Bandidotipo exportação

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SC/PR - R$ 4,50 | DEMAIS REGIÕES - R$ 7,50 | URUGUAI - $ 70 DOMINGO PORTO ALEGRE R$ 4,00 ANO 51 N° 17.758 25 MAIO 2014 Grilos ao chocolate parecem exóticos? Com a terra superpovoada, será preciso buscar alternativas. Sua Vida | 27 a 30 A comida do futuro inclui carne de proveta e insetos Bandido tipo exportação Um dos 20 traficantes mais ricos da história viveu 24 anos no RS. É mestre em falsificar identidade, enganou os EUA e o cartel de Cáli e sumiu. Notícias | 14 a 20 MARCELO THEOBALD, AG, DIVULGAÇÃO Marcelo Adnet agrada à crítica e encontra sua turma em “Tá no Ar” SERÁ QUE A CAPITAL ESTÁ PRONTA PARA RECEBER OS TURISTAS ESTRANGEIROS? A COPA É LOGO ALI Esporte | 41 a 45 PIQUENIQUE ZH LEVA GASTRONOMIA E MÚSICA À REDENÇÃO NO DOMINGO FESTA NO PARQUE Sua Vida | 34 FERNANDO GOMES ARTE HENRIQUE TRAMONTINA

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SC/PR - R$ 4,50 | DEMAIS REGIÕES - R$ 7,50 | URUGUAI - $ 70

DOMINGO

PORTO ALEGRE

R$ 4,00

ANO 51 N° 17.758

25 MAIO 2014

Grilosaochocolateparecemexóticos?Comaterrasuperpovoada,seráprecisobuscaralternativas.

SuaVida | 27 a 30

A comida do futuro incluicarne de proveta e insetos

Bandido tipoexportação

Umdos 20 traficantesmaisricos da história viveu 24 anosno RS. Émestre em falsificaridentidade, enganou os EUAe o cartel de Cáli e sumiu.Notícias | 14 a 20

MARCEL O

THEO

BALD,AG,DIVU

LGAÇÃO

Marcelo Adnetagrada à críticae encontrasua turmaem “Táno Ar”

SERÁQUE A CAPITAL ESTÁPRONTA PARARECEBEROSTURISTAS ESTRANGEIROS?

ACOPA É LOGOALI

Esporte | 41 a 45

PIQUENIQUE ZH LEVAGASTRONOMIA EMÚSICA ÀREDENÇÃONODOMINGO

FESTANOPARQUE

SuaVida | 34

FERNAN

DOGO

MES

ARTE

HENRIQU

ETRAM

ONTINA

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25 DE MAIO DE 2014

Nascido em Tubarão (SC),mais velho de seis irmãos,Paul Lir passou a infância(no alto, à esquerda) e ajuventude (no centro,à esquerda) em PortoAlegre, onde se iniciou navida bandida por meio depequenos golpes. Depoisde breves escalas emSão Paulo, Minas Gerais ePernambuco, alçou voointernacional, já integradoao esquema do tráfico(acima). Preso nos EUA,foi transferido ao Brasilpara cumprir pena (aocentro). Seus negóciosincluíam uma fazendaem Nova Canaã do Norte(MT), com uma pista depouso asfaltada paradesembarque de droga

DAN

IELAU

GUSTO

JR.,AGÊNCIA

OGLO

BO,BD

11/06/1993

REPRODUÇÃO

DIVU

LGAÇÃOREPRO

DUÇÃO

REPRODUÇÃO

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15ZERO HORADOMINGO,

25 DE MAIO DE 2014

P aul Lir Alexander fez um grande bem àsociedade entre 1990 e 1993. E tambémdemonstrou um profundo desprezo porela, ao cometer seus piores crimes. Elemorava em uma casa luxuosa de Mia-

mi com a segunda mulher, Erica Souza. Ao redor,possuía duas outras residências: uma para a sogra,outra para a irmã de Erica, Marjorie. Na mansão,mantinha uma central telefônica com 40 linhase um centro de monitoramento onde espionava,em seis televisores, o que ocorria em seus imóveis.Apresentava-se como importador e exportador ementia ser mestre emEconomia.Naquela época, o crack e a cocaína inundavam as

metrópoles americanas, sob o olhar impotente dasautoridades. A repressão praticamente se resumiaa prender traficantes de esquina ou pequenos dis-tribuidores locais. A polícia e a DEA, agência anti-narcóticos americana, percebiam que era necessárioatacar a origem do problema: os cartéis colombia-nos que abasteciam omercado.Eles só não sabiam como.Em 1990, Jerry Speziale, policial que trabalhava

infiltrado no submundo, sentia-se perdido na re-cém-criada força-tarefa da DEA emNova York. Pas-sava os dias tentando achar uma brecha para chegaraos cartéis, sem sucesso. Numa ocasião, vasculhan-do os arquivos da agência no computador, deparoucom uma referência promissora na ficha de um tra-ficante colombiano: “Negociado com o informan-te confidencial SGI-2002 em São Paulo, Brasil, emrelação a 2 mil quilos de cocaína destinados a NovaYork”. Ao perguntar sobre o informante para umco-lega deMiami, ouviu um suspiro profundo do outrolado da linha, antes de receber a resposta:– Paul Lir Alexander. Um informante incrível,

impressionante, com contatos em todos os lugares.Trabalha por muito dinheiro. Fez até serviços deinteligência para oMossad (serviço secreto israelen-se)... Mas tem um problema. Ele está na nossa listanegra. Estava fazendo algo para nós no Brasil, ondenão só se envolveu em um escândalo de corrupção,mas também ficou sob suspeita de negociar cocaínaenquanto trabalhava como informante. A imprensabrasileira o expôs, e a história saiu do controle.

O agente deMiami explicou que, enquanto traba-lhava como informante da DEA, o brasileiro haviaorquestrado um esquema de corrupção com a polí-cia fluminense e, ao mesmo tempo, negociado comos colombianos. Quando o escândalo estourou, fu-giu paraMiami. Inconfiável, tornara-se inútil.– Qual é o nome dele, mesmo? – insistiu Speziale.– Paul Lir Alexander. Mas também Pedro Cha-

morro, José Oscar Arguello, David Coleman. Eletem uma dúzia de nomes e pseudônimos diferentes.Você nunca vai achá-lo.Speziale voou para Miami no começo de 1990 e

deixou recados em todos os lugares por onde o bra-sileiro já havia passado ou poderia passar: “Sou daDEA e quero limpar seu nome”. Um mês depois,Paul Lir telefonou.– Me encontre esta noite no lobby do Sheraton

– disse o brasileiro.

“ELESVÃOFAREJARVOCÊAUMQUILÔMETROETEMATAR”Então com 35 anos, Paul Lir vestia terno de grife,

gravata, suspensórios e sapatos italianos. Carrega-va uma pasta de couro e tinha um Rolex no pulso.Speziale apareceu de jeans e camiseta de ginástica.O brasileiro embarcou-o em uma limusine. Spezia-le tagarelou durante todo o trajeto. Paul Lir abriua boca apenas quando eles se sentaram à mesa deum restaurante.– Deixe-me explicar algo a você, Jerry. Você age

como um policial. Você fala como um policial. Vo-cê pensa como um policial. Você cheira como umpolicial. Se você pensa que vai chegar perto doscartéis, você está louco. Eles vão farejar você a umquilômetro de distância e te matar.Paul Lir fez então uma explanação sobre como o

tráfico funcionava. Os cartéis, explicou, eram umacomplexa associação de traficantes, compartimenta-da em inúmeras células com especