de Aloandro ben Bekar, um dos alcaidesmourosdeFaro55.Convertidaebaptizada,teriapassadoachamar-seMorAfonso.Não há nenhuma dúvida de que Martim Afonso, por alcunha o

Chichorro,«talvezporserbaixo»56, foi filhodamoura.Nascidocercade1260ecriadoporJoãoPiresdeLobeira,casoucomInêsLourenço, filhadeD.LourençoSoaresdeValadareseMariaMendes,«incestuosafidalga»que tivera amores com seu irmão, Gonçalo Mendes… Deste casamentohouve cinco filhos, entre os quais um Martim Afonso Chichorro, rico-homemdacortedeD.Dinis,quenãocasoumasfoipaidedoisbastardos:VascoMartinsdeSousaeMartimAfonsodeSousa57.Mas dúvidas há, e muitas, de que Urraca Afonso, segunda do nome,

tambémfossefilhadamoura.Taleraaliçãodoslivrosdelinhagens.Hoje,porém, «sabemos ser filha de Maria Afonso, provavelmente a dona deSantarém,jáqueUrracaherdarácasasnessacidade[…]quepertenciama

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suamãee a JoãoRedondo»58. EstaUrracaAfonso – que, comoatrás seviu, D. Afonso III casou com o filho de uma amante sua – foi muitoestimadaporseupai,aquemdeunumerososnetos.No rol dos bastardos do Bolonhês há quem inclua, ainda, um D.

HenriqueAfonso,dequemporjuntosesabequecasoucomumaD.Inêsemorreuna guerradaPalestina.Mas sãomuitos osqueduvidamda suaexistência,apesardoepitáfio,«inverosímilesuspeitoso»59,queexistenoMosteiro de Santa Clara de Santarém e diz: «Aqui jaz o Infante D.Henrique Afonso, filho del-Rey D. Afonso III e sua mulher a Infanta D.Ignez.»60Averdadeéqueonomedeste«infante»nãoconstadotestamentode

D. Afonso III, que contemplou nele todos os seus bastardos. Às filhas,arranjou-lhes bonsmaridos. Mas como era, além de bom pai, bom rei,tratou de fazer «casamentos políticos»61, destinados não apenas agarantirofuturodasbastardasmastambémacontrolarasfamíliasmaispoderosasdoReinoPortucalense, quenem todas faziamo favorde sersuasamigas.

coroa.jpg

Dos bastardos do rei Bolonhês descendem algumas das mais nobres famíliasportuguesas,desdeosduquesdeBragançaaosduquesdePalmela,mastambémarainhaSílviadaSuécia,afamosa«Evita»Perón(elaprópriaumabastarda),oantigopresidentefrancêsValéryGiscardd’Estaing,ojornalistanorte-americanoAndersonCooperouocantorespanholBetinOsborne.

Desse rol de descendentes de D. Afonso III fazem ainda parte José Sócrates,HenriqueMedina Carreira, Álvaro Laborinho Lúcio, os irmãos António e ManuelPintoBarbosa,JoséDiogoQuintelaouAntónioMexia,que,descendendodeAfonsoDinis, como o jornalista Martim Avillez Figueiredo, descende ainda de MartimAfonso,oChichorro,irmão(ou,melhor,meio-irmão)deAfonsoDinis.

DoChichorrodescende tambémD.LuísAndrédePinaCabraleVilas-Boas–oconhecido treinador de futebol, André Vilas-Boas – tal como omaestro Victorinod’Almeidae,éclaro,suasfilhas,asactrizesMariaeInêsdeMedeiros.EdeUrracaAfonso descendem, entre outros, o presidente do Futebol Clube do Porto, Jorge

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NunoPintodaCosta,ouaescritoraejornalistaIsabelStilwell.Francisco Sá Carneiro também teve como antepassado o rei D. Afonso III,

descendendopor linhadirectadeAfonsoDinis.Omesmosucedecomo jornalistaMartimCabral, que conta ainda comoantepassadasD.UrracaAfonso eD. TeresaSanches, e com o arquitecto Manuel Salgado, que também descende de MartimAfonsoedeD.TeresaSanches.

40HermíniaVasconcelosVilar,D.AfonsoII(Lisboa:CírculodeLeitores,2010),p.244.

41JoséAugustodeSottoMayorPizarro,LinhagensMedievaisPortuguesas(Porto:1997),vol.I,p.168.

42Cf.AntónioCaetanodeSousa,ProvasdaHistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.35.

43Cf.DouglasRichardson,PlantagenetAncestry–AStudyinColonialandMedievalFamilies(Baltimore:GenealogicalPublishingCompany,Inc.,2004),p.588;eThierryLeHête,LaDynastieCapétienne(LaBonneville-sur-Iton:1998),p.121.

44JoséMattoso,«Otriunfodamonarquiaportuguesa»,inAnáliseSocial,vol.XXXV(157),2001,p.911.

45Idem,ibidem,p.919.

46Cf.LeontinaVentura,D.AfonsoIII(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.212.

47JoséMattoso,«Otriunfodamonarquiaportuguesa»,inAnáliseSocial,vol.XXXV(157),2001,p.912.

48Idem,ibidem.

49AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.116.

50Cf.AnaCristinaTavaresdaFonseca,BarregãseBastardasRégiasnaIDinastiaPortuguesa(Lisboa:textopolicopiado,2005),p.95.

51JoséMattoso,«Otriunfodamonarquiaportuguesa»,inAnáliseSocial,vol.XXXV(157),2001,p.912.

52AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.116.

53AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,p.274.

54JoséAugustoSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.236.

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55AntónioBrandão,QuartapartedaMonarchiaLusitana:quecontemahistoriadePortugaldesdotempodelReyDomSanchoPrimeiro,atétodooreinadodelReyD.AfonsoIII(Lisboa:PedroCraesbeeck,1632),p.220v.[http://purl.pt/12677/4/]

56AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,p.275.

57JoséAugustodeSottoMayorPizarro,LinhagensMedievaisPortuguesas(Porto:1997),vol.I,pp.173ss.

58AnaCristinaTavaresdaFonseca,BarregãseBastardasRégiasnaIDinastiaPortuguesa(Lisboa:Textopolicopiado,2005),p.92.

59AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.116.

60Idem,ibidem,p.116.

61LeontinaVentura,D.AfonsoIII(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.212.

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P

AFINA-FLORDOREINODED.DINIS

rimeiro e único deste nome, D. Dinis, o rei Trovador, nasceu emOutubrode1261emorreuemJaneirode1325.Casoua24deJunhode1282 comD. Isabel de Aragão, a Rainha Santa, e desse casamento, quenão foi muito feliz, nasceram apenas dois filhos: D. Constança, que foirainha de Castela, e D. Afonso, que foi rei de Portugal. Bem maisnumerososforamosseusbastardos.Comefeito,D.Dinis,quefoi«muidadoamulheres»e«nãoconversou

poucas»62, teve, que se saiba, sete filhos ilegítimos, cada um dos quaisnasceudeumamãediferente63.Essesbastardos,queAgustinaBessa-Luísconsiderou a «mais fina-flor do reino»64, foram: (1) D. Pedro Afonso,condedeBarcelos; (2)D.AfonsoSanches, senhordeViladoConde; (3)outro D. Pedro Afonso, que casou com Maria Mendes e pode estarsepultadonaSédeLisboa;(4)D.JoãoAfonso,senhordaLousã,havidodeMariaPires,«boadonadoPorto»;(5)D.FernãoSanches,«seguramenteafiguramaisdiscretadosbastardosdeD.Dinis»65,querecebeudeseupai«largasmercês»ecasoucomD.FroileAnesdeBriteiros,morrendosemgeraçãonosseuspaçosdeRecardães,emJunhode132966;(6)D.MariaAfonso,havidadeD.MarinhaGomes,«mulhernobre»,quecasoucomD.João de Lacerda (bisneto do rei Afonso X de Castela) e de quemestranhamenteocondedeBarcelosnãofalanoseuNobiliário;e(7)outraD. Maria Afonso, havida talvez (segundo Frei Francisco Brandão) deMaior Afonso ou de Branca Lourenço de Valadares, que foi freira noMosteirodeOdivelas,fundadoporseupai,ondeergueuumaltaraSantoAndrée«acaboucomopiniãodeSanta»,noanode132067.Destessetefilhos,havidosforadocasamento,trêsmerecemparticular

destaque,jápeloslugaresqueocuparamnacortedeseupai,jápelopapelque desempenharam nos violentos conflitos quemarcaram o termo doseureinado.Sãoeles:PedroAfonso,AfonsoSancheseJoãoAfonso–quese envolveram todosna guerra feita aD.Dinispor seu filho legítimo, oinfanteD.Afonso. Essa guerra, assegurao condedeBarcelos, travou-se

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porqueoherdeirodotrono, instigadoporGomesLourençodeBeja,umvilãoadvogadoqueerafilhodeumcarpinteiro,estavaconvencidodequeopaiqueriaque lhesucedessee«reinasseAfonsoSanches, seu filhodebarregã».Masosmelhoreshistoriadoressustentamhojequeàguerradoinfanteseacrescentouumaoutra–aqueagrandenobrezasenhorialfezao rei Trovador, cujo poder considerava excessivo e, em todo o caso,ofensivodosseusantigosdireitos,honraseprivilégios.Éevidentementedifícilsaberseforamossenhoresaaproveitar-seda

guerradoinfante,sefoioinfanteaaproveitar-sedaguerradossenhores.Juntou-seemtodoocasoafomecomavontadedecomer–e,de1319a1325,Portugalesteveaferroefogo,dilaceradoporumaguerracivilquefoitambém,senãofoisobretudo,umaguerraentreirmãos.OprimeirosinaldesteconflitofratricidasurgiuapósamortedeD.João

Afonso de Meneses, 1.º conde de Barcelos. Trineto de D. Sancho e daformosa Ribeirinha, tinha duas filhas, que se desentenderam sobre aherança.Uma,TeresaMartinsTelo,eramulherdeAfonsoSanches, comquem casara em Outubro de 1307; a outra, Violante Sanches, estavacasadacomMartimGildeSousa,queforamordomodoinfanteD.Afonsoeeraalferes-mordoreino.Asduasherdeirasrecorreramàjustiçarégia.Ea3deJaneirode1312,seteouoitoanosapósamortedoconde,D.Dinisdecidiua causa: «MartimGilherdouo títulode condedeBarcelos,masAfonsoSanchesficoucomamaiorpartedafortuna,istoé,osenhorioeocastelodeAlbuquerque»68.Ofendidocomadecisãodomonarca,MartimGilexilou-seemCastela,

ondemorreu pouco depois. E, na sentença do rei, os grandes senhoresviram–eterãofeitooinfantever–umademonstraçãodofavorecimentodeAfonsoSancheseumaprovadadesordemreinantenoregimentoenajustiçadoreino.A partir daí, as relações entre D. Dinis e o seu herdeiro não mais

deixaram de se agravar e, por 1316, estalou entre os dois uma guerraaberta,«fomentadaporalgunsnobresdespeitadosesaudososdeantigosprivilégios feudais – que D. Dinis havia cerceado – mas também umaguerraqueridaporCastelaeAragão,reinosinteressadosemenfraquecerPortugalnocontextodaPenínsula»69.OsbastardosdoTrovadordividiram-sepelosdois ladosdabarricada.

D.Dinisteveaseuladoaquelequelheeramaisquerido,AfonsoSanches,bemcomoJoãoAfonsoeFernãoSanches,contando,alémdisso,com«osoficiaisdacorte,algunsnobresdesegunda,obispodeÉvora,odeãodo

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Porto e, importantíssimos aliados, osmestres das OrdensMilitares». OinfanteD.Afonso,porseuturno,alémdoapoiodaRainhaSanta,suamãe,contavacom«umpunhadodegrandessenhoresefilhossegundos,aquesejuntaramosbisposdeLisboaePorto»70.ContavaaindacomD.PedroAfonso, futurocondedeBarcelos,seumeio-irmão,que,sendomordomoda infanta D. Beatriz, mulher de D. Afonso, se considerava vassalo doherdeirodotronoelhereconhecia«senhorio».D.PedroAfonsofoioprimeirodetodososfilhos,legítimoseilegítimos,

doreiD.Dinis,postonãosesaibaexactamentequandonasceu.Amaioriadoshistoriadoresinclina-separasituaressenascimentocercade1285–ou seja, três anos depois do casamento domonarca com a princesa deAragão e cinco anos antes do nascimento da infanta D. Constança,primeirofrutodaquelematrimónio71.Filho de D. Grácia Anes, «mulher de qualidade, natural de Torres

Vedras»,senhoradaRibeiradeSacavém72,queera«proprietáriadeumascasasapardaSédeLisboa,ondeseufilhoveioafundarumhospital,ededuas tendasàPortadeFerro,doadasporD.Dinis»,D.PedroAfonso foibeneficiadopeloreiseupaicom«grandesevaliosasdoações»,aprimeiradasquaisocorreuem1289.Entreesseanoeode1306,recebeubensemEstremoz,Évora-Monte,SintraeTavira,bemcomoaterradeGestaçô73.E,em1307,foinomeadomordomodainfantaD.Beatriz,suacunhada.Já entãoD. Pedro estaria viúvo deD. Branca Pires (ou Peres) Portel,

com quem terá casado no último ano do século XII ou no primeiro doséculo seguinte. Herdeira de uma das maiores fortunas senhoriaisdaqueletempo74,D.Brancadeuàluzumfilhoque«sobreviveuotemposuficientepara seupai [oditoPedroAfonso]herdar aparteda casadeSousapossuídaporsuamãe»75.Em 1308, o primogénito de D. Dinis voltou a casar, desta feita com

Maria Ximenez Coronel, uma das damas que viera de Aragão com aRainha Santa e que esta se empenhou em unir ao bastardo domarido,requerendo a seu irmão, o rei Jaime II, que consentisse naquela união«poramordenóseparanosfazerdesprazer»76.Em1314,D.PedroAfonsofoifeitocondedeBarcelos,sucedendoao2.º

conde,D.MartimGil,seuparenteporafinidade,aquemtambémsucedeunopostodealferes-mor,queconservouatémorrer77.Quando, na guerra contra D. Dinis, tomou o partido do infante D.

Afonso, seumeio-irmão, «houveramosoutros irmãosdelesmui grandeescândaloebuscaram-lhemalcomel-reiseupai»–comoopróprioconde

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há-de escrever na sua Crónica de Espanha de 134478. «E tanto foicrescendoesteescândaloquehouveramDomAfonsoSancheseseuirmão[João Afonso] de ajuntar todos seus vassalos e amigos e ainda grandepartedosd’el-reiporseuconsentimentoeenviaramtodoestepodercomJoãoAfonsoquefossefazermaledesonraaseuirmão,ocondeD.Pedro.»Desafiado,ocondedeBarcelos,que«eramuitoamadodosfilhosd’algo»,reuniu «tantos vassalos e amigos que foram mãos que os outros». EesperoupeloataqueemPinheirodeÁzere,próximodeSantaCombaDão.MasocombatenãosetravouporqueoinfanteD.AfonsoveiodeLisboa«porpartiracontenda».Depois disso, porém, «ordenou D. Afonso Sanches com el-rei que

tolhesseaterraaocondeDomPedroeelefoi-separaCastela,eandouláquatroanosemeio»,entre1317e1322.Duranteessesanos,agravou-seo conflito entre D. Dinis e o seu filho legítimo – que, instigado por«mentirosaspalavras»deintriguistas,nãodesistiadeabateropodereainfluência que no pai tinha Afonso Sanches, em quem o monarcadepositaratodaasuacomplacência.ObastardomuitoamadodoreiTrovador(oqual,reconheceocondede

Barcelos, «fazia muito do que ele queria») era filho de D. AldonçaRodriguesTalha.Nascidotalvezem1286–mas,emqualquercaso,antesde128979–,AfonsoSanchestiveraportutoresD.PedroAfonsoRibeiro80e,maistarde,aprópriaRainhaSanta,suamadrasta(porcartapassadanaGuarda,a21deJunhode1298).Jáentãotinharecebidováriasdoaçõesdeseupai,queocasou,antesde130781,comD.TeresaMartinsTelo,filhado2.º conde de Barcelos – e que, em1312, o nomeou seumordomo-mor.AfonsoSanchesconservariaessasaltasfunçõesaté1322.Perdeu-asporquefoiessaumadascondiçõesimpostaspeloinfanteD.

Afonso para firmar tréguas com o pai nesse ano de 1322. Mas essastréguas não puseram definitivo termo à guerra civil. E só a 26 deFevereiro de 1324, em Santarém, é que as pazes foram finalmenteestabelecidas, depois dos esforços nesse sentido desenvolvidos pelaRainha Santa Isabel, «boa advogada de causas barulhentas eperniciosas»82,etambémpelocondedeBarcelos,entretantoregressadode Castela. Com essas pazes, o infante, obtendo a solene garantia dasucessãodotrono,alcançavatambémqueAfonsoSanchesfosseafastadoda corte, a troco de dez mil libras que lhe foram dadas comocompensação. O bastardo refugiou-se em Castela.Mas D. Afonso não oesqueceunemlheperdoou.

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Malsubiuaotrono,apósamortedeD.Dinis,a7deJaneirode1325,D.AfonsoIVconvocouascortesparaqueo«recebessem»comoreiesenhore lhe prestassemmenagem. Logo a seguir, tratou de perseguir omeio-irmão,exiladoemCastela,nãoobstanteeleterreconhecidoasuarealeza.Acusou-o de traição, confiscou-lhe os bens e condenou-o a desterroperpétuo. Afonso Sanches protestou,mas em vão. E, não sendo ouvido,resolveuagir.«Pegou em armas, reuniu forças de Castela e invadiu Portugal,

espalhandoaleidoferroedofogo»83nasterrasdefronteira,desdeTrás-os-Montes até ao Alentejo. D. Afonso IV retribuiu na mesma moeda,visandoemespecialAlbuquerque,queera«ondeoadversáriotinhasedeeprincipaisapoios»84.A contenda durou três anos e só terminou porque Afonso Sanches

adoeceu.Negociou-seentãoapaz, tendoobastardoqueridodeD.Dinisobtido a restituição de todos os bens que lhe tinham sido confiscados.Assimque lhe foramdevolvidos,morreu, sendoenterradonoConventodeSantaClara,quefundaraemViladoConde,dequeerasenhor.Deixouum filho, D. João Afonso de Albuquerque, o do Ataúde, 6.º senhor deAlbuquerque,quefoimordomo-mordoreiD.PedroIedeixounumerosadescendência,legítimaeilegítima.JáentãoD.AfonsoIV,cognominadooBravo,menosporsercorajosodo

que por ser violento, tinha mandado matar outro dos seus irmãosbastardos–JoãoAfonso,quefora,tambémele,mordomo-mordeD.Dinise,depois, seualferes-mor.Acusadode traiçãopor se ter conluiadocomAfonso Sanches, «nosso inimigo», João Afonso fora condenado àmortepor uma sentença de 4 de Julho de 1326, em que D. Afonso IV sedeclaravamuitopesarosoporterdecastigarum«homemquesechamafilhodeEl-ReiD.Dinis,nossopadre»85.SenhordaLousã,D.JoãoAfonsodeixaraviúvaD.JoanaPoncedeLeon

(bisnetadeAfonso IX, reideLeãoeCastela),que lhederauma filha:D.Urraca Afonso, mulher de Álvaro Perez de Guzman, senhor deManzanedo. Mas deixara também uma bastarda, Leonor Afonso, quecasoucomGonçaloMartinsPortocarreiro.Quanto aD. PedroAfonso, conde deBarcelos, afastou-se da corte de

seu irmão e foi viver para os seus paços de Lalim, na companhia deTeresa Anes de Toledo, sua amásia (e não, como alguns disseram, suaterceira mulher). Foi aí que coligiu trovas e cantigas, compôs ointerminávelLivrodeLinhagenseredigiuaCrónicaGeraldeEspanhade

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1344.Em1347,tinha-sedefinitivamenteseparadodesuasegundamulher,D.

MariaXimenezCoronel,comquem,aliás,quasenãocoabitara.Comefeito,desde o seu casamento, marido e mulher tinham quase sempre vividoapartadosumdooutro.Noanoemqueseconsumouaruptura,ocondedoouàcondessatodososbensqueocasalpossuíaemAragão,enquantoacondessalhedoavaaeletodososbensqueocasaltinhaemPortugalenoAlgarve86.Figuracentralnopanoramapolíticoeculturalportuguêsdaprimeira

metadedoséculoXIV(comoomarquêsdeCasteloMelhorodescreve)87,D.PedroAfonsomorreu«entre2deFevereiroe5de Julhode1354»88,sendosepultadonoMosteirodeS.JoãodeTarouca.

coroa.jpg

De D. Afonso Sanches descendem Paulo Portas, o líder do CDS, e ManuelaFerreiraLeite,aex-líderdoPSD,bemcomoaactrizSofiaSádaBandeiraeojogadoretreinadordefutebolLuísNortondeMatos.

ÁlvaroBarreto,PedroTeixeiraDuarte(cujoavôcasoucomumadescendentedobastardo de D. Dinis), João e Vasco Pereira Coutinho (1.º marquês de PereiraCoutinho, em Espanha), Eduardo Stock da Cunha e Salvador da Cunha Guedestambémdescendemdo filhoqueridodoreiTrovador–masnãodaRainhaSanta,suamulher.

62JoséAugustodeSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.239.

63RuidePina,Crónicas(Porto:Lello&Irmão,1977),p.234.

64AgustinaBessa-Luís,AdivinhasdePedroeInês(Lisboa:GuimarãesEditores,1983),p.225.

65JoséAugustodeSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.243.

66Idem,ibidem.

67AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.173.

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68JoséMattoso,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.162.

69Idem,ibidem,p.484.

70Idem,ibidem.

71AnselmoBraamcampFreire,quenãopropõeumadataparaonascimentodeD.PedroAfonso,sugerequeeleteriacasadoa10deDezembrode1289,dataemqueoreiseupailhefezaprimeiradoação,extensívelaosseuslegítimossucessores.Nãoéfácilaceitá-lo.D.Dinisnasceuem1261.Mesmoadmitindoquetenhasidopaiaos14anos(em1275,portanto),oseufilhoprimogénitoteria12anossetivessecasadonadatapropostaporBraamcampFreire.MastambémcustaadmitirqueD.Dinissótenhasidopai,pelaprimeiravez,com24anosdeidade.Adatade1277,propostaporalgunshistoriadores,paraonascimentodeD.AfonsoSanchesacabaporserbastantemaisaceitável.Cf.AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,p.263.

72AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.158.

73ArquivoNacionaldaTorredoTombo:PT/TT/GAV/3/1/5.

74BernardodeVasconceloseSousa,D.AfonsoIV(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.28.

75AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,p.265.

76SebastiãoAntunesRodrigues,RainhaSanta(Coimbra:CoimbraEditora,1958),p.140.

77AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,p.266.

78Cf.BernardodeVasconceloseSousa,D.AfonsoIV(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.32.

79JoséAugustodeSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.242.

80Cf.ArquivoNacionaldaTorredoTombo:PT/TT/MSMAR/G6M1/19.Acartadetutoriatemadatade18deMarçode1293.

81AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,p.268.

82AgustinaBessa-Luís,AdivinhasdePedroeInês(Lisboa:GuimarãesEditores,1983),p.28.

83JoséMattoso,HistóriadePortugal(Lisboa:CírculodeLeitores,1993),vol.II,p.484.

84Idem,ibidem.

85BernardoVasconceloseSousa,D.AfonsoIV(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.70.

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86AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,p.268.

87BernardodeVasconceloseSousa,D.AfonsoIV(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.29.

88JoséAugustodeSottoMayorPizarro,D.Dinis(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.241.

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D

ABASTARDADOREIBRAVO

oseucasamentocomainfantaD.BeatrizdeCastela,teveD.AfonsoIV (1291-1357) sete filhos, quatro dos quais «não terão sobrevivido aoprimeiroanodevida»89.Dostrêsrestantes,D.PedrofoireidePortugal;D.Maria, a primogénita, foi rainhadeCastela; eD. Leonor, quemorreucom20anos,foi,porpoucotempoembora,rainhadeAragão.Fora do seu casamento, afirmam alguns que D. Afonso IV não teve

descendência–oquenãoseriaparaestranharnummonarcaquetantoseempenhou em«tolher os usos e costumesque são contra a vontadedeDeus e a prol [o bem] comunal», combatendo especialmente os«adultérios commulheres alheias» e os «homens casados que tiverembarregãs».Aesteschegoualiásacastigarcomapenademorte90.Sucede, porém, que o rei Bravo foi, na opinião de autorizados

genealogistas91, o pai de uma D. Maria, ou Maria Afonso, de Portugal,nascida em 1316 e falecida em 1384. Esta bastarda casou com D.FernandoAfonso,senhordeValênciadeCamposegrão-mestredaOrdemde Santiago, que era bisneto do rei Afonso X da Castela, e deu-lhe trêsfilhos:(1)D. João,marechaldeCastela; (2)D.Pedro;e(3)D.Fernando,mongenaOrdemdeSãoJerónimo.Além desta bastarda, disseram as más-línguas que D. Afonso IV

também fora pai de uma criança nascida de D. Violante Sanchez, outra«bastarda real», filha do rei Sancho IV de Castela e Leão e de MariaAlfonsodeUcero.Masnenhumaprovafoiapresentadadessarelaçãonemninguémnomeou algumavez este ouqualquer outroputativobastardodoreiBravo.

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coroa.jpg

Teve D. Maria Afonso, a putativa bastarda de D. Afonso IV, uma numerosadescendência,quechegouaosdiasdehoje.Delafazemparte,entreoutros,quatrodos presidentes da República da Colômbia, que governaram aquele país sul-americano entre 1861 e 1998: Júlio Arboleda Pombo, Guillermo León ValenciaMuñoz,CarlosLleraRestrepoeErnestoSamperPizano.

89BernardodeVasconceloseSousa,D.AfonsoIV(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.27.

90Cf.Idem,ibidem,p.90.

91Cf.FranciscoFernandezdeBethencourt,HistoriaGenealógicayHeraldicadelaMonarquiaEspañola,CasaRealyGrandesdeEspaña(Sevilha:FabioladePublicacionesHispalenses,2001),T.II,p.144.

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E

EL-REIBASTARDO

m 1383, nas Cortes de Coimbra, o Doutor João das Regras deu aentenderqueoreiD.PedroI,emtodaasuavida,sóumavezestiverabemcasado: com D. Branca de Castela, sua primeira mulher. Todos oscasamentosquecelebraraoudiziatercelebradodepoisnãoeramválidos,porque esse primeiro matrimónio, tendo sido consumado, nunca foraanuladoea infantaespanholanãomorreraantesdasoutrasesposasdomonarca.DaíresultavaquetodososfilhosdoreiCruelerambastardos–e não valiammais do queD. João,Mestre deAvis, o filho queD. Pedrohouveraforadosseuscasamentos.O Doutor João das Regras era o melhor advogado da aclamação do

MestrecomoreidePortugal.E,porisso,dizemmuitos,assuaspalavrasnão deviam ser levadas a sério. Não deviam pelo menos ser levadas àletra.Éverdade.MasverdadeétambémqueahistóriadoscasamentosdeD. Pedro constitui ainda hoje um intrincado novelo muito difícil dedeslindar.Sabe-sequeasuaprimeiramulherfoi–oudeviatersido–ainfantaD.

Branca, filha de D. Pedro, regente de Castela, e da princesa Maria deAragão.Segundouns,ocasamentocomainfantacastelhananãochegouarealizar-se,tendoanoivasidodevolvidaaoreinoemquenasceraporserapoucadinha de corpo e de espírito. Segundo outros, tratou-se de umcasamentocelebradomasnãoconsumado.Eháaindaquemdefendaqueesse casamento, celebrado em 1325, foi consumado, sendo o únicocasamentolegítimoqueomonarcacelebrou.Emqualquercaso,D.Pedrovoltouacasarem1339–destafeitacomD.

ConstançaManuel,filhadopríncipedeVilhenaemulherdoreiAfonsoXIde Castela. Este repudiara-a antes de consumar o matrimónio – paracasar, três anos depois, com a infanta D. Maria de Portugal, irmãmaisvelhadeD.PedroI.NasuacompanhiaD.ConstançaManueltrouxeD.InêsdeCastro,uma

damagalegaporquemD.Pedrologoseperdeudeamoresequesetornou

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suaamante.Omonarcaviriaacasarcomelaapósamortedasuasegundamulher,ocorridaem1349.Mas,segundoopróprioD.Pedrodirá,esteseucasamento foi secreto, pelomuitomedo que tinha de seu pai, tendo-serealizado em dia de que ele «não se lembrava», no ano de 1350. Estadeclaração, feita em Cantanhede, em Junho de 1360, levantou, desdesempre, as maiores dúvidas – e a Igreja nunca aceitou que D. Pedrotivesse alguma vez casado com Inês de Castro. Até porque seria, emqualquercaso,umcasamentoilegítimo:D.InêseraprimadeD.Pedro,jáqueamboseramnetosdeSanchoIV,oBravo,reideCastela;eera,alémdisso, sua comadre, por ter sido madrinha do infante D. Luís, filhoprimogénitodeD.PedroedeD.Constança,quemorreumenino.Há, no entanto, quem não tenha dúvidas de que D. Pedro casou

efectivamente com Inês de Castro, sustentando, porém, que estematrimónioserealizouantesdocasamentocomD.ConstançaManuel.ÉessanomeadamenteaopiniãodeAgustinaBessa-Luís,queassegurouteromatrimóniosidocelebradoem1335.Oquetornaascoisasaindamaisconfusase complicadas, fazendopender sobreo reiCruel a suspeitadebigamiaou,mesmo,detrigamia.SenuncafoianuladoocasamentodeD.PedrocomD.Branca(quesó

faleceuem1375),entãooscasamentoscomD.ConstançaecomD. Inêsnãoforamválidos–eosfilhosdelesnascidossãotodosilegítimos.Se,poroutro lado,D.Pedro, tendo repudiadoD.Branca com justa causa, casoucomD.InêsantesdecasarcomD.Constança,entãoD.Fernandofoi,antesdeD.JoãoI(tambémfilhodeD.Pedro!),oprimeirobastardoasentar-senotronodePortugal.Finalmente, se o casamento de D. Pedro com D. Inês nunca existiu,

entãoostrêsfilhosnascidosdessaunião–D.Beatriz,D.JoãoeD.Dinis–foram ilegítimos. E, se apenas existiu a partir da data emqueD. Pedroafirmoutê-locelebrado,entãosóporessecasamentoforamlegitimadososfilhosda«míseraemesquinha»,queera,tambémela,umabastarda.De facto, Inês de Castro foi o fruto dos amores de seu pai, D. Pedro

FernandesdeCastro,odaGuerra,comD.AldonçaLourençodeValadares,que não era sua legítima esposa. E quem a criou foi D. TeresaMartins,mulher de Afonso Sanches, o bastardo querido do rei D. Dinis, que D.AfonsoIVexecrava–oquepodetercontribuídoparaqueoreiBravonãoaapreciassecomonora...Dê-se,porém,debaratoquetudosepassoucomoD.Pedrodissequese

tinhapassado.Ou seja: quenão casou–ou casoumasnão consumouocasamento– comD.BrancadeCastela, em1325;que casoudepois, em

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1339, com D. Constança Manuel; e que, tendo enviuvado, casou,finalmente,em1350(ouem1354),comD.InêsdeCastro.Doseuprimeirocasamentonãoteveevidentementefilhos.Dosegundo,

nasceram três: (1)D. Luís, o afilhadode InêsdeCastro, quemorreuaonascer, em 1340; (2) D. Maria, que casou com Fernando de Aragão,marquês de Tortosa; e (3) D. Fernando, que foi rei de Portugal. E doterceiro, mas antes de ele ter sido celebrado, nasceram outros quatrofilhos:(1)D.Afonso,quemorreupoucodepoisdenascer;(2)D.João;(3)D.Dinis;e(4)D.Beatriz, todoslegitimadospelosupostomatrimóniodeseuspais.Alémdestesfilhos,queserãolegítimosounão,conformeaposiçãoque

seadoptequantoaoscasamentosdeD.PedrocomD.ConstançaManuelecomD. InêsdeCastro,oreiCruel foipaidomais famosodosbastardosreais–D.João,odeBoaMemória,queascorteselegeramparasucederaseu meio-irmão D. Fernando, o Formoso. E, segundo a HistóriaGenealógica, terá tidoaindauma filhabastarda,denomedesconhecido,quesecriounoMosteirodeSantaClara,emCoimbra,eaquemomonarcadeixou«cincomillibrasparacasamento»92.Masdelanãohámaisnovasnemmandados.D. João I foi o último dos filhos deD. Pedro I. Nascido por 1357, foi

entregueaoscuidadosdeLourençoMartins,honradocidadãodeLisboa,quemoravajuntoàSé,sendodepoisconfiadoaoscuidadosdomestredeCristo,D.NunoFreiredeAndrade.Mas, tendo falecidoFreiMartim (ouMartinho)Avelar,mestredaOrdemdeAvis,em1362,foiD.Joãoocuparoseu lugar. O rei seu pai, muito «ledo», armou-o cavaleiro, beijou-o eabençoou-o93. O bastardo teria então sete anos e era, segundoOliveiraMartins,«rapazmanhoso,atrevido,audazsim,masnuncatemerário».Poressaaltura,D.PedroconcedeuumascasasnamourariadeAvisà

mãe de D. João94, que se chamava Teresa Lourenço e – dizem FernãoLopes e Rui de Pina, entre muitos outros – seria natural da Galiza, deonde veio para Lisboa como dama da infanta D. Constança95. Mas FreiManuel dos Santos, na Monarquia Lusitana, garante que D. Teresapertenciaaumafamíliaminhota,adosAlmeidas,eeraparentedomestrede Cristo96. Por seu turno, António Caetano de Sousa limita-se aassegurarnasuaHistóriaGenealógica que«ninguémduvidadanobrezadestadama»97.Outrosautoresdizemoutrascoisasainda.Porisso,nãosepodeafirmar,semmargemparadúvidas,quemrealmenteeraamãedeD.João I. A questão continua em aberto emuito provavelmente não será

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nuncaesclarecida.PoucoounadasesabedasprimeirasduasdécadasdavidadeD.João,

conhecendo-se, no entanto, os seus amores com Inês Pires, que era –segundoSoaresdaSilva–filhadePêroEsteveseLeonorAnes,«pessoasde conhecida nobreza». Entre 1370 e 1380 dar-lhe-á dois filhos, comomaisadianteseverámelhor.Não parece que D. João tenha frequentado a corte de seu pai, que,

falecidoem1367,quandoobastardo tinhadezanos,nãoocontemplounoseu testamento.Mas,na cortede seu irmão,o formosoD.Fernando,teve assídua presença, que não era, aliás, muito apreciada pela rainhaLeonorTeles,talvezporqueofilhodeTeresaLourençoeradosmelhoresamigosdofilhodeInêsdeCastroquetinhaomesmonomequeele.EsteD.João–doravantedesignadoporD.JoãodeCastro–tinhacinco

anosmaisdoqueooutro,porquenascera,provavelmenteemBragança,pelo ano de 1352. Era, na descrição de Fernão Lopes, homem «bemcomposto em parecer e feições, e comprido de boas manhas»98. NasCortes de Évora de 1361,D. Fernando fez-lhe doação demuitas terras,umpoucoportodoopaís:PortodeMós,Seia,Lafões,OliveiradoBairro,etc. E, durante a primeira guerra fernandina com Castela, nomeou-ofronteiro-morentreoTejoeoGuadiana.Na segunda,D. JoãodeCastroacompanhouD.FernandoquandoesteseencontroucomoreideCastela.Participou nas Cortes de Leiria, em Novembro de 1376 – e foiconsideradoporFernãoLopes«omaiordoreino».Mas,tendo-seapaixonadoporMariaTeles,irmãdeLeonore,portanto,

cunhadadeD.Fernando,casoucomelaàsocultas.EstecasamentodeixoupreocupadaaAleivosa,cognomequeopovoderaaLeonorTeles:D.JoãodeCastrogozavadegrandeprestígionacorteenoreino,«eraamadodospovos e dos fidalgos», como escreveu Fernão Lopes. Podia por issoconstituirumaameaçaaqueD.Beatriz,aúnicafilhadeD.FernandoeD.Leonor,sucedesseaseupainotrono.Paramelhorgarantirashipótesesda infanta, LeonorTelesprometeuentãoaD. João casá-la comele.Era,porém,necessárioremoverdecenaD.MariaTeles–oqueopróprioD.João se encarregou de fazer. Acusando-a de «me poerdes as cornasdormindocomoutrem»,assassinou-abarbaramente,enquantoofilhodeambos dormia «na câmara contígua à da mãe, quando ela foiassassinada»99.Foiisto,segundoparece,emNovembrode1379100.Andou algum tempo fugido.Mas, regressado à corte, percebeuque o

prometido casamento comD.Beatriznunca se realizaria.E, por isso,D.

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João de Castro decidiu acolher-se à protecção do rei de Castela – aoserviço do qual travará a terceira guerra fernandina (1381-1382),cercando Trancoso, tentando atacar Lisboa por mar, sitiando Elvas eAlmeida. Em Castela também casará, entre 1379 e 1380, com D.Constança,senhoradeAlbadeTormes,filhailegítimadoreiHenriqueII.EemCastelaencontraráseusirmãos,D.DiniseD.Beatriz.Estatinha-secasado,emMarçode1373,comD.Sancho,condedeAlbuquerqueeHaro,filho bastardo do rei Afonso XI de Castela, que o teve de Leonor deGuzman.D. Dinis, por seu turno, residia em Castela desde que se recusara a

beijar a mão de D. Leonor Teles – mostrando assim «a displicência edissaborquelhecausava»101ocasamentodoreiFormoso.Esteestiveraparaomatar,oqueoobrigouaandarescondidoe,depois,arefugiar-senoreinovizinho,onde,muitosanosmaistarde,oreiHenriqueIIlhedarápor mulher uma outra das suas filhas bastardas – D. Joana, havida deJoana,senhoradeCifuentes.AdevoçãodeD.JoãodeCastroaoreideCastelaeosserviçosquelhe

prestou não evitaram que, após a morte de D. Fernando, em 1383, omonarca,casadocomaherdeiradoreiFormoso,omandasseprendernocastelodeAlmonacid.Nadaquedevasurpreenderouindignar:ofilhodeInêsdeCastroera,paramuitosportugueses,olegítimoherdeirodacoroaqueo rei deCastela sustentavapertencer, pelas leis e pelos tratados, àrainhaD.Beatriz,suamulher.EntreosportuguesesquedesejavamvercoroadooinfanteD. Joãode

Castro, contava-se então oMestre de Avis, cujas relações com a rainhaAleivosa e seu amante, o conde de Ourém, João Fernandes Andeiro,estavam longe de ser pacíficas. Ainda em vida do rei D. Fernando, seumeio-irmão,o filhodeTeresaLourenço foramaltratado, sendoacusadode correspondência com o rei de Castela. Preso no castelo de Évora, oMestre de Avis encomendou-se a Cristo e fez promessa de ir ao SantoSepulcro, em Jerusalém, se saísse vivo da sua prisão. Acabou por serlibertadoporD.LeonorTeles,acujospésseajoelhou,pedindoparaseresclarecido sobre os motivos da sua detenção. Não obtendo nenhumesclarecimento da rainha, foi ao Vimeiro, onde estava D. Fernando,doente,parapediraomeio-irmãoque lheexplicasseporque forapreso.Também não ficou esclarecido. E começou a ponderar refugiar-se emCastela,comosucederacomseusirmãos,filhosdeInêsdeCastro.Acabouporpermanecernoreino.

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EmMaio de 1383, acompanhou a infanta D. Beatriz, sua sobrinha, aBadajoz,ondeaprincesauniuosseusdestinosaosdoreideCastela.EmOutubro,perdeuseuirmãomaisvelhoeviuD.Leonorproclamar-se,pelagraçadeDeus,Rainha,GovernadoraeRegedoradosReinosdePortugaledo Algarve – enquanto o rei de Castela reclamava a aclamação de suamulhercomorainhadePortugal.OpovodeLisboarevoltou-se.E,a6deDezembro,oMestredeAvisfoi

aopaçomataro condeAndeiro, assumindoa chefiada revoltapopular.ProclamadoDefensor e Regedor do Reino, tratou comD. NunoÁlvaresPereirade fazer frente ao invasor, que conseguiuderrotar.Apestequegrassou nos arraiais castelhanos e chegou a tocar D. Beatriz deu umapreciosaajudaaolevantardocercocastelhano.E,quandooreideCastelapartiu, o Mestre de Avis foi venerado como o Messias de Lisboa. NãotardariaaseraclamadoreidePortugal.Nas Cortes de Coimbra de 1385 havia três «partidos»: o Partido

Legitimista, que apoiava os reis de Castela; o Partido Legitimista-Nacionalista,quedefendiaoinfanteD.João;eoPartidoNacionalista,quedefendia o Mestre de Avis102. Foi este quem ganhou a contenda,beneficiando nomeadamente da prisão do filho de Inês de Castro. Comefeito, se em Portugal se desejava que reinasse um português, tudorecomendava – por muitos e bons direitos que assistissem a D. João,futuro duque de Valência de Campos – esquecer a sua candidatura edefenderadooutroD.João,MestredeAvis,queestavalivreemPortugale podia assim fazer frente aomaior perigo, representado pelo terceiroJoãodestadisputa,oreideCastela.Mas,depoisdeasCortesdeCoimbraaclamarema realezadoMestre deAvis e este ter vencido a batalhadeAljubarrota, o filho de Inês de Castro tornou-se feroz inimigo do novomonarcaportuguês.Libertadodasuaprisãopelo reideCastela,D. JoãorecebeudeleoencargodegovernarPortugalemseunome.E foicomotítuloderegentequeatravessoua fronteiraparacombateroreideBoaMemória,seumeio-irmão.OscombateschegaramaofimemNovembrode1389,comastréguas

deMonção.E,de regressoà corte castelhana,D. João foi feitoduquedeValência do Campo. Mas o rei de Castela morreu no ano seguinte,sucedendo-lheHenriqueIII–que,filhodoprimeirocasamentodeseupai,comD.LeonordeAragão,nãotinhaqualquerdireitoàcoroadePortugalnemestavadispostoaalimentarguerrascomopaísvizinho.D. JoãodeCastro continuoua reivindicara coroade seumeio-irmão,

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massemcontarcomapoiospolíticosemilitaresparafazervencerasuacausa.Epor1397morreu,deixandováriosfilhos:(1)D.FernandodeEça,nascidodoseuprimeirocasamento,um«devassoacabado»,quetinhao«fraco» de casar, «chegando ao ponto de ter às vezes três e quatromulheres vivas», e um «nunca acabar de filhos», que, segundo osnobiliários,podemtersidoquarentaedois103;(2)D.Maria;(3)D.Beatrize(4)D.JoanadePortugal,filhasdosegundocasamento;e(5)D.Afonso,senhordeCascais;(6)D.PedrodaGuerra(queseacolheuàprotecçãodorei de Boa Memória ainda em vida de seu pai, fazendo-lhe D. João I«grandes mercês e honras»); (7) D. Fernando de Portugal, senhor deBragança;e(8)D.BeatrizAfonso,bastardos.Mas quem lhe herdou a causa foi seu irmãomais novo, o infante D.

Dinis.AclamadoreipelosportuguesesexiladosemCastela,comaplausodarainhaD.Beatriz, filhadeD.Fernando,tentoufazervaleroquediziaser os seus direitos, entrando em Portugal pela fronteira da Beira.Derrotado, não voltou a tentar a sua sorte.Mas não renunciou às suaspretensões. Falecido nos primeiros anos do século XV, sua filha, D.Beatriz, construiu-lheummausoléunoMosteirodeGuadalupe, ondeD.DinisédeclaradoreidePortugal…

coroa.jpg

DeD. JoãoIdescendem,porvia legítimaouilegítima, todososreisquedepoisdelereinaramemPortugal–mastambémmuitosdospríncipesquereinaram(ouainda reinam) em Espanha, França, Alemanha e Áustria, Bélgica, Luxemburgo,Hungria,Boémia,Baviera,Polónia, Saxónia,Liechtenstein,Württemberg,Bulgária,Roménia, Jugoslávia, Itália, Etrúria, Parma, Sardenha, Toscana, Brasil ou México.ParasófalarnosmaisimportantesdescendentesdobastardodeD.PedroI.

92AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.231.

93Cf.MariaHelenadaCruzCoelho,D.JoãoI(Lisboa:CírculodeLeitores,2010),pp.16-17.

94CristinaPimenta,D.PedroI(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.179.

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95Cf.JoséSoaresdaSilva,MemóriasparaahistóriadePortugalquecomprehendemogovernodelreyD.JoãooI(Lisboa:OficinadeJoséAntóniodaSilva,1730),T.I,p.45.

96Cf.FreiManueldosSantos,MonarquiaLusitana(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,2009),T.VIII.

97AntónioCeatanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortugueza(Lisboa:AcademiaPortuguesadeHistória&Quidnovi,2007),vol.II,p.3.

98FernãoLopes,CrónicadeEl-ReiD.Fernando(Lisboa:Escriptório,1895),vol.II,p.133.[cf.http://purl.pt/419/2/]

99AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,pp.96-97.

100Idem,ibidem,p.94.

101AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.XIII,p.87.

102MarcelloCaetano,ACriseNacionalde1383-1385(Lisboa:Verbo,1985),pp.17-18.

103AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,p.97.

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O

ABASTARDADOFORMOSO

último rei da primeira dinastia, «formoso em parecer e muitovistoso»104, não foi um modelo de virtudes. «Mancebo valente, ledo enamorado,amadordemulheresechegadoraelas»,comoFernãoLopesodescrevena sua crónica,D.Fernandoestevepara casarprimeiro comainfantaD. Leonor de Aragão, de quem alguns disseramnunca «tão feiacoisa»teremvisto.Masessecasamento,contratadoparaobrigaropaidanoivaaparticiparnaprimeiraguerra fernandinacontraos castelhanos,acaboupornãoserealizar.Eoutrofoicontratado,comoutraLeonor–afilhadeHenriqueII,oBastardodeTrastâmara.Esse matrimónio ficou assente em 1371, quando Portugal e Castela

firmaramasPazesdeAlcoutim.Mastambémelenãoveioaefeito,porqueD. Fernando conheceu, entretanto, uma terceira Leonor, a famosa eformosa Leonor Teles, por quem ficou «ferido de amor». O monarcadesejou-aparaamante;maseladeclarouquesócasadasedeitariacomele. ED. Fernando fez-lhe a vontade, semdar nenhuma importância aofactodeLeonorTelessera legítimaesposade JoãoLourençodaCunha,senhordePombeiro,aquemjáderaumfilho,ÁlvarodaCunha,eestavaprestesadaroutro.Invocandoimpedimentoscanónicosparaoprimeirocasamentodasuaamada,D.Fernandoapropriou-sedela.Munido das dispensas papais que oportunamente requerera para

contrairmatrimónio, JoãoLourençoainda tentou contrariaro rei. «Masvendo que não lhe cumpria porfiar muito em tal feito deu à demandalugar que se vencesse cedo e foi-se para Castela, por segurança de suavida.» Diz-se que, no reino vizinho, andou sempre com um chapéudecorado com um corno de oiro, para que todos pudessem conhecer adolorosarazãodoseuexílioforçado.EassimfoiqueD.FernandoseuniuaD.LeonorTelesdeMeneses,primeiroàsocultas(ouafurto,comoentãosedizia)e,aseguir,«depraça»,provocandooseucasamento«grãonojoaDeus,aosfidalgoseatodoopovo»105.LeonorTelesnão foi, contudo, oprimeiroamordo rei Formoso,que,

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sendo«manceboe ledoehomemdeprol»,seapaixonouporD.Beatriz,suairmã–ou,maisexactamente,suameia-irmã,porserfilhadeD.PedroedeD. InêsdeCastro.Teveporela,nodizerdo cronista,uma«afeiçãomui continuada», de que «veio a nascer nele tal desejo de a haver pormulher que determinou em sua vontade casar com ela, cousa que atéaqueletemponãoforavista».Aoqueparece,chegouadaralgunspassosnessesentido.E,emqualquercaso,«eramosjogosefalasentreelestãoamiúde,misturados combeijos e abraços e outrosdesenfadamentosdesemelhante preço, que fazia a alguém ter a desonesta suspeita da suavirgindadeserporeleminguada»106.Estes incestuosos amores poderão ter tido um fruto –D. Isabel, uma

menina nascida em 1364, quando D. Fernando ainda era solteiro. HáquemadigafilhadeD.Beatriz,oquenãoparecedetodoimpossível107.Mas amaioriadoshistoriadores e genealogistasdeclaram-nahavidademãedesconhecida.AúnicabastardadoreiFormoso(desdequeseadmitatersidolegítimo

oseucasamentocomD.LeonorTeles)estiveraacertadaparacasarcomD.João,filhodocondedeBarcelosesobrinhodarainha,que«morreudetenraidade».E,comodotedoseucasamento,recebeuacidadedeViseueasvilasdeCelorico,LinhareseAlgodres108.Mas,depoisdeD.Fernandoassinar comoBastardodeTrastâmaraoTratadodeSantarém,que, emMarçode1373,pôstermoàsegundaguerrafernandina,assentou-sequeD. IsabelcasariacomocondedeGijóneNoronha,D.AfonsoHenriques,quetinha18anoseeraoprimeirodos15filhosbastardosdeHenriqueII.O jovemconde,porém,«nãoanuiudebomgradoaocasamento,nem

nos desposórios nem quando posteriormente se tratou de o efectuar».Fugiu para Avinhão, de onde só regressou «apertado pelas ameaçaspaternas e amuito custo, ante o altar, disse o sim sacramental»109, em1378.Masnãoconsumouocasamento.Mortoo rei seupai,D.Afonsopediu e, em1379, obteveodivórcio –

«mas dele não se aproveitou, pois que não só consumou omatrimóniocomotevedesuamulhervários filhos»110.ED. Isabel,esposaexemplarou pura e simplesmente agradecida, nunca deixou de estar ao lado domarido, a quem acompanhou nas guerras que ele fez ao rei D. João deCastela,seumeio-irmão.Sofreuporissoaprisão,aconfiscaçãodosseusbenseoexílio.ApósamortedocondedeGijón,emMarans(França),noanode1395,

D.IsabelregressouaPortugal,trazendoconsigoseisfilhos:(1)D.Pedro

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deNoronha,arcebispodeLisboaepaidenadamenosdoquesetefilhos,todos evidentemente bastardos; (2)D. FernandodeNoronha, conde deVilaRealpeloseucasamento;(3)D.Sancho,primeirocondedeOdemira;(4) D. Henrique de Noronha, capitão da gente de guerra na tomada deCeuta;(5)D. JoãodeNoronha,semdescendentes;e(6)D.ConstançadeNoronha, primeira duquesa de Bragança pelo seu casamento com D.Afonso,filhodeD.JoãoI,dequemnãotevegeração.

coroa.jpg

De D. Isabel descendem, entre muitos outros, o escritor e jornalista TiagoRebelo,opintorLuísNoronhadaCostaeafadistaTeresaTarouca,queigualmentedescendedeAfonsoDiniseUrracaAfonso,bastardosdeD.AfonsoIII.AcondessadeNoroñaeGijónéaindaantepassadadeGuilhermed’OliveiraMartins,quetambémdescendedeD.TeresaSancheseD.AfonsoDinis(bastardosdeD.AfonsoIII),edoadvogado Francisco Teixeira da Mota, que, sendo descendente de D. TeresaSanches,D.UrracaAfonso eMartimAfonsoChichorro, descende tambémpor viabastardadoreiAfonsoIXdeCastela.

104FernãoLopes,CrónicadeEl-ReiD.Fernando(Lisboa:Escriptório,1895),vol.I,p.5[cf.http://purl.pt/419/2/].

105Idem,ibidem,p.191.

106Idem,ibidem,p.182.

107LuisdeMelloVazdeSãoPayo,«EscandalosoIncestonaCortePortuguesadoSéculoXIV»,inEstudosTransmontanoseDurienses,nº13/2007,pp.6ss.

108AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.I,p.260.

109AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.I,p.47.

110Idem,ibidem.

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II

OsbastardosdeAvis

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O

OSBASTARDOSDOREIBASTARDO

únicobastardoque foi reidePortugal teve, tambémele, filhos foradocasamento:umrapazeumarapariga,nascidosantesdeD.JoãoIcasarcomD.FilipadeLencastre.O rapazchamou-seAfonsoeviua luzentre1370 e 1377; a rapariga recebeu o nome de Beatriz e veio ao mundoentre 1378 e 1380. Discute-se ainda hoje o nome de sua mãe. Mas amaioriadoshistoriadoresegenealogistasentendequeelesnasceramdarelação do rei deBoaMemória, quando era aindamestre daOrdemdeAvis (e estava por isso obrigado à castidade), com Inês Pires, que eramuitoprovavelmentefilhadePêroEsteves,oBarbadão111.Conheceram-se,aoquesediz,numacerimóniareligiosadaOrdem.Esósesepararamquando D. João casou. Inês saiu então da sua casa, ao pé da CordoariaVelha,emLisboa,erecolheu-senoConventodeSantos,dequesetornoucomendadeira.D. Beatriz tinha pouco mais de 13 anos quando se tratou do seu

casamentoemInglaterra.AideiadoconsórciopartiudarainhaD.Filipade Lencastre, sua madrasta, que o recomendou vivamente ao reiHenrique IV de Inglaterra, seu irmão. Acordou-se então que D. BeatrizhaviadecasarcomTomásFitzalan,condedeArundell,que«foiumdosprimeirosentreosnobresqueajudaramHenriquedeBolingbroke,ofilhode João de Gaunt, duque de Lencastre, a conquistar a coroa deInglaterra»112.Ocontratonupcialfoiassinadoa21deAbrilde1404.E,emOutubrode

1405,D.BeatrizpartiuparaInglaterra.«Foipormarcommuitahonra»,dizoLivrodaNoadeSantaCruzdeCoimbra, levandoumavultadodotede50milcoroas.Acompanhou-aseuirmão,D.Afonso.«AchegadaaInglaterranoprincípiodeNovembrofoisolene.Esolene

tambémfoiocasamentoa16domesmomês,celebradonapresençadeHenriqueIVedetodaacorte,nacapelagóticadeLambeth,queficasobrea margem direita do Tamisa», escreve o conde de Sabugosa, queacrescenta:«EraocondedeArundellaessetempoumrapazalto, forte,

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espadaúdo,erealizandooperfeitotipodaraçaaquepertencia»113.Celebrado o matrimónio, partiu D. Beatriz para os domínios de seu

marido, acompanhando-a sua dama favorita, Inês de Oliveira. Viveutemposfelizes.Mas,aos23anos, ficouviúva–depoisdeTomásfalecer,vítima de uma epidemia, a 13 de Outubro de 1415, o dia em que elecompletava34anos.Semfilhos,D.BeatriztevedeabandonarocastelodeArundell.Possuía,

noPaísdeGales,asterrasqueconstituíamassuasarras.Osherdeirosdomarido contestaram-lhe a posse, invocando a sua qualidade deestrangeira.Maselafez-lhesfrenteevenceu-os.Em 1432, John Holland, conde de Huntingdon, filho do duque de

Exeter, pediu a mão da condessa viúva de Arundell. E o casamentocelebrou-se. Em 1439, acompanhou o marido, que foi combater paraFrança.E,achando-seemBordéus,adoeceue,a25deOutubro,morreu.Ainstânciasdafamíliadoprimeiromarido,foioseucorpotrasladadoparaInglaterraeenterradono«sumptuosomausoléudacapeladeS.Nicolau»,aoladodocondecomquemprimeirocasara.

***

OoutrobastardodeD.JoãoI(quefoi,aliás,oprimeirodetodososseusfilhos, legítimos ou ilegítimos) nasceu entre 1370 e 1377, numa casa àPortadaAira,juntoaoTejo,queerapertençadeRuiPenteado.Afonsofoicriado por Gomes Martins de Lemos, seu aio, que morava em Leiria enestavilaviveuaté1401,anoemqueD.JoãoIolegitimouparaelecasar,a8deNovembro,comD.Brites(ouBeatriz)PereiradeAlvim,únicafilhadeD.NunoÁlvaresPereira,oSantoCondestável,queera,tambémele,umbastardo.Com a mulher, que era condessa de Barcelos e Arraiolos, D. Afonso

recebeumuitaseboasterras:aviladeChaveseoseutermo,asterrasdePenafiel,BastoeMontalegreeváriasquintas,honras,coutose julgados,além do título de conde que, a pedido do sogro, seu pai lhe concedeu.Tornou-seassimomaisopulentosenhordoreino.Doseucasamentonasceramtrêsfilhos.OprimeirofoiD.Afonso,conde

deOuréme,depois,marquêsdeValença(«oprimeiromarquezqueouveneste reino»114), que teve de uma Brites de Sousa («que ele à hora damortemandouchamarparareceberpormulherequandochegouerajámorto»115)umfilho,D.AfonsodePortugal,queterásidobispodeSilvese

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foicomcertezabispodeÉvora,sendoconsideradoumadaspersonagensmais interessantes do Renascimento português. D. Afonso, quemorreuem1460,aindaemvidadeseupai,tevetrêsfilhosbastardos–oprimeirodosquais,D.Francisco,serácondedeVimioso.Nasceu depois D. Fernando, «quasi parvo, a que chamavão

epicondríacoesefaziapoteeoutrascousasgalantes»116.Foiosegundoduque de Bragança e casou com D. Joana de Castro, que lhe deu oitofilhos.Porfim,nasceuD.Isabel,quecasoucomoinfanteD.João,seutio,filholegítimodoreideBoaMemória.Em1405,depoisdeteracompanhadosuairmãaInglaterra,D.Afonso

visitou várias cortes europeias. Por 1410, esteve em Jerusalém, paravenerar o Santo Sepulcro, tendo sido honrosamente recebido pelasenhoriadeVenezaquandoporlápassou.DepoisdetersidodecididaaconquistadeCeuta,em1415(anoemque

enviuvou), D. Afonso levantou gente nas províncias da Estremadura eEntre-Douro-e-Minho–ecomelafoiembarcaraoPorto.Assumiuocargodecapitãodacapitaniareale,naconquistadacidade,dizAzurara,bateu-sevalorosamente.DeregressoaPortugal,recebeudeseupainovasmercês,queD.Duarte

acrescentouquandosubiuaotrono,em1433.Duranteoreinadodeseumeio-irmãogozou,aliás,demuitovalimento.Mas,aquandodafrustradaconquista de Tânger, em1437, o seu conselho, que era contrário a ela,nãofoiseguido.Após a morte do rei Eloquente, colocou-se ao lado de D. Leonor, a

rainha viúva (e triste), a quem D. Duarte confiara a regência, namenoridade de D. Afonso V. E encabeçou o partido que se opunha àintervençãodeD.Pedro(seumeio-irmão)nogovernodoreinoedequefaziamparteoarcebispodeLisboa(netobastardodoreiD.Fernando)emuitosfidalgosdaBeiraedeEntre-Douro-e-Minho.Quando,nasequênciadasCortesdeLisboade1439,oinfantetomouo

poder, assumindo a regência, o bastardo quis dar-lhe luta. E esteve apontodeofazeremMesãoFrio.MasD.Afonso,condedeOurém,seufilhoprimogénito,evitouoconfronto,lograndoreconciliaropaicomotio.Comestareconciliação,quefoi,aliás,decurtaduração,ganhouD.Afonso,emfinaisde1422,otítulodeduquedeBragança.Masnãoerasuficienteparaaplacarasuaambição.EscreveOliveiraMartins:«ObastardodeD. JoãoI, insaciável,ansioso

porvingar comopodere coma riquezaa inferioridadeda suaorigem,

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perante irmãos mais nobres a todos os respeitos, conseguiu penetrartambém:subir,voandocomoumfalcão,ouinsinuar-se,rojando-secomoumaserpente:treparatésobreocadáverdodesgraçadodeAlfarrobeirae, ganhando afinal, com o ducado de Bragança, um lugar ao lado dosduques de Viseu e de Coimbra, fazer desse posto o degrau que levoutambémaotronoosseusdescendentes.»117D.AfonsoambicionouparaofilhootítulodeCondestáveldoReino,que

foradeseusogro.MasD.Pedro jáo reservaraparaoseupróprio filho,tambémchamadoPedro,queviriaasermestredeAvise,depois,reideAragão. Por isso, os dois irmãos voltaram a zangar-se. E a oposição doduquedeBragançaaoregentenãomaistevedescanso.Em1446,quandooreiatingiuamaioridade,D.AfonsotratoudeoincompatibilizarcomD.Pedro. Este acabou por ser afastado da corte pelo sobrinho, que eratambémseugenro.Em1447,comefeito,D.AfonsoVcasaracomD.Isabel,filhadoduquedeCoimbraedacondessadeUrgel,suamulher.Caídoemdesgraçanoanoseguinteaocasamentodafilha,D.Pedrofoi

acusadopelopartidododuquedeBragançadeterenvenenadoarainhaD.Leonor,viúvadeD.Duarte(quefaleceuemCastela,noanode1445),edetermesmotentadomatarD.AfonsoV,parasentarnotronooseufilho.Opríncipedefendeu-secomopôde.Massemsucesso.EmOutubrode1448,D.AfonsoV,oreiAfricano,chamouD.Afonsoà

corte. Mas aconselhou-o a vir bem acompanhado de homens e armas,umavezquetinhadeatravessarasterrasdoMondego,quepertenciamaD.Pedro.OduquedeBragançamarchousobreLisboanaSemanaSantade 1449, à frente de um exército de trêsmil homens,mas o duque deCoimbranãolheconsentiuapassagempelosseusdomínios,peloqueD.Afonso foi forçado a mudar o itinerário. E, quando chegou à corte,apresentou queixa contra o antigo regente. Reunido o conselho do reipara apreciar o protesto, foi D. Pedro declarado rebelde e desleal aomonarca. E este decidiu ir submeter pelas armas o sogro e os seuspartidários. Enfrentou-os e derrotou-os a 20 de Maio de 1449, emAlfarrobeira,pertodeAlverca,numabatalhaemqueD.Pedroperdeuavida.D. Afonso viverá mais uma dúzia de anos, na companhia de sua

segundamulher,D.ConstançadeNoronha,filhadaquelecondedeGijóneNoronha que casou com a bastarda do rei D. Fernando. Morrerá,«carregado de anos», em Chaves, no ano de 1461, «riquíssimo,poderosíssimo, na plena satisfação das suas grandes ambições», como

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escreveuOliveiraMartins.

coroa.jpg

Teve o 1.º duque de Bragança uma copiosa e ilustre descendência –imperadores,reis,príncipes,fidalgoseplebeus.DelafazemparteoactualduquedeBragança,éclaro,mastambémoreideEspanhaouoreidosBelgas,ogrão-duquedoLuxemburgoeospríncipessoberanosdoMónacooudoLiechtenstein,ocondedeParis,ochefedaCasadeÁustriaeopríncipeherdeirodaJugoslávia.Masaelapertencem igualmente o cónego João Seabra e frei Hermano da Câmara (que,tambémporviabastarda, édescendentedo reiLuísXVdeFrança),os jornalistasMariaJoãoAvillez,MiguelSousaTavareseSofiaPintoCoelho,osfadistasMariaAnaBobone ou Vicente e José da Câmara, além de vários nomes sonantes da políticaportuguesa como António Capucho, José Pacheco Pereira, José Miguel Júdice,Leonor Beleza ou Teresa Patrício Gouveia. E ainda o cineasta António-PedroVasconcelos,oscavaleirostauromáquicosAntónioeJoãoRibeiroTeles,ocozinheiroJoséAvilezeosactoresFranciscoNicholsoneRuiMendes.

111AalcunhadeBarbadãoveio-lhedofactodeterdeixadocrescerasbarbascomomanifestaçãodenojooulutopelasituaçãoemqueafilhasecolocara,aotornar-seamantedeD.João,queoBarbadãoquisaliásmatar.Mas,sabendoqueoMestredeAviseraoprimeiroacompreenderodesgostodo«sogro»,oBarbadãodecidiunãoajustarcontascomele.

112CondedeSabugosa,DonasdeTemposIdos(Lisboa:s/d),p.66.

113Idem,ibidem,pp.74-75.

114FelgueirasGayo,NobiliáriodasFamíliasdePortugal(Braga:CarvalhosdeBasto,1989),vol.IV,p.606.

115Idem,ibidem.

116Idem,ibidem,p.608.

117Cf.OliveiraMartins,OsFilhosdeD.JoãoI(Lisboa:GuimarãesEditores,1958),vol.I,p.9.OduquedeCoimbraeraoinfanteD.Pedro,eoduquedeViseuoinfanteD.Henrique.

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F

OBASTARDOQUENUNCAEXISTIU?

ilhoherdeirodeD. João IemaridodeD.LeonordeAragão,oreiD.Duartetevecincofilhoslegítimos:(1)D.AfonsoV;(2)D.Fernando,duquede Viseu, que foi pai do rei D.Manuel I; (3) D. Leonor, que casou comFredericoIII,imperadordaAlemanha;(4)D.Catarina;e(5)D.Joana,quefoirainhadeCastelapeloseucasamentocomHenriqueIV,oImpotente.Sobre isso, D. Duarte foi autor de dois livros, que lhe valeram o

cognomedeEloquente:oLealConselheiroeAArtedeBemCavalgarTodaaSela.NocapítuloXXXdaprimeiradestasobras,quetrata«Dopecadodaluxúria»,escreveomonarca:

«Paraguardadestepecado,nossoprimeirofundamentodeveseramareprezarvirgindadeecastidadequantosemaispuderfazer,havendo-aporgrandevirtude,quemuitodesejamossemprehaverepossuir.Eporquetodoohomemcomgrandediligênciaguardaoquemuitoamaepreza,quemestavirtudemuitoamareprezarporabemguardarseafastarádasocasiõeseazosporqueapossaperder.»

MasumdiateráhavidonavidadoreiEloquente–umdia,pelomenos–, em que ele pode não ter resistido à tentação da carne, cometendo opecado da luxúria, «que tantos sabedores e grandes pessoas temvencido».EistoporqueD.Duartepoderátersidopaideumbastardo.A história tem barbas, remontando «já à primeira metade de

Quinhentos»118,mascontinuaasuscitarmuitasdúvidasereservasentreoshistoriadorespátrios.AnselmoBraamcampFreire,océlebreautordosBrasõesdaSaladeSintra,porexemplo,recusa-seaaceitarahipótesedeD.Duartetertidoumfilhoforadocasamento,comrazõesqueLuísMiguelDuarte,omaisrecentebiógrafodoreiEloquente, considera «impossívelnão acompanhar»119. O monarca seria o modelo das virtudes queapregoava no seu livro. Contudo, os argumentos que apresenta contraAntónioCaetanodeSousanãoconvencerammuitosgenealogistas,comoFelgueirasGayo120, por exemplo, que, na peugada do autor daHistória

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Genealógica,continuamaafirmaraexistênciadobastardodeD.Duarte.VeríssimoSerrão,nasuaHistóriadePortugal,tambémofaz121.Seria ele D. JoãoManoel – ou D. JoãoManoel de Portugal e Vilhena,

comoalgunshistoriadoresegenealogistaspreferemchamar-lhe–eterianascido,emdataqueseignora,dosamoresdoreicomD.JoanaManoeldeVilhena.Estaera«umasenhoradequalidade»que,dizemuns,veioparaPortugalcomarainhaD.LeonordeAragãoe,afirmamoutros,eradamada rainha D. Filipa de Lencastre. Se D. Joana Manoel era dama de D.Leonor, D. João Manoel é filho adulterino; se, porém, era dama de D.Filipa,entãopodeobastardoternascidoantesdocasamentodeseupai,celebradoem1429.D.JoãoManoelfoidadoàluzemLisboa,sendorecolhidonoMosteiro

doCarmo,ondesedizqueD.NunoÁlvaresPereira,oSantoCondestável,ocriou«comestimação».Educadoem«virtuososprincípioseilustradonasbelasletras»,tomouohábitocarmelitae,prosseguindoosestudos,«saiubomletrado».Provincial da Ordem do Carmo, em 1441, foimandado a Roma para

tratardadispensaqueeranecessáriaaocasamentodoreiAfricanocomD.Isabel,suaprima,filhadoinfanteD.Pedro.TrouxedaCidadeEternaadispensarequerida–eotítulodeBispoTitulardeTiberíades.Em1443,foi feito bispo de Ceuta e primaz de África. E, em 1450, D. Afonso Vnomeou-o seu capelão-mor. Nove anos depois, foi nomeado bispo daGuarda.Masnãotomoupossedadiocese.Oreinuncareconheceuesteseufilho,que,porisso,nuncafoitratado

como tal. Explica o autor da História Genealógica: «Somente ao paicompete fazer semelhante declaração» e, não a tendo feito D. Duarte,mais ninguém a podia fazer. Por isso, «mal podia El-Rei D. Afonso Vconferir-lheaquelahonraqueseupainãolhedera»122.MasD.JoãoManoelaceitouoseuestatutocom«talentoediscrição».E

reconheceuperanteoreiAfricano,seumeio-irmão,que«aquemseupaiencobriuorealsangue,quelhederaanatureza,beméqueVossaAltezalho negue». Ainda assim, «em muitas ocasiões depois [D. Afonso V]confessaroparentesco»123.DeumaJustaRodriguesPereira,«mulhersolteira»enobre,quedepois

fundou o Mosteiro de Jesus, em Setúbal, «em que acabou com vidaexemplar»124ecomquem,sendomoço,obispo«tevetrato»,houvedoisfilhos: D. João Manoel, alcaide-mor de Santarém, mordomo-mor de D.ManuelIeembaixadoremCastela,eD.NunoManoel,guarda-mordorei

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D.Manuel,almotacé-moresenhordeSalvaterradeMagos.Ambosforamlegitimados por D. Afonso V, em 1475, e tiveram copiosa e ilustredescendência.

coroa.jpg

DeD.JoãoManoeldeVilhenadescendemempresárioscomoDiogoVazGuedesou Vasco de Mello, banqueiros como Fernando Ulrich, políticos como NunoBrederodeSantos,escritorescomoJoséBlancdePortugaloufadistascomoNunodaCâmaraPereira.

118SaulAntónioGomes,D.AfonsoV(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.18.

119LuísMiguelDuarte,D.Duarte(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),pp.259-261.

120FelgueirasGayo,NobiliáriodasFamíliasdePortugal(Braga:CarvalhosdeBasto,1989),vol.VI,p.544.

121JoaquimVeríssimoSerrão,HistóriadePortugal(Lisboa:Verbo,1996),vol.II,p.356.

122AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortugueza(Lisboa:AcademiaPortuguesadeHistória&Quidnovi,2007),vol.XII,p.225.

123Idem,ibidem.

124FelgueirasGayo,NobiliáriodasFamíliasdePortugal(Braga:CarvalhosdeBasto,1989),vol.VI,p.544.

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D

OBASTARDOESCONDIDO

omAfonsoV,oAfricano,tinha15anosquandocasou,em1447,coma infanta D. Isabel, sua prima, filha do infante D. Pedro, o das SetePartidas.Dessecasamentonasceramtrêsfilhos:(1)D.João,quemorreumenino; (2) D. Joana, a Princesa Santa, que morreu solteira; e (3) umoutroD.João,oPríncipePerfeito,quesucedeuaseupai.Depois,em1455,enviuvou.Tinha23anosdeidadeenãovoltouacasar.Mas,envolvidonaguerra que a grande nobreza de Castela fez ao seu rei, Henrique IV, oImpotente, ponderou por duas vezes novo casamento: a primeira, em1465,comairmãdomonarcacastelhano,D.Isabel,easegunda,dezanosdepois, com a filha dele, D. Joana, que era, aliás, sua sobrinha. Masnenhumdessescasamentosveiorealmenteaefeito.OprimeirocasamentofoipropostoaD.AfonsoVporHenriqueIV,que

estavacasadoemsegundasnúpciascomainfantaD.Joana,irmãdoreidePortugal. Com esta aliançamatrimonial, o Impotente pretendia obter oapoio do cunhado para derrotar os seus inimigos, que tinhampor essaaltura aclamado um novo rei – o infante D. Afonso, meio-irmão deHenriqueIV,quepassouàhistóriacomoo«reideÁvila».OmatrimóniofoinegociadoporD.AfonsoVcomarainhadeCastela,suairmã,edessasnegociações resultaram umas capitulações que foram assinadas naGuarda, a 12 de Setembro de 1465125. Mas D. Isabel, que era por essetempoumameninadecatorzeanos,recusouunir-seaummonarcaquepodiaserseuavôeguardou-separacasarcomFernandoIIdeAragão–oquefezàsescondidasdeseuirmão(eseurei),em1469.O segundo casamento destinava-se a defender os direitos ao trono

castelhano de sua sobrinha, a infanta D. Joana de Castela, filha deHenrique IV e de D. Joana de Portugal, sua segunda mulher. Era ela alegítima herdeira de seu pai e como tal tinha sido jurada após o seunascimento. Mas, depois, os inimigos do monarca, querendo sentar notrono um dos seus tios – o infante D. Afonso, primeiro; e a infanta D.Isabel,depois–afirmavamqueD. Joananãoera,porquenãopodia ser,

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filhado Impotente,dando-apor frutodosamoresadúlterosdesuamãecom Beltran de la Cueva, um dos favoritos de seu pai, que teria, aliás,promovidooadultério.E,porisso,osinimigosdaprincesachamavam-lheaBeltraneja.Em1464,Henrique IVaceitou reconhecer seu irmãoD.Afonso como

herdeirodotronocastelhanodesdequeoinfantesetornasseseugenro,casandocomD.Joana,aquemascortesnessaalturanãotiveramdúvidasemdaro título eo tratamentodeprincesa–oque correspondeuaumínvio reconhecimento da sua legitimidade. Mas esse casamento nãochegou a realizar-se. E, em 1467, Henrique IV, para conservar o trono,repudiouafilha,quetinhacincoanosdeidadeefoi,nessaaltura,retiradaàmãe.Esta,declaradaadúlterapeloreiseumarido,foimandadaprendernumcastelopróximodeValladolid.FoiaíquearainhaconheceuPedrodeCastillayFonseca,umbisneto

doreiPedroIdeCastela,porquemseapaixonou.Dessesamoresnasceuumpar de gémeos, queD. Joana, tendo conseguido fugir da suaprisão,deu à luz no lugar de Buitragos (Madrid), em 1496. Pedro Apóstolo eAndré de Castela e Portugal – como haveriam de ser chamados – nãoforamcriadospelamãe,que se recolheria aumconvento.Opoucoquedelessesabeéquecasarame,segundoalgunsgenealogistas,nãotiveramfilhos, extinguindo-se assim a geração daqueles que são, muitoprovavelmente,osúnicosfilhosilegítimosqueumaprincesaportuguesateve.Emfinaisde1474,HenriqueIVmorreu,nãosemantesvoltaraafirmar

alegitimidadedesuafilha.D.JoanareclamouosseusdireitosàcoroadeCastela, que Isabel, a futura Rainha Católica, reivindicava para si. D.AfonsoVresolveutomaradefesadasobrinha.Efoiparadarmaisforçaàcausa de D. Joana que o rei de Portugal prometeu casar com ela. Ocasamento chegou a ser celebrado, por procuração, em Maio de 1475.Mas o papa Sixto IV (que confirmara o casamento de Isabel de CastelacomFernandodeAragão,maugradoos laçosde consanguinidade)nãoconcedeuasnecessáriasdispensaseoreiAfricanoconformou-secomavontade do sumo pontífice, deixando a sobrinha solteira – mas nãodesamparada.Em defesa da sua realeza, invadiu Castela. Foi, porém, derrotado na

BatalhadeToro,a1deMarçode1476.E,nãotendoconseguidoobterdorei de França, Luís XI, a ajuda de que carecia para vencer aqueles queserão depois chamados Reis Católicos, foi obrigado a reconhecer a suaderrotaearenunciaraotronodopaísvizinho–oque fezpeloTratado

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dasAlcáçovas,assinadoa4deSetembrode1479.D. Joana veio então para Portugal, onde era considerada a Excelente

Senhora.Recolheu-seaoMosteirodeSantaClaradeSantaréme,depoisdeprofessar,àCasadasClarissasdeCoimbra.Em1487,aindasefalounoseucasamentocomoreideNavarra.MasD.Joanapermaneceusolteira–eassimmorreu,em1530,noPaçodasAlcáçovas,ondeD.JoãoII,depoisdeaterretiradodoconvento,lhedeucasaeestadoderainha.Não obstante o seu celibato, houve quem dissesse que D. Joana

houvera, do rei D. Afonso V, seu tio, um filho. «Esse rebento do régiotálamo foi enviado, ainda criança, para a ilha daMadeira e aí se criou,rodeado de grandezas como quem era,mas proibido absolutamente desairdailha.»IstoescreveCésardaSilva,queacrescenta:«Chamou-seD.Gonçalo de Avis Trastâmara, mas ajuntou aos seus nobres apelidos defamília o de Fernandes, certamente por assim lhe ter sido imposto porseuirmão,oPríncipePerfeito,eporessemodoficouconfundidonamassadoshabitantesplebeusdailhadaMadeira.Aseutempoecomosimplesparticular casou com uma dama da localidade e teve prole.»126 Nadaparecemaislongedaverdadehistórica.Ainda assim, um genealogista madeirense, Luiz Peter Clode, compôs

umaobra sobreaDescendência deD. Gonçalo Afonso d’Avis TrastâmaraFernandes – O Máscara de Ferro Português127, onde declina adescendênciadeGonçaloFernandesdeAndrade,filhodeJoãoFernandesde Andrade e de Beatriz de Abreu. Segundo Henrique Henriques deNoronha, no seuNobiliário da Ilha da Madeira,128 Gonçalo Fernandes«criou-se em casa d’a Excellente Senhora D. Joanna, e foi Vedor d’oInfanteD.Fernando,Paed’ElReiD.Manuel».Estabeleceu-senaMadeira«por mandado d’a ditta Senhora com bôa e luzida Casa, sem se dar aconhecer,nemse saberquem fossematéoprezente seusPaes.Fez seuassento n’a Ribeira d’os Soccorrídos; porém, levando-lhe uma chêa ascasas, a mudou para a Calhêta, e’em um sítio, a que chamão a Serrad’Agua, de quem elle tomou o nome, fabricou casas e uma Ermida deNossaSenhorad’aConceição,aqueavinculousua terça, tomandoacommuito luzimento, e bôas pinturas em que poz por Armas as quinasportuguezas sôbre uma cruz, e com estasmesmas sellou o testamentocomquefaleceuem13deJunhode1539annos,ejazenterradon’adictaEgreja»129.ParaomarquêsdeAbrantes,genealogistailustre,a«ascendênciareal»

de Gonçalo Fernandes não passa de uma lenda sem qualquer

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verosimilhança,bastandoolharparaacronologia:comopodiaovedordoinfanteD.Fernando,quemorreuem1470,serfrutodeum«casamento»celebradoem1475?130

***

QuantoaD.AfonsoV,ésabidoquesempregozoudafamadesermuitocasto.RuidePinaassegura,na suaCrónica, queomonarca foide «muilouvadacontinênciaporquehavendonãomaisde23anosaotempoqueaRainhasuamulherfaleceu,sendoaquelaidadedemaiorespungimentosealterações da carne, tendo para isso disposições e despejo, foi depoisacercademulheresmuitoabstinente,aomenoscauto[…]»Masumdescuido–pelomenos–podetertido.Eassimfoique,estando

noPorto,entreNovembrode1465eFevereirode1466,ter-se-iatomadodeamoresporD.MariadaCunha,queerasobrinhadeFernãoCoutinho,conselheirorégio,emcasadequemD.AfonsoVentãoestava,ehaveriadecasarcomD.SanchodeNoronha.DessesamoresnasceriaÁlvaroSoaresdaCunha,que,emOutubrode

1523,obtevelicençadeD.JoãoIIIparaandardemulaeque,que,àhoradamorte,com90anosdeidade,fezquestãoemdeclararqueD.AfonsoV«tiveraparte»comD.Maria,sendomoça,«aemprenharaevieraaparir»um filho – ele próprio, Álvaro Soares da Cunha, «fidalgo cidadão doPorto», de que foi vereador por três vezes e guarda-mor um ano, «notempodapeste»131.LuizdeMelloVazdeSãoPayo,aquemaexistênciadestebastardoreal

nãooferecequaisquerdúvidas(aocontráriodoquesucedecomamaiorpartedosgenealogistas),contaqueD.AfonsoV,deregressoaoPorto,em1476, contemplou D. Maria da Cunha com uma pensão. E quatro anosdepois,estandonoAlvito,foi-lheapresentadoobastardo–queD.AfonsoVteráreconhecido,masapenasatítuloparticular132.

125TarcisiodeAzcona,«CapitulacionesmatrimonialesentreAlfonsoVdePortugalyIsabeldeCastillaen1465»,inEdadMedia:revistadehistoria,nº5(2002),pp.135-159.

126CésardaSilva,OPriordoCratoeasuaépoca(Lisboa:JoãoRomanoTorres,s/d),p.93,queremeteparaoartigosobreRodriguesFernandesquesepodelernoDicionárioPortugal,T.VI,p.373.

127LuizPeterClode,DescendênciadeD.GonçaloAfonsod’AvisTrastâmaraFernandes–OMáscaradeFerroPortuguês(Funchal:GovernoRegionaldaMadeira,1988).

128OtítuloexactodaobraéNobiliariogenealogicodasfamilliasqpassaramaviveràIlhada

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Madeiradesdeotempodoseudescobrimentoqfoinoannode1420...[BNP,Cod.1324].

129Cf.http://www.geneall.net/P/per_page.php?id=190715.

130MarquêsdeAbrantes,«Pretensões,pretendentes&Cª»,inArmaseTroféus,VISérie,TomoII,1989/90,pp.29-72.

131EugéniodeAndreadaCunhaeFreitaseoutros,CarvalhosdeBasto–AdescendênciadeMartimPiresdeCarvalho,CavaleirodeBasto,vol.I(Porto:ediçãodosautores,1979),pp.36-37.

132LuísdeMelloVazdeSãoPayo,TeráD.AfonsoVtidoumFilhoNatural?(Lisboa:GráficaPortuguesa,1986).

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O

OBASTARDODOPRÍNCIPEPERFEITO

casamentodeD.JoãoII,oPríncipePerfeito,comD.Leonor,arainhadasMisericórdias, suaprima,não foi feliz.E tambémnão foi fértil.DelenasceuapenasopríncipeD.Afonso,queveioaomundoem18deMaiode1475.Nãofoieste,noentanto,oúnicofilhodeD.JoãoII.Orei,quedesde«mancebo»apreciou«folgaremcoisasdeamores»–

como escreveu Garcia de Resende – tinha, segundo um outro cronista,tamanha«fragilidadenosextomandamentoque,aomaisleveacenoquelhefizessem,acudialogoaofenderaDeus»133.Nãosurpreendeporissoque,mesmodepoisdecasado,asaventurasgalantesdoPríncipePerfeitotivessemcontinuado.Ora, em Março de 1476, D. João II conheceu, em Toro, D. Ana de

Mendonça,«mulhermuito fidalgaemoçademuinobregeração»(comoGarcia de Resende a descreve), que era filha de Nuno Furtado deMendonçaeaiadainfantaD.Joana,aExcelenteSenhora.EmJunhodesseano voltou a encontrá-la no Porto. Perdeu-se de amores por ela. E,quandoD.JoanaseestabeleceuemLisboa,D.Joãofezdelaograndeamordasuavida.Desse amor foi fruto um menino que nasceu em Abrantes, a 12 de

Agosto de 1481, e que um autor mais imaginativo garante ter sidoconcebidonosbosquesdeCernachedoBonjardim…134BaptizadocomonomedeJorge,quisD.JoãoIIquefossecriadopelaprincesaD.Joana,suairmã, no Mosteiro de Jesus, em Aveiro, onde ela estava. E mandou-lhopedir por intermédio do Provincial da Ordem de São Domingos. Aprincesa,vendoque«istonãoeracoisaquefizesseturvaçãoaomosteiro,fezdeboavontade,comconselhodosPadres,oqueEl-Reiseuirmãolhepedia»135, como escreve Frei Nicolau Dias na sua Vida da SereníssimaPrincesaD.Joana.D. Jorge entrou nomosteiro com trêsmeses de idade, acompanhado

apenaspelaamaqueocriava,eD. Joanacuidoudelecomose fosseseupróprio filho. D. João II concedeu à irmã o senhorio de Aveiro, para

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melhor prover à educação do bastardo, de que foi encarregado ohumanistaCataldoParísioSículo,DoutoremDireitopelaUniversidadedeFerrara,queoreimandaravirdeItáliaparaoservircomosecretário.Foiistoem1487.Anosmaistarde,omestredeD.Jorgediráquefoipai,mãeemédicodele,tendoalémdissoremovidoadurezadesuatia136.Estacaiugravementedoentecincoanosdepois.Fezoseutestamento,

deixando ao sobrinho «o pendente das três pedras e o pendente daesmeralda»137.Depois,sentindoamorteaproximar-se,mandouchamá-loe fez-lhe uma longa prática. «Filho (lhe disse) encomendo-vosmuito aminha alma, a qual é este Mosteiro de Jesus; lembrai-vos sempre queentrasteneledetrêsmesesequevoscrieivestidadeburel,chorandoecantando. Muito vo-lo encomendo e assim a todos os meus criados.Trabalhaimuitoporserdesvirtuoso,temerdeseamardesmuitoaDeus,eElesejasempreconvoscoevosdêasuabênção.»138Depois,«benzendo-otrêsvezes»,mandouquenuncamaistrouxessem

D. Jorgeàsuapresença.E,assimqueD. Joanamorreu,a12deMaiode1490, «levaram-no ao mosteiro dos padres de Nossa Senhora daMisericórdia e entregaram-no ao bispo do Porto, D. João de Azevedo».MasD. João IIqueria-opertodesi,peloquepediuà rainhasuamulherque,«semalgumapaixãodasmuitasqueemseunascimentorecebera»,acolhessenacorteobastardo,quetinhaentãonoveanosdeidade.D. Leonor, «esquecida já de paixões e descontentamentos

passados»139, acedeu ao pedido do marido, dispondo-se a substituir acunhadaeacuidardoenteado,«comoaseuprópriofilho».D.JorgeveioentãoparaÉvora,ondeacorteseencontrava.EarainhaD.Leonor,«commostrançasdetantahonraeamorcomonelahavia»,passouatratarde«todasascoisasqueàsuavida,ensinoecriaçãocumpriam»140.Foi sol de pouca dura. A 11 de Junho de 1491, o príncipe D. Afonso

morreudeumaquedadecavaloemSantarém, levandoconsigoosonhodereunirnamesmacabeça,asua, todasascoroasdeEspanha, tantoasqueherdariadeseupaicomoasquelheviriamdosseussogros,osReisCatólicos. Mas, sobretudo, D. João II perdia a única pessoa que, sendocarnedasuacarneesanguedoseusangue,lhepodiasucedernotrono.OPríncipe Perfeito pensou, porém, que não estava tudo perdido. PodialegitimarD.Jorge.Efoiexactamenteissoquedeliberoufazer.Oprimeiropassoquedeufoidesastroso:retirouobastardodatutela

da rainha, comopretextode evitar aD. Leonor «umaviva causade seaumentara suamágoa»eentregouD. Jorgeaos cuidadosdeD. Joãode

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Almeida,condedeAbrantes,guarda-mordapessoadorei.Arainha,queerairmãdoduquedeBeja,aquemcabiaasucessãodeD.JoãoIInafaltade herdeiro directo, ficou muito sentida com a decisão do marido edeclarou que nunca mais voltaria a ver D. Jorge nem, muito menos, oadmitiria nas suas casas. Com isto ficou evidentemente prejudicado odesígnio que animava o rei de transformar o bastardo em seu legítimoherdeiroesucessor.MasD.JoãoIInãodesistiu.Opassoseguinte foipediraopapaomestradodaOrdemdeSantiago

paraD.Jorge,«quenãocontavamaisdeonzeanos»,paraelesolicitandotambémogovernoeadministraçãodaOrdemdeAvis.Ospedidosforamdeferidosa29deDezembrode1491,pelabulaEximiaedevotionis,e,emAbril do ano seguinte, na Igreja de São Domingos, em Lisboa, D. Jorgerecebeuaobediênciadoscomendadoresecavaleirosdasduasordens,aomesmo tempoqueseupai lhedavaporaioegovernadordasuacasaoPriordoCrato,D.JorgedeAlmeida.Com isto, o bastardo – que Jerónimo Münzer descreverá como um

jovem «inteligente», «douto» e «cultivadíssimo», que recitava ecompunha versos, sendo, para a sua idade, bastante conhecedor deHorácio,Virgílioeoutrosautores141–dispunhaagoradeumexércitoàssuas ordens, o que não deixou de preocupar os «parciais do Duque deBeja, que tinham por si o apoio e a influência valiosíssima dos ReisCatólicos»142.Estes,comoD.JoãoII insistissenassuascongeminaçõesediligênciasparalegitimarD.Jorge,decidirammandar-lheumaembaixadaque o monarca recebeu em Setúbal, onde se encontrava, em Maio de1494. Isabel de Castela e Fernando de Aragão – declararam os seusembaixadores–tinhamouvido«dizerelhesfoidadoaentenderdemodomuitoafincado»queoPríncipePerfeitodeliberara«nomearseusucessorepríncipeherdeirodesteseureinodePortugalparadepoisdasuavidaaoSenhorD.Jorge»143.Ora,essaerauma«coisamuitofeiaeinjustaedegrandepecadoemuiescandalosaedemuitomauexemplo»,peloqueosReis Católicos não podiam acreditar no que lhe diziam. Mas, «se fosseverdade», queriam advertir o rei de Portugal para os inconvenientes,espirituais mas também «corporais e temporais», que tal resoluçãocomportaria.Poderia nomeadamente suceder que algum príncipe estrangeiro

«dissesse e supusesse que a ele pertencia a sucessão deste reino». Era,porexemplo,o casodoreidos romanos, filho legítimoda imperatrizD.Leonor,irmãdeD.AfonsoV.Maspodiahaveroutrospríncipes.Porisso,

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rematavamosembaixadores,assuasreaismajestadespediamaD.JoãoIIqueapartasseenãodesselugaraopropósitoquesediziatermatériadesucessão da coroa. Até porque do seu casamento com a rainha podiamainda nascer mais filhos; ou podia suceder que, morrendo a rainha,voltasse D. João a casar e ter filhos – legítimos, já se sabe. Havia queconfiarnamisericórdiadeDeusenãotomardecisõesqueOofendiam.D.JoãoIIdeclarouque«nuncatalcoisatinhapensado»,atéporque«ele

e a rainha suamulher estavamnuma tal idadeque aindapoderiam terfilhos legítimos». Quanto a D. Jorge, era seu filho e queria-lhe bem, atéporque «ele era de querer». Se os Reis Católicos «o vissem econhecessem, lhe quereriam bem e […], por ser seu filho, lhe deviammuito querer e apreciá-lo»144. E mandou os embaixadores embora,prometendoretribuiraembaixada.Diasdepois,porém,voltouareceberosembaixadores,quese tinham

entretanto avistado com a rainha D. Leonor. Mas esta, que estava decama,«muitoincomodadaetãosurdaquenãopercebiapalavra»doquelhe diziam, não dera grande andamento ao negócio. Na segundaaudiência,D.JoãoII,declarando-se«bastanteturvado»comoqueouviranaprimeira, fezum«longodiscurso»,queserviuapenasparareiteraroquejáanteriormenteafirmara.Despedidososembaixadores,D.JoãoIInãodesistiudoseupropósito.

E,«paravenceraresistênciaespanholaàlegitimaçãodeD.Jorgeefirmarneste a sucessão da coroa», tentou negociar-lhe o casamento com ainfanta D. Catarina, terceira filha dos Reis Católicos. Mas a rainhacastelhanarepeliuopedido,«lembrandoemtrocaumabastardadoreiD.Fernando [seumarido], o queparece ter sido tomadopelo embaixadorportuguês, Lourenço da Cunha, como afronta». Conta-se, aliás, que oembaixador, quando Isabel,aCatólica, lhe ofereceu, para mulher de D.Jorge,abastardadeFernandodeAragão,respondeuqueoreidePortugalnãoqueriaserparentedoReiCatólicomasdarainha–eaceitariacasarofilhocomumabastardadela,seativesse.Sinonvero…D.JoãoIItentouaindaobteroapoiodeCarlosVIII,reideFrança–que

lhe terá sido prometido –, e também o de seu primo Maximiliano,imperador da Alemanha (filho da infanta D. Leonor e neto do rei D.Duarte), esperando «encontrar no parente tão poderoso e tão próximoum medianeiro apropriado para levar de vencida os obstáculosrenascentes na execução dos seus planos»145. E nesse mesmo ano de1494,D.JoãoIImandouD.PedrodaSilva,comendadordeAvis,aRoma,

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para tratarda legitimaçãodeD. Jorge.Mas,nacapitaldaCristandade,ainfluência dos Reis Católicos e também a oposição do cardeal deAlpedrinha,ferozinimigodeD.JoãoII,frustraramtodasasdiligências.OreidePortugalponderouentãooutrashipóteses:D.Manuelcasaria

comD.Isabel,aviúvadopríncipeD.Afonso,filhadosReisCatólicos,comode facto casou, enquanto D. Jorge casaria com a filha bastarda deFernandodeAragão e receberia os domínios ultramarinos de Portugal.Mas, nas negociações do Tratado de Tordesilhas, não hesitou emprometerquerenunciariaalegitimarD.Jorgeselhefossemconcedidasasvantagensque,nesseTratado,pretendiaalcançar146.Comoalcançou,semnaverdadedesistirdefazerdobastardooseulegítimoherdeiro.Para isso, o Príncipe Perfeito chegou a pensar na dissolução do seu

casamento, o que lhe permitiria ter, de uma outra mulher, um filholegítimo. Mas desistiu desse propósito – e insistiu em convencer D.Leonor a aceitar que o bastardo lhe sucedesse ao trono, recorrendo àinfluênciadasogra,ainfantaD.Beatriz,edoprópriocunhado,ofuturoreiD.Manuel.Arainha,porém,nuncadeixoudeser,nodizerdeRuidePina,a«principalcoluna»que«sempresusteveahonra,eavidaeesperança»do duque seu irmão. E foi combatendo todas as investidas do marido.Este, após uma última e violenta conversa que teve com amulher nasAlcáçovas,rendeu-seàevidência:D.Leonornãocederia.Gravemente doente, sem tempo nem forças (supondo que tivesse

razõeseargumentos)paramaisdiscussões,D.JoãoIIredigiuentão,a29deSetembrode1496,oseu«derradeiroeverdadeiro»testamento.NeledeclarouoduquedeBeja, seuprimoe cunhado, comoúnico e legítimoherdeirodo reino.Masnãodeixoude lhe recomendarque recebesseD.Jorge como seu filho, de tal forma que, não tendo D. Manuel «lídimosfilhos»paralhesuceder,elesetornasseseuherdeiro,fazendo-o«juraredarobediênciaemenagens».OPríncipePerfeitorequeriaalémdissoque,tendoD.Manuel alguma filha, a casasse comD. Jorge,paraquempediatambém omestrado da Ordem de Cristo – e a quem nesse testamentoconcediaaindaacidadedeCoimbracomoducado.Noseutestamento,D.JoãoIIdeixouaindaumatença,oupensão,aD.

Ana, «madredeD. Jorge,meumuito prezado filho», o quepodequererdizerquearelaçãodoreicomaamantesemantinha.EssaéaopiniãodeCamilo Castelo Branco, Oliveira Martins e Barros Gomes, entre outros.Mas cronistas mais antigos, como Rui de Pina e Garcia de Resende,afirmam que D. João se separou da mãe do bastardo quando subiu ao

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trono,em1481.Depoisdeescritasassuasúltimasvontades,oreipartiucomD.Jorge

paraasCaldasdeMonchique,naesperançadeencontrar curaoualívioparaos seusmales,queseagravavamtodososdias.Chegado,porém,àviladeAlvor,caiudecama–enuncamaisselevantou.A25deOutubro,escreve Garcia de Resende, «faleceu el-rei sem pai nemmãe, sem filhonem filha, sem irmão nem irmã, e ainda com muito poucos, fora dePortugal, no reino do Algarve, muito pequeno lugar»147. Muitoshistoriadoresacreditamquemorreuenvenenado.Mortoopai,D.Jorge,quetinhaentão14anosdeidade,precipitou-sea

prestarobediênciaaonovoreidePortugal,queestavaemMontemor-o-Novo. D. Manuel acolheu-o com benevolência – e com benevolência otratounosanosseguintes.Em1498,quandoD.ManuelfoiaCastelaparaser jurado herdeiro daquela coroa, D. Jorge acompanhou-o. E, noregresso,fez-lhemercêasvilasdeMontemor-o-VelhoeTorresNovas.Doisanosdepois,a27deMaiode1500148,D.ManuelIinstituiu,afavor

deD.Jorge,acasaeosenhoriodeAveiro,paraquenosseusdescendentesfossetrocadoemduquedeAveirootítulodeduquedeCoimbra.EraumaformaderecuperarparaacoroaotítuloeacasadoduquedeCoimbra–queosdescendentesdeD. Jorge,umbastardo,nãomereceriamporissoconservar – sem ofender demasiado o filho de D. João II e as últimasvontadesdeseupai.Acartadotítulosófoipassadanoveanosdepois,em1509149.Entretanto,D.Manuel, semnuncadeixardedistinguirD. Jorgecomasuaamizade,tratoudefavoreceroduqueD.JaimedeBragança,asua casa e a sua gente, mostrando que era ele – e não D. Jorge – oprimeirofidalgodoreino150.Foi,aliás,nacasadeBragançaqueobastardodeD.JoãoIIacaboupor

casar–oqueteráfeitooPríncipePerfeitodarvoltasnoseutúmulo.DiasdepoisdacriaçãododucadodeAveiro,comefeito,D.JorgedeLencastrecasou,nãocomumafilhadoreiVenturoso,comoD.JoãoIIdesejara,mascom D. Beatriz (ou Brites) de Vilhena, filha de D. Álvaro de Bragança,senhor de Tentúgal, Póvoa, Buarcos e Cadaval, regedor da Casa daSuplicação e chanceler-mor dosReinos de Portugal e Algarves, que erabisnetado1.ºduquedeBragança,bastardodeD. João I.Eramulherde«formosuratãorara»que,dizocondedeSabugosa,«emtrovasemotesacantavam,dando-lheosobrenomesignificativodePerigosa»151.UmdosseusadmiradoresfoiGarciadeResende,queescreveu:

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Quemnavir,nãopodeverSenãodesimaupesar,PoistemcertoopadecerEapagadoperder.Masaidequems’afastarDevercoisatãoformosaQuesejatãoperigosa…

DofelizcasamentodeD.JorgecomD.Beatriz,celebradoa31deMaiode1500,nasceram:(1)D. João,1.ºduquedeAveiro,quetambémhá-deter um filho bastardo, D. João de Lencastre, religioso da Ordem dosPregadores;(2)D.Afonso,comendador-mordaOrdemdeSantiago;(3)D.Luís,comendador-mordaOrdemdeAvis;(4)D. Jaime,bispodeCeutaecapelãodarainhaD.CatarinadeÁustria;(5)D.Helena,comendadeiradoMosteiro de Santos; (6) D. Maria, freira no Mosteiro de São João deSetúbal,queseupaifundara;(7)D.Filipa,prioresadomesmomosteiro;e(8)D.Isabel,religiosaemSetúbale,depois,emSantos.D. Beatriz de Vilhenamorreu em 1535, quando seumarido tinha 54

anos de idade. D. Jorge, 12 anos depois de enviuvar, «sendo já muitovelho, afeiçoou-se demasiadamente a uma dama da rainha», D. MariaManuel,filhadeD.FranciscodeLima,quenãotinhamaisdoque16anosde idade. E, depois de obter as dispensas papais, casou (ou prometeucasar)comela,em Janeirode1548–comodisseaorei,emcartaqueaesterespeito lhedirigiudepois.Masos filhos, comoduquedeAveiroàcabeça,pediramaoreique,«seocasamentonãoestavafeito,SuaAltezaonãoconsentisse».D.JoãoIII,cujasrelaçõescomD.Jorgenuncatinhamsidoasmelhores,

obteve do papa a anulação do casamento e desterrou o bastardo deD.João IIparaSetúbal, «fazendo-lhe, alémdeste, outrosdissabores»152.D.Jorgeprotestou,masoreiPiedosonãosecondoeu–eosfilhosdoduquedeCoimbratambémnãoperdoaramaopaiaaventuragalante,quepunhaemcausaoseubomnomeeameaçavaoseupatrimónio.Ao comportamento dos filhos reagiu D. Jorge com amarga ironia.

Conta-se,comefeito,que«notempoemqueomestreandavadesejosodecasar com esta dama e sentido dos filhos, porque lhe contrariavam,perguntou-lheumfidalgoseuparenteporquequeriacasareaventurar-sea encurtar a vida. E ele respondeu-lhe: “Por ver se podia haver outrosfilhostãovirtuososcomoosquejátenho”.»153

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Duque de Coimbra e alcaide-mor daquela cidade; senhor de Aveiro,Montemor-o-Velho,Penela,Lousã,CondeixaeTorresNovas,entremuitasoutrasvilaselugares,D.JorgedeLencastremorreuemSetúbal,a22deJulho de 1550, deixando, além dos filhos legítimos, quatro filhosbastardos, uma rapariga e três rapazes, nascidos entre a morte de D.BriteseonamorodeD.MariaManuel.Baptizadostodoscomonomedopai, umdeles, que tomou em religião o nomede FreiAntóniode SantaMaria, foi provincial da Ordem de Santo Agostinho e bispo de Leiria(1616-1623), outro, «clérigo de bom procedimento» e bacharel emCânones,foiprior-mordeAvis,eoúltimofoireligiosodeSãoJerónimonoMosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe. Quanto à filha, D. Joana deLencastre, «morreu moça, sem estado»154, depois de ter vivido emGrândola,vilafundadaporD.Jorge155.

***

AlémdeD. JorgedeLencastre,D. JoãoIIpoderáaindatersidopaideBrites Anes de Santarém, havida de Brites Anes, a Boa Dona, que, naHistóriaGenealógica,AntónioCaetanodeSousanãorefereedequemnãoabundamasnotícias.Sabe-se,porém,oujulga-sesaberque,nascidacercade 1485, a bastarda casou com Amador Baracho, «fidalgo muitohonrado»,e teveuma filha,BritesAnesBarachodeSantarém.Esta,que«estevenopaçoemboaconta»,casoucomJoãoPiresAmado,«fidalgodacasa do Infante D. Afonso», e teve vários filhos. A sua descendênciachegouaosdiasdehoje156.NãoécertoqueD.Britesdevaserincluídanacopiosa e ilustre descendência de D. João II. Mas genealogistasrespeitados,comoFelgueirasGayo157ouManuelArturNorton,não têmdúvidasemfazê-lo.

coroa.jpg

PararecensearosdescendentesdeD.JorgedeLencastre,2.ºduquedeCoimbra,FernandodeCastrodaSilvaCanedoescreveu,em1946,maisdemilpáginas,que

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distribuiupelostrêsgrossosvolumesqueconstituemADescendênciaPortuguesadeEl-Rei D. João II. Dessa copiosa e ilustre descendência fazem parte o banqueiroAntónio Horta Osório, os fadistas Carminho (ou seja: Maria do Carmo CarvalhoRebelodeAndrade)eSalvadorTaborda,bemcomoopadrePeterStilwell.

De D. Brites descendem o escultor Charters de Almeida, a jurista e jornalistaSofiaPintoCoelho,oempresárioGuyVillax,oescritorDomingosAmaraleoactorbrasileiroÂngeloPaesLeme–quedescenderãoassimdeD. João II,desdequeseconsiderequeoPríncipePerfeitofoiopaidaquelasenhora.Omesmosucedecomomúsico Rão Kyao (João Maria Centeno Gorjão Jorge), que não precisa de ter D.Britesporantepassadaparadescenderdebastardosreais.Comefeito,eledescendedeD. Teresa Sanches (bastarda deD. Sancho I) e deD.UrracaAfonso,D. AfonsoDiniseMartimdeSousa,oChichorro(bastardosdeD.AfonsoIII).

133Cf.LuísAdãodaFonseca,D.JoãoII(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.221.

134Idem,ibidem.

135FreiNicolauDias,VidadaSereníssimaPrincesaD.Joana,filhad’El-ReiD.AfonsooVdePortugal(Aveiro:Diocese,1987),p.59.

136D.AntóniodeQueirozeVasconcelosdeLencastre,DomJorge,2.ºDuquedeCoimbra(Porto:CaminhosRomanos,2011),p.24.

137FreiNicolauDias,VidadaSereníssimaPrincesaD.Joana,filhad’El-ReiD.AfonsooVdePortugal(Aveiro:Diocese,1987),p.69.

138Idem,ibidem,p.70.

139RuidePina,Crónicas(Porto:Lello&Irmão,1977),p.965.

140Idem,ibidem.

141LuísAdãodaFonseca,D.JoãoII(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.225.

142Idem,ibidem,p.177.

143LuísAdãodaFonseca,D.JoãoII(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),pp.128ss.,dondeseretiraramascitaçõesqueilustramorelatodaembaixada.

144Idem,ibidem,pp.128-131.

145OliveiraMartins,OPríncipePerfeito(Lisboa:AntónioMariaPereira,1923),pp.177-178.

146ManuelFernandesCosta,ODescobrimentodaAméricaeoTratadodeTordesilhas(Lisboa:InstitutodeCulturaPortuguesa,1979),p.64.

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147GarciadeResende,CrónicadeD.JoãoIIeMiscelânea(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),p.289

148Cf.AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,p.357

149Idem,ibidem.

150Cf.ManuelaMendonça,«RecuperaçãodaCasadeBragançaporD.Manuel»,inEstudosemHomenagemaoProfessorDoutorJoséMarques(Porto:FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto,2006),vol.III,pp.139ss.

151CondedeSabugosa,NevesdeAntanho(Lisboa:LivrariaSamCarlos,1974),p.63.

152JoséHermanoSaraiva,DitosPortuguesesDignosdeMemória(Lisboa:Europa-América,1980),p.62[132];AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.III,357ss.

153JoséHermanoSaraiva,DitosPortuguesesDignosdeMemória(Lisboa:Europa-América,1980),p.62[133].

154AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.XI,p.21.

155D.AntóniodeQueirozeVasconcelosdeLencastre,DomJorge,2.ºDuquedeCoimbra(Porto:CaminhosRomanos,2011),p.163.

156Cf.NunoGonçaloPereiraBorrego,CartasdeBrasãodeArmas–Colectânea(Lisboa:Guarda-Mor,2003),p.367[Árvore851.PedroAnesAmadodeSantarémBaracho].

157FelgueirasGayo,NobiliáriodasFamíliasdePortugal(Braga:CarvalhosdeBasto,1989),vol.I,p.350.

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F

OBASTARDODOPIEDOSO

oiD.ManuelI,oVenturoso,muitofelizcomastrêsmulheresqueteve:D.Isabel,filhadosReisCatólicos;D.Maria,suacunhada,jáqueerairmãde D. Isabel; e, finalmente, D. Leonor de Áustria, sobrinha das duasprimeiras e irmã do imperador Carlos V, que estava, aliás, falada paracasarcomseufilho,ofuturoD.JoãoIII.Nuncaterácometidoopecadodeadultérioe,emtodoocaso,nãoselheconhecemfilhosilegítimos.DeD.JoãoIII,seufilhoesucessor,jánãosepodedizeromesmo.Nãoé

que o piedoso monarca tenha sido infiel a sua mulher, a rainha D.CatarinadeÁustria, tambémela irmãdeCarlosV, comquemcasouemFevereirode1525.Delaterianovefilhos,nenhumdosquaissobreviveuàsuamorte,ocorridaem1556.Mas, antes de casar com a irmã de sua madrasta, que era, também,

cunhadada imperatriz IsabeldePortugal, sua irmã,D. João III teveumfilhobastardo,D.DuartedePortugal.EstefoifrutodosseusamorescomIsabelMoniz, filhadeumalcaidedeLisboaaquemderamaalcunhadeCarrancaequeeramoçadacâmaradarainhaD.Leonor,terceiramulherde D. Manuel I (de quem alguns disseram, aliás, que D. João foraamante…).D.Duarteentrouem1532noMosteirodaPenhaLonga,emSintra,para

sereducadoporFreiJorgedeÉvora,ummongeJerónimo.Em1535,FreiJorgelevouconsigoobastardorealparaoMosteirodeSantaMarinhadaCosta, emGuimarães,ondeD.Duarte recebeuo crismae tomouordensmenores. Ali prosseguiu os seus estudos, cultivou a música e praticoucomesmeroaartedebemcavalgaremtodaasela.Alémdisso,D.DuartetraduziuparalatimamaiorpartedaCrónicade

Dom AfonsoHenriques, de Duarte Galvão – o que levou Frei Diogo deMurta a dizer ao rei Piedosoque o seu filho bastardo tinha feito «obraqueoutrosbemexercitadosnão[fariam]numanooumais»,sendoessaobra«tãolatinaegraveque[era]dignademuitaestimaentreoshomensdoutos»158.

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Paradar estado e garantir o futurodo filho ilegítimo, que se tornaraum «excelente Humanista, Retórico, Filósofo e Teólogo» (no dizer daMemoriadosestudosemque se criarãoosmongesdeS. Jeronymo)159,D.JoãoIIIpediuaopapaPauloIIIqueofizessearcebispodeBraga.Opedidofoi deferido a 6 de Fevereiro de 1542, com a condição deD.Duarte sótomarpossedocargoquandoperfizesse27anosdeidade.O bastardo foi então chamado à corte, para conhecer o pai e os

restantesmembrosdasuarealfamília.Mas,antes,D.JoãoIIImandou-oirvisitar a sua arquidiocese. D. Duarte cumpriu as ordens – e, a 16 deAgosto, saiu do Mosteiro da Costa para ir dormir a Braga, onde sedemoroutrêsdias.Depois,partiu(a19deAgosto)paraSintra,ondeoreiseencontravaquandoomandouchamar.«ProuveraaDeusquepudesseservoando»–escreveueleaopai160.OSenhorD.Duarte(comootrataPêrodeAlcáçovaCarneironassuas

Relações)chegounumsábadoàtardeeficoudoisdiasemSintra,deondesaiu para ir ouvir missa e almoçar no Mosteiro de São Domingos deBenfica, onde D. João III o esperava. Acompanhou-o nessa jornada oinfante D. Luís, seu tio – que era pai de um outro bastardo famoso, D.António,oPriordoCrato,comquemD.Duarteteráconvividoeestudado–ealgunsfidalgosdacorte.Depoisdoalmoço,D.Duartefoibeijaramãodopai.Pôs-sedejoelhose

não se levantou senãoquandoo pai o ergueu.D. João III levou-o entãopara uma outra sala, onde se demorou com ele – mas também com oinfante D. Luís – durante hora emeia. Rezadas as vésperas, D. João IIIregressouaLisboa,trazendoofilhocomele.Apresentou-o então à rainha D. Catarina, que estava acompanhada

pelosdoisfilhosqueaindaviviam:opríncipeD.João,queseriapaideD.Sebastião,eainfantaD.Maria,jácasada(porprocuração)comopríncipede Castela, que reinará mais tarde em Castela como Filipe II e serátambémreidePortugal.Dois ou três dias depois, D. Duarte foi visitar a sua casa o infanteD.

Luíse,aooutrodia,asinfantasD.MariaeD.Isabel,nãotendofeitomaiscedo«porumafebrequetevedotrabalhodocaminho».Ninguémterádadograndeimportânciaaocaso.Mêsemeiodepoisde

terchegadoaLisboa,D.DuarteassistiudecertoàpartidadaprincesaD.Maria,suameia-irmã,paraCastela,ondefoijuntar-seaomarido,ofuturoFilipeII.Depois,voltouacairdoente.Ea11deNovembrode1543,pelasonze da manhã, no Paço dos Estaus, D. Duarte morreu, «de bexigas e

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câmarasquelhevieramsobreelas,daqualdoençanãoduroumaisdedezdias».Tinha,quandomuito,22anosdeidade.D. João III esteve «retraído» durante cinco dias e «tomou dó»: um

capuzdearbimcardado(quesótirounodiadeNatal),umpeloteeumacarapuça. Depois, deu notícia damorte do filho ao seu embaixador emRoma: «Faleceu tão catolicamente e tão conformado com a vontade deNossoSenhor,recebendoantesdoseufalecimentotodosossacramentosda Igreja, que tenho eumuita razão para com isso sentirmenos o seufalecimentoe esperar emNossoSenhor, comoespero, que lhedêa suaglória.»161O corpo do último bastardo de Avis foi depositado no Mosteiro dos

Jerónimos, para onde foi transportado num ataúde de veludo preto,carregadoporumaazémola.Acompanharam-nooMestredeSantiagoetodososbisposecondesqueestavamnacorteepormuitaoutragente,quenãocabianasruas.

***

Segundocronistasvários,D.JoãoIIIteriatido,alémdeD.Duarte,doisoutros filhos ilegítimos: D. Miguel e D. Manuel. Do primeiro fala FreiBernardodeBrito,esóele,dizendoqueobastardo«secriouencobertopertodaquelavila[deAlcobaça]emorreusendoaindadepeito»162.Masninguémdeununcaqualquercréditoaestaafirmaçãodocronista.Quanto a D. Manuel, filho (segundo Camilo Castelo Branco) de uma

Antónia de Berredo, que terá morrido menino, os historiadorespropendememcrerqueeleeD.Duartesãoumaeamesmapessoa.Comefeito,D.DuartecomeçouporsechamarManuel,comoseuavôpaterno,orei Venturoso. Mas, quando D. Catarina de Áustria, a mulher do reiPiedoso,deuà luz,em1531,umacriançadosexomasculino,decidiuD.João IIIdar-lheonomedeseupai.E,paraquenãohouvesseconfusõesentre o filho legítimo e o filho bastardo, determinou que este, ao sercrismado,mudassedenome.FoiassimqueD.Manuelpassouachamar-seDuarte, pelo que parece mais sensato e prudente considerar que omonarcasóteve,defacto,umbastardo.ApesardeFreiLuísdeSousa,nosseusAnaisdeD.JoãoIII,terescritoqueomonarca,quando,no«fervordamocidade»,andou«distraídocommulheres»,delas«houvefilhos»163.Noplural.

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158PauloDrummondBraga,D.JoãoIII(Lisboa:Hugin,2002),p.66.

159Cf.BelmiroFernandesPereira,«AediçãoconimbricensedaRethoricadeJoachimRingelberg»,inPenínsula,RevistadeEstudosIbéricos,nº1(2004),p.204.

160Cf.ArquivoNacionaldaTorredoTombo:TT-CC1-72-100.

161Cf.ErnestodeCamposdeAndrada(org.),RelaçõesdePêrodeAlcáçovaCarneiro(Lisboa:ImprensaNacional,1937),pp.256-262.

162Cf.PauloDrummondBraga,D.JoãoIII(Lisboa:Hugin,2002),p.63.

163Cf.AnaIsabelBuescu,D.JoãoIII(Lisboa:CírculodeLeitores,2005),p.175.

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N

OBASTARDOQUE(NÃO)FOIREI

ahistória dePortugal háumbastardoquequis ser rei – e por serbastardonãoofoi.Masasuarealezanãodeixoudeserreconhecidapormuitosdosseuscompatriotas,queaclamaramestenetodoreiD.ManuelI e dele se afirmaram súbditos. Trata-se de D. António, Prior do Crato,filhodo infanteD.Luísedeuma formosa judiaquesechamouViolanteGomes e teve por alcunha a Pelicana. Mas, ao que parece, também atrataramporPombaouPandeireta.Alguns autores, mais famosos como romancistas que como

historiadores,dãooutrasnotíciasda«barregã»deD.Luís.CamiloCasteloBranco, por exemplo, sustenta contra a «quase unanimidade doshistoriadores»queViolanteGomesera,afinal,«cristã-velha».JúlioDinis,por seu turno, afirmaqueaPelicanaera filhadePêroGomesedeumaMartadeÉvora,que,essa,seriabastardadeD.Diogo,duquedeBeja.Anos depois, o visconde de Faria veio afirmar que a filha de Pêro

Gomes pertencia à pequena nobreza, era católica e professara, com oconsentimentodoinfanteD.Luís,naOrdemdeSãoBernardo,morrendoainda jovem no Convento de Almoster. O seu casamento com D. Luís,acrescentavaovisconde,forasecretoporsermorganático.Masnemporissoofilhonascidodessauniãodeixavadeserlegítimo164.Finalmente, em 1997, Luís de Melo Vaz de Sampaio publicou um

assentodaSédeÉvora,datadode15deJunhode1544,ondesedácontadobaptizadodofilhodeumaescravadePêroGomes,«sogrodoInfanteDom Luís». E essa publicação foi aclamada como a definitiva prova dalegitimidadedeD.António.Averdade,porém,équeoassentoestavalongedeserumanovidade.

DescobertoepublicadoporCamilo,noseulivrosobreD.LuísdePortugal,em1883,odocumento foidepois traduzidopara francêsenessa línguapublicadopeloviscondedeFaria,nosseusArchivesconcernantD.AntonioIer, muito antes de Luís de Melo Vaz de Sampaio o dar novamente àestampa. Por outro lado, a transcrição que os três autores fizeram do

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assento ofereceu muitas dúvidas a Joaquim Veríssimo Serrão, umaautoridade no que ao Prior do Crato e seu «reinado» diz respeito. Ohistoriadorpreferiu seguir a leitura deA. F. Barata, queno assento leu«sobrinho» – e não «sogro» – do infante D. Luís, o que é bastantediferente165. Seja como for, não se afigura que o facto singular de umclérigoeborenseterdeclarado–seéquedeclarou–quePêroGomesera«sogro do Iffante dom Luis» possa resolver definitivamente estacontrovertidaquestão.Há-dereconhecer-sequeD.Antóniosemprefoiconsideradobastardo–

ecomotal tratado–, tantopelarainhaD.CatarinacomopelocardealD.Henrique, seus tios. Por isso, aliás, sempre ocupou nas cerimónias dacorte um lugar de menos destaque que seu primo D. Duarte, o filho –legítimo – do infante D. Duarte, irmãomais novo do infante D. Luís. Opróprio duque de Bragança, D. João, entendia que tinha precedênciasobreoPriordoCrato–porsercasadocomD.Catarina,tambémlídimafilha do infante D. Duarte. E essa reivindicação não faria sentido nemseria consentida se, na corte e no reino, a bastardia de D. Antóniooferecesseentãoalgumadúvida.OPriordoCratoaparecereferidonasrelaçõesdosecretáriodeEstado

deD.JoãoIIIeD.Sebastiãocomo«filhonaturaldoInfanteD.Luís»–emcontraposiçãoaoSenhorD.Duarte,járeferido,«filholegítimodoInfanteDomDuarte»166. E, nos despachos que enviarampara as suas cortes, oembaixador de França, em 1560, e o núncio do papa, em 1576, nãotiveramdúvidasemdesignarD.Antóniocomobastardo167.OembaixadordeEspanha,porseu turno, seaceitoucederaprecedênciaaoSenhorD.Duarte, nunca percebeu porque não devia passar à frente do Prior doCrato168.Até1579,pelomenos,abastardiadeD.Antónionãosuscitavadúvidas a ninguém – nem sequer a ele próprio, comomais adiante severá.Nascido em Lisboa cerca de 1531, o filho do infante D. Luís e de

Violante Gomes não foi criado por suamãe – que pouco depois do seunascimentoserecolheuaumconvento,porordemdoinfanteouporsuaprópria vontade, falecendo em Julho de 1568, na vila de Almoster.BaptizadocomonomedeAntónio,omeninoviveuemcompanhiadopaiatéperfazeroitoanosdeidade,sendoentãomandadoparaoMosteirodaCosta, em Guimarães, onde estudou gramática com Inácio deMorais, opoetalatinoquedepoislhededicouoConimbricaeEncomium(«ElogiodeCoimbra»)eondefoicondiscípulodeD.Duarte,obastardodeD.JoãoIII.

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Aos 12 anos mudaram-no para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,ondeaprendeufilosofia.Ecom20anosdeidadedoutorou-seemArtes.Mas seu pai queriamais emelhor: desejava-o «eminente em letras»,

considerandoquetinha,paraisso,«muybomengenhoetantadisposiçameaparelho».Easpiravaaqueobastardosetransformasseem«humdosmaisfamososhomensdaEuropa»,comoescreveuem1550,numacartaenviadadeAlmeirim.Por isso, em 1551, D. António trocou Coimbra por Évora, onde

pontificavao cardealD.Henrique, seu tio, comquempassou amorar –paraaliestudarteologiacomFreiBartolomeudosMártireseD.JerónimoOsório. Ali também recebeu a ordem de diácono. Se o infante D. Luísaspirava a fazer do filho um dos mais famosos homens da Europa, ocaminhomais fácil e mais seguro era a carreira eclesiástica. Omesmodestino,comambiçõesporventuramaismodestas,foraaliástraçadoporD.JoãoIIIparaD.Duarte,oseufilhobastardo.Mas,em1555,oinfanteD.Luísmorreu–etudomudounavidadeD.

António, que lhe sucedeu no grão-priorado do Crato, «o posto maisrendoso emais alto da Ordem deMalta em Portugal»169. O novo priorrecusou-se a ser ordenado presbítero, alegando que abraçara o estadoeclesiásticopor imposiçãoalheiaenãoporvontadeprópria.Nãoestavaportanto disposto a cumprir as últimas vontades de seu pai – o quecausougrandedesgostoaocardealseutio.«Como o Prior do Crato, pelas tendências naturais do seu

temperamento pujante e vigoroso, mais talhado para cavaleiro do quepara monge, se abandonasse a uma vida licenciosa, D. Henrique, queprezava a castidade como a virtude fundamental do clérigo, não lheperdoava a soltura de costumes, transformando-se pouco a pouco aantipatiaemverdadeirainimizade»170.AscoisaspioraramquandoD.António,nãoquerendoserpadre,pediu

comgrandedesfaçatezqueofizessemarcebispo–earcebispodeÉvora,sucedendoao cardeal seu tio, que tinhagovernadoa arquidiocese.Esteindeferiuapretensãodosobrinho,dando-lhe,porém,dinheirobastantepara pagar as dívidas, que erammuitas. Ainda assim, o Prior do Cratoficou muito indignado e retirou-se para Castela, onde se acolheu àproteçãodeFilipeII,seuprimo.Foiistoem1565,oanoemqueopapa,porumbreve,pediuaoreidePortugalparaD.Antónioserrepreendidopelasuacondutaesuspensodogovernodopriorado,quefoientregueaocardealD.Henrique.

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D. António só regressou ao reino em Setembro de 1566, após umaausênciadequasedoisanos.Masnãotardouazangar-sedenovocomocardeal, que então governava o reino em nome de D. Sebastião, aindamenordeidade.DesterradoparaoCrato,oPriorsóvoltouàcorteapósD.Sebastiãotertomadocontadogoverno,emJaneirode1568.ContinuouacontarcomoapoiodeFilipeIIparaassuaspretensões.Eassimfoique,em1572,oReiCatólicopediuaopapa«paraqueD.Antóniopossadeixarohábitoreligioso,nãoobstanteserordenadodeEpístolaeEvangelhoepossagozardoPrioradodoCrato edeoutras comendasepensõesquetem, embora lhe tenham sido dadas com a condição de ser clérigo»171.GregórioXIIIdeubomdespachoaorequerimentodomonarcacastelhano,oquedeixouocardealmuitoagastado.MasD.Antónioconseguiutambémcairno favordeD.Sebastião,que,

em1573, o fez governadordeTânger– cargoemqueobastardodeD.Luís não se distinguiu, incorrendo assim no desagrado do «sobrinho».Este,quandorealizouasuaprimeiraJornadadeÁfrica,em1575,demitiuo«tio».Aindaassim,oprestígiodequeoPriordoCratodesfrutavaemmuitos

círculosnãodiminuiu.EonúncioapostólicoemLisboa,escrevendoparaRomaemfinaisde1576,quandooDesejadojápreparavaasuasegundaJornada de África, ponderou que, falecido o filho legítimo do infanteD.Duarte,«amelhoresperançadosportuguesesparaafaltadesucessãoemD. Sebastião»172, D. António poderia suceder aD. Sebastião, no caso deestemorrersemfilhos,«oqueDeusnãoqueira».Averdade,porém,équepara desempenhar esse papel o Prior do Crato tinha, como o núncioreconhecia, «muitas dificuldades, porque [era] bastardo, diácono, freiredeMaltaefilhodeumacristã-nova»173.Em 1578, D. António acompanhouD. Sebastião aMarrocos e travou,

sob as suas ordens, a funestaBatalhadosTrêsReis, emAlcácer-Quibir.Ferido e preso em Tetuão, foi o primeiro dos portugueses a sair docativeiro, passando a Arzila e dali a Lisboa, onde foi «festivamenteacolhidoporalgunsfidalgosemuitopovo».JáentãoocardealD.Henriqueforaaclamadorei.Mas,velhoedoente,o

monarcanãopodiadurarmuito.Etodososqueaspiravamaherdar-lheotrono prepararam-se para a guerra da sucessão. Eram numerosos ospretendentes: Rainúncio Farnese, duque de Parma; Emanuel Filiberto,duquedeSabóia;FilipeII,reideEspanha;D.CatarinaeD.João,duquesdeBragança;CatarinadeMédicis,rainhadeFrança–eD.António,Priordo

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Crato, que, para se habilitar à herança de D. Henrique, necessitava,porém,deprovaralegitimidadedoseunascimento174.Ora, como se o acaso quisesse prover às ingentes necessidades do

Prior, começouexactamenteporessaalturaadizer-seemLisboaqueoinfanteD. Luís fora, afinal, casado comaPelicana.D.António tratoudeapurar a veracidade dos boatos. E do feliz resultado dessas diligênciasapressou-seadarcontaaonúncioapostólicoemLisboa,numacartaquelheescreveuemDezembrode1578.Nessacarta,oPriordoCratodiziaque,tendodecididoinvestigarosinsistentesrumoresquecirculavamemLisboasobreocasamentodeseupai,eledescobriraquatrotestemunhasque,também«poracaso,todasestavamemcasa[daPelicana]quandooInfanteDomLuis foi de improviso e denoite tratar com suamãe, parapossuí-la, determinando casar com ela. Estas testemunhas estavamretiradasnumaoutrasala,dondevirameouviramtudo[…]»175Comestastestemunhasesuasinformações,D.Antóniorecorreuaum

juizdasuaOrdem,aOrdemdeMalta,chamadoFreiManueldeMelo,que,a 24 de Maio de 1579, proferiu uma sentença declarando que, aocontráriodoquesempreseafirmara,D.Antónioera,afinal,filholegítimodoinfanteD.Luís.Rezavaasentençaqueo infanteD.Luís,«sendomanceboeem idade

florescente se namorar de Violante Gomes, donzela, muito formosa ehonesta,degrandediscriçãoegraça»,arecebeupormulher.«Etantoquea recebeu pormulher amandou chamar porD. Violante» e «tratar […]comvestidos, camase jóias».Foi, aliás,porestar casado–prosseguiaasentença – que D. Luís recusou todos os casamentos que lhe forampropostos,nomeadamentecomarainhadeInglaterra,nuncamaispondo«osolhosemoutramulher».Última prova do casamento: o facto de D. Luís, no seu testamento,

«nomear o Senhor D. António por seu filho simplesmente sem adição,nem acrescentar natural, o que conforme o direito civil e canónicobastava para se provar como de feito basta para ser havido porlegítimo»176. E Frei Manuel de Melo concluía: «Julgo e declaro pelaautoridadeamimcometidaoditoSenhorD.Antónioserfilholegítimododito Senhor Infante e da dita Senhora D. Violante, nascido de legítimomatrimónio.»177Malfoiconhecida,asentençacausougrandeindignação–emFilipeIIe

na duquesa de Bragança, que se consideravam os únicos herdeiroslegítimos da coroa, mas também no cardeal-rei, que a «reputou

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abertamenteescandalosa»enãoseconformoucomela.PediueobtevedopapaGregórioXIIIquefosseeleconstituídojuizdacausadalegitimidade,oqueprovocouos imediatosprotestosdeD.António:o julgamentonãopodia ser imparcialporqueD.Henriqueerapúblicaenotoriamente seuinimigo.EapelouparaqueacausafossedevolvidaàSantaSé.Nadaconseguiu.E, emAgosto,o cardeal-rei, acolitadopeloarcebispo

deLisboa,obispodeLeiria,obispodeMirandaeobispocapelão-mor,decidiu «não se provar matrimónio de presente nem de futuro, nemnunca o haver», entre o infante D. Luís e D. Violante, sendo «tudomaquinaçãoefalsidade».Opróprioinfante,noseutestamento,declararaqueD.Antónioeraseufilhonatural.Porisso,D.Henriquedeclarava«D.António meu sobrinho por não legítimo, e sobre o dito pretensomatrimónio e legitimidade […] lhe pomos perpétuo silêncio»178. Sobreisso,ocardeal-reiexpulsavadacorteoPriordoCratoemandavaprenderassuastestemunhas.EranotestamentodoinfanteD.Luísqueestava,então,aprovadecisiva

dailegitimidadedoPriordoCrato.Semsurpresa,FilipeIIapressou-seapediraCristóvãodeMouraumacópiadodocumento,«porqueouvidizerque chama filho natural a D. António». Se essa declaração constasseefetivamente do testamento, ficaria provado – como explicava o reiPrudente – «ser vã a sua pretensão»179. Tudo indica que a cópia dotestamentochegouàsmãosdomonarcacastelhano.Mas,sechegou,FilipeIInuncafezusodela.Porquê?PodeserquedelanãoconstasseareferênciaàbastardiadeD.António

–oquesignificariaqueocardealtinhamentido.Ora,FilipeIInãoestavainteressado em desmentir o tio, até porque, se o fizesse, daria àcandidaturadeD.Antónioumaforçaqueelaparecianãoterlogrado,aomenosjuntodocleroedanobrezadoreinolusitano.Poroutrolado,seabastardiaficassedemonstrada,acandidaturadeD.Antónioficariaferidade morte – e isso também não interessava ao rei de Espanha. ComoCristóvãodeMoura,seuvalido,explicou,acandidaturadoPriordoCratotinha o imenso mérito de dividir o campo adverso a Filipe II,prejudicandosobretudoacandidaturadaduquesadeBragança–queera,comohojesesabe,apreferidadocardeal-rei.Esse facto justifica ou atenua as culpas que D. Henrique terá neste

cartório. D. António roubava adeptos a D. Catarina, prejudicava-lhe – enão pouco – as pretensões de suceder ao cardeal. E, como era essa asucessãoqueeledesejava,nãosecansoudeperseguiretentarafugentar

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osobrinhobastardo.Fê-lode formaquenãoo tornasimpático–eque,afinal,emnadacontribuiuparafavorecerasuaprotegida.ForammuitososprotestoseosapelosdeD.Antóniocontraasentença

do cardeal seu tio, que o mandava «perseguir como nunca fez aninguém»180. E o papa, considerando que, para excluir o Prior dasucessão, era preciso mais do que aquilo que D. Henrique tinha feito,tentouavocaracausa,paraadecidir.Sóque,noentretanto,ocardeal-reimandou reunir cortes para os vários pretendentes à sucessão do reinofazeremvalerosseustítulos–eparaelasnãoconvocouoPriordoCrato.Logo a seguir morreu, deixando a sua sucessão entregue aosgovernadores que nomeara para administrarem o reino enquanto umnovoreinãofosseaclamado.AverdadeéqueaprotecçãoqueopapamanifestamentedavaaoPrior

doCratoamedrontouFilipeII,que,pararesolverdeumavezportodasasucessão dos reinos e senhorios de Portugal, deliberou apoderar-se dePortugalmanumilitari,mandandoassuastropasàconquistadeLisboa.Eexplicouque só recorriaà forçaporqueopapa se tinha intrometidonopleito sobre a legitimidade deD. António, «omais popular de todos ospretendentes»181.Quando se deu a invasão espanhola, o Prior do Crato, que tentara

debaldealcançardeFilipeIIotítulodegovernadorperpétuodePortugalesóaspiravaagoraaserdeclaradodefensoreregedordoreino,comooMestre de Avis o fora em 1383, viu-se de repente aclamado rei dePortugal pelos moradores de Santarém. E partiu ao encontro dosinvasorescastelhanos,queoduquedeAlbacomandava.Os dois exércitos enfrentaram-se na batalha de Alcântara, a 25 de

Agosto.Feridoederrotado,D.Antónioabandonouacapital(ondeopovotambémoaclamaracomorei)erefugiou-seemCoimbra,dondepartiuàconquistadeAveiroe,aseguir,doPorto.FoialiqueastropasdeSanchodeÁvila,o Raio da Guerra, estiveram prestes a detê-lo.Mas o Prior doCratoconseguiumaisumavezescapar,destafeitaparaBraga.E,depois,durantemeses, errou pelo país, «mudando de pousada sem cessar»182,até embarcar em Setúbal numbarco enviado pelo rei de França, a cujaprotecçãoseacolheu.FoiistoemJunhode1581.ComaajudadeHenriqueIII,reideFrança,aquemprometeuentregar

o Brasil, realizou um ano depois uma expedição aos Açores, que semantinhamfiéisàsuarealeza.Masaesquadrafrancesa,queFilipeStrozzicomandava, foi derrotada pelos espanhóis na batalha de Vila Franca

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(Junho de 1582). D. António regressou então a França, congeminandonovas formas de recuperar o que dizia ser o seu reino. Para o efeito,solicitou a ajuda da rainha Isabel de Inglaterra – que se dispôs aconceder-lho,querendovingar-sedoReiCatólicoquemandaracontraelaa Invencível Armada. Uma esquadra, comandada pelo famoso FrancisDrake, foiassimencarregadade levarD.AntónioaPortugal.OPriordoCratodesembarcoucomasuagenteemPeniche,a16deMaiode1589,sendotriunfalmenteacolhido.ElogomarchousobreLisboa,chegandoàsPortas de Santa Catarina. Tentou o assalto à cidade, mas foi repelido.Derrotado,regressouaInglaterra–onde,nosmesesseguintes,passouasmaioresprivações, «havendodias emque se alimentavaunicamentedepão e água, e ficando muitas vezes os seus criados quatro dias semcomer»183.Masnãodesistiudosseusintentos,empenhando-senapreparaçãode

umanova expediçãoque, contando como apoiodo reiHenrique IV, deFrança,darainhadeInglaterraedoimperadordeMarrocos,haviadelhedevolveracoroaeoreinoqueafirmavaseremseus.Paraoefeito,trocoua Inglaterra pela França e voltou a estabelecer-se em Reuil, onde járesidiraanosantes,aliedificandoumaigrejadedicadaaSãoPedroeSãoPaulo, que ainda hoje existe. Foi naquela cidadezinha situada nosarredores de Paris que D. António, o Prior do Crato, morreu a 26 deAgosto de 1595, deixando vários filhos – todos nascidos de aventurasgalantes,umavezquenuncacasou.Falou-se, é verdade, num casamento comD. Filipa de Portugal, irmã

daquelecondedeVimiosoquefoiomaisdevotadodosseusapoiantes.ED.AntóniotambémteráponderadocasarcomumadasfilhasdosduquesdeBragança, «comopartedopactoque comelesquis realizar»184.Masnenhumdesses casamentos veio a efeito. O celibato era, aliás, uma dasobrigaçõesdoscavaleirosdeMalta.QuantoaosbastardosdoPriordoCrato,forameles,pelomenos:(1)D.

ManueldePortugal,oprimogénito;(2)D.CristóvãodePortugal,nascidoemTângerporAbrilde1573;(3)D.DinisdePortugal,mongedeCisternoMosteirodeValbuena; (4)D. JoãodePortugal,que«morreumoço, semestado»;(5)D.FilipadePortugal,quefoifreiraemLorvãoe,depois,emÁvila; e (6) D. Luísa de Portugal, que foi freira em Tordesilhas, ondetambém professaram mais duas filhas de D. António, cujos nomes sedesconhecem.De todosestes filhos, sóD.Manuel casou– comaprincesaEmíliade

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Nassau, uma protestante fervorosa, filha de Guilherme de Orange, oTaciturno. Deste casamento, que a família da noiva contrariou quantopôdeefoicelebradoemgrandesegredonodia17deNovembrode1597,nasceramoitofilhos.Asaber:(1)D.MariaBélgicadePortugal,quecasoucomJohannDietrichvonCroll;(2)D.ManueldePortugal,quecasoucoma condessa Joana de Hanau-Müzenberg; (3) D. Luís Guilherme dePortugal, 1.º marquês de Trancoso, por obra e graça de Filipe IV, quecasou com Anna Maria di Capece-Galeoti; e (4) D. Maurícia Leonor dePortugal, que casou comopríncipeGeorgFriedrichLudwigdeNassau-Siegen; (5) D. Emília Luísa de Portugal; (6) D. Ana Luísa Frísia dePortugal;(7)D.JulianaCatarinadePortugal;e(8)D.SabinadePortugal.Foramelesquegerarama copiosadescendência aindahoje existente

doPriordoCrato.Mas,curiosamente,nenhumdessesdescendentestemanacionalidadeportuguesa.D.Manuelacabouporseseparardamulherem1625.Emíliaretirou-se

para Genebra, onde morreu em 1629; e o bastardo de D. Antónioestabeleceu-seemBruxelas,«umadasmaismaçadorascortesdaEuropadoséculoXVII»,ondeveioacasarcomLuísaOsório,umadamaespanholade quem não teve filhos. Morreu em 1626, com 70 anos de idade,deixandonoestrangeiroumadescendênciaquechegouaosdiasdehoje.

164Cf.ViscondedeFaria,DéscendancedeD.Antonio,PrieurdeCrato,XVIIIroidePortugal(Livorno:RaphaelGiusti,1909).

165JoaquimVeríssimoSerrão,OreinadodeD.António,PriordoCrato(Coimbra:1956),p.LXIII.

166ErnestodeCamposdeAndrada(org.),RelaçõesdePêrodeAlcáçovaCarneiro (Lisboa:ImprensaNacional,1937),p.319.

167JosédeCastro,OPriordoCrato(Lisboa:UniãoGráfica,1942),p.31.

168MariadoRosáriodeSampaioTemudoBarata,AsRegênciasnamenoridadedeDomSebastião(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1992),vol.II,p.150.

169JosédeCastro,OPriordoCrato(Lisboa:UniãoGráfica,1942),p.18.

170QueirozVeloso,D.Sebastião(Lisboa:EmpresaNacionaldePublicidade,1935),p.71.

171JosédeCastro,OPriordoCrato(Lisboa:UniãoGráfica,1942),p.29.

172Idem,ibidem,p.30.

173Idem,ibidem,p31.

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174TodosospretendenteseramnetosdeD.Manuel,comexcepçãododuquedeParma,queeraseubisneto,e,éclaro,deCatarinadeMédicis,cujos«direitos»sefundavamnofactodeocondeD.Henriqueserfrancês.

175JosédeCastro,OPriordoCrato(Lisboa:UniãoGráfica,1942),p.39.

176Idem,ibidem,p.41.

177Idem,ibidem,p.42.

178Idem,ibidem,pp.51-54.

179JoaquimVeríssimoSerrão,OreinadodeD.António,PriordoCrato(Coimbra:1956),p.LV.

180JosédeCastro,OPriordoCrato(Lisboa:UniãoGráfica,1942),p.91.

181Idem,ibidem,p.112.

182DamiãoPeres,1580–OGovernodoPriordoCrato(Barcelos:CompanhiaEditoradoMinho,1928),p.101.

183FredericoFranciscodelaFiganière,CatalogodosmanuscriptosportuguezesexistentesnoMuseoBritannico(Lisboa:ImprensaNacional,1853),p.13.

184CésardaSilva,OPriordoCratoeasuaépoca(Lisboa:JoãoRomanoTorres,s/d),p.264.

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III

OsbastardosdosFilipes

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D

OSBASTARDOSDOREIPRUDENTE

ostrêsFilipesdeEspanhaquereinaramemPortugal,sódosegundo– que era, como se sabe, o terceiro – não se conhecem amantes nembastardos.Oprimeiro,aquealgunschamaram,noseutempo,o«filhodaportuguesa», teve várias aventuras extraconjugais, das quais terãonascidofilhosilegítimos.Edoterceiro,FilipeIV,diz-sequetevedezenasdeamanteseaindamaisbastardos…FilhodoimperadorCarlosVedaimperatrizIsabeldePortugal,Filipe

II,oprimeirodonomeareinaremPortugal,eravirgem–oudiziasê-lo–quando casou, em 1543, comD.Maria de Portugal, sua prima co-irmã,filhadeD. João IIIedeD.CatarinadeÁustria.Tinha,então,16anosdeidade.Mas,emValladolid,muitosdiziamqueestavasecretamentecasadocomD.IsabeldeOsorioyVelasco,damadaimperatrizsuamãee,depois,dainfantaD.Joana,suairmã,quehá-decasaremPortugalcomopaideD.Sebastião.Guilherme de Orange, na suaApologia, não hesitou em afirmar esse

casamento,paramelhoracusardebigamiaoherdeirodeCarlosV.E,aoqueparece,aprópriadamaoterádeclaradoaalgumaspessoas–emboraCabreradeCórdoba,historiador,garantaqueporessaalturajáelatinhaperdidoarazão185.Emtodoocaso,hojeprevaleceaopiniãodequeestaIsabelfoi–como

asseguraManuelFernándezAlvarez,umdosmaisautorizadosbiógrafosdo rei Prudente – o grande amor da vida de Filipe II186. E desse amorterão nascido dois filhos: Pedro e Bernardino de Osorio y Velasco,havidosentre1552e1554masnuncareconhecidospelopai187.OromanceteráterminadoquandoFilipeIIpartiuparaInglaterra,em

Julhode1554,paracasarcomarainhaMariaTudor,suasegundamulher,entrandoIsabelOsorioparaumconvento,onde«morreusantamente»188.Fala-setambémdeumaaventuracomCatalinaLénez,filhadeumdos

seussecretários.TeriaocorridologoapósamortedainfantaD.Maria,em1545,edelaterianascidoumafilhabastarda.Umaoutrateránascidodas

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relaçõesdoreiPrudentecomumaElenaZapata,que tambémconheceudepoisdamortedesuaprimeiramulher.Mas,aseremverdadeirasestashistórias,apaixãodeFilipeIIporIsabelOsorionãoseriatãoassolapadacomoalgunsqueremfazercrer.Apósamortedesuasegundamulher–eantesdoseucasamentocoma

terceira,IsabeldeValois–,FilipeIIterátidoumromancecomEufrásiadeGuzmán, dama de D. Joana de Áustria. Dessa aventura terá nascidoAntónioLuísdeLeyvaydeGuzmán,4.ºpríncipedeÁscoliemarquêsdeAtela.Finalmente,deumromancemuito falado,masnuncaprovado, coma

princesadeÉboli,mulherdoportuguêsRuiGomesdaSilva,umdosmaisescutados conselheiros e porventurao amigomaispróximodeFilipe II(seéqueoreiteveamigos),teránascidoRodrigodeSilvayMendoza,2.ºduquedePastrana,quehaveriadeparticiparnainvasãodePortugal,em1580189.Há ainda quem atribua a Filipe II a paternidade de Gregorio López

(1542-1596),umdoseremitasmaisfamososdaNovaEspanhanoséculoXVI.AntesdechegaraoMéxico,em1562,foipajemdoreiPrudente.Masdizia-sequeeraseufilho.Morreuemodordesantidade.A verdade, porém, é que das amantes e dos bastardos do rei não há

maisdoque rumores, suspeitas, insinuações – e nenhumaprova. Éporissoindispensável,nestamatéria,sertãoprudentecomosedizqueFilipeIIoeraemtodasasoutras.

185PeterPierson,FelipeIIdeEspaña(México:FondodeCulturaEconomica,1984),p.66.

186ManuelFernándezAlvarez,FelipeIIysutiempo(Madrid:Espasa-Calpe,1998),pp.735ss.

187ManuelLacarta,FelipeII–LaintimidaddelReyPrudente(Madrid:Alderabán,1996),pp.52-3.

188CarlosFisas,HistoriasdelasReinasdeEspaña–LaCasadeAustria(Barcelona:Planeta,1998).p.54.Mas,em1557,FilipeconcedeuaIsabeldoismilhõesdemaravedis,quelhepermitiramcompraroslugaresdeSadañuela,pertodeBurgos,eCastelbarracín.V.ManuelFernándezAlvarez,FelipeIIysutiempo(Madrid:Espasa-Calpe,1998),p.738.

189GeoffreyParker,FelipeII(Barcelona:Planeta,2010),p.675,quealiásnãodácréditoaestainformação.

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O

OSBASTARDOSDOREIPASMADO

Rei Planeta (ou o Rei Pasmado, como quer Gonzalo TorrenteBallester),FilipeIV,terceiroeúltimodonomeareinaremPortugal,teveduas mulheres e 13 filhos legítimos. Mas, segundo historiadoresinsuspeitos, terá tido também mais de 50 amantes conhecidas e umnúmero de filhos bastardos sobre o qual os historiadores não seconseguempôrdeacordo.Háquemfaleemmaisdeseisdezenas190.MasAlbertoRisco,seubiógrafo,asseguraqueeram«tansolo»23…Quanto às amantes, «depois que el-rei delas se enfastiava», eram

convidadasaentraremreligião,ondeterminavamorestodosseusdias.Conta-se, aliás, que uma formosa e irreverente dama da corte teriaresistido às investidas do rei de Espanha dizendo-lhe: «Perdoai-me,Majestade,masnãotenhovocaçãodefreira»…191

Dosfilhosilegítimosconhecem-se,entreoutros,osnomesdeFernandoFranciscoIsidrodeÁustria,queterásidooprimeiro,havidoem1626deMaria, filhadocondedeChirel,quemorreuem1634efoienterradonoEscorial (o que corresponde a um reconhecimento implícito); AlonsoAntoniodeSanMartin,bispodeOviedoedeCuenca,havidodeTomasaAldana, dama da rainha; Carlos (ou Fernando) Valdés, general deartilharia e governador deNovara, havido deAnaMaria deUribeondo;CarlosdeÁustria,nascidodemãedesconhecida;FreiJoãodoSacramento,também chamado Juan Cossio, frade agostinho e célebre pregador,nascidoem1629dosamoresdeFilipe IVcomMariaTeresaAldana;ouAnaMargarida de Áustria, «bastarda sereníssima», havida em 1632 deMargherita de l’Escala, que tomou em religião o nome de Soror AnaMargaridade São José.Quando estaprofessou, Filipe IV terá explicado:«Pareceu-mejustodarestaprendaaDeusjáqueoofendiquandomadeu[…]»192Alonso Enríquez de Guzmán y Orozco é suposto ser outro dos

bastardosdeFilipe IV,nascidodosamoresdomonarcacomacondessadeCastronovo.Quandoestaficougrávida,foiapressadamentecelebrado

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o seu casamento com omarquês de Quintana – que para isso recebeubomdinheiro.Nascidosetemesesdepoisdocasamentodesuamãe,perdeuo«pai»

pouco depois. E aos três anos de idade ficou órfão de mãe. Esteveentregue aos cuidadosdos avósmas acaboupor ser criadopor um tio,FreiAntonioEnríquez dePorres, bispodeMálaga e vice-rei deAragão.Filipe IV favoreceu-o muito. Mas o bastardo, frade dominicano, quetomou em religião o nome de Frei Afonso de São Tomás e também foibispodeMálaga,sempreserecusouaserconsideradoumbastardoreal,negando que Filipe IV fosse seu pai. E a verdade é que ele nunca oreconheceu.Oúnicodos filhos ilegítimosqueo rei reconheceu foiD. João Joséde

Áustria, que Filipe IV disse ter sido produzido pelos descuidos da suamocidade.Amãedo realbastardo foiMariadeCalderón,La Calderona,uma das mais famosas actrizes espanholas daquele tempo – que seretirouparaumconventoapósonascimentodoseufilho.Este veio ao mundo no dia 7 de Abril de 1629, em Madrid, e foi

registado como «filho da terra». Entregue aos cuidados de Pedro deVelasco, conselheiro da Fazenda, foi educado com esmero em Leão e,depois,emOcaña(Toledo).Em1642,FilipeIVreconheceu-ooficialmentecomo seu filho e preparou as coisas para lhe assegurar um futurocondigno. Começou por lhe dar o Priorado daReligião de São João nosreinosdeCastelaeLeão,aqueacrescentou,comoseaindareinasseemPortugal,ostítulosdePriordoCratoecomendadordeAlcobaça…Depois, em 1647, fê-lo Príncipe do Mar, confiando-lhe, assim, «o

governo geral de todas as forças marítimas de galeras, navios de altobordoeoutrasquaisquerembarcações,ordináriaseextraordináriasqueem qualquer parte se juntarem, sem excepção alguma»193. E foi nessaqualidadequeajudouadominararevoltadeNápoles.Umanodepois,foinomeado vice-rei da Sicília, nessas funções semantendo até 1651. Em1653,foidesignadovice-reidaCatalunha,paraconcluirasuapacificação,e,em1656,governadordosPaísesBaixos,queestavamemrevoltaabertacontraoreideEspanha.Cinco anos depois, Filipe IV, seu pai, julgou estarem, finalmente,

reunidasascondições–políticas,diplomáticas,militares–parapartiràreconquista de Portugal. E dessa empresa encarregou o bastardo real,quefoinomeadocapitão-generaldaConquistadoReinodePortugal.JoãoJosédeÁustrianãorejubiloucomanomeação,muitopelocontrário.No

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entanto,cumpriuasordensdeseupai–ecomandouduascampanhas,ade1661eade1662,emqueobtevealgunssucessos.Mas,nacampanhade1663,foicompletamentederrotadonabatalhadoAmeixial,«deixandono campo de batalha mais de 4000 mortos, 6000 prisioneiros, toda aartilharia e consideráveis despojos»194. Foi o próprio bastardo que,assumindotodasasresponsabilidadespelodesastre(queosseusmuitospecados explicariam…), deu a notícia ao pai: «Facilmente acreditaráVossaMajestadequepreferiatermorridomilvezesaver-meobrigadoadizer a Vossa Majestade que os seus exércitos foram infamementederrotadospelosinimigos[…]»195Tentou, logodepois, regressaràcortedeMadrideser investidonum

lugar com relevância política. Filipe IV não lhe deferiu o requerimento,obrigando-oaregressaràguerradePortugal–onde,em1664,astropasespanholas tornaram a ser esmagadas. De volta a Espanha, D. João deÁustriafoiconvidadoaaceitaroarcebispadodeToledo,queolevariaaocardinalatoeaocargode inquisidor-geral.Recusou, insistindoemobterdo pai outros lugares e regalias. Filipe IV irritou-se com o bastardo. Equando,jámoribundo,foiinformadodequeofilhooqueriaver,proibiu-lheaentradanoquarto.A verdade, porém, é que o rei de Espanha não esqueceu, no seu

testamento,ofilhoadulterino.E,aomesmotempoqueinvestiaarainhaviúva na regência de Espanha (dada a menoridade do seu herdeiro, ojoveme enfermiçoCarlos II), pedia-lheque amparasse e favorecesseD.João, servindo-sedele edando-lheonecessárioparaviver «conformeasuaqualidade»196.NadaestavamaislongedospropósitosdeD.MarianadeÁustria,quenuncacompreenderanemaceitaraasatenções,ashonraseosprivilégiosqueseumaridoconcederaaobastardo.D.Joãotornou-seentãoacabeçadaoposiçãoàrainha.Foramanosde

intrigas,confrontos–eumgolpedeEstado,o«primeirogolpedeEstadoda história de Espanha» que, se não deu a D. João o poder que eleambicionavaemMadrid,obrigou,noentanto,arainhaanomeá-lovice-reiecapitão-generaldeAragão.FoiistoemJunhode1669.O bastardo teve de esperar até Janeiro de 1677 para conquistar o

poderquerealmenteambicionava–odegovernaraEspanha,mesmoquefosse emnomedo rei seu irmão.Mas, dois anosdepois, o seu governo,acolhido com esperança e aplauso, suscitava críticas e enfrentavaoposições cada vez mais aguerridas. Para agravar a situação, D. Joãoadoeceu.E,emSetembrode1679,morreu.Tinha50anosdeidade.

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Nuncacasou–emboranãolhetenhamfaltadonoivas.Ealgumasdelaseramportuguesas.Comefeito,osadeptosdoreiD.AfonsoVI,querendorestaurá-lo no trono português, de que fora despejado pelo irmão,pensaramque o seupropósito seriamais bemalcançado se, aomesmotempo,casassemD.JoãocomD.Maria,afilhabastardadeD.JoãoIV,queviviaenclausuradanoConventodeCarnide.Mastambémhouve,antesde1661,aideiadeocasarcomD.Catarina

deBragança,afilhalegítimadeD.JoãoIVequefoirainhadeInglaterra.ComessecasamentocessariaaguerradaRestauração,estabelecendo-seumatréguade20anos.D.JoãodeÁustriasubiriaaotronoportuguêscomD.Catarina.ED.JoãoIVpassariaaoBrasil.Semsurpresa,osautoresdestemirabolanteplanoeramministrosdeFilipeIV,reideEspanha197.Finalmente,onomedeD.Joãofoiinscritonoroldospossíveismaridos

daprincesaD.IsabelLuísaJosefa,afilhadeD.PedroII,quandosetratoudoseucasamento.Dessalistafaziamaindapartedoisreis–CarlosIIdeEspanha e Luís XIV de França –, vários príncipes franceses, italianos egermânicos, e um filho do rei da Polónia. Mas a princesa, também ela,acabousolteira.Nunca tendo casado,D. João JosédeÁustriadeixou, no entanto, uma

filha:SororMargaridadaCruzdeÁustria,havidadeumadasfilhas(oudeuma das sobrinhas) do pintor José de Ribera, que seduziu e raptou,causandocomissograndeescândaloemNápoles,ondeoartistavivia.Malnasceu,em1650,naSicília,MargaridadaCruz foi tiradaàmãee

entregueaoscuidadosdocondedeEril,paraqueacriasse.Aofazerseisanos,ingressounoConventodasDescalçasReais,ondeprofessou(aos16anos)emorreu30anosdepois198.Mas Soror Margarida de Áustria pode não ter sido a única filha

ilegítimadeD.JoãodeÁustria,oMoço(poroposiçãoaD.JoãodeÁustria,o Velho, bastardo do imperador Carlos V). Com efeito, há autores quereferem a existência demais duas filhas bastardas, nascidas depois deMargarida.Comoela,ambasforamfreiras.

190IgnacioRuizRodriguez,DonJuanJosédeAustriaenlamonarquíahispánica:entrelapolitica,elpoderylaintriga(Madrid:LibrosDykinson,2007),p.30.

191AydanoRoriz,VanDorth(RiodeJaneiro:Ediouro,2006),p.62.

192Cf.AntóniodeOliveira,FilipeIII(Lisboa:CírculodeLeitores,2008),p.117.

193Cf.JoséCalvoPoyato,JuanJosédeAustria(Barcelona:Debolsillo,2003),p.30.

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194JoaquimVeríssimoSerrão,«JoãoJosédeÁustria»,inDicionáriodaHistóriadePortugal(Porto:LivrariaFigueirinhas,1990),vol.III,p.405.

195JoséCalvoPoyato,JuanJosédeAustria(Barcelona:Debolsillo,2003),p.93.

196Cf.Idem,ibidem,pp.103ss.

197AugustoCasimiro,DonaCatarinadeBragança–RainhadeInglaterra,FilhadePortugal(Lisboa:FundaçãodaCasadeBragança/PortugáliaEditora,1956),p.49.

198JoséCalvoPoyato,JuanJosédeAustria(Barcelona:Debolsillo,2003),p.40.

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IV

OsbastardosdeBragança

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N

ABASTARDADORESTAURADOR

ascido em1604,D. João IV, o primeiro rei doPortugal restaurado,casou, em 1633, com D. Luísa de Gusmão, filha do duque de MedinaSidónia.D.Joãoera,então,o8.ºduquedeBragançaevivianoseupaçodeVilaViçosa.Tinha fama (eproveito)demulherengo.Gostava sobretudodemulheresdopovo–edelascontinuouagostarmesmodepoisdesubirao trono, a 1 deDezembrode 1640.Mas isso não impediu que, do seucasamento, nascessem sete filhos legítimos, dos quais apenas trêssobreviveramaseupai,falecidoem1656:D.Catarina,quefoirainhadeInglaterra,eD.AfonsoVIeD.PedroII,queforamreisdePortugal.JáasváriasaventurasextraconjugaisqueD.Joãoterátidonãoderam,

que se saiba, muitos frutos. Só se lhe conhece, com efeito, uma filhabastarda: D. Maria, havida de uma «mulher limpa» que era criada devarrernopaço.Nascidaa30deAbrilde1644,D.Mariafoilogoretiradaasuamãe(que

ingressounoConventodeChelas,tomandoonomedeMariadeSãoJoãoBaptista) e entregue aos cuidados do secretário de Estado, AntónioCavide, que, segundo Camilo, era o «medianeiro dos amores ilícitos domonarca» e que foi encarregado de criar a bastarda. Esta entrou, em1650, com seis anos de idade, no Convento de Santa Teresa, dasCarmelitasDescalças,emCarnide,parasereducadapelasuafundadora–Madre Micaela Margarida de Santa Ana, filha bastarda de Matias deHabsburgo,imperadordaAlemanha.D. João IVapenasnoseu testamentoreconheceuD.Mariacomo filha,

fazendo-lhe várias doações, que a rainha viúva, regente do reino, seapressouaconfirmar:acomendamaiordaOrdemdeSantiago,asvilasdeTorresVedras, Colares,Azinhaga eCartaxo, bemcomo50mil cruzadosem dinheiro, para «compor a sua casa»199. E só lhe dirigiu a palavraquandojáestavamoribundo,escrevendo-lheumacartaquelevouadatade4deNovembrode1656erezavaassim:«Minhafilha,foiDeusservidoqueaprimeiravezque tendes cartaminha sejadespedindo-medevós,

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dando-vosaminhabênçãoacompanhadadeDeusquefiqueconvosco,elembrai-vossempredemimcomoeuofiodevós»200.Há-de ter sido depois da morte do pai que seus irmãos passaram a

visitá-la e a corresponder-se comela.D.CatarinadeBragançavisitou-aváriasvezes(antes,evidentemente,decasarcomCarlosII,em1661)e,deLondres, escreveu-lhe várias cartas – posto haja indicações de que aprimeirareacção,aosaberdaexistênciadeumafilhanaturaldeseupai,não terá sidoamelhor.É,pelomenos,oquedáaentenderoduquedeCadavalnumacartaà rainhaMariaSofiadeNeuburgo, emque tratadocasamentodoseufilhocomD.Luísa,abastardadeD.PedroII201.Este sempre se preocupou muito com sua meia-irmã, que o

considerava,aliás,todooseuamparoetodooseubem,nafaltadoreiseupai – como lhe escreveu em 1682. E, em 1691, no seu testamento, D.Maria–aquemacortedavatratamentodeAlteza–nãoseesqueceudepedirdesculpaaoirmãode«todasasmoléstiasquelhehouvercausado»e agradecer «os favores que sempre receb[eu] da sua grandeza»202. Defacto, D. Pedro – assegura PauloDrummondBraga – «nunca deixou deprocurarque[D.Maria]vivessedamelhorformapossível»203.Mas,estandonesseConventodeCarnide,ondepassouamaiorparteda

sua vida, usando um hábito de «matéria mais fina que o das outrasfreiras»204, D.Maria – chamada por isso D.Maria de Carnide205, postopreferisse o nome de Maria Josefa de Santa Teresa – foi falada pararesolveralgumasdasmagnasquestõesquepreocupavam,naqueletempo,acorteeopaís.Comefeito,em1673,algunsadeptosdeD.AfonsoVIconspirarampara

orestaurarnotrono,dequeele foradespejadoporseu irmãoD.Pedro,queentãogovernavaoreinocomotítulodePríncipeRegente.E,paradarmaisforçaàconspiração,pensaramemcasaroreidepostocomarainhaviúvadeEspanha,mãedeCarlosIII–casandoaomesmotempoD.MariacomD.JoãoJosédeÁustria,obastardodeFilipeIV,comojáatrássedisse.Mas a conjura foi descoberta e muitos dos conjurados, fidalgos eeclesiásticosforampresosporD.Pedro,quemandoulogoaseguirreunircortes com o propósito de jurar sua única filha, D. Isabel Luísa Josefa,comoherdeiradacoroa206.Nessas cortes, o nome de D. Maria voltou a ser falado e o seu

casamentovoltouaserdiscutido.Destafeita,porém,oqueimportavaeraevitarqueaherdeiradacoroa,D.IsabelLuísaJosefa,secasassecomumpríncipe estrangeiro (como esteve prestes a suceder). Mas, como não

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havia em Portugal quem fosse digno de casar com a princesa, tiveramalguns a luminosa ideia, «atribuída aos procuradores dos povos», deproporqueD.MariacasassecomoduquedeCadaval207– eo filhoquehaveriadenascerdessecasamentofossedestinadoacasarcomD.IsabelLuísaJosefa.Estaabsurdacongeminação,queoPadreAntónioVieiradefendeu208,

foievidentementepostadeparte.ED.Mariacontinuou,atémorrer,noiva(ouesposa)doSenhor.Como,aliás,desejava.QuandoahipótesedecasarcomoduquedeCadavallhefoiposta,D.Mariadeclarouquenãosairiadaclausura «senão em postas a tomar outro esposo, porque já o tinha hámuitotempo»…209

Não era provavelmente essa a vontade do rei seu pai, que, no seutestamento,diztertratadocomAntónioCavidede«algunsintentos»quetevequantoao«modoeestadoqueelahouverdetomar»210.Edeixou-lheumarendaanualdedoismilcruzadosatéelacasar.D.Mariapreferiu,porém,conservar-senoconvento.«Paraserviçoda

religião, assistia às enfermas, preparava-lhes a comida, sujeitando-se aserviços os mais ínfimos; rezava com as religiosas no coro os ofíciosdivinos;comianorefeitóriocomumcomasfreiras,exerciamortificaçõescomelas,duranteacomidaiasubstituirolugardeleitoraparaestatomara refeição»211. Nunca largou o hábito, nem quando foi por três vezes abanhos,àsCaldasdaRainha.TambémnãoaceitouadignidadedecomendadeiradeSantos,quelhe

foi oferecida, respondendo que D. Maria Josefa de Santa Teresa nãodeixaria o Convento de Santa Teresa, nem depois de morta. «Davacontínuas e avultadas esmolas, sensibilizando-se sempre muito echorando comasdesgraças e infelicidadesqueospobres lhe contavamnosseuspedidos»212.Fundoua igrejadeSantaTeresadoscarmelitasdescalçosdeCarnide,

principiada em 15 de Outubro de 1662 e concluída 15 anos depois,decorando-a com pinturas excelentes, alfaias custosas, uma preciosacustódia e uma lâmpada de prata. Nisso gastou mais de 210 000cruzados.Em 1685, «deu principio à fundação do convento de S. João, de

carmelitasdescalçosnolugardeCarnide».Aprimeirapedra,lançadacomgrande pompa a 24 de Junho, tinha a seguinte inscrição: «Maria FiliaJoannis IV, Lusitaniae Regis hoc edificavit Monasterium anno de 1685,regnante Petro ll, fratre suo amantissimo, et invictissimo.» Ou seja:

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«Maria,filhadeJoãoIV,reidePortugal,aquiedificouomosteironoanode1685,reinandoPedroII,seuirmãoamantíssimoeinvictíssimo».Falecida a 6 de Fevereiro de 1693, «com fama de possuída pelo

Demónio»213, deixou em testamento o padroado dos dois templos quemandaraedificaraoreiseuirmão,legandotodososseusbensaD.Luísa,filha dele – o que não deixou de suscitar as queixas e os protestos dasreligiosas deChelas, que recorreramà justiça214. Semnenhumsucesso,aoqueparece.

***

ParaalémdeD.Maria,D. João IVpoderia ter tidomaisumbastardo:AfonsoFaião,que foiabadedeBaltareantepassadoda famíliaLeitedeBragança,estabelecidaemCete.Algunsautores(TeixeiradeVasconcelos,CamiloCasteloBranco)pareceramdefenderestatese,quefoicontrariadadepoisporquemsustentava,emPortugalmas tambémnoBrasil,queoabade era afinal irmão do rei Restaurador – já que nascera de umaaventuragalantedeseupai,D.Teodósio,7.ºduquedeBragança.Para defender a paternidade de D. Teodósio, abonaram-se esses

autores em cartas de brasão oitocentistas, que muitos genealogistasconsideramtradicionalmentepoucorigorosas.Aesterespeito,FelgueirasGayo–umaautoridadegeralmenteacatadanestasmatérias–escreveque«haveria alguma afectação quando se forjarão estes papeis pois nuncatopei esta Linha e não era natural q sendo assim a não tratassem osGenealogicos»215. Quer dizer: Afonso Faião, ou melhor, Pedro AfonsoFaião,nascidoemVilaViçosaefalecidoa3deOutubrode1622,nãoserianem filhonem irmãodeD. João IV,masumclérigo cujosdescendentesresolveramacertaalturaquepertenciam,emboraporínviasvias,àcasarealportuguesa.Com efeito, o abade de Baltar, ofendendo, pelo menos, o sexto

mandamentodaLeideDeus,tevedoisfilhos:LeonorePauloFaião.Destenadamaissesoube.MasLeonorcasoueteveoitofilhos,quepreferiramoapelido da mãe ao do pai, Paulo Nogueira. Ora, um dos bisnetos dabastarda do abade – Hipólito de Meireles Afonso Faião (1695-1775),fidalgo-cavaleiro da Casa Real com 1.600 réis de moradia (alvará de24.1.1715); fidalgo de cota de armas (Carta de Brasão de Armas de18.5.1734); cavaleiro da Ordem de Cristo; e senhor da Casa de Cete –resolveuqueos filhosnascidosdoseucasamentocomMargaridaIsabel

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Leite Correia usariam o nome de Bragança. Todos passaram assim aostentaresseapelido,quepassoudepaisparafilhosechegouaosdiasdehoje, sendoemmuitos casosoúnicoqueusam,nãoobstanteasmuitasdúvidasquehásobreodireitoquetêmdeofazer.Uma coisa é certa, porém: os chamados Braganças do Minho são

descendentessemnenhumadúvidadosreisdePortugal,jáqueamulherdaquele Hipólito Faião que lhes deu o seu actual apelido tinha porantepassadosD.TeresaSanches,bastardadeD.SanchoI,eAfonsoDinis,bastardodeD.AfonsoIII.

199AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.VII,p.143.

200CamiloCasteloBranco,ORegicida(Lisboa:CompanhiaEditoradePublicaçõesIlustradas,s/d).

201JoanaAlmeidaTroni,CatarinadeBragança(Lisboa:Colibri,2008),p.229.

202PauloDrummondBraga,D.PedroII(Lisboa:TribunadaHistória,2006),p.137.

203Idem,ibidem,p.212.

204CamiloCasteloBranco,ORegicida(Lisboa:CompanhiaEditoradePublicaçõesIlustradas,s/d),p.254.

205D.LuísdaCunha,InstruçõesPolíticas(Lisboa:ComissãoNacionalparaaComemoraçãodosDescobrimentosPortugueses,2001),p.226.

206AntónioÁlvaroDória,ARainhaD.MariaFranciscadeSabóia(Porto:LivrariaCivilização,1944),pp.296-300.

207Cf.ManuscritosdoFondPortugaisdaBibliotecaNacionaldeFrança(Lisboa:CNCDP/CentrodeEstudosDamiãodeGóis,2001),p.102.

208AntónioVieira,ObrasEscolhidas,vol.II–Cartas/II(Lisboa:LivrariaSádaCostaEditora,1997),p.8.

209CamiloCasteloBranco,ORegicida(Lisboa:CompanhiaEditoradePublicaçõesIlustradas,s/d),p.254.

210Cf.AntónioCaetanodeSousa,ProvasdaHistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),T.IV,p.770.

211http://www.arqnet.pt/dicionario/maria_inf10.html

212Idem.

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213PauloDrummondBraga,D.PedroII(Lisboa:TribunadaHistória,2006),p.137.

214Cf.ManuscritosdoFondPortugaisdaBibliotecaNacionaldeFrança(Lisboa:CNCDP/CentrodeEstudosDamiãodeGóis,2001),p.123.

215FelgueirasGayo,NobiliáriodasFamíliasdePortugal(Braga:CarvalhosdeBasto,1989),vol.V,p.155.

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A

OSBASTARDOSDED.PEDROII

poucadodecorpoedeespírito,D.AfonsoVI,oinfelizherdeirodoreiRestaurador,nãotevefilhos,legítimosouilegítimos,maugradoosmuitosmasinúteisesforçosparaoster.ÉverdadequeCamiloCasteloBranco,aopublicar a Vida d’El-Rei D. Afonso VI, Escrita no Ano de 1684, veiosustentarqueosucessordeD. JoãoIVconseguiuterumafilhabastardadeCatarinaArraisdeMendonça,quefoi«levadaàsuacâmarapormeiosilícitoseardilosos».Essacriança–que,naprodigiosaimaginaçãodeCamilo,haveriadeser

avódeumadasamásiasdoreiD.Miguel,D.MarianaJoaquinaFranchiosiRolimdePortugal–provariaqueomonarcaera,afinal,capazdeprocriar,ao contrário do que ficou estabelecido na sentença que anulou o seucasamentocomD.MariaFranciscaIsabeldeSabóia,futuramulherdeseuirmãoD.Pedro.MasnãofoiporserumhistoriadorproboerigorosoqueCamiloocupa

lugar de destaque nos anais da Literatura Portuguesa. E, como escreveJoaquim Veríssimo Serrão, o processo de nulidade do casamento de D.Afonso VI «contém matéria abundante para provar a incapacidade deassegurar a sucessão do Reino»216. O que não impediu os seusapaniguadosdelheatribuíremapaternidadedeoutrasbastardas,criada,uma,emcasadocondedeCasteloMelhor–edequenuncamaisseouviufalar – e outra no Convento deOdivelas, porD. Feliciana deMilão, quetambémdesapareceudecena217.Pelo contrário, seu irmão, o rei D. Pedro II, demonstrou ampla

capacidade de garantir a sua sucessão nasmuitasmulheres com quemconviveu. Levava especialmente em gosto aquelas que eram de origemmais humilde ou pele mais escura, posto também tivesse tido umaviscondessa por amante. Frequentava assiduamente casas deprostituição, onde (dizem) era famoso por pagar mal os serviços querecebia.Eteveváriosfilhos,legítimosounão.Do seuprimeiro casamento comD.MariaFrancisca IsabeldeSabóia,

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filha dos duques de Nemours, que fora mulher do rei seu irmão, teveapenasumafilha:D.IsabelLuísaJosefa,aprincesaaquematribuíram17pretendentes(alemães,italianos,franceses)masqueacaboupormorrersolteira,aos21anosdeidade.Doseusegundocasamento,comD.MariaSofiaIsabeldeNeuburgo,D.

PedroII,oreiPacífico,tevesetefilhos,cincorapazeseduasraparigas.Asaber:(1)D.João,quemorreumenino;(2)D.João,segundodonome,quefoioherdeiroesucessordeseupai;(3)D.Francisco,homemmuitoricoemuito feio (porque a varíola o atacou quando tinha três anos), que foiduque de Beja e prior do Crato; (4) D. António, infante de carácter«extravagante», que viveu quase sempre longe da corte; (5) D. Teresa,que morreu de varicela, com oito anos de idade; (6) D. Manuel, de«espírito destemido e aventureiro», que andoumuitos anos por váriascortesdaEuropa;e(7)D.Francisca,quetambémmorreumuitojovem.Com excepção do herdeiro do trono, o futuro D. João V, todos

morreram solteiros e semdescendência legítima – embora o infanteD.FranciscotenhatidodoisfilhosdeD.MarianadeSousa,quefoifreiraemSant’Ana,ondemorreuesmagadapelodesmoronamentodoseupróprioquarto,noGrandeTerramotode1755.EssesdoisfilhosforamD.PedroeD.JoãodaBemposta(«apelido»que

o povo lhes pôs, por residirem no Real Paço da Bemposta, ou Paço daRainha,mandado construirporD.CatarinadeBragança, quandovoltoudeInglaterra).D.Pedromorreuem1741,causandoasuamortegrandeafliçãoaoinfanteD.Francisco218.D. João,esse, legitimadoem1749,poralvaráde26deMaio,fez«grandefigura»nacorteefoimuitofavorecidodo rei, que chegou a publicar um decreto dando-lhe precedência sobretodos os títulos. Mas o duque de Lafões protestou e venceu219. Aindaassim, D. João foi conselheiro de Estado, mordomo-mor da rainha D.Maria I e capitão-general das Armadas Reais. Casou com a duquesa deAbrantes,D.MariaMargaridadeLorena,dequemnãotevefilhos220.Há,noentanto,quemdigaqueesteD.JoãodaBempostaerafilho,não

de D. Mariana de Sousa,mas damulata Isabel, da Graça, cujos amorescomD.FranciscoderambradoemLisboa.MasregressemosaD.PedroII,oPacífico, grandeamadorde«fêmeas

de rebotalho», como escreveu Alberto Pimentel. Fora dos seuscasamentos,são-lheconhecidas,pelomenos,seteamantes–etrêsfilhosilegítimos,emborasesaibaqueonúmerodebastardosdeD.PedroIIfoibem mais numeroso. Em 1678, por exemplo, o Padre António Vieira

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noticiou,numadassuascartas,onascimentodeumbastardodeD.Pedro,«filhodeumalavadeira»;ocondedePovolide,porseuturno,referiu-seaumbastardoreal«decorparda,queéfrade»221;eumfrancês,TéophileDaupineaut, garantiu que D. Pedro II tinha especial predilecção pormulheres pretas, delas havendo «vários filhos que teve o cuidado demandaroportunamenteparaasÍndias[…]»222Trêsforamosbastardosreconhecidospelorei:D.Luísa,D.MigueleD.

José.Amenina,queporexpressavontadedopairecebeuonomedaavómaterna, a rainha D. Luísa de Gusmão, nasceu a 9 de Janeiro de 1679,numa«casajuntoaCorteReal»,emLisboa,frutodosamoresdeD.PedroIIcomumamulherquesechamouMariadaCruzMascarenhas,depoisdeseterchamadoMariaCarvalhas.Estaera,segundoocondedePovolide,«moçadevarrer,criadadeumadamadoPaço»223,mastinhaumirmãoqueeraFamiliardoSantoOfício.Contava23anosdeidadequandoafilhanasceueacabourecolhidanoConventodeSantaMónica,«porordemdeEl-ReiNossoSenhor»224.O parto foi difícil e a criança esteve às portas damorte, pelo que foi

baptizada in periculo mortis por Francisco Correia de Lacerda, osecretário de Estado, «que, de cavaleiro casado e viúvo, se fezeclesiástico»225. Foi seu padrinho o duque de Cadaval, que seria maistarde seu sogro. E esteve presente António do Prado, «Cirurgião daCâmaradeSuaAlteza».D. Pedro II apressou-se a reconhecê-la numa declaração feita de sua

letra e sinal a 1 de Março de 1679, menos de dois meses depois donascimentodaquelaqueeraasuafilhaprimogénita:«Declaroquehouveuma filha de mulher donzela e limpa de sangue, a qual ordeneichamassem Dona Luísa.»226 E mandou que fosse criada em casa dosecretáriodeEstado.No dia seguinte a esta declaração, que permaneceu secreta, o padre

Domingos do Vale, prior de São Nicolau e tesoureiro da capela de D.Pedro,ungiu-acom«ossantosóleos,debaixodonomedeenjeitada»227.Aosoitoanosfoi levadaparaoConventodeCarnide,ondeestavasua

tiaD.Maria, a filhabastardadeD. João IV, cujo exemplo era – comoD.PedroIIentãoescreveu–«omaiseficazditame»paraconduzirà«maiorperfeição»dafilha228.Acartadomonarcaàsuameia-irmãtemadatade21deFevereirode1687229.A legitimação de D. Luísa foi publicada por carta de 25 de Maio de

1691, no tempo da rainha alemã. E logo se começou a tratar do seu

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casamento.Em1695,afilhadeD.Pedro,restabelecidadegravedoença,casoucomD.LuísAmbrósiodeMelo,2.ºduquedeCadaval,que faleceuem1700,vítimadebexigasde«tãomáqualidade».Dois anos depois, que D. Luísa passou no Palácio de Corte Real sem

nunca dele sair, voltou a casar – com D. Jaime de Melo, 3.º duque deCadaval e irmão do seu primeiromarido, que era «confidente emuitasvezes companheiro de prazeres» de D. João V. Para esse casamento serealizar (a 16 de Setembro de 1702) foi necessário obter a dispensapapal,concedidacontraoparecerexpressodoSantoOfício,emRoma.Opapa cobrou, «a título de esmola», a quantia de «três mil escudos demoedaromana»230.D.Luísaocupoulugardedestaquenacortedeseupai,quelhemandou

dar, aliás, o tratamento de Alteza mas nunca lhe concedeu o título deInfanta. Todas as questões protocolares relacionadas com a bastardaforam aliás objecto de minuciosas análises e demoradas discussões,mandando-se colher no estrangeiro informações e pareceres. AMadridpediram-se, por exemplo, informações sobre «a forma comoD. João deÁustria [bastardo de Filipe IV] tratava os embaixadores» e em Parisrecolheram-se,porintermédiodomarquêsdeCascais,notíciassobre«asformasdetratamentodosfilhosbastardos»231.D. Pedro II morreu a 9 de Dezembro de 1706 e, no seu testamento,

recomendou aos filhos legítimos que honrassem a bastarda e aacrescentassemcommercês,«comopedemasobrigaçõesdesangueeasvirtudesdeDonaLuísa».Opedido foisatisfeito–ea filhaprimogénitadeD.PedroII foi«uma

dasestrelasdacortedeD.JoãoV».Era«aSenhoraDonaLuísadeumaboaestatura, grossa, branca e loura, olhos azuis com formosura, e grandedesembaraço; vestia com decência e não com excesso, entendimentovaronil, com graça na conversação, explicando-se com palavrasescolhidas, imitando em tudo o que podia ser decente o Rei seu pai, aquem emmuitas coisas se pareceu, com grande satisfação sua, até nasforças,quedelasfezadmiráveisprovas,excedendoosanoseadelicadezadosexo,admirandoaosmaisrobustos–doqueel-reigostavamuito.»232Mas, por 1722, «começaram os achaques a persegui-la com alguma

hipocondria, de sorte que, sendo naturalmente alegre, a melancolia aentristecia,parecequeinspiradadomalquelhesobreveio».Poucotempodepois de se ter confessado no dia da Porciúncula, «penetrada de umavivaimaginação,começouapadeceroentendimentoenestainfelicidade

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viveualgunsanos».NumamanhãdeDezembrode1732acordou«embrulhadanumlençol,

deitada num ladrilho, e já com uma perna e um braço tolhidos e semfala».Chamaram-seosmédicoseaplicaram-seremédios,masnãohouvemelhoras.Morreua23deDezembrode1732,emÉvora,com43anosdeidade,semseterconfessado,«porqueassimcomohaviaanosqueestavalouca,assimmorreuesóselheassistiucomosacramentodaunção».Asuamortenãocausou,aoqueparece,grandedesgostoaomarido.À

uma,eleerapessoaque«senãomaça[va]sejacomoquefor».E,àoutra,amortedesuamulherpermitiu-lherestabelecerasuacasa,queseperdiaporfaltadesucessão233.Aindaassim,oduquedeCadavalquisenterraramulhercomhonrasdealteza.Masnãolhefoiconsentidoqueofizesse.EocorpodeD.Luísa foidepositadono jazigodosduquesdeCadaval,emÉvora.Pelamorteda irmã,D. JoãoV recolheu-sepor trêsdias e tomou luto

por dois meses – o primeiro da capa comprida e o segundo de capacurta234.

***

AlémdeD.Luísa,reconheceuD.PedroIImaisdoisbastardos:D.Miguele D. José. Foi isto a 19 de Setembro de 1704, na Guarda, quando o reiPacífico, «picado da consciência e com amorte rodando»235, assinou aseguintedeclaração:

«Declaro que fora domatrimónio tive dois filhos demulheres desobrigadas elimpasdetodaanaçãoinfecta;umsechamaD.MigueleooutroD.José;ambossecriamemcasadeBartolomeudeSousaMexia.EncomendoaoPríncipequelhesdêaqueleestadoqueformaisconvenienteedecenteàssuasPessoas,comoaIrmãosseus, em que vivam com aquela abundância que não se vejam obrigados a

necessitardeoutraprotecção,maisquedasua.»236

D.Miguel nasceu emLisboa a 15deOutubrode1699, filhodeAnneArmande du Vergé, também conhecida por Armanda de Elvas, que eradama da rainha. Mas também era, como sua mãe, aliás, uma espia aoserviçodeLuísXIV,reideFrança,nacortedeLisboa.Eporissochegouaser presa, no Recolhimento do Castelo, em Lisboa. Depois dos amores

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com o rei, foi amante do abade de Estrées, embaixador de França emLisboa, de quem também terá tido um filho, D. Pedro António d’Étré,d’Estrées ou d’Estreis, que «seguiu a carreira militar na marinhaportuguesa»,chegandoacapitão-de-mar-e-guerra237.D.José,porseuturno,nasceua6deMaiode1703,frutodarelaçãode

D. Pedro II com Francisca Clara da Silva, filha de um tanoeiro, que,segundoocondedePovolide,era«prezadadeformosa».Oreiconheceu-aquandoelafoicomamãeaopaçoqueixar-sedeumhomem«quelhenãoqueriacumprirapalavraquelhetinhadadodecasamento».Mas,escreveocondedePovolide,aqueixapodenãoterpassadodeum«pretextoparaseirmostraraEl-Rei[…]»238Osdoisbastardosforamcriados,incógnitos,emcasadeBartolomeude

SousaMexia, secretário dasMercês, de onde saíram, a 19 deMarço de1712,paraascasasdocondedeSoure.Doisanosdepois,D. JoãoV,quelhes tinha mandado dar o tratamento de Altezas, recebeu-os no seupalácio, numa audiência solene que Pietro Francesco Viganego, agentesecreto do rei de França em Lisboa, relatou ao marquês de Torcy, emcartade20deMarçode1714:«Sábado, os dois jovens Príncipes, filhos naturais do Rei D. Pedro,

fizeramasuaprimeiravisitadecerimóniaaoReiseu irmão, tendosidoacompanhadosàsuapresençapeloduqueD. Jaime[deCadaval],queosfoibuscaracasacomumséquitocompostodamaiorpartedosgrandes.Ocapitãodaguardaeovedordacasareceberam-nosaofundodasescadasequandoentraramnasaladeaudiênciasoReideucincoouseispassosna sua direcção e fê-los sentar em tamboretes colocados no estrado. Omais velho [D. Miguel], que será duque e casará brevemente com aherdeiradacasadeArronches,executoumuitobemoseucumprimentoedisseàsaídaquesesoubessequeoReiseuirmãoachassebemter-lhe-iafaladoem francês,oque teriasidomais fácilqueemportuguês.Omaisnovo[D.José]estavavestidodeabade.EmseguidaforamcumprimentaraRainhaaosseusaposentos,aqualosrecebeudomesmomodo.»239Já então, como se vê, os dois bastardos sabiamque futuro lhes tinha

sido reservado. «Ornado de excelentes partes», de «gentil presença» e«engenho sublime» (como António Caetano de Sousa o recorda), D.Miguelestavadestinadoacasar-secomLuísaCasimiradeSousaNassaueLigne, filha de Carlos José de Ligne,marquês de Arronches e conde deMiranda, a quem o rei deu honras de duquesa. Ela haveria, porém, dereclamarmaistardeotítulodeAlteza–queD.JoãoVderaaseumarido.A

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questãofoitratadapor juízesparaoefeitodesignados.Masapretensãonãolhefoideferida240.Ocasamentofoicelebradoa30deJaneirode1715, tendoonoivo15

anosde idade, edelenasceramquatro filhos, dequeo reiD. JoãoV foipadrinho, assistindo, incógnito, ao seu baptizado. Foram eles: (1) D.Joana,quecasoucomo4.ºmarquêsdeCascais(sobrinhodeD.FilipadeNoronha, a primeira amante conhecida de D. João V) e morreu semgeração; (2) D. Pedro, 1.º duque de Lafões, quemorreu solteiro; (3) D.João,2.ºduquedeLafões,que,nos reinadossubsequentes, foi figuradegranderelevonacorteenopaís;e(4)D.Francisca,queviveuapenasumano.Sobre este casamento conta o conde de Povolide que amarquesa de

Arronches, querendo ardentemente casar a filha com o bastardo de D.PedroII,foifalarcomumastiasdeFranciscadaSilva,amãedeD.José,aquem chamavam as Tanoeiras. Estas garantiram à marquesa queconseguiriamobterdoreiessecasamento, jáqueD. JoãoV frequentavadenoitea suacasa.Amarquesadeucréditoàspromessaseuntoucom«algumas coisas de valor» as mãos das Tanoeiras, que nunca maistrataramdocaso. Interpeladaspelamarquesa, garantiram-lhequeo reihaveria de passar a cavalo por casa dela, a determinada hora dedeterminadanoite,e,seelaestivesseàjanela,haveriadelhedizeroquesepassavacomocasamento.Umhomempassou,defacto,nodiaehoraprevistos,porcasadamarquesa,conversandoelacomele.Masohomemnãoeraevidentementeorei,que,quandosoubedahistória,degradouasTanoeiras e o seu «sósia», que era um sobrinho do conde de CasteloMelhor241.D. José, por seu turno, estava destinado à carreira eclesiástica. De

«estaturaordinária,cabelopreto,algumtantocrespo,osolhosgrandesevivos,osbeiçosgrossos»,começouporaprenderlatimegramáticacomopadre Francisco da Rocha, daOrdemde São Pedro, que acompanhou asuaeducaçãoatéD.JosésermandadoestudarnoColégiodaUniversidadede Évora. Foi isto em Setembro de 1715, alguns meses depois de D.Miguelcasar.D. João V deu, aliás, minuciosas instruções sobre a forma como seu

irmão devia comportar-se e ser tratado. Nessas instruções, o reideterminava, entre outras coisas, que D. José fosse constantementeassistido por um sacerdote, devendo, alémdisso, assistir diariamente àmissa,continuaradevoçãodoofícioeterçoàVirgemMariaereceberos

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sacramentosaomenosumavezpormês242.Alémdisso,obastardonãodevia jogar com os criados «enquanto houver padres que joguem comele».Deviaserdiscretoemodesto.Nãolhedeviaserconsentido«brincarcomrapazes,ouestudantesexternos»,masapenascomosseuscriados.Edevia ser despedido todo o criado que lhe trouxesse «brincos, oupresentes, ou conversações» e, ainda, «recados de coisas ilícitas eindecentes».D.JosépermaneceunoAlentejoaté1717,regressandoentãoaLisboa–

onde,nosanosseguintes,levouumavidaquesesupõe«remansosa»,nacompanhiado irmãoeda famíliadele,maugrado a zangadeD. JoãoVcomD.Miguel,quelevouomonarcaaproibiraentradadestenopaço243.Foiistoem1723.A 17 de Janeiro de 1724, quando ambos vinham da Outra Banda a

Lisboa,noregressodeumacaçada,oescalerqueostransportavavirou-senoTejo244.D.Miguelmorreuafogado,commais15pessoas.Oseucorpofoi depositado no Convento de Santa Catarina de Ribamar. E «o Rei, aRainha e os Infantes encerraram-sepor trêsdias, tomando lutopesadoporummêseoutroaliviado».D. José, porém, salvou-se. E «escapou pormodo tão estranho que se

pode ter por milagroso; porque, sem socorro humano, ele se achou,depois de voltado o escaler, tendo lutado largo tempo com as ondas,sobreaquilhadamesmaembarcação,dequeficoumuitomaltratado»245.Apartirdessedia,D.Josépadeceudeum«contínuotremordacabeça».A tragédiapoderá ter incrementadoo fervorreligiosodeD. José,que

nesse mesmo ano tomou as primeiras ordens eclesiásticas. E, no anoseguinte, regressouaÉvora,paraprosseguirosseusestudos teológicos.Depoisdetersidoordenadopresbítero,emDezembrode1728,erezadomissa nova, em Janeiro de 1729, no oratório do rei, doutorou-se naSagradaTeologiaemJulhode1733.ComendadordeSantaMariadeAlmourol,SantaMariadosOlhoseSão

SalvadordeLavre,naOrdemdeCristo,D.JoséfoifeitoarcebispodeBragaem 1739, sendo de 19 de Dezembro de 1740 a bula de Bento IV queconfirmaanomeação.Sagradoa5deFevereirode1741,napresençadetodaafamíliareal,entrounaarquidiocesea23deJulhodesseano.Duranteos15anosdoseupontificadodesenvolveuintensaactividade.

Entregou-secomgrandeenergiaàssuastarefaspastorais,pondoordemnas igrejas e nos conventos. Disciplinou e reformou a sua diocese,mandando de castigo para a Índia muitos dos seus clérigos, que eram

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aliásemnúmeroexcessivo.Combateuasmúsicasemlínguavulgaroudeestilo efeminado e proibiu pessoas mascaradas nas procissões.Desempenhou também uma acção caritativa de grande alcance. Foirespeitado e temido.Masparece quenão foi amadodos deBraga, peloqueasuamorte,diz-se,alegrouamuitos.Essamorteocorreuaofimdamanhãde3deJunhode1756,naCasada

Aurora, em Ponte de Lima, sendo o arcebispo vítima do «penososofrimentodeumadilatadamoléstia,queooprimiu»sempre.D.José,queera«muitoinclinadoaojogodotaco,montavabemacavaloeeramuitocuriosodepinturaedebuxo, epor sipintavaalgumascoisas», tinha53anos e 25 dias de idade. Sucedeu-lhe na Sé de Braga seu sobrinho, D.GaspardeBragança,umdosMeninosdePalhavã.

coroa.jpg

DeD.MigueldeBragançadescendeailustreCasadeLafões,aqueseligaramosduquesdeCadaval.Entreosdescendentesdobastardorégiocontam-seoescritorNunodeBragança,opintorLuísPintoCoelho,osfadistasVicenteeJosédaCâmaraeajornalistaHelenaSanchesOsório.

216JoaquimVeríssimoSerrão,HistóriadePortugal(Lisboa:Verbo,1980),vol.V,p.207.

217ÂngelaBarretoXavier&PedroCardim,D.AfonsoVI(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.195.

218Fr.CláudiodaConceição,GabineteHistórico(Lisboa:ImprensaNacional,1823),T.IX,p.228.

219Cf.NunoGonçaloMonteiro,MeuPaieMeuSenhorMuitodoMeuCoração–CorrespondênciadocondedeAssumarparaseupai,omarquêsdeAlorna(Lisboa:Quetzal,2000),p.129.OrealdecretoqueconfereaprecedênciaaobastardodoinfanteD.Franciscoéde19deMaiode1750.

220Fr.CláudiodaConceição,GabineteHistórico(Lisboa:ImprensaNacional,1823),T.IX,p.330.

221CondedePovolide,Portugal,LisboaeaCortenosreinadosdeD.PedroIIeD.JoãoV–MemóriasHistóricasdeTristãodaCunhadeAtaíde,1.ºCondedePovolide(Lisboa:ChavesFerreira,1990),p.188.

222EdgarPrestage,«MemóriassobrePortugalnoreinadodeD.PedroII»,inArquivoHistóricodePortugal,II(Lisboa:1935),p.13.

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223CondedePovolide,Portugal,LisboaeaCortenosreinadosdeD.PedroIIeD.JoãoV–MemóriasHistóricasdeTristãodaCunhadeAtaíde,1ºCondedePovolide(Lisboa:ChavesFerreira,1990),p.188.

224LuísdeBívarGuerra,«D.Luísa,filhadeD.PedroII:umaprincesaduasvezesduquesa»,inMiscelâneaHistóricadePortugal(1982),p.22.

225Cf.DamiãoPeres,MonstruosidadesdoTempoedaFortuna(Porto,1938),vol.I,p.145.

226LuísdeBívarGuerra,«D.Luísa,filhadeD.PedroII:umaprincesaduasvezesduquesa»,inMiscelâneaHistóricadePortugal(1982),p.17.

227Idem,ibidem,p.18.

228AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.VIII,p.263.

229ManuscritosdoFondPortugaisdaBibliotecaNacionaldeFrança(Lisboa:CNCDP/CentrodeEstudosDamiãodeGóis,2001),p.312.

230Ibidem,p.323.

231Ibidem,pp.308e313.

232AntónioParadadeAfonseca,ApostilasàhistóriadeBraganoséculoXVIII:SuaAltezaoSenhorD.JosédeBragança,ArcebispoPrimaz,eo“métodobreveeclarodejogarotaco,opiãoeaconca”(Braga:GráficadeS.Vicente,1990),p.19.

233PietroFranciscoViganego,AoServiçoSecretodaFrançanaCortedeD.JoãoV(Lisboa:Lisoptima/BibliotecaNacional,1994),p.181.

234Cf.MariaBeatrizNizzadaSilva,D.JoãoV(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.52.

235AntónioParadadeAfonseca,ApostilasàhistóriadeBraganoséculoXVIII:SuaAltezaoSenhorD.JosédeBragança,ArcebispoPrimaz,eo“métodobreveeclarodejogarotaco,opiãoeaconca”(Braga:GráficadeS.Vicente,1990),p.20.

236Idem,ibidem.

237PietroFranciscoViganego,AoServiçoSecretodaFrançanaCortedeD.JoãoV(Lisboa:Lisoptima/BibliotecaNacional,1994),p.42.

238CondedePovolide,Portugal,LisboaeaCortenosreinadosdeD.PedroIIeD.JoãoV–MemóriasHistóricasdeTristãodaCunhadeAtaíde,1.ºCondedePovolide(Lisboa:ChavesFerreira,1990),p.189.

239Cf.PietroFranciscoViganego,AoServiçoSecretodaFrançanaCortedeD.JoãoV(Lisboa:Lisoptima/BibliotecaNacional,1994),p.171.

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240CondedePovolide,Portugal,LisboaeaCortenosreinadosdeD.PedroIIeD.JoãoV–MemóriasHistóricasdeTristãodaCunhadeAtaíde,1.ºCondedePovolide(Lisboa:ChavesFerreira,1990),pp.325e352.

241Idem,ibidem,pp.220-221.

242MariaBeatrizNizzadaSilva,D.JoãoV(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.54.

243CondedePovolide,Portugal,LisboaeaCortenosreinadosdeD.PedroIIeD.JoãoV–MemóriasHistóricasdeTristãodaCunhadeAtaíde,1.ºCondedePovolide(Lisboa:ChavesFerreira,1990),pp.351-352.

244CasteloBrancoChaves,PortugaldeD.JoãoVvistoportrêsforasteiros(Lisboa:BibliotecaNacional,1989),p.51.

245AntónioCaetanodeSousa,HistóriaGenealógicadaCasaRealPortuguesa(Coimbra:Atlântida,1946),vol.VIII,p.298.

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D

OSMENINOSDED.JOÃOV

ignosucessordoreiseupai,D.JoãoV(oSultãodoOcidente,comolhechamouCamiloCasteloBranco)nãotevemenosamantesqueD.PedroII.«As mulheres foram o seu contínuo pensamento: ciganas, fidalgas,mulheres mecânicas e outras», segundo escreveu o capelão dosMarialvas, vaticinando que, por isso, o monarca haveria de «esperarmuitosséculosnoPurgatóriopelasuaremissão»246.Esta devoção ao belo sexo trouxe-lhe, aliás, alguns amargos de boca.

Em Março de 1714, por exemplo, Pietro Francesco Viganego, agentesecretodaFrançanacortedeD. JoãoV,escreveuaomarquêsdeTorcy,ministrodeLuísXIV:«Hádescontentamentonopalácio,principalmenteporpartedaRainha[D.MariaAnadeÁustria],quediziaultimamentequeporumaouduasamantespassa,masquatro,cincoeseiserademais.OConfessor falou mas foi muito mal recebido, a ponto de ter sidoameaçado»247.O reiMagnânimo teve tambémmaisbastardosdoqueo seu augusto

progenitor. Ou, pelo menos, reconheceu mais dois do que D. Pedro II,declarando-sepaidecincofilhosilegítimos,trêsrapazeseduasraparigas.Masdevetertidomuitosmais.Éque,segundogaranteWilliamBeckford,o autor de Vathek, D. João V foi pai de crianças que «não julgouconveniente reconhecer, e que não são poucas, porque aquele piomonarca

…grandecomoosseusdomínios,espalhouaimagemdoCriadorportodaaterra!»248

OstrêsfilhosvarõeshavidosporD.JoãoVforadoseucasamentocomD.MariaAnadeÁustria, e por ele reconhecidos, chamaram-seAntónio,Gaspar e José. Foram eles os famosos Meninos de Palhavã, assimchamadosporteremvividonopaláciodomarquêsdeLouriçal,ondehojeestáalojadaaEmbaixadadeEspanhaemLisboa.

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Todos três foram educados por Frei Gaspar da Encarnação (1685-1752),doutoefidalgodiscípulodeS.Francisco,reitordaUniversidadedeCoimbra e confessor de D. João V, de quem foi um dosmais íntimos equeridosamigos.Aelesedeve,aoqueparece,terD.JoãoV,gravementedoente, decidido reconhecer os seus filhos bastardos. EssereconhecimentofoifeitonasCaldasdaRainha,a6deAgostode1742,porumadeclaraçãoquerezavaassim:

«Por entender que sou obrigado, declaro que tenho três filhos ilegítimos demulhereslimpasdetodaainfestanação.UmsechamaD.António,outroD.Gaspar,quenobaptismosechamouManuel, eoutroD. José,quenobaptismosechamoutambémManuel.AsuaeducaçãoentregueiaFr.GaspardaEncarnação,reformadordoscónegosregrantes,oqueexecutoucomtantocuidadoezeloquetenhomuitoqueagradarelheagradecerdaeducaçãodosditosmeusfilhos.»

Aestereconhecimento,D.JoãoVacrescentavaumpedidoaD.José,seufilhoeherdeiro:«Encomendoaopríncipelhesdêaqueleestadoquelhesformaisconvenienteasuaspessoas,comoseusirmãos.Eusemprequisque fossemencaminhadosparaoeclesiástico.Esperoqueopríncipeosfavoreçaeajudedesortequenaabundânciacompetentenãonecessitemdeoutraprotecçãomaisqueasua.»249A declaração, redigida pelo beneficiado António Baptista, não se

destinava,porém,aproduzirefeitosimediatos.DeviaserentregueaFreiGaspardaEncarnação,paraesteaapresentar«notempoquelhe[tinha]declarado».Quetempofosseesse,nãosesabe.Masédepresumirquefosseoda

mortedeD.JoãoV,ocorridaa31deJulhode1750.Averdade,porém,équeoreiD.Josésóem21deAbrilde1751assinouumdecretoemqueafirmava:

«Pormeserpresenteadeclaraçãoqueel-rei,meusenhorepai,fezporescritode serem seus filhos D. António, D. Gaspar e D. José, que se educaram nacongregaçãode Santa Cruz, a qual o dito senhormemandou apresentar: hei porbem que daqui por diante sejam por tais reconhecidos e gozem das honras,privilégios e isenções que nestes reinos são concedidos aos filhos ilegítimos dosreis.»

Ficavaassimclaroque,reconhecendoosfilhosilegítimosdeD.JoãoV,omonarcaselimitavaacumprirasúltimasvontadesdeseusenhorepai.

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Epara quenão restassemdúvidas sobre a suaposiçãono caso, só trêsanos depois é que os chamou à sua presença. Recebeu-os com«demonstraçõesdealegria»emSãoVicentedeFora,a18de Janeirode1755,reconheceu-osefezaCortereconhecê-loscomotais,deu-lhescasaeordenouquefossemtratadoscomasdistinções,honrasegrandezasqueconvinham à sua hierarquia. Entre elas contava-se o tratamento deAltezas,dequeosbastardosdeD.PedroIItambémtinhambeneficiado–oque era, na opiniãodeAnselmoBraamcampFreire, «tudoparódiadeLuísXIV»250.ORei-SoldeFrançatinhacomefeitotomado,muitosanosantes,várias

medidas em favor dos filhos que tivera de Madame de Maintenon,concedendo-lhesnomeadamenteotratamentodeAltezasSereníssimasereconhecendo-lhes até, em1714, o direito de suceder ao tronona faltadosseusherdeiroslegítimos.Umanodepois,LuísXIVescandalizouaindamais a sua corte ao decidir que deixava de produzir efeitos a distinçãoentreosseusfilhoslegítimoseosilegítimos.Masestasdisposiçõesforamanuladas em 1717, por serem contrárias às leis fundamentais damonarquiafrancesa.O reconhecimento dos bastardos de D. João V fora um processo

demorado.Mas,paraasdemoras,haviaumaexplicação:D.MariaAnadeÁustria, a rainha viúva, conservava «sempre grande ódio a todo obastardo»enãoqueria,porisso,queosMeninosfossemdeclarados.Fez,aliás, quanto pôde para atrasar o reconhecimento251. Muitosconsideraram injusta a oposição da rainha. Como notou o conde deAssumar, o «aborrecimento» da rainha não era «tão geral» que aimpedisse de favorecer, como favorecia muito, o Senhor D. João daBemposta,bastardodoinfanteD.Francisco252.Masesteerafilhodoseucunhado–enãodoseuinfielmarido.A verdade é que osMeninos tiveram de fazer bastos requerimentos

paraqueaderradeiravontadedeD.JoãoVfossefinalmentecumprida.D.José, por seu turno, preocupado com a «repugnância e desprazer» darainha sua mãe, ouviu vários conselheiros sobre a questão. Todos lhedisseram que estava «indispensavelmente obrigado» a conceder aosbastardosdeseupaiashonrasqueelesrequeriam.Eraesseo«costumedo reino, inalteravelmente praticado», não só quando já não viviam asrainhasquesepodiamsentirofendidascomoadultériodomarido,masaindaemvidadasmesmassenhoras.D. José pediu a vários sacerdotes que convencessem a rainha-mãe a

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aceitaraatribuiçãodashonrasepreeminênciasqueosfilhosadulterinosde D. João V reclamavam. D. Maria Ana retorquiu que, se D. Joséreconhecesse os bastardos, «serviria de mau exemplo a seus filhos»,acrescentandoque,parasatisfazeravontadedeseupai,oreinãoestavaobrigadoaconcederhonrasmas,apenas,aprestaralimentos.Depoisde rebaterosargumentosdamãe,D. Josédecidiu submetera

uma juntaaquestãoque importavaresolver:«SeháprincípioalgumdeDireito conforme ao qual se possa entender que a repugnância da ditasenhora [D. Maria Ana] é coisa justa para impedir ou demorar ocumprimentodaobrigaçãoemqueoditosenhor[D.José]seconsidera»–ouseháalguma«razãopolítica»parasedeixardeatenderao«costumedoreino».Ajuntaopinouqueoreiestavaobrigadoafazeroqueseupailhe mandara, não podendo fazer o que sua mãe lhe pedia. Mas houvequem sustentasse que D. José podia, «sem injustiça nem pecado, aindavenial», negar provimento aos requerimentos dosMeninos de Palhavã.Estes não eram filhos naturais mas espúrios, «nascidos de punível edanadocoito,porqueatodoshouveosenhorreiD.JoãoVdeconcubinas,emtempoqueomesmosenhorjáeracasado,ecomrazãomaisforteossenhoresD.GaspareD.José,porseremgeradosdefreirasprofessas».Acrescia,segundooautordesteparecer,queumadecisãofavorávelaos

bastardosdeD. JoãoVse traduzirianum«considerávelexcessona taxadosmesmosalimentos,porserevidentenecessitaremdemaisdepoisdaditadeclaraçãopelonecessáriofaustoetratamentoqueelatrazconsigo».Ora, o rei Magnânimo, ao declarar aqueles três filhos, que quiseraacomodar em «benefícios e dignidades eclesiásticas», não pretenderaagravarasdespesasdacoroa.Muitopelocontrário253.D.Joséconformou-secomoparecerdajunta–econcedeuaosMeninos

dePalhavãashonras epreeminênciasqueeles reivindicavam. Suamãemorreunoanoemqueaconcessãofoipublicada.Podetersidodaidade.Mastambémpodetersidododesgosto…Umanodepoisda recepção emSãoVicentedeFora,D. Josénomeou

arcebispoesenhordeBraga,primazdasEspanhas,seuirmãoGaspar,quetinhaentão45anosdeidade,jáquenasceraa8deOutubrode1716,emOdivelas, fruto dos amores do rei por uma freira bernarda, MadalenaMáximaHenriquesdeMiranda.Estaquisumdiavisitá-lo.Mas,quandosedeu a conhecer, D. Gaspar terá respondido: «Os bastardos dos reis nãotêmmãe»…BaptizadopelopriordeSãoNicolau,teveporpadrinhoomarquêsde

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Gouveia, suspeito durante algum tempo de ser o pai da criança. FoimandadoparaÉvorae entregueaos cuidadosdopadreAntónioDuarteRombo, secretário do arcebispo. Com nove anos, regressou a Lisboa,passoualgumtemponoMosteirodeSãoVicenteeseguiuparaCoimbra,ondeestudoucomoseusirmãos,recebendoordensmenoresdobispodeNanquim254.A23deAgostode1756foinomeadoarcebispodeBraga,sucedendoa

seu tio, D. José de Bragança, filho bastardo de D. Pedro II. ConfirmadopelopapaemMarçode1758,foisagradoemLisboa,nacapeladoPaláciodePalhavã,a23deJulhoseguinte,enessemesmodiatomoupossedasuaarquidioceseporintermédiodobispodeMiranda,seuprocurador.Massóa28deOutubrode1759,maisdetrêsanospassadossobrea

morte do seu antecessor, é que D. Gaspar,montado numamula banca,entroucomgrandeespaventonasuadiocese.TinhasaídodeLisboaa20de setembro, «com uma numerosa e magnífica comitiva, que consistianumgrandecochedeestado,dezassetereses,vintecarroscombagagense muitas azémolas de carga, acompanhado de uma companhia decavalo»255.«Duranteos31anosemquepermaneceuàfrentedaarquidiocese,D.

Gaspar, fazendo jus à sua linhagem real, rodeou-se domaior aparato emagnificência, que continuadamente manifestou nas cerimónias dospontificais,queemnadaficaramadeveraosdaPatriarcal,nasexéquiasefestividadescomqueexaltouaimagemdacorteenasnumerosasvisitaspastoraisquerealizou»,comoescreveuIsabelMayerGodinho.«Príncipe ilustrado, a sua vasta biblioteca […] abarcava um amplo

lequedeáreasdeinteresse,dateologiaeoratóriasacraàjurisprudência,literatura,história,ciênciaseartes.AprotecçãoquededicouàSociedadeEconómica dos Amigos do Bem Público, em Ponte de Lima, de que foipresidente, revela-o como um espírito iluminado, interessado nodesenvolvimentodaagricultura,docomércioeda indústrianonortedopaís.Mecenasdas artes, fundounovas igrejas, que fez construir de raiz(Nossa Senhora da Lapa e Santa Teresa), ampliando e reconstruindooutras(aIgrejadoBomJesuseaIgrejaeHospitaldeS.Marcos).»256A10deJaneirode1789,D.Gasparcaiugravementedoente.Ossinosde

Braga tocaramapreces,queocuparama cidadenosdias subsequentes.Masosereníssimoarcebispojánãorecuperou.Ea18deJaneiromorreu,«com edificantes mostras de religião». Tinha «72 anos, 3 meses e 14dias»,segundoprecisouaGazetadeLisboa,de27deJaneiroseguinte.

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***

DepoisdenomearD.GaspararcebispodeBraga,oreidesignouD.José,seu irmão homónimo, inquisidor-mor dos seus Reinos e Senhorios. OmaisnovodosMeninosdePalhavãnasceraem1720eerafilhodePaulaTeresadaSilva,freiranoConventodeOdivelas–afamosaMadrePaula,amantequeD. JoãoVpormais tempocultivou, sendo trocadaem1729pelaFlordaMurta.D. José,quetomoupossedoseuempregoa24deSetembrode1758,

doutorara-seemteologia,emCoimbra–comoseuirmãoAntónio,omaisvelhodosMeninos.Esteteránascido«numascasasdaruadoTronco»,a1de Outubro de 1714, posto outros afirmem, porventura commelhoresrazões,queviualuznumaquinta«adiantedeMarvila,imediataàquintadeBraçodePrata,àbordadoTejo»257.Seria filhode«umadasmuitas francesasqueentãoenxameavampor

Lisboanoofíciodemulheres-damas»258eque,depois,semeteuemfreira.Mas há quem sustente que a mãe do Menino tinha o nome muitoportuguêsdeLuísaInêsAntóniaMachadoMonteiro.Baptizado pelo cardeal da Cunha, teve por padrinho o infante D.

António,seutio,eficouavivernoPaçoRealdeAlcântaraatéaos11anosdeidade,passandoentãoparaoMosteirodeSãoVicente.DaliseguiuparaCoimbra,onde,comoseusirmãos,foieducadonorealMosteirodeSantaCruz de Coimbra, estudando teologia. Pediu depois à Universidade deCoimbraosrespectivosgrausacadémicos,«sujeitando-seaosrespectivosexames,emconformidadecoma legislaçãoentãovigente».Doutorou-seem1737–eosseusactosegrausforamregistadossobonomedeFreiAntóniodaEncarnação,queeraoqueoMeninousavaenquantopupilodomosteiroconimbricense259.Nuncaocupouqualquercargoderelevonacorteounoreino.Alguns,

comooembaixadordeFrançaaotempo(1760)acreditadoemPortugal,sustentamqueoMarquêsdePombalpensounelequandoseprocurouummarido para a princesa Maria Francisca, que havia de reinar como D.Maria I. Mas «não é de crer, como se propalou, que Sebastião Josédestinasse à tristonha D. Maria um dos Meninos da Palhavã». ComoAgustinaBessa-Luís tambémescreveu, «umbastardo, sóporusurpaçãosefazrei;enãoédesuporqueoamorfraternofossetãoexibicionistaquedispusesseassimdotronoparaumdosMeninos»260.O que se sabe de ciência certa é queD. António se viu envolvido no

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conflitoqueopôsoMarquêsdePombalaseuirmãoD.José,oinquisidor-mor–ecomoelesofreu,durante16anos,odesterronoBuçaco.Acausadessecastigonãoestácompletamenteesclarecida.Dizemuns

quetudosedeveuàoposiçãoqueosdoisMeninosfizeramaocasamentodeD.Maria como infanteD. Pedro.Outros afirmamque o desterro foiresultadodeD.JoséseterrecusadoaaceitarqueoPadreMalagridafossepreso nas «masmorras da Inquisição». Para o inquisidor-mor, o jesuíta(queseteriaenvolvidona«conspiraçãodosTávoras»contraomonarcareinante)estavaacusadodeumcrimede lesa-majestade–nãodeerroscontra a fé ou a doutrina da Igreja. Por isso, não era nas prisões daInquisiçãoquedeviaserencerrado.Mas,comestarecusa,D.JoséofendeuoMarquêseeste,queixando-se

ao rei, dele obteve o desterro do inquisidor-mor – que partiu da corteacompanhado pelo irmão D. António, sem que esta versão dosacontecimentos explique a razão por que omais velho dosMeninos dePalhavãfoitambémcastigado.Há,paraestecaso,umaexplicaçãodiferente–emelhor.Nasuaguerra

contra a Companhia de Jesus, o Marquês de Pombal patrocinou oufavoreceu a publicação de escritos que maldiziam dos jesuítas ouexaltavamogovernoeadoutrinadoomnipotenteministro.Um desses escritos foiDe Potestate Regia, um livro composto pelo

intendente geral de Polícia, João Inácio Ferreira Souto. Ora, D. José deBragançaconsiderouqueolivroofendiaosdireitosdaSantaSéemandoudoisfamiliaresdoSantoOfício–ocondedeSãoLourençoeoviscondedeVila Nova de Cerveira – a casa do intendente, para o prenderem etrazeremoautógrafoetodososexemplaresdaobraqueláencontrassem.Sabedordoacontecido,Pombalfoifazerqueixaaorei.Eesteordenou

que se prendessem os dois familiares da Inquisição, mandando, alémdisso, o conde de Oeiras estranhar ao inquisidor-mor a afronta feita àautoridadereal.Pombal apresentou-se em casa de D. José de Bragança a cumprir as

ordensdomonarca.Masascoisastranstornaram-see,entreoinquisidor-moreoprimeiro-ministro,houve trocadegritose insultos.D.António,queestavanasalaaolado,correuaveroquesepassava.Emdefesadoirmão,envolveu-senadiscussão.E,perdendoacabeça, levouasmãosàcabeleira de Pombal, arrancou-a e bateu-lhe com ela na cara. Contra oministro, um dos dois – D. António ou D. José – brandiu ainda umpunhal261.

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Indignado,Pombalcorreudenovoaopaçoedeuparteaoreidoquesetinhapassado.EsteconvocouoConselhodeEstadoparaapreciarocasoedispôs-se a condenar à morte os dois Meninos de Palhavã. Mas opatriarca de Lisboa conseguiu transformar a pena capital no desterroparaoBuçaco262.Finalmente,háatesedeumanovaconspiraçãocontraorei,emqueos

dois bastardos de D. João V estariam envolvidos. Foi esta a tesesustentadapelopróprioSebastiãoJosé.EsteacusavaocardealTorregiani,em Roma, e o núncio apostólico em Lisboa, monsenhor Acciaiuoli, deteremorganizadoumanovasediçãocontraafidelíssimamajestadedeD.José I. E acrescentava: «O atrevimento daqueles dois indignospurpurados» conseguira «corromper, debaixo de promessas e deesperanças temeráriasevãs,atémesmoosanguereal,naspessoasdossenhoresD.AntónioeD.José»,aosquaissetinhamjuntado«aspoucaseinconsideradas pessoas da nobreza e alguns regulares das Ordens dosCónegosRegrantesedoOratório[…]»263Nenhuma destas versões, assinala Nuno Gonçalo Monteiro, «parece

suficientemente alicerçada». Mas, como o mais recente biógrafo domonarca também refere, não há dúvida de que os dois Meninos seopuseramdealgummodoaomarquêse,porisso,foramdesterradosparaoBuçaco264.Partirama20deJulhode1760–esóa2deMarçode1777,depoisde

mortooreiseuirmão,équeosdoisMeninosdePalhavãforamlibertadosdo seu desterro, por ordem da rainha D. Maria I, sua sobrinha, postobastas vezes tivessem requerido a D. José a «singular graça» da sualiberdade.SeguiramparaCoimbra,aposentando-senoMosteirodeSantaCruz, onde tinham sido criados. E aí aguardaram que em Lisboa lhespreparassem residência condigna – que podia ter sido o Palácio dasNecessidades mas acabou por ser o Palácio de Palhavã, onde antestinhamresidido265.Acolhidos em Lisboa com grande júbilo, foram (segundo reza a

crónica) «reintegrados em todas as suas honras, dignidades eprerrogativas».Mas, em1786,omarquêsdeBombelles, embaixadordeFrança na corte de D. Maria, notava que D. António e D. José, emborafossemtratadoscomdeferênciapelarainhasuasobrinha,levavam«umavidamuitoretiradaemuitotriste,nãotendorecuperadoosbensquelhestinham sido concedidos por seu pai e de que oMarquês de Pombal ostinhaesbulhado»266.Sobreisso,queriamtratamentodealtezas–e,como

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ele não lhes fosse dado, não viam o corpo diplomático acreditado nacapitalportuguesa.Em 1789, D. José foi feito claveiro da Ordem de Avis, enquanto D.

Antónioassumia idênticocargonaOrdemdeCristo.E,em1801,a4deFevereiro, os «Tios de Sua Majestade», como mereciam ser tratados,foram declarados pelo Príncipe Regente inocentes e «limpos de toda amancha» dos crimes de que tinham sido acusados, exaltando a«regularidade de suas vidas, e a pureza de seus costumes, em todo otempoexemplares»267.Quarenta anosdepoisda sua condenação,quasevinte e cinco depois da sua libertação, os dois Meninos de Palhavãestavamfinalmentevingados.MasD.Antóniojátinhamorrido(em1800)eD.Josémorreulogoaseguir.

***

Além dos Meninos de Palhavã, D. João V teve ainda duas filhasilegítimas.Uma,havidadeD.FilipadeNoronha(irmãdo3.ºmarquêsdeCascais),morreuaonascer.Aoutra,D.MariaRitadePortugal,foifilhadeD. Luísa Clara de Portugal, a famosa e formosa Flor da Murta, quedescendia, por via bastarda, do primeiro duque de Bragança e estavacasadacomD.JorgedeMeneses,descendentedeD.JoãoManoel,bispodeCeuta,quealgunsdizemfilhoilegítimodoreiD.Duarte.DamadarainhaD.MariaAnadeÁustria,atristemulherdeD.JoãoV,D.

Luísadeveoseucognomeaoprópriorei,que,umdia,vendo-avestidadeverdeebranco,lhedirigiuoseguintepiropo:

«FlordaMurtaRaminhodefreixo;Deixardeamar-teÉqueeunãodeixo»…

Desse amor nasceu, em 1731, uma menina que foi criada por umacomendadeira de Santos, convento onde veio a professar. Consta (dizAlberto Pimentel) que D. Maria Rita se desvanecia da sua origem real,«poisquecostumavatrazerpendentedopescoçoumapeçade6$400réise,dandoamostraraefígiedeD. JoãoV,vangloriava-sedeserparecidacomoMonarca»268.Mas a Flor daMurta não deu a D. João V apenas uma filha. Deu-lhe

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tambémuma sobrinha-neta. Com efeito, terminada a relação com o reiMagnânimo, D. Luísa apaixonou-se pelo primeiro duque de Lafões, queerafilhodaqueleD.Miguel,bastardodeD.PedroII,quemorreuafogadonoTejo–sendo,portanto,sobrinho(eafilhado)deD.JoãoV.Este,quandosoubedocaso,quiscastigarexemplarmenteoduque.Enadademelhorlhe ocorreu do que castrá-lo. Mas, inteirado destes propósitos, FreiGaspardaEncarnação,íntimoamigoeconselheirodomonarca,ameaçou-o com o Inferno. E isso chegou, ao que parece, para que D. João Vdesistissedoseuintento.Foi assim possível a D. PedroHenriques de Bragança Sousa Tavares

MascarenhasdaSilvacontinuardeamorescomaFlordaMurtaefazer-lhe uma filha, que se chamou Ana de Bragança. Recolhida também elanum convento, o da Encarnação, teve uma existência mais do quediscreta.Seupaideixou-lheemtestamento300milréisdetençaanualeumdotedecincomilcruzados.Masabastardanuncacasou.

***

Há porventura mais um bastardo joanino a referir. Frei João doEspírito Santo, o capelãodosMarialvas, no seuQuaderno, dá conta dosamores do rei Magnânimo com uma «formosa judia, chamada Judite»,cujopai era «um tal JacobdeOliveira, oficial de ourives», que vivia «lápara Chabregas». Diz o frade que D. João V pôs casa à judia perto daPalhavã, onde ela «vivia com criadas e emalto estado» e ondemorreu,após «cinco anos de grande pecado», ao dar à luz um menino – que,acrescentaofrade,«foientregueaoseuavôjudeu».FreiJoãonãoafirma,masinsinua,queacriançanasceradarelaçãoadulterinadomonarcacomaformosajudia269.

246JúliodeSousaeCosta,MemóriasdoCapelãodosMarialvas(Lisboa:RomanoTorres,1940),p.13.

247PietroFranciscoViganego,AoServiçoSecretodaFrançanaCortedeD.JoãoV(Lisboa:Lisoptima/BibliotecaNacional,1994),p.166.

248Cf.WilliamBeckford,ACortedaRainhaD.MariaI(Lisboa:Tavares,Cardoso&Irmão,1901),p.6.

249AntónioDelgadodaSilva,CollecçãodeLegislaçãoPortugueza–SupplementoàLegislaçãode1750a1762(Lisboa:Typ.DeLuisCorreadaCunha,1842),p.90;AbílioMendesdoAmaral,O“PadreGovea”eosMeninosdePalhavã(Lisboa:Ramos,AfonsoeMoita,1970),p.10.

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250AnselmoBraamcampFreire,BrasõesdaSaladeSintra(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1973),vol.II,p.107.

251NunoGonçaloMonteiro,D.José(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.63.

252Idem,ibidem,p.157.

253MariaBeatrizNizzadaSilva,D.JoãoV(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),pp.151-152.

254JosédeMonterrosoTeixeira,ElPalaciodePalhavã–ArquitecturayRepresentación(Lisboa:EmbajadadeEspañaenPortugal,2008),p.51.

255FreiCláudiodaConceição,GabineteHistórico(Lisboa:ImprensaNacional,1918),T.XIV,pp.89ss.

256IsabelMayerGodinhoMendonça,«AsexéquiasdeD.GaspardeBragançanaSédeBraga»,inCiênciaseTécnicasdoPatrimónio,RevistadaFaculdadedeLetras,Isérie,vol.III(Porto:2004),pp.255-270.

257JosédeMonterrosoTeixeira,ElPalaciodePalhavã–ArquitecturayRepresentación(Lisboa:EmbajadadeEspañaenPortugal,2008).p.169.

258JúlioDantas,OAmoremPortugalnoSéculoXVIII(Porto:Chardron,1917),p.105.

259AntónioGarciaRibeirodeVasconcelos,Algunsdocumentosdoarchivo(Coimbra:Universidade,1901),pp.12e13.

260AgustinaBessa-Luís,SebastiãoJosé(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1981),p.142.

261Cf.SimãoJosédaLuzSoriano,HistóriadoReinadodeEl-ReiD.JoséI(Lisboa:TypographiaUniversal,1867),T.I,p.455;eJ.RibeiroGuimarães,SummariodeVariaHistoria(Lisboa:Rolland&Semiond,1873),pp.218-221.

262Cf.SimãoJosédaLuzSoriano,HistóriadoReinadodeEl-ReiD.JoséI(Lisboa:TypographiaUniversal,1867),T.I,p.456;eFortunatodeAlmeida,HistóriadaIgrejaemPortugal(Porto:LivrariaCivilização,1970),vol.III,p.341.

263Cf.NunoGonçaloMonteiro,D.José(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.149.

264Idem,ibidem.

265JosédeMonterrosoTeixeira,ElPalaciodePalhavã–ArquitecturayRepresentación(Lisboa:EmbajadadeEspañaenPortugal,2008),p.169.

266Cf.MarquêsdeBombelles,Journald’unAmbassadeurdeFranceauPortugal–1786-1788(Paris:CentreCulturelPortugais/PressesUniversitairesdeFrance,1979),pp.60-61.

267AntónioDelgadodaSilva,ColecçãodaLegislaçãoPortuguesadesdeaUltimaCompilaçãodasOrdenações–Legislaçãode1791a1801(Lisboa:TipografiaMaigrense,1828),p.667.

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268AlbertoPimentel,AsAmantesdeD.JoãoV(Lisboa:BonecosRebeldes,2009),p.161.

269JúliodeSousaeCosta,MemóriasdoCapelãodosMarialvas(Lisboa:RomanoTorres,1940),p.72.

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O

ABASTARDADOREICLEMENTE

rei D. José terá muitas vezes enganado sua mulher, a rainha D.Mariana Vitória, infanta de Espanha, embora só se conheça o nome deumadassuasamantes–D.TeresadeTávoraeLorena,cujosamorescomomonarcapodemtersidoacausadadesgraçadasuafamília.Mas,quesesaiba,nenhumbastardonasceudessaoudequalqueroutraligaçãoqueD.Josétenhahavido.D.Maria I, sua filha e herdeira, foimuito feliz comomaridoque lhe

deram–oinfanteD.PedrodeBragança,seutio,quetinhamais17anosdoqueasobrinhaquandocasoucomela,em1760,sendogalardoadocomo título de rei depois de ter sido pai do herdeiro da coroa. DestecasamentoteveaRainhaLoucaseisfilhos.Oprimeiro–D.José,príncipedoBrasil –morreu antesdamãe, peloque foi o segundo, opríncipeD.João,quemlhesucedeu.D. João VI, o Clemente, casou com D. Carlota Joaquina de Bourbon,

infanta de Espanha, que pouco ou nada devia à beleza. Muito pelocontrário:era,nadescriçãodeOliveiraMartins,uma«megerahorrendaedesdentada».EtantoqueomarquêsdeBombelles,embaixadordaFrançaem Lisboa, assegurava ser preciso «fé, esperança e caridade paraconsumaresteridículocasamento:aféparaacreditarqueainfantaéumamulher;aesperançaparacrerquedelanascerãofilhos;eacaridadeparaseresolverafazer-lhos[…]»270A verdade, porém, é que do casamento deD. João VI comD. Carlota

Joaquina nasceram nove príncipes: (1) D. Maria Teresa, que casou emEspanha,primeirocomoinfanteD.PedroCarlose,depois,comocondedeMolina;(2)D.Francisco,quemorreumenino;(3)D.MariaIsabel,quefoirainhadeEspanha;(4)D.Pedro,quefoiimperadordoBrasilereidePortugal;(5)D.MariaFrancisca,quesecasoucomseucunhado,ocondedeMolina,apósamortedeD.MariaTeresa;(6)D. IsabelMaria,que foiprincesaregenteapósamortedeseupai;(7)D.Miguel,quetambémfoireidePortugal;(8)D.MariadaAssunção;e(9)D.AnadeJesusMaria,que

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casoucomoindolenteduquedeLoulé.MasnemtodoselesseriamfilhosdoreiClemente.Éque,comoescreve

AlbertoPimentel, «passacomocertoquedosnove filhosqueD.CarlotaJoaquinaderaà luz,apenasosprimeirosquatrotiveramporpaiD. JoãoVI»271. Os restantes seriam fruto dasmuitas aventuras galantes que seatribuem à rainha espanhola – «não sem razão», segundo o Padre JoséAgostinhodeMacedo, fervorosomiguelista cujaopiniãoneste caso temdeseconsiderarinsuspeita.LauraJunot,quefoiduquesadeAbrantesporobraegraçadeNapoleão

Bonaparte, «Imperador dos tratantes»272, não deixou de sublinhar, nassuasMemórias,a«diversidadecómica»dadescendênciadeD.JoãoVI:«Oque é notável nesta família de Portugal é não haver um único filhoparecidocomairmãouoirmão[…]»273D. Carlota Joaquina, cujos inimigos diziam «ser uma Messalina mais

infameainda, emais impudicadoquea romana», teria tidonumerososamantes, desde o marquês de Marialva (que, sendo jovem, encantouWilliamBeckford)aogeneralJunot,embaixadordeNapoleãoemLisboa,passandopeloalmiranteSidneySmith,LuísMotaFeioouJoãodosSantos,almoxarife(aquealgunschamamjardineiro)daQuintadoRamalhão,emSintra,ondearainhapassoumuitosdiasdasuavidaatribulada.JoãodosSantosera«ummariolaefectivo,todofibraeosso,durocomo

umatrave»,queacaboudevelho,«aossetentaanos,emPaçod’Arcos»274.Ora, para alguns dos que compuseram e ainda hoje cultivam a lendanegradeD.CarlotaJoaquina,este«mariola»équeseriaoverdadeiropaidoreiD.Miguel:«D.Miguelnãoéfilho/D’El-ReiD.João/ÉfilhodeJoãodosSantos/DaQuintadoRamalhão»,diziaumaquadradotempo.Masnãoénadacerto,muitopelocontrário,quedevaserlevadaàletra.Atéporque,nestamatéria,a«doutrina»divide-se:oshistoriadoreseas

más-línguas não dizem sempre amesma coisa. Para Raul Brandão, porexemplo,JoãodosSantosseriaopaideD.MariadaAssunçãoedeD.Anade Jesus Maria – enquanto D. Miguel seria filho do marquês deMarialva275.LauraJunot,porseuturno,escreveuqueoreiAbsolutotinhapor pai «ummoço de estrebaria» da rainha ou «ummédico de Lisboa[…]»276Poroutrolado,D.JoãoVInuncadeixoudereconhecercomoseustodos

osfilhosdeD.CarlotaJoaquina.TantobastaparaqueD.MariaFrancisca,D.IsabelMaria,D.Miguel,D.MariadaAssunçãoeD.AnadeJesusMarianãopossamnemdevamserconsideradosfilhosbastardosdarainha277–

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aindaquando esta nãohaja de ser consideradaummodelo de virtudesconjugais.

***

O rei também não teria a «folha limpa» neste capítulo. Além dasinsinuaçõesdequemanteve,naconstânciadoseuatribuladomatrimónio,umaligaçãohomossexualcomFranciscoRufinodeSousaLobato,aquemfez visconde de Vila Nova da Rainha, D. João VI é acusado por algunshistoriadoresdetertido,tambémele,umafilhabastarda–frutodeumarelação com D. Eugénia José de Menezes, nascida em 1774, na Baía(Brasil), e falecida em 1818, em Portalegre, filha do 1.º conde deCavaleirosenetado4.ºmarquêsdeMarialva.D.EugéniaficaragrávidaeD.João,apavoradocomasconsequênciasda

suainfidelidadeconjugal,encomendaraoraptodaputativaamanteaJoãoFrancisco de Oliveira,médico da Real Câmara e físico-mor do Exército.SatisfazendoasordensdoentãoPríncipeRegente,oDr.Oliveira,casadoepaidequatro filhos, fora,a27deMaiode1803,«pelacaladadanoite»,buscarD.Eugéniadecasadeseuspais,metera-secomelanumbarco,emCaxias,eforadeixá-laaCádis,seguindodepois,sozinho,paraosEstadosUnidos.AcolhidaemCádispelocônsul-geraldePortugal,D.Eugéniaderaentão

à luz em casa dele, no dia 2 deOutubro de 1803, umamenina que, nobaptismo, receberia o nomedeEugéniaMaria doRosário e, no registo,surgiriacomofilhadepaiincógnito.Entretanto, a notícia do rapto de D. Eugénia provocou um imenso

escândalo na corte e na cidade de Lisboa. E pelo «torpíssimo eabominávelatentadocomqueprevaricounoexercíciodoseuemprego»,oDr.Oliveirafoicondenadoaque«combaraçoepregão[fosse]levadoaolugardaforca,naqual[morreria]demortenaturalparasempre».Como,porém,estivesseausenteaotempodasuacondenação(Junhode1804),omédicofoidadocomobanido,pedindoosjuízesa«todaaterra»paraserpreso «ou para que cada um do povo o possa matar, não sendo seuinimigo»,econfiscadososseusbens278.D. Eugénia, por seu turno, foi riscada do título de Dama, privada de

todas as mercês e honras e excluída da sucessão dos bens da coroa eordens a que tivesse, ou pudesse ter, algum direito. Além disso, foidegradada da família e casa em que nasceu, sem poder suceder em

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heranças,vínculoseprazos,«comosehouvessenascidodaínfimaplebe,extintostodososdireitosdesangue»279.Eraoquemandavaumalvará,dadonoPaláciodeQueluza2deJunhode1803eassinadoporD.João,oPríncipeRegente.SeriaasupremahipocrisiaqueD.João,sendooamantedeD.Eugéniae

opatrocinadordo rapto, assinasseessedecreto.Eo factodeo ter feitopareceobrigaraconcluirquenemafidalgaerasuaamásianemoraptoforaencomendadoporele.Não é esta, porém, a opinião do autor anónimo de umaHistória de

Portugal, citada porÂngelo Pereira, onde esta questão aparece tratada.Esseautor,depoisdealudirà«fraquezadepublicarporumDecreto(queos cegos apregoaram pelas ruas) a leviandade desta Senhora,desautorando-a por isso da qualidade de Nobre», sublinha que «aoterceiro dia sumiu-se o Decreto e um fúnebre silêncio se pôs sobre ofacto».Soube-sedepois–prossegueohistoriador,«dedicadopartidáriodeD.

Miguel»–queD.Eugénia,«indopejadadeD.JoãoVI(quesódomédicoafiara,paraasubtrairaoressentimentodesuaEsposaedosparentesdelamesma), parira umamenina, que tem o nome de D. Eugénia Maria deMenezes,epassaraaresidirnoMosteirodasBernardasdeTavira».DaliforadepoistransferidaparaomosteirodamesmaOrdememPortalegre,ondehaveriademorrer.Mas,enquantovivera,oesmoler-morpagara-lhe,do real bolsinho, um conto de réis anual, enquanto sua filha recebiaquinhentosmilréis.EoautoranónimodestaHistóriadePortugal,depoisde declarar que tinha «a maior parte destas circunstâncias do próprioEsmolerMoreProcuradorGeraldosBernardos,queporsuamãofaziaaremessadaspensões»,concluía:«Comoquedeixoreferidopodeduvidar-sequeestasenhorafossefilhadomesmoRei[D.JoãoVI]?»Não contente com esta conclusão, acrescentava-lhe um «segundo

facto»–«eesteaindamuitomaisescandaloso».Eraoseguinte:«Emvidadaquele inconsequente monarca, todos viam e conheciam um pobrehomem, meio pateta, que morava em Queluz, a quem ele [D. João VI]socorria largamente e conheciampor seu filho edeuma saloia,mulherordinária. Invectivavam-no chamando-lhe Comendador, porque tevecertapensãonumadasComendas;porém,desdequeD. JoãoVI faleceu,estedesgraçadoficounomaioresquecimento,ehojeexistenaqualidadedemoçomuitoinferior,emcasadocondedePombeiro.»E rematava: «Quando não houvesse outras provas de considerar os

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dois indivíduos de que falo [D. Eugénia Maria e o Comendador] comofilhosdeD.JoãoVI,bastavaolharparaassuasfisionomiaseconfrontá-lascomasdoseupai![…]»OutrosautoresabundaramnosentidodequeD.EugéniadeMenezes

eradefactofilhabastardadeD.JoãoVI.Erecordavamque,regressadoaPortugal,JoãoFranciscodeOliveiraacabaraporserdesculpadodosseuscrimes,servindo-seD.JoãoVIdelepararepresentarPortugalemLondrese em Paris, além de o ter nomeado para ministro de um dos seusgovernos.Masoshistoriadoresmaisprobosnãosedeixaramconvencerporestes

argumentos.EosmaisrecentesbiógrafosdeD.JoãoVI,JorgePedreiraeFernandoDoresCosta,tambémnão,sustentando«nãoterfundamentoaatribuiçãodapaternidadedafilhadeD.EugéniadeMenezesaopríncipeD.João»280.AtesemaisrespeitadaécomefeitoadequeD.EugéniaMarianãoera

filhadeD. JoãoVImasdoDr. JoãoFranciscodeOliveira, omédicoquetratava sua mãe. Este reconheceu-a como sua filha e obteve a sualegitimaçãoporProvisãoRégiade15deNovembrode1822.Falecidoem1829,deixou-lheumterçodoremanescentedasuaterça.D. Eugénia Maria foi viver com seu meio-irmão, João Gualberto de

Oliveira, que haveria de ser barão e, depois, conde de Tojal. E estearranjou-lhe um casamento comGuilherme Smith, cônsul-geral da Grã-BretanhaemLisboa,quediziamser filho(tambémbastardo, jásesabe)do rei Guilherme IV de Inglaterra. Desse casamento, celebrado a 30 deNovembrode1839,nasceramtrêsfilhos,duasraparigaseumrapaz.Esteesuairmãmaisvelhamorreramnainfância.AoutrafilhadeD.EugéniaMariamorreucom19anosdeidade,solteira.Quanto à mãe da bastarda, foi reabilitada em 1849. E, diz Ângelo

Pereira,sóapartirdaíéquesecomeçouadizerqueD.EugéniaMariaerafilhadeD. JoãoVI.Oboato foi«entretidoe romanceadopela famíliadabastarda,aquemsorriamaisapaternidaderégiadoqueadofísico-mor[…]»281

270MarquêsdeBombelles,Journald’unAmbassadeurdeFranceauPortugal–1786-1788(Paris:CentreCulturelPortugais/PressesUniversitairesdeFrance,1979),p.94.

271AlbertoPimentel,AÚltimaCortedoAbsolutismo(Lisboa:LivrariaFérin,1893),p.143.

272RaulBrandão,El-ReiJunot(Lisboa:LivrariaBrasileira,1912),p.178.

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273DuquesadeAbrantes,RecordaçõesdeUmaEstadaemPortugal(Lisboa:BibliotecaNacionaldePortugal,2008),p.78.

274RaulBrandão,El-ReiJunot(Lisboa:LivrariaBrasileira,1912),p.66.

275Idem,ibidem,pp.76-77.

276DuquesadeAbrantes,RecordaçõesdeUmaEstadaemPortugal(Lisboa:BibliotecaNacionaldePortugal,2008),p.78.

277Numlivroverrinoso,DomMiguel,sesAventuresScandaleuses,sesCrimesetsonUsurpation(Paris:1838),JoséVitorinoBarretoFeioacusaarainhadenãoescondernemassuas«desordens»nemosseus«amantes»,«ocupando-seapenasdeosocultardebaixodomaiormistériopossível,enviandoosfrutosdesseadultérioparaasiloseexilandoosseuspaisparaasprovínciasmaislongínquasdoBrasil».

278Cf.ÂngeloPereira,D.JoãoVI,PríncipeeRei–ABastarda(Lisboa:EmpresaNacionaldePublicidade,1955),pp.41-42.

279Idem,ibidem,p.39.

280JorgePedreiraeFernandoDoresCosta,D.JoãoVI(Lisboa:CírculodeLeitores,2006).p.86.

281ÂngeloPereira,D.JoãoVI,PríncipeeRei–ABastarda(Lisboa:EmpresaNacionaldePublicidade,1955),p.86.

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N

OSBASTARDOSDOIMPERADOR

adinastiadosBragança,D.Pedro,oprimeiroimperadordoBrasil–que também reinou em Portugal como D. Pedro IV –, é, sem dúvida, ocampeão dos bastardos. Carl Schlichthorst, um oficial austríaco queandoupelosBrasis,sustentavaqueerammaisdequarenta(exactamente:43!)osbastardosimperiais.Podemnãotersidotantos.MiltondeMendonçaTeixeira,queelaborouumalistados«quepodem

sercitados,comrelativasegurança,comofilhosnaturais»doherdeirodeD.JoãoVI,contouapenas17.E, juntando-lhesosfilhoshavidosdosdoiscasamentosdoreiSoldado, concluiuque, «de1817a1832,numespaçodequinzeanos,nossoprimeiro imperador foipaide,pelomenos,umas28crianças,foraasdehistóriaduvidosa,quesãomuitas[…]»282D.Pedrocasouduasvezes:aprimeira,em1818,quandotinha19anos,

com a arquiduquesa D. Leopoldina de Áustria, filha do primeiroimperador da Áustria; e a segunda, em 1826, após enviuvar, com aprincesaAmélia de Leuchtenberg, neta da imperatriz Josefina, primeiramulherdeNapoleãoBonaparte,quelhedeuapenasumafilha–D.MariaAmélia,quemorreujovem,vítimadetuberculose,noFunchal.Masdoseuprimeirocasamentotevesetefilhos:(1)D.MariadaGlória,

nascidaem1819,quereinouemPortugalcomonomedeD.MariaII;(2)D.Miguel,nascidoem1820;(3)D.João,nascidoemMarçode1821,que«depois de uma doença de dezasseis dias expirou em um acidente detrintahoras»283,emFevereirode1822;(4)D.Januária,nascidaem1822,quecasoucomocondedeAquila;(5)D.Paula,nascidaem1823;(6)D.Francisca,nascidaem1824,quecasoucomopríncipedeJoinville;e(7)D. Pedro, nascido em 1825, que foi o segundo e último imperador doBrasil.É a estes príncipes que se junta um copioso rol de bastardos, o

primeirodosquaisnascidodosamoresdeD.PedrocomNoémiThierry,ouValency,umabailarinafrancesadoTeatroSãoJoão,doRiodeJaneiro.Avisados da aventura galante do filho, D. João VI e D. Carlota Joaquina

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trataram de afastar a dançarina do príncipe herdeiro. Casaram-na acorrercomumoficialfrancêsemandaram-naparaoRecife–onde,poucodepois,nasceu,morta,umamenina.Por esse tempo, ainda D. Pedro não estava casado com D. Maria

Leopoldina, a «mais desprezada das esposas». Depois deste casamento,emNovembrode1817,nasceuumrapazque foichamadoAugustoesediziaserfrutodosamoresdopríncipecomaaustríacaAnaSteinhaussenSchuch,mulherdobibliotecáriodaimperatriz.D. Pedro teve ainda, de Joana Mosquera, filha ilegítima de um

desembargador,umfilho,JosédeBragançaeBourbon,dequemnuncasesoubemaisdoqueonome.Em1821,D.JoãoVIregressouaLisboa,deixandonoRio,comoregente,

o seu filhomais velho. E este deu, a 7 de Setembro de 1822, o famosogrito do Ipiranga – «Independência ou Morte!» – que tornou o Brasilindependente.Foi exactamentepor essa alturaqueD. Pedro conheceuDomitila (ou

Domitília) de Castro Canto e Melo, filha de um coronel açoriano, queestavaseparadadeseumarido,FelícioPintoCoelhodeMendonça,eerajámãede três filhos. Comela dormiu pela primeira vez no «dia 29 destemês[deAgosto],emquecomeçaramasnossasdesgraçasedesgostos,emconsequência de nos ajuntarmos pela primeira vez» – como D. Pedrohaveriadeescrever284.Domitila «não era formosa». Era, sim, «uma bela mulher, que

engordara mais do que à sua idade convinha, muito branca e muitoinquieta»;«tinhavinteecincoanosepareciaquarenta»285.MasD.Pedroapaixonou-se perdidamente por ela e cobriu-a de atenções, favores emercês.Fê-la primeiro dama da imperatriz. Depois, concedeu-lhe

sucessivamente os títulos de baronesa, viscondessa, e, finalmente,marquesadeSantos(1826),instalando-anumpaláciopertodoPaçoRealdeSãoCristóvão.Desses amores, que se prolongaram por oito anos e causaram a D.

MariaLeopoldinaumdesgostodemorte,nasceramquatro filhos: IsabelMaria, Pedro, e mais duas meninas que receberam, ambas, o nome deMariaIsabel.Mas,antesqueestascriançasvissemaluz,D.Pedro,amanteinsaciável

eumtantopromíscuo,teveváriasoutras–umadasquaisnasceudosseusamorescomumairmãdeDomitila,D.MariaBeneditadeCastroCantoe

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Melo,queeracasadacomBoaventuraDelfimPereira,1.ºbarãodeSocaba,a quem já dera nove filhos e que, súbdito fiel, aceitou reconhecer apaternidade do menino. O bastardo – que D. Pedro contempla no seutestamento–chamou-se,porisso,RodrigoDelfimPereira.Nasceuem1823elevavamuitoemgostoasuafiliaçãoilegítima.Tanto

queumpoetadelínguaafiadaegostoduvidosocompôsumaquadraqueficoufamosa:

«DoImperadorquesedizfilho,Temoretratonasala.Masdap…queopariu,Nãotemretratonemfala.»

A verdade é que Rodrigo Delfim Pereira teve numerosa e ilustreprogenitura.Ainda em1823, o ano emque começa efectivamente o «reinado» de

Domitila, nasceram Teotónio Meireles da Silva, que terá sido fruto darelaçãodeD.PedrocomGertrudesMeireles,umabelezadeMinasGerais;eMarianaAméliadeAlbuquerque,havidadeLuísadeMeneses,poetisa,tambémdeMinasGerais.D. Pedro também não terá resistido aos encantos de Letícia Lacy,

mulher de um violinista da câmara de Fernando VII, rei de Espanha.DessaaventurapoderátersidofrutoD.LuisPabloRosquellas,nascidonoRioa25deAbrilde1823,quechegouaministrodoSupremoTribunaldaBolívia.«NafamíliadeDomLuisPabloseconservaatradiçãodequeerafilhodeD.PedroI[…]»286

***

Quanto aos filhos havidos da marquesa de Santos, a que algunschamarama«novaCastro»,oprimeirofoiumameninaerecebeuonomede Isabel de Alcântara Brasileira. Nascida a 23 de Maio de 1824, foireconhecida por seu pai dois anos mais tarde, num documentoreferendadoporváriosministroseregistadonoslivrosdaSecretariadeEstados dos Negócios do Império: «Declaro que houve uma filha demulhernobreelimpadesangue,aqualordeneiquesechamasseD.IsabelMariadeAlcântaraBrasileira,eamandeicriarnacasadoGentilHomemdaMinhaImperialCâmara,JoãodeCastroCampoeMelo.»287

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Depoisde legitimada,ameninarecebeuotítulodeduquesadeGoiás,com tratamentodeAlteza.Educadanopaço, comsua irmã,D.MariadaGlória,Bela,comoseupailhechamava,veiocomafuturarainhaD.MariaII para a Europa, depois da abdicação de D. Pedro (1831). Viveu emFrançacoma imperatrizD.AméliaecasounaAlemanha,em1843,comErnestoFischler,condedeTreuberg.Emfinaisde1825,Domitiladeuàluzumrapaz–querecebeuomesmo

nomedo filho legítimo do imperador, nascido pelamesma altura (2 deDezembro).RegistadocomoPedrodeAlcântaraBrasileiro,ficouentregueaos cuidados da avómaterna emorreu um ano depois, sem que o paialgumavezotivessereconhecido.Nesseanode1826,que foi odamortedeD. JoãoVI, a10deMarço,

morreu também D. Leopoldina de Áustria, que, tendo abortado a 1 deDezembro um feto masculino, faleceu dez dias depois, pelas dez damanhã, não sem acusar Domitila de ser a causa de todas as suasdesgraças288.D. Pedro chorou «amorte da esposa no peito da amante»289. E esta

deu-lhe,a13deAgostode1827,maisumafilha.D.Pedroescreveunoseudiário:

«A 13 levantei-me às 6½, logo chegou José a darme parte de haver nascidohumameninaà1¾queé,minhafilha,esehádechamarMariaIzabeldeAlcantaraBrazileira.MandeiviracarruagemdoSarmentoparaahirveracazadesuamai.Tenho tenção de a seu tempo fazer Público seu reconhecimento com o título deDuquezadoCeará,edando-lheotratamentodeAlteza,bemcomootemsuairmanaDuquezadeGoiàz,efazoestadeclaraçãoaquiparaqueellanadapercaemcasodeEufalecerantesdehaverpublicadoseureconhecimento,epoderelleserfeitopeloqueaquiconstaquevalerácomoDecretopassadoentão.PaçodaBoaVista,trezede

Agostodemiloitocentos,evinteesette»290.

Poucosdiasdepois,abastardafoisubtraídaasuamãeerecolhidanoPaláciodeSãoCristóvão,ondetambémviviainstalada,«comumserviçodecasquinhaemarfim»,aduquesadeGoiás.Masameninafaleceua26deOutubrode1828.JáentãoD.PedroprocuravanaEuropaumaprincesacomquemvoltar

acasar–epreparavaorompimentocomamarquesadeSantos,quelheprejudicavaosplanos.Masestaaindalhedariamaisumafilha,nascidajádepoisdaseparaçãodosamantes,queocorreua27deAgostode1829.

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AsegundaMariaIsabelnasceuem1830.Noanoseguinte,a7deAbril,D. Pedro abdicou do trono imperial e partiu para a Europa cinco diasdepois,semterconhecidonemreconhecidoafilha–quenãobeneficiou,por isso, dos títulos e tratamentos que tinham sido concedidos a suasirmãs.Já no seu exílio inglês, porém, preocupou-se com ela e mandou

escreveràmarquesadeSantos,paraquemandasseafilhasereducadanaEuropa.Domitilademoroucincomesesaresponder:quandoD.Pedrosedignassemandarbuscarafilha,elaestavaprontaparaaacompanhar…D.Pedrosónoseutestamento,feitoa21deJaneirode1832,voltoua

falarnocaso,pedindoaD.Améliaasua«imperialprotecçãoeamparo»para«aquelameninaquelhefaleiequenasceunacidadedeSãoPaulo,noImpériodoBrasil, nodia vinte e oito de Fevereirodemil oito centos etrinta».Eacrescentava:«DesejoqueessameninasejaeducadanaEuropaparareceberigualeducaçãoaqueseestádandoaminhasobreditafilhaaDuqueza de Goiàz e que depois de educada a mesma Senhora DonaAméliaAugustaEugéniadeLeuchtenberg,DuquezadeBragança,MinhaAdoradaEsposa,achamesemelhantementeparaopédesi[…]»291Sechamou,oquenãoéprovável,MariaIsabelnãoveio.FicounoBrasil,

ondecasoucomPedroCaldeiraBrant,1.ºcondede Iguaçu,aquemdeuquatrofilhos.Morreuem1896.

***

AntesdeMariaIsabeldeAlcântaraBrasileira,D.Pedroteveoutrafilha,nascidadosseusamorescomumafrancesa.Desdemoçoqueoimperadorgostavade«namorarem liberdade,comoumestudante,asmodistasdaRuadoOuvidor»,noRiodeJaneiro.Etinhaa«fantasiadepagaraquasetodas»292.Umahouveporém,noanode1828,quelhemereceuespecialatenção.ClémenceSaisset,aSé-Sé,tinha24anoseera«talvezamaisinteligente

ebonitadas lojistas francesas»,«ambiciosa,hábile lida».Mulherdeumantigo oficial de cavalaria do Grande Exército napoleónico, soube serrecompensadadesdeoprimeiromomentoqueo imperador lheprestouatenção.E,quandooseu«romance»causoutalescândalonacortequefoiprecisofazê-ladeixaroRioeregressaràEuropa,fez-sepagarregiamente.Recebeunadamenosdoque21contos–umafortunaparaaépoca.Clémence,omaridoeosfilhospartirama30deDezembrode1828.E,

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noanoseguinte,maisexactamente,a28deAgostode1829,pelasseisdatarde,Sé-Sédeuàluz,non.º17darueBergère,emParis,umrapazquefoiregistadocomofilholegítimodocasal–masrecebeuonomedePedrodeAlcântaraBrasileiro293.DoBrasil,D.Pedroenvioualgumdinheiroparaajudaracriaromenino.

E, no seu testamento, contemplou-o com um bom legado, pedindo àimperatrizviúvaquenãoodesamparasse.Oque,namedidadopossível,«Sua Majestade Imperial a Senhora Dona Amélia Augusta Eugénia deLeuchtenberg[sua],QueridaeAmadaEsposa,DuquezadeBragança»nãodeixoudefazer,contribuindocomalgumdinheiroparaasuaeducação.Concluídososseusestudos,obastardocasouefoipaideduasmeninas

–quehão-deternascidonaCalifórnia,umavezque,em1849,eraláquePedrodeAlcântaraBrasileirodeSaissetvivia.ChegaraaSãoFrancisconodia2deJulhode1849.Aliseestabeleceue

fez negócios vários (imobiliário, seguros e transporte demercadorias).Estevetambémligadoaumacompanhiadeelectricidade,aBrushElectricLight Company, e foi agente consular de França. O governo francêsatribuiu-lheotítulodevice-cônsulhonorário.

***

AsaventurasgalantesdeD.PedroprosseguirammesmodepoisdoseucasamentocomD.AméliadeLeuchtenbergedoseuregressoàEuropa.E,emboraqueixando-se–comosequeixavaem1831–deque«nãopodiamaisenrijecercertosmúsculos,oquefaziacomfacilidadenopassado»,averdade é que, estando nos Açores, tomou-se de amores por D. AnaAugusta Peregrino Faleiro Toste, freira-sineira do Convento de SãoGonçalo,nailhaTerceira.Háquedizerque,segundoomarquêsdeFronteira,«oConventodeS.

Gonçalo era um grande recurso para a oficialidade dos Corpos,principiando pelo General em Chefe [D. Pedro, ele mesmo]. Todos alitinhamumderriço, como lhe chamavam […]»294Doderriço do general-em-chefenasceu,então,noanode1832,umfilhoquerecebeuonomedopaiemorreucomquatroanosdeidade.Finalmente,D.PedrotevedeMariaLibâniaLobo,açafatadarainhaD.

Maria II, sua filha, mais um bastardo: Pedro de Alcântara, tambémconhecido por Pedro Real. Nascido em 1833 e falecido em 1908, emLisboa,foiparticulardeD.MariaII.Em1855,casoucomMariaLuísade

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AndradeLaquietevegeração.SeriaesteoúltimofilhoilegítimodeD.Pedro,queentregouaalmaao

Criadorpelasduasemeiadatardede24deSetembrode1834,noPaláciodeQueluz.Tinha35anosdeidade.Dosbastardoscomquepovoouseusreinosesenhorios,há,noentanto,

quereferiraindaameninaquenasceuem1831,filhadeAndrezaSantos,«pretaquiteteiradoPaláciodeS.Cristóvão»;acriançaqueteránascidodos seus amores com D. Adozinda Carneiro Leão, a Zindinha; uma D.Urbana, havida da mulher de um dos seus ministros; uma Isabel deBourboneBragança,nascidanoRiode Janeiro,demãedesconhecida;eumaoutra,domesmonome,filhadaviúvadeumtalLafarge,queviviaemFrança.

coroa.jpg

SãomuitoseilustresosdescendentesdosbastardosdeD.Pedro.RodrigoDelfimPereira é a razão de correr sangue imperial e real nas veias de Francisco PintoBalsemãooudeMiguelPaisdoAmaral,entreoutrosnomes ilustresdasociedadeportuguesa. O empresário Carlos Horta e Costa e o jornalista Gonçalo BordaloPinheiro,porseuturno,descendemdePedrodeAlcântara.

282http://www.sindegtur.org.br/2010/arquivos/b6.pdf

283Cf.IzaSalles,OCoraçãodoRei(S.Paulo:Planeta,2008)p.96.

284Cf.PedroCalmon,VidadeD.PedroI–OReiCavaleiro(Porto:Lello&Irmão,1952),p.110.

285Idem,ibidem,p.110.

286Idem,ibidem,p.149.

287Cf.IzaSalles,OCoraçãodoRei(S.Paulo:Planeta,2008)p.177.

288Idem,ibidem,p.185.

289Idem,ibidem,p.189.

290Cf.HugoCatunda,«ADuquesadoCeará»,inRevistadoInstitutodoCeará,TomoLXXXII(1968),

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pp.30-31.

291TestamentodeD.PedroIV:RevistadoInstitutodoCeará,TE5(1972),pp.211-212.http://www.ceara.pro.br/Instituto-site/Rev-apresentacao/RevPorAno/1972TE/1972TE-TestamentoDuqueBraganca.pdf

292PedroCalmon,VidadeD.PedroI–OReiCavaleiro(Porto:Lello&Irmão,1952),p.148.

293Cf.CarlosStudartFilho,«BastardosdeD.PedroI»,inRevistadoInstitutodoCeará,TomoLXXVIII(1964),pp.98-104.

294MemóriasdoMarquêsdeFronteiraed’Alorna,D.JoséTrasimundoMascarenhaseBarreto,DitadasporElePróprioem1861(Lisboa:ImprensaNacional/CasadaMoeda,1986),vols.III-IV,p.221.

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N

OSBASTARDOSDOREIABSOLUTO

ascidoem1802,D.Miguel,oreiAbsoluto,sócasouem1851,comaprincesa Adelaide de Löwenstein, que lhe deu oito filhos. Antes disso,teve amantes e bastardos, posto Júlio Dantas afirme, com base numasuspeitosa carta do condedeRioMaior, que o príncipe teve por algumtempo um «horror doentio» pelas mulheres, de que, atentas as suasmuitasaventurasamorosas,evidentementeseregenerou295.Protagonistas dessas aventuras foram, entre outras, a bailarina

Margarida Bruni, empresária do Teatro de São Carlos, em 1823; umapolacaconhecidaemParisporPrincessedePortugal;a«tamanqueiradeBraga», a que Camilo Castelo Branco alude; D. Emília296, fidalga deGuimarães,«commuitoscunhaisdearmasnosolaremuitosgrilhõesdeouroaopescoço»297;uma«mulhercasadaqueoendoideceuemVienaesemeteuafreira»;umaactrizquesequisbatercomD.Miguelàespada,«debaixodosarvoredosdoCampoGrande»;ouumainglesa,MissAskion,que, em1828, foi emPlymouth«umadasaventurasdo filhodeCarlotaJoaquina»equeJúlioDantasdescobriunospapéisinéditosdoagentedeconfiançadogovernoportuguêsjuntodeS.M.Britânica,AntónioRibeiroSaraiva,porquemelatambémseapaixonou298.Mashá,ainda,MariaEvarista,a«saloiadeQueluz»,quemoravanumas

«casasbaixas»frenteaoPalácioReal,eterádadoduasfilhasaomonarca.Uma delasmorreu tísica. A outra «casou, para Torres Vedras, com umpedreiro»299. Esta segunda filha natural de D. Miguel, chamada MariaHenrique, foi afilhada do conde de Soure300, o amigo mais íntimo e ocolaboradormaisdevotadodorei.CriadaporD.HelenadeVasconceloseSousa, filha do marquês de Castelo Melhor e mulher do marquês deAbrantes, «passou depois para o Convento das Salésias e dali para oCrucifixo». Precisando de banhos de mar, levaram-na a Torres Vedras,onde foi albergada por José Agostinho, dono da Quinta da Piedade,próximodoVimeiro,queaengravidou.Foientãocasadacomumcriadodacasa.Eofilhodelaestavavivoem1893301.

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AestasduasbastardasdeD.Miguel,acrescentaCamiloCasteloBrancoumaterceira:D.MariaJosé,aInfantaCapelista,principalpersonagemdoromance que o escritor compôs para denegrir a Casa de Bragança e sevingardoreiD.Luís,que lherecusou,eao filhohavidodeAnaPlácido,umtítulodevisconde.Esseromance,queCamiloacaboupornãopublicar,talvezparaagradecereretribuiravisitaquelhefezoúltimoimperadordoBrasil,foidepoistransformadonoutro–OCarrascodeVítorHugoJoséAlves – ondeD.Maria José, de capelista passou a luveira, acabandoporcasarcomumcondedeBaldaque,segundodotítulo,filhodeumnegreiroquelhedeixara«aherançaignominiosadetrêsmilhões[…]»EssabastardadeD.Miguel,quenãopassadecertodeumapersonagem

de ficção, terianascido em1832e seria filhadeuma senhora chamadaMariana Joaquina Franchiosi Rolim Portugal, depois de se ter chamadosimplesmente Mariana Joaquina e, mais tarde, Mariana Joaquina daConceiçãoElísia.D. Mariana, «famosa aventureira» que Camilo faz fantasiosamente

descender de D. Afonso VI, não é, porém, uma criação do romancista.Existiu realmenteeparecenãohaverdúvidasdeque«teve intimidadescomD.MigueldeBragança»302.Baptizadaa2deNovembrode1797nafreguesia de Santa Isabel, em Lisboa, era filha de Eusébio Joaquim, ummoleirodeAzeitão.Muitonova,fugiudecasadeseuspaiscomumoficialdeMarinha,queaabandonou.Depois,casou,provavelmenteemOutubrode1814,emAzeitão,comum«sombreireiro»,talvezchamadoJoãoLopesGiraldo, que a deixou. Por 1817, foi criada de servir em casa de umamadame Chapsal, passando, quatro anos depois, a governanta de umpadeirorico,ManuelRodrigues,«estabelecidonatravessadoSecretárioda Guerra e domiciliado num 1.º andar do pátio do Picadeiro, a S.Carlos»303.Mas, um dia, Mariana Joaquina decidiu apropriar-se de anéis de

diamantes, colheres de prata, dinheiro e roupas do padeiro, de quemevidentemente se despediu. «Tomou então uma casa na rua dosDouradores, aonde iam os figurões com as suas amásias e, por isso,adquiriu grandes conhecimentos, dos quais soube tirar partido, sendoseus apaixonados Luís da Motta Feo; o Barrão, coronel de milícias;AntónioSicard,quemorreunaTorre[deS.JuliãodaBarra];umRego;e,enfim,odesembargadorFerraz,dequem teveum filho.»304Oumelhor:dissequetinhatido.Foiestedesembargador,acasadequemMarianaiatodososdias,quea

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ajudoua subiraindamaisnavida.Trocou-lheahospedariadaRuadosDouradores por uma casa no Largo do Carmo, pôs-lhe carruagem eapadrinhou-lhe o filho, baptizado em São Nicolau como filho de paisincógnitos,cujapaternidadeestevequaseaassumir.Poressetempo,jáa«famosa aventureira se intitulava D. Mariana Joaquina de Portugal[…]»305Odesembargadormorreu.D.Marianaapoderou-sedeumbaúqueele

possuía e voltou a mudar de casa, transferindo-se para o paço do BoiFormoso.DopárocodeSãoNicolautentouobterumaalteraçãodoregistode baptismo do filho, de modo a que o desembargador nele figurassecomopai de criança.Mas um criado preto, José de Faria, que servira odesembargadoreamadama,«declarouqueelahaviacompradoomeninoparaoimpingiraodesembargador,primeirocomoafilhado,depoiscomofilho»306.Marianacontinuouasubirnavida,habitando«prédioscaros,nasruas

da Emenda e daMadalena». Ganhou, alémdisso, novos conhecimentos,nãolhesendodifícilcaptarasboasgraçasdocondedaLousã,ministroesecretário dos Negócios da Fazenda no governo de D.Miguel. A seguirconheceu o próprio príncipe, com quem manteve «relações intimas»,frequentandoosseusaposentos«diasim,dianão»,eservindoasuacausa«fazendoespionagem».«Crescendoemaudácia»,procuroudepoisimpingir-lheumafilhapelo

mesmo processo que tinha seguido com o desembargador Ferraz. Maspor aqui se vê que a filha de D. Mariana – a D. Maria José, «infantacapelista»ouluveira,conformeoromancedeCamiloqueseescolha–nãoteveD.Miguelporpai.Um outro escritor, Carlos Malheiro Dias, na mais célebre das suas

obras,OsTellesdeAlbergaria,atribuitambémàpaternidadedomonarcaumasenhorachamadaD.MariaJoaquinadeVasconcelos–quepodenãopassar,eprovavelmentenãopassa,tambémela,deumapersonagemdeficção.MasdeficçãoéquenãoéD.MariadaAssunçãodeBragança,filhaque

D. Miguel reconheceu em Albano (Itália), a 2 de Agosto de 1839307. AbastardanasceuemLisboa,a12deMarçode1831,sendo filhadeumaCarlota–aCarlotadosPésGrandes–que,merecendoasboasgraçasdoRei Absoluto, era aomesmo tempo amante de ummonsenhor e de ummarquês.MoravanaRuaLargadeSãoRoque,no1.ºandardeumacasafronteira à Travessa do Poço da Cidade, em Lisboa, que D. Miguel

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frequentava«quasesempredenoite,acompanhadoporalgunsdosseusíntimos»308.MasterátidotambémumacasadehóspedesaoCorpoSanto,segundoinformaçãoqueAlbertoPimenteldepoiscolheudomarquêsdeValada309. Foi lá que o príncipe Lichnowsky a conheceu, em 1842,considerando-a uma «bella mulher com ainda classicos vestigios dedepostosencantos»310.QuandoD.Miguelpartiuparaoexílio,a26deMaiode1834,D.Maria

daAssunçãoseguiu-o.EntregueaoscuidadosdeMarianadaGama,viúvade José Luís da Rocha, o «particular» do monarca que substituíra oviscondedeQueluzcomoseusecretário,D.MariadaAssunçãopassouavivernosarredoresdeRoma.E,comosustentodela,gastariaD.Miguelumterçodamesadaquerecebiaentãodopapa311.DepoisdeD.Migueldeixaroseuexílioitaliano,D.MariadaAssunção

permaneceuemRoma.Por1893,garanteAlbertoPimentel,residianaviadelPlesbicito(pertodaPiazzaVenezia),n.º112,3.ºandar,sustentada,aoque parece, por uma pequena pensão do Instituto Português de SantoAntónio.Alimorreu,a9deJulhode1897,umasexta-feira.Dessamorte deu notícia oFigaro do dia seguinte, em Paris, dizendo

que «a filha natural do falecido rei D. Miguel» tinha vivido«modestamente» na Cidade Eterna, «ocupando-se com obras decaridade».EacrescentavaqueD.MariaAssunta(eraesteonomeitalianoquelhedava)aspirarapormomentosaserdeclaradaprincesadesanguereal, «mas a morte de D. Luís impedira que as suas diligênciasalcançassemumresultadofavorável».Arematar,afirmavaque«adefuntaeramuitoestimadanoVaticano».Essaestimaéconfirmadaporváriasfontes,amaisinsuspeitadasquais

é S. Daniel Comboni, que o papa João Paulo II canonizou em 2003. NoVerãode1865,o fundadordosMissionáriosCombonianospreparava-separapôrempráticaoseuprojectoevangelizadordocontinenteafricano.Para tanto, entendeu que lhe era indispensável aprender português. Etomoupormestraumasenhoraqueera,nas suaspalavras, «SuaAltezaRealDonaMariaAssuntadeBragança».Esta «virtuosa princesa», dizia ele ao padre Francisco Bricolo, seu

amigo, tinha 32 anos de idade, era de «rara piedade» e possuía «umcoraçãoimenso».Sobreisso,eraameninaquerida,oenfantgaté,dopapaPioIX,deAntonelli[ocardealsecretáriodeEstado]edocardealPatrizi.Comboniconsiderava-a«umgrandeexemplodedesapegodomundo»econfiavaquefosse«comoumapóstoloparabeneficiaro[seu]plano».Foi

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exactamente isso que sucedeu: D.Maria da Assunção tornou-se amaisdedicada colaboradora do santo em Roma, desempenhando um papelconsiderado decisivo na difusão da Obra do Bom Pastor, lançada porCombonieabençoadapelopapa.O mesmo papa Pio IX terá querido legitimar D. Maria da Assunção

como filha de D. Miguel. Mas o cardeal Antonelli desviou-o dessepropósito, lembrando que poderia haver, quanto à mãe, cuja biografianãoerasuficientementeconhecida,algumimpedimentocanónico…312Além desta virtuosa bastarda, cuja existência não oferece qualquer

dúvida, D. Miguel terá tido uma outra filha ilegítima: Maria de Jesus,nascida entre 1833 e 1834, fruto dos amores do monarca com umasenhora desconhecida. Gerada quando D. Miguel estava com o seuexércitoemSantarém,preparando-separaretomaraLisboaconquistadaa 24 de Julho pelo duque da Terceira (o que, como se sabe, nuncaconseguiu), a menina suscitou recentemente a curiosidade de trêsgenealogistas,quelheadivinharamuma«vidaaventurosa»313.Segundo parece, Maria de Jesus casou primeiro com um D. Silverio

Rodriguez, quemorreu emHavana (Cuba). Chamava-se então D.MariaRosa Tell de Mondedeu da Silva, um «nome de sabor castelhano» queabandonou em Lisboa, ao casar, em 1873, comD. Tomás José deMelo,escritor,empresárioteatraleconhecidoboémio.Noactodoseucasamento,«assinacomonomedeD.MariadeJesusde

BragançaeBourbon,viúvadeD.SilverioRodriguez».E,porserviúva,nãosedeclaraonomedosseuspaisnemasuanaturalidade.EmJulhode1874,nasceoprimeirofrutodessematrimónio:umafilha,

que foi baptizadaumanodepois comonomedeMaria JustinaMicaelaTomásiaJosédeJesus,declarando-senoregistosernetamaternade«D.MigueldeBragançaeavóincógnita».Podeserquefosse.Pode ser também que novos bastardos se descubram. Nos livros A

InfantaCapelista, como, também,noCarrascodeVíctorHugo JoséAlves,Camilo Castelo Branco garantia ainda existirem em Lisboa, além de D.Maria José, «cinco ou seis pessoas, de ambos os sexos», que eram«conhecidosfilhosdeD.Miguel»…314

295Cf.JúlioDantas,ArtedeAmar(Lisboa:Portugal-Brasil,1922),p.120.

296Trata-sedeD.EmíliaCorreiadeMoraisLeitedeAlmadaeCastro(1807-1897),filhadoviscondedaAzenha,quedescendiaporseupaideD.AfonsoDinis,obastardodeD.AfonsoIII,mastambémdeD.TeresaSanches,filhadeD.SanchoIedaRibeirinha,descendendoporsuamãedeD.UrracaAfonso,outradasfilhasilegítimasdoreiBolonhês.

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297JúlioDantas,Mulheres(Porto:LivrariaChardron,1916),p.123.

298Idem,ibidem,p.124.

299AlbertoPimentel,AÚltimaCortedoAbsolutismo(Lisboa:LivrariaFérin,1893)p.290.

300D.HenriqueJosédaCostaCarvalhoPatalimSousaeLafetá,7.ºeúltimocondedeSoure,nasceuem1798emorreuem1838.Nãocasoumasdeixoutrêsfilhos,quelegitimou.

301AlbertoPimentel,AÚltimaCortedoAbsolutismo(Lisboa:LivrariaFérin,1893),p.285.

302Idem,NinhodeGuincho(Lisboa:ParceriaAntónioMariaPereira,1903),p.146.

303Idem,ibidem,p.147.

304Idem,ibidem,p.148.

305Idem,ibidem,pp.148-9.

306Idem,ibidem,p.149.

307Cf.FredericoGravazzoPerryVidal,DescendênciadeS.M.El-ReioSenhorD.JoãoVI(Lisboa:GuimarãesEditores,1923),p.177;AfonsoEduardoMartinsZuquete,NobrezadePortugaledoBrasil(Lisboa:EditorialEnciclopédia,1960)T.II,p.47.

308AlbertoPimentel,AÚltimaCortedoAbsolutismo(Lisboa:LivrariaFérin,1893),p.289.

309Idem,NinhodeGuincho(Lisboa:ParceriaAntónioMariaPereira,1903),p.45.

310PríncipeLichnowsky,Portugal:recordaçõesdoanode1842(Lisboa:ImprensaNacional,1844),p.18.

311Cf.MariaAlexandraLousada&MariadeFátimadeSáeMeloFerreira,D.Miguel(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.294.

312AlbertoPimentel,AÚltimaCortedoAbsolutismo(Lisboa:LivrariaFérin,1893),p.290.

313AntóniodeMattoseSilva,AntóniodeSousaLara&LourençoCorreiadeMatos,UmaFilhaNaturaldoReiD.Miguel,AscendentedoPintorThomazdeMello(Lisboa:2008),p.23.

314CamiloCasteloBranco,AInfantaCapelista(Porto:s/d),p.37.

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D

ABASTARDADAEXCELENTÍSSIMAMADRASTA

ona Maria II, a rainha Gorda, que esteve para casar com o rei D.Miguel, irmão de seu pai, acabou por casar com o cunhado deste – opríncipeAugustodeBeauharnais,duquedeLeuchtenberg,naBaviera,eduque de Santa Cruz, no Brasil, irmão da imperatriz Maria Amélia,segunda mulher de D. Pedro, e neto da imperatriz Josefina, primeiramulherdeNapoleãoBonaparte.Ocasamentocelebrou-seemLisboa,a26deJaneirode1835.Mas,dois

meses depois, o príncipe Augusto morreu «em consequência de umaangina»,deixandoD.Maria«viúvasemtersidoesposa»,umavezqueocasamento não foi consumado. E, em Maio desse ano, começou aprocurar-seumnovomaridoparaarainha,cujasucessãourgiaassegurar.O conde de Lavradio encontrou-o na pessoa de D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, príncipe alemão, que era sobrinho do rei Leopoldo daBélgicaeprimodireitodarainhaVictoriadeInglaterra.Oachadovaleu-lheagrã-cruzdaTorreeEspada.OnovocasamentodarainhafoiaprovadopelogovernoemDezembro

de 1835 e celebrou-se em Lisboa a 9 de Abril seguinte. Dele nasceramonzepríncipes,doisdosquaisforamreisdePortugal:D.PedroVeD.LuísI.Oúltimodos infantes,D.Eugénio,morreunodia15deNovembrode1853,emquenasceu–elevousuamãeconsigo.D.Mariatinha34anosdeidade. D. Fernando descreveu-a, e chorou-a copiosamente, como «amelhordasmãeseomodelodasesposas»315.O rei viúvo ficou inconsolável. Mas, sendo homem galante e bem-

apessoado,não tardouarecompor-se.E,nosanosseguintesàmortedamulher, protagonizou numerosas aventuras, «rápidas ou duradouras»,quetalveztivessemcomeçadoantesdeenviuvar,coleccionandoamantescujosnomes,segundoEduardodeNoronha,encheriammuitaspáginasdeumlivro.Comelas,povoouoreinodebastardos:«SuaMajestadenãoselimitou a dar príncipes à dinastia; gerou vassalos para os servirem[…]»316

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Entreassuasamásiascontam-seumacostureirinhafrancesa,CharlotteHanriot, a quem o rei trazia «bem vestida e admiravelmente calçada»;uma lindadançarina italianadoTeatrode SãoCarlos, que também«foipertença do conde de Farrobo»; ou uma actriz que «de hámuito haviaapresentado a sua notável e bem marcada candidatura e que estavaprestesasubiraoCapitólio[…]»317MasnãoécertoqueD.FernandoIItenhatidotantas«barregãs»como

seafirma.Edosbastardosquegerounãohá(quase)nenhumasnotícias.OquesesabedeciênciacertaéqueoreiArtista, jáviúvo,seapaixonouperdidamenteporumacantoradeópera,EliseHensler,comquemacaboupor se casar. E dessa ligação terá nascido uma filha, que nunca foireconhecida como tal – nem pelo pai nem pela mãe (com quem, noentanto,viveu).O romance começou em 1860, sete anos depois de D. Fernando

enviuvar. Nesse ano cantou-se em Lisboa, a 15 de Abril, O Baile deMáscaras, de Verdi. O papel de Óscar, o pajem, era desempenhado poruma cantora cujas curvas provocavam, porventura mais do que a voz,admiração e aplauso. «Ela é tão bonita que faz gosto festejá-la!» –comentava,aotempo,JúlioCésarMachado318.Nascidaa22deMaiode1836,emLa-Chaux-de-Fonds,juntoaolagode

Neuchâtel, na Suíça, Elise FrederickHensler tinha dois anos quando ospais decidiram cruzar o Atlântico e estabelecer-se na América. Viveuprimeiro em Nova Iorque, depois em Springfield (onde aprendeu acantar),e,finalmente,emBoston.Foiaquiquepelaprimeiravezpisouopalco para cantar uma ópera:Robert leDiable, de Giacomo Meyerbeer.CorriaomêsdeFevereirode1852.O êxito que Elise obteve convenceu o pai, alfaiate de profissão, a

mandá-la aperfeiçoar em Paris as qualidades canoras. Estudou noConservatórioImperial,ondeoseutalentofoimuitoapreciado.Ealgunsvaticinaram-lheumlargofuturo,recomendando-lhequeprosseguisseosestudos em Itália. Elise passou então a Milão, onde acabou por sercontratadapeloLaScala.Efoiaíqueseestreou,emDezembrode1854,na ópera Linda di Chamounix, de Donizetti. Mas o aplauso não foiunânime.Entretanto, o pai – que viera dos Estados Unidos para servir de

empresárioàfilha–teveumataquedecoraçãoqueodeixouparalisadoesemfala.Talvezporisso,ElisedecidiuregressaracasaemJunhode1855– e, com a mesma ópera que cantara em Milão, estreou-se em Nova

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Iorque.Depois,cantouemBoston,FiladélfiaeWashington.A22deMaiode1856, foi-lhe concedidopassaportepara voltar àEuropa.AndouporFrança,Itália,ÁustriaeSuíça.Em1859,foicontratada(ou,comoentãosedizia,escriturada)paracantarnoTeatrodeSãoJoão,noPorto.DeixouParis,ondesedissequetinhacasado,eestreou-seemOutubro

naCidadeInvicta.Oseusucesso,eodasuacompanhia,foram,porém,decurtaduração.E,quandoachamaramparacantaremLisboa,aHenslernãohesitouepartiu–levando«naalmaoslutosdanaturalvaidadeferidapela indiferença gélida duns pisa-verdes que honraram grandemente amulher,menosprezandoaartista»,comoCamiloescreveunassuasNoitesdeInsónia.Depois de a ouvir no São Carlos, onde não foi muito apreciada pela

generalidadedacrítica,oreiViúvoperdeu-sedeamoresporela.Enuncamaisadeixou.EnquantoD.PedroVfoivivo,D.FernandonãometeuadamanoPaço

dasNecessidades,ondetinhaasuaresidência.Epassavaomelhordoseutempoemcasadela,naRuadosRemédios,àLapa,ondeElisaviviacomamãe–vivendotambém,aoqueparece,comumameninaaquemchamava«sobrinha».Mas,mortooherdeirodesuaprimeiramulher,oreiArtistadeixou-sedecerimónias,assumindointeiramentea«mancebia».E,entreMaio e Outubro de 1863, andou com a Hensler pela Europa,apresentando-a,porém,comomulherdocondedaFoz,seuajudante-de-campo.Em1869,quandootronodeEspanhafoioferecidoaD.Fernando,este

fezmuitaquestãoemdeixarclaroquenãoiriaparaMadridsemlevaraamante consigo. E, para que dúvidas não subsistissem a esse respeito,tratoude casar comela –para grande escândalodemuitoboa gente, acomeçarpelarainhaD.MariaPia,quenãosuportavaamadrastadeseumarido. Esse casamento desigual pode ter sido a principal causa de D.Fernandonunca ter sido coroadomonarcadopaís vizinho, apesarde acantora ter recebido o título de condessa de Edla como presente deErnestoII,duquedeSaxe-Coburgo-Gota.D.Fernandomorreuem1885edeixouasuamulheromelhordasua

fortuna:oPalácioeoParquedaPena,oCastelodosMouroseaQuintadaAbelheira.AsúltimasvontadesdoreiArtistaprovocaramumescândalonacional. E o Estado foi obrigado a comprar à condessa todos os bensimóveis que seu marido lhe deixara. Foram negociações complexas emorosas, que só se concluíram em finais de 1889, já no reinado de D.Carlos.

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Elisa Hensler viveria até 1929. Quando morreu, disse-se que teriacasado«aocultas»comogeneralSebastiãodeSousaTeles,quechegouaministro da Guerra do rei D. Carlos. E ficou definitivamente a saber-sequeAliceHensler,a«sobrinha»dacondessa,eraafinalsuafilha,«aqualel-reiD.Fernandosempremimou».Alguns quiseram, aliás, que o viúvo de D. Maria II fosse o pai da

senhora, que, à data da morte da mãe, estava já viúva de Manuel deAzevedoGomes, oficial deMarinha. Nada era, porém,mais improvável.Quando Alice nasceu, no dia de Natal de 1855, ainda D. Fernando nãosabiadaexistênciada«garridacantarina»–queocondedeMafrarecordanassuasMemóriascomomulher«esbelta,bonita,inteligente,boaartista,espertaebondosa»319.

315Cf.MariadeFátimaBonifácio,D.MariaII(Lisboa:CírculodeLeitores,2007),p.155.

316EduardodeNoronha,OReiMarinheiro(Lisboa:JoãoRomanoTorres,s/d),p.47.

317Cf.JúliodeSousaeCosta,OSegredodeDomPedroV(Lisboa:RomanoTorres,1941),pp.51-54.

318Cf.TeresaRebelo,Condessad’Edla(Lisboa:Aletheia,2006),p.155.

319MemóriasdoprofessorThomazdeMelloBreyner,4.ºCondedeMafra–1869/1863(Lisboa:ServiçodeDermatologiadoHospitaldoDesterro,1997),p.13.

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J

OSFILHOSDODR.TAVARES

ovembem-parecido,muitosisudoemaldisposto(«umanciãodevinteedoisanos»,dissedeleumavezAlexandreHerculano),D.PedroVcasou,em 1858, comD. Estefânia de Hohenzollern-Sigmaringen, que, amandomuitooseumarido(comodizia),nãooachavaamável,«sobretudocomassenhoras»320.Ocasamentofoibreve:arainha,alemãcomoseusogro,quealiásnãoapreciavaparticularmente,morreuumanodepoisdesetercasado – dizendo as más-línguas que partiu para o outro mundo tãovirgemcomoaestetinhachegado.D.PedroVpoucotempolhesobreviveu,falecendoem1861,semdeixar

descendência,legítimaouilegítima.Sucedeu-lhenotronoseuirmão,oreiD.Luís,que,depoisdeseraclamadoemcortes,casoucomD.MariaPiadeSabóia. Foiummatrimóniomuito aplaudido– e, nosprimeiros tempos,parecequemuitofeliz–,dequenasceramdoispríncipes:D.Carlos,quedepoisreinou,eD.Afonso,duquedoPortoecondestáveldoReino.Mas,depoisdonascimentodestesegundofilho,a31deJulhode1865,

as relações entre omonarca e «a italiana», como a rainha era algumasvezes chamada, começaram a arrefecer. E D. Luís, que desde moço serevelara grande conquistador, entrou numa vida absolutamentedesregrada,emfinaisdadécadade1860321.Tantoqueumconselheirodomonarca achou necessário lembrar-lhe a triste sorte da rainha deEspanha,depostapelaRevoluçãodeCádis:«ARainhaIsabelcomehojeopãodoexíliodevidoaosseusmauscostumeseàsinfidelidadesconjugaisquetemcometido.»322D.MariaPiapoderá terseguidopelomesmocaminhodomarido.Eo

casal ponderou a separação em termos melodramáticos: a rainharegressaria à suapátria e, emPortugal,D. Luís abdicaria323.A verdade,porém, é que nem a rainha voltou para casa de seu pai nem o reiabandonouoseutrono.D.Luístambémnãodeixoudecontinuaradarassuas«facadinhas»no

matrimónio.«Amigodaboémiaemuitomulherengo»,D.Luís,usandoo

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pseudónimo de Dr. Tavares, saía à noite do Palácio da Ajuda,acompanhado peloDr.Magalhães Coutinho, director da EscolaMédico-CirúrgicadeLisboa,paraseencontrarcomasamantes.AmaisfamosadetodaselasfoiRosaDamasceno,actrizmuitocélebre,

de «figurinha delicada e graciosa, bonita e de cabelos loiros bemfrisados».Deladizemalgunsqueoreitevedoisfilhos,podendoumdelesser Manuel Maria Damasceno Rosado (1867-1925), funcionário daAlfândegadeLisboa,queveioacasar-secomumasobrinhadeEduardoBrasão,actortambémfamosoelegítimomaridodeRosaDamasceno.EstapodenãotersidoamãedosegundobastardodeD.Luís,seéque

eleexistiu.Comefeito,historiadoresháquesustentamdeverserfilhodorei um Pedro Luís António Pretti, que foi dado à luz por uma ilustredesconhecida chamada Marina Mora. Não há outra justificação,sustentam,paraqueD.Luísdeixasseaojovemeasuamãe,comodeixounumacarta-testamentoredigidaem1869,aterçapartedasuafortunaeminscriçõesdedívidapúblicaoupapéisdecréditoestrangeiros.AMarinaMoradeixavaainda«umanelqueusonoquartodedodamão

esquerdacom5brilhantespequenosequeelamedeu»;eaPedroLuís«amedalha da Virgem que trago ao peito»324. Estas doações ou, maisexactamente,estes legadosdemonstravama intimidadedasrelaçõesdoreicomMarinaMoraeoseufilho.Mas,antesdeterestesfilhos,seéqueosteve,D.Luís,estandosolteiro,

poderá ter sido pai de um outro bastardo. Amãe seria «uma deliciosarapariguinha de nome Maria Oliveira, filha dum sapateiro de Belém».Lipipi, comoo rei era chamadopelospais e pelos irmãos, apaixonou-seporela,pôs-lhecasanaTravessadoJudeu,aSantaCatarina,eenfrentoucom galhardia as descomposturas que D. Pedro V lhe dava, tentandoafastá-lodoque,naopiniãodomonarca,eraumamácompanhiaparaoirmão.Umdia,porém,MariaOliveiraaceitouopedidodecasamentoqueum

primo lhe fez e abandonou D. Luís. Mas, cinco meses depois de estarcasada,deuàluzum«garotitoloiro»que«eraacaradaquelequedepoisfoi rei de Portugal». Forçado pelo prior da sua freguesia, o marido deMariaOliveiraaceitoudeclarar-sepaidacriança–que,quandocresceuesefezhomem,foimuitoprotegidopelocondedoRestelo325.

320JúliodeSousaeCosta,OSegredodeDomPedroV(Lisboa:RomanoTorres,1941),p.48.

321Cf.LuísNunesEspinhaSilveiraePauloJorgeFernandes,D.Luís(Lisboa:CírculodeLeitores,

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2006),p.71.

322Idem,ibidem,p.109.

323Idem,ibidem,p.113.

324Idem,ibidem,p.71.

325JúliodeSousaeCosta,OSegredodeDomPedroV(Lisboa:RomanoTorres,1941),pp.132ss.

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D

AÚLTIMABASTARDA

omCarlospodetersidoumgrandereie,até,umpaiextremoso.Masnãofoicertamenteumbommarido.Tendocontraído,em1886,oquesedisse ser, e parece de facto ter sido, um casamento de amor com aprincesaMariaAméliadeOrleães,cedomandouafidelidadeconjugalàsmalvas, entregando-se a uma vida de conquistas e aventuras amorosasqueacabaramportransformaroseumatrimónionuma«desgraça»326.Ofendida e humilhada pelas infidelidades do marido, a rainha D.

Amélia,paravingarasuahonraedefenderasuasaúde,queconsideravaameaçadapelapromiscuidadedorei,começouporlhefecharasportasdoquartoeacabouporfazervidaseparada327.D.Carlos,quenuncadeixoude tratar sua mulher com o respeito e o afecto devidos à rainha dePortugal e à mãe dos seus filhos, prosseguiu os seus «devaneioseróticos»328econtinuouacoleccionaramantes.Teve-asde todososgénerose feitios,desdeactrizes famosas,comoa

francesaRéjane, até fidalgas portuguesas dos quatro costados, como ascondessas de Paraty e da Guarda, passando por camponesas daEstremadura e do Algarve ou, até, por criadas do paço. A sua primeiraaventuragalanteterásido,aliás,comafilhadeumjardineirodoPalácioReal, queRamalhoOrtigão denuncioun’AsFarpas e foi objecto de umaquadra que A Marselheza, um jornal do tempo, não teve dúvidas empublicar. Rezava assim: «Ó D. Carlos de Bragança, / Filho de D. LuizPrimeiro, / Larga a honra que roubaste / À filha do jardineiro.» Nessaaventura se inspirou Aquilino Ribeiro para compor um romance depropaganda reles contra o monarca e a monarquia, que não fez, aliás,grandesucesso.D.Carlos terá tido tambémumaamanteamericana, aquempôs casa

em Lisboa. Emanteve durante anos uma ligação com amulher de umdiplomata brasileiro, César Augusto Viana de Lima, que chefiou, entre1892e1893,alegaçãodoseupaísemLisboa329.ChamadaGrimaneza,foi,segundoGustavodeMelloBreynerAndersen, a «últimagrandepaixão»

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dopenúltimoreidePortugal330.Era, nadescriçãodeRochaMartins, umaperuana«formosade rosto,

com o picante das americanas do sul, mas de carnação láctea e rósea;viúva e nova, rica e elegante, escultural»331. Quando chegou a Lisboa,levavadoisanosdecasada.Mas,a15deSetembrode1894,enviuvou.E,segundoparece,deixou-seficarporPortugal.TrocouasuaresidênciaemLisboapelaQuintadoTorneiro, entrePortoSalvoePaçodeArcos,dalisaindo para vir morar numa casa da Rua das Necessidades, perto dopalácio real, que seria propriedade do monarca. D. Carlos tê-la-iaadquiridoporintermédiodeFranciscoMariadaVeiga,oprimeirojuizdeinstruçãocriminal.E,aosaberdessacompra,JoãoFranco,oúltimochefede governo do rei, teria afirmado: «Umaporcaria! Atrás disto está-se averap…»332Foi nessa casa que, a 8 de Maio de 1903, Tomás de Mello Breyner,

condedeMafra, a visitou,porordemdo rei333.MasGrimaneza já tinhaestadoemLisboa,sobonomedeVirgíniadeCastro,emJaneirode1902.EvoltouaestardeNovembroaDezembrode1903eemJaneirode1905.UmapresençatãoassíduanacapitalportuguesalevouocondedeMafraacomentar:«Estadamaandaarranjandodramareal,maisdia,menosdia[…]»334DasaventurasextraconjugaisdeD.Carloséfamaquenasceramalguns

bastardos,dequehojesejulgamdescendentesalgunsnomessonantesdasociedadeportuguesa.Oprópriomonarcaseencarregoudealimentarassuspeitassobreasuaprole ilegítima,comoEduardoSchwalbachcontouumdiaaRaulBrandão:«Ultimamente[D.Carlos]deranesta:quandosefalava de uma rapariga bonita, aí dos seus quinze anos, dizia com umsorriso–éminhafilha[…]»335Umafilhaterátidodasuaamanteamericana.Eoutra,chamadaMaria

Pia, terá nascido dos seus amores com Grimaneza. Gustavo de MelloBreynerAndersen,queanotouosdiáriosdocondedeMafra,seuavô,diztê-la conhecido e cumprimentado à entrada de São Vicente de Fora. EasseguraterD.Carlosreconhecidoapaternidadedasenhora,queviriaamorreremItália.JoséTomásdeMelloBreyner,umoutrodescendentedoconde,garanteporseuturnoqueadatadonascimentodestafilhadeD.Carlosconstadeumdosdiáriosdoseuantepassado,ondetambémsefazmenção ao nome da pessoa que, no registo, assumiu a paternidade dabastarda real. Esta terá tido descendência, sendo o apelido da suaprogenitura«bemconhecidoactualmenteemPortugal».Seistoéassim,a

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filha de Grimaneza terá nascido antes de 1902 – já que nosdiários doconde deMafra até hoje publicados (e que cobrem os anos de 1902 a1913)nãoháreferênciaanenhumabastardadorei.Mas D. Carlos terá sido ainda pai de uma outraMaria Pia – nascida,

esta,dosseusamorescomMariaAméliadeLaredoeMurça,umasenhorabrasileira,jovemesolteira,naturaldoPará,queterávividoemLisboa,noChiado,durantealgumtempomasdequemnuncaninguémouvira falaraté a filha dar notícia da sua existência. Amante de D. Carlos, MariaAmélia tê-lo-á acompanhado algumas vezes a Vila Viçosa, onde, entreMaioeJunhode1906,umafilhaterásidoconcebida.Depoisdisso,MariaAméliateriadeixadoaEuropa,apenasregressando

aoVelhoContinenteparadarà luza filhado rei, emMarçode1907.Onascimento,dequeocondedeMafratambémnãofala,teriaocorridonodia 13, numa casa da Avenida da Liberdade, em Lisboa, enquanto D.CarlosrecebiaavisitadoreideSaxe.Mas,poucosdiasdepoisdoparto,MariaAmélia–umamulherdearmas,decerto,quenãoseimportavadeviajaremadiantadoestadodegravidezoutendoacabadodedaràluz–partiu com inexplicável pressa para Espanha, onde por acaso seencontravam a rainha D. Amélia e os príncipes seus filhos, de visita àcondessa de Paris. E, a 7 de Abril, um domingo, a putativa filha de D.Carlos foi alegadamente baptizada na Igreja de San Fermin de losNavarros,emMadrid,recebendoonomedeMariaPia.Após o baptismo, que teria contado com a presença do infante D.

Afonso, irmão deD. Carlos, de um conde deMonteverde que serviu depadrinho, de uma Alícia da Silva, que foi a madrinha, e de AntonioGoicoechea y Cosculluela, um devotado servidor do rei Afonso XIII, abastarda teria sido apresentada ao monarca espanhol, embora o bomsensoeobomgostorecomendassemqueelenão fossecúmplice–nemsequer conhecedor – das aventuras amorosas e das infidelidadesconjugaisdoreidePortugal.A bastarda viveria os primeiros anos da sua vida em Espanha,

passando depois a residir em Paris, na casa que seu avô alugara nosChamps-Elysées. Tinham ummordomo brasileiro, NapoleãoWanzeller,umaamainglesa,MissSmallwood,eumacriadaoriundadaMartinica.Quandoestalou aGrandeGuerra, em1914,MariaPia, o avô e amãe

refugiaram-se emVitória, no País Basco espanhol.Mas não tardaram aregressar a França, passando a viver em Pau. Aí, Maria Pia diz que foiapaparicadaporduaspersonagensilustres–oreiNicolaudoMontenegroeoduquedeCadaval,D.NunoÁlvaresPereira,umlegitimistadosquatro

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costados,queerafigadalinimigo,portanto,doramodosBragançaaqueD.MariaPiadiziapertencer.Amenosque,poressetempo,elaaindanãosevangloriassedasuabastardia.Terminada a guerra, Maria Pia terá voltado a morar em Paris, mas,

desta feita, na rue du Colisée. Com 17 anos, a bastarda terá dado osprimeiros e muito precoces passos no jornalismo, tendo, além disso,publicado um livro de versos: Pálpebras de Marfim. A 16 de Junho de1925, uniu-se a um playboy cubano, 20 anos mais velho do que ela edivorciado duas vezes. Chamava-se Francisco Javier Bilbao y Batista epertenciaauma«famíliamuitodistintaeabastadadecriadoresdegadonaprovínciadeCamaguey».Eratalvezomaridoindicadoparaanetadeum «barão da borracha» de quem nunca ninguém ouvira falar,nomeadamentenoBrasildeondesedizianatural.Ocasamentorealizou-senaembaixadadeCubaemParis,queMariaPia

trocou por Havana. Na capital cubana viveu algum tempo, regressandodepois à Europa e vivendo entre Madrid e Paris. Estava talvez emEspanha quando a República foi proclamada, em Abril de 1931, paragrande desgosto seu. Mas permaneceu em Espanha, onde, a 16 deNovembro de 1932, lhe nasceu uma filha deficiente – registada comoFátimaFranciscaXavieraÍrisBilbaodeSajonia-CoburgoBraganza–queacabaria por se recolher a um convento, onde morreu em Outubro de1982.Por 1933, ou pouco antes, começou a colaborar no jornal ABC e na

revistaBlanco yNegro, ondepublicounumerosasprosas, assinadasporHilda de Toledano, que era, dizia ela, o seu pseudónimo literário. Doisanosdepoismorreu-lheomarido.E,a26deNovembrode1935,oABC,aodaranotíciadaquelefalecimento,apresentavacondolênciasàviúva,asua«estimadacolaboradoraD.HildadeToledanodeBilbaoe[a]suafilha,asenhoritaÍrisBilbaodeToledano».Era estranho: se Hilda de Toledano não passava de um pseudónimo

literário, como Maria Pia depois afirmou, por que razão o jornalacrescentava, a esse pseudónimo, o apelido do marido? E depois, esobretudo, por que razão a filha de Hilda usava, como apelido, opseudónimodamãe?NoanoseguinteàmortedomaridoestalouaGuerraCivilespanhola.

MariaPia saiudeEspanha,passouporHavana (ondepublicouum livrointituladoLaHora de Alfonso XIII) e porNova Iorque, acabando por seestabelecer com amãe em Roma, onde o rei Afonso XIII se exilara. Asestranhaseaparentementeestreitasrelaçõesentreambosmantinham-se

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jáque,a1deFevereirode1936,omonarcaespanholescrevia-lhe:«Nãote aconselho a falar a ninguém do matrimónio dos teus pais nem doocorrido em Vila Viçosa, salvo por alguma razão imprescindível. Deusquerendo, tudo se resolverá segundo os teus desejos, sem agravar amemória do Rei teu Pai, que é tua obrigação deixar para sempre semmácula […]» Era um conselho sensato, queMaria Pia optoumais tardepor não seguir. Com efeito, falar do «matrimónio» de D. Carlos com aamanteeraferirdemorteahistóriadeMariaPia.CasadopelaIgrejacoma rainhaD. Amélia, que estava viva e de boa saúde, D. Carlos nunca sepodia ter unido pelos laços domatrimónio, canónico ou civil (que, emPortugal,aliásnãoexistia),àmãedeMariaPia.Masestanãopercebeu–ounãoresistiu.Afinal,eraumaescritoradefértilimaginação…Estabelecidanacapitalitaliana,abastardadeD.Carlosfoibateràporta

do conde Ciano, genro de Mussolini e seu ministro dos NegóciosEstrangeiros. O conde, segundo dirá depois a bastarda, ter-lhe-iapropostocasamentocomopríncipeAimondeAosta,duquedeSpoletoeefémeroreidaCroácia(comonomedeTomislavII).Mas,noseudiário,Cianodizcoisamuitodiferente.Eescreve,a26deAgostode1938:«Veiouma louca.Chama-seHildadeToledano.Comgrandemistério,declarousero“ReidePortugal”eofereceu-meainclusãodoseuEstadonoImpériodeRoma[…]»336Depois desse encontro, ou talvez antes, Maria Pia, que, sublinhe-se,

continuava a chamar-se Hilda de Toledano, apaixonou-se por GiuseppeManlioBlais(1891-1983),umcoroneldecarabineiroscomquemdiztercasadosecretamentenumacapeladoVaticano,a2deSetembrode1939.Mas, como Maria Pia explicará depois, estando então os militaresitalianosproibidosdecasarcomestrangeiras,omatrimóniosópôdeserregistado a 5 de Agosto de 1946. A Segunda Guerra Mundial tinhaterminadoeocoronel tinhasidopromovidoageneral.Diasantesdestecasamento nascera-lhes uma filha, registada com o nome de Maria daGlóriaCristinaAméliaValériaAntóniaBlaisdeSaxe-CoburgoeBragança.Nasvésperasdesse casamento,AfonsoXIII, estandonaÁustria, tinha

voltado a escrever à sua «querida Maria Pia», desejando-lhe que fosse«muyfelizcontuCoronel»erecomendando-lhe,maisumavez,quenãoolvidasse os seus direitos de «Infanta de Braganza». Fazê-lo seria,segundoomonarca,«unatonteria».Muitosanosdepois,MariaPia seguiriaoconselhodoreideEspanha,

que,porrazõesdifíceisdeentender(outalveznão…),sempresemostrou

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muito interessado na causa da bastarda. E, em meados da década de1950, Maria Pia de Saxe-Coburgo, como também era conhecida poralgumaimprensa,proclamouurbietorbiasuafiliação.Ocasodeuentãoque falar nos jornais de todo omundo. E a bastardamultiplicou-se emdeclarações e entrevistas, publicando, além disso, um livro, Mémoiresd’une infante vivante (Paris, 1957), onde traçava o que dizia ser a suabiografia.Numa dessas entrevistas, concedida a La Vanguardia Española, em

Outubro de 1958, a «princesa Pia de Sajonia», como o jornal a tratava,perguntadasobreseaindapodiaserrainhadePortugal,respondeu:«Aleiéesta:semetivessecasadocomumestrangeirodesanguereal,sim.Mascasei-me primeiro com um cidadão cubano e depois com um generalitaliano.»Rematavaojornalista:«Triunfouoamor[…]»Com esta declaração, D. Maria Pia demonstrava conhecer as leis

fundamentaisdamonarquiaportuguesae,nomeadamente,oartigo90daCartaConstitucional,segundooqual«OCasamentodaPrincesaHerdeirapresuntiva da Coroa será feito a aprazimento do Rei, e nunca comEstrangeiro».Opreceitonãoaimpediaapenasdecasarcomestrangeiro;obrigava-a também a obter o «aprazimento do Rei», coisa que ela nãofizeraaounir-seaFranciscoBilbao,emboraD.ManuelIIestivessevivoedeboasaúde.Não tardaria, porém, aqueMariaPia, apesarda ilegitimidadedo seu

nascimentoeda«ilegalidade»dosseusmatrimónios,reclamasseachefiadaCasadeBragançaeotronodePortugal.Já então tinhammorrido todos os membros da família de D. Carlos,

incluindoarainhaD.Amélia,falecidaem1951,etambémNevadaHayes,aviúvadopríncipeD.Afonso,queseintitulavaPrincesaRealdePortugal.TinhamtambémfalecidoosamigosmaisíntimosdomonarcaassassinadonoTerreirodoPaço.E tinha igualmentedesaparecidoo reiAfonsoXIII.Restavam dois documentos, que D. Maria Pia agitava como provasinsofismáveis dos seus títulos e pretensões: a reconstituição do seuassentodebaptismoeacópiadeumacartadeD.Carlosqueareconheciacomosuafilha.O assento original do baptismo da bastarda tinha alegadamente

desaparecido no incêndio que destruiu parcialmente a Igreja de SanFermin, em 1936. Fora por isso necessário reconstituí-lo,desempenhando-se dessa piedosa tarefa o vigário-geral da diocese deMadrid-Alcalá,comoconcursodeAntonioGoicoechea–ouGoico, comoAfonsoXIII,seusenhoreamigo,gostavadeotratar.

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AsupostacartadeD.Carlos,queestariaanexaaoregistodobaptismo,fora igualmente reconstituída com o inestimável contributo deGoicoechea. Nessa carta, o monarca fazia saber que, «atendendo àscircunstânciasequalidadesdamuitonobreSenhoraDonaMariaAméliadeLaredoeMurça,equerendodar-lhetestimonio[sic]autêntico»dasua«Realconsideração»,reconheciaporsua«muitoamadaFilhaacreançaaquemderaaluzamencionadaSenhoranafreguesiadoSagradoCoraçãodeJesusdeLisboaatrezedeMarçodemilnovecentosesete».E,sendo«bemvisto,consideradoeexaminado»pelomonarca«tudooqueencimaficou inserido»,D.Carlospedia às autoridades eclesiásticasparaporem«aságuasbaptismaiseosnomesdeMariaePia,afimdepoderchamarsecom o [seu, dele] nome e gozar d’ora em deante d’este nome, com ashonras, prerogativas [sic], proeminências, obrigações e vantagens – dasInfantasdaCasadeBragançadePortugal».Tanto a certidão de baptismo como a carta de D. Carlos não podem

deixardelevantarasmaioresdúvidasereservas,desdeareferênciaaum«condedeMonteverde»,quenuncaexistiu,àexpressão«InfantasdaCasadeBragançadePortugal», quenão sepercebe.Nãoobstante, foi nestesdois documentos, fabricados (para não dizer forjados) em Espanha eautenticados por espanhóis, que assentaram as pretensões da putativabastardadoreiD.CarlosaotronodePortugal.Elas mereceram crédito e apoio sobretudo entre as figuras mais

destacadasdaoposiçãodemocráticaerepublicanaaoregimedeSalazar,o chamado Reviralho. Mário Soares, que só a conheceu em 1963, emParis,tornou-seseuadvogadoedeclarou,altoebomsom,nãoterdúvidassobreobomfundamentodassuasreivindicações:MariaPiaeradefactofilhadoreiD.Carlose tinhapor issodireitoaserconsideradachefedaCasadeBragança.Já então Maria Pia participara na campanha do general Humberto

DelgadoparaapresidênciadaRepública(oque,paraumapretendenteaotrono,eraumapeculiarcontradiçãonostermos)econviviaintensamentecom todos os anti-salazaristas que a procuravam. Em 1965, veio aPortugal e acabou presa pela PIDE em Caxias, o que contribuiu parareforçaroseuprestígionopaísenoestrangeiro.Mas,em1974,comotriunfodaRevoluçãodosCravos,esseprestígioe

a suposta utilidade política da causa de D. Maria Pia quasedesapareceram para os amigos laicos, republicanos e socialistas dabastarda.EMárioSoares,queaindaarecomendouaBettinoCraxi,olídersocialista italiano, acabou por abrilhantar, em1995, o casamento deD.

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DuartedeBragança,queerao«ódiodeestimação»dabastarda.D.MariaPianuncalheperdoouter-sebandeadocomoinimigo.Nãoforamfáceisosúltimosanosdasuavida.Tendoperdidoosegundo

marido em 1983, voltou a casar-se – desta feita com António João daCostaAmadoNoivo,que tinhamenos45anosdoqueela.Presenteou-ocom os títulos de duque de Guimarães e de Saxe-Coburgo e Bragança,marquêsdeSantoAmarod’Aire,grão-mestredaOrdemdeD.Carlos Ievice-grão mestre das Ordens Reais portuguesas… Descrito por algunsautores como o «marido homossexual» da bastarda, Noivo morreu emDezembrode1996.Viúva pela terceira vez, abandonada pelos amigos, não tendo

conseguidoconvencerafilhanemosnetosaherdarem-lheos«títulos»eas pretensões, Maria Pia, «solitária e perturbada», enfrentandodificuldades financeiras que seu genro, o famoso escultor espanholMiguelOrtizeBerrocal,nãosedispunhaasolucionar,decidiutrespassarpartedasuaherançaaumitalianoendinheirado,RomanoPoidimani,que,após a morte da bastarda, a 6 de Maio de 1995, passou a intitular-seChefedaCasadeBragança.EmPortugal,osmaiscontumazesadversáriosdeD.DuartePionãotêmdúvidasemaceitá-locomotal.D. Maria Pia era de facto filha adulterina de D. Carlos? Não está

provado, longe disso. A sua rocambolesca história está cheia de erros,imprecisões, lacunas, confusões,mentiras e contradições – de talmodoque um escritor e jornalista francês, tendo investigado o caso a fundo,concluiuqueD.MariaPianãopodia ser filhadeD.Carlos,podendo,noentanto,sê-lodopríncipeD.LuísFilipe…Nãoé em todoo caso impossívelD.MariaPia ternascidodealguma

aventuraamorosadeD.Carlos,quenuncafoi,longedisso,ummodelodevirtudesconjugais. Impossívelé,evidentemente,atribuir-lheos títulosedireitosqueosseusapaniguadoslhereconheceram,comoherdeiradeD.ManuelII,chefedaCasadeBragançaepretendenteaotronodePortugal.Mais que não seja porque, se os bastardos reais pudessem ter essestítulos e direitos, então eles não caberiam emprimeiro lugar à filha deMariaAméliadeLaredo–masàdeGrimanezaVianadeLima,quenasceuantesdela.Seéquealgumaveznasceu.

326CondedeMafra,DiáriodeumMonárquico–1902/1904(Lisboa:2005),p.48.

327StéphaneBern,Eu,Amélia,ÚltimaRainhadePortugal(Porto:LivrariaCivilizaçãoEditora,1999),p.132.

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328RuiRamos,D.Carlos(Lisboa:CírculodeLeitores,2006),p.220.

329CésarAugustoVianadeLimaapresentoucredenciaisa21deJulhode1892eexerceufunçõesaté13deMaiode1894,quandoseromperamasrelaçõesdiplomáticasentrePortugaleoBrasil.NessemesmoanofoicolocadoemSantiagodoChile,postoquenãochegouaocupar,falecendonacapitalportuguesa.Sucedeu-lheAssisBrasil,que,retomadasasrelações,apresentoucredenciaisaD.Carlosnodia13deMaiode1895.Cf.AssisBrasil,UmDiplomatadaRepública(Brasília:CHDD/FUNAG,2006),vol.I,pp.107ss.

330CondedeMafra,DiáriodeumMonárquico–1911/1913(Lisboa:1994),p.189.

331Cf.EduardoNobre,PaixõesReais(Lisboa:Quimera,2002),p.173.

332MendoCastroHenriquesetal.,DossierRegicídio–oProcessoDesaparecido(Lisboa:TribunadaHistória,2008),p.85.

333CondedeMafra,DiáriodeumMonárquico–1902/1904(Lisboa:2005),p.154;eDiáriodeumMonárquico–1911/1913(Lisboa:1994),p.155.

334CondedeMafra,DiáriodeumMonárquico–1902/1904(Lisboa:2005),pp.206e210.

335RaulBrandão,Memórias(Lisboa:Relógiod’Água,1998),T.I,p.168.

336GaleazzoCiano,Diários–1937/1943(Barcelona:Crítica,2004),p.167.

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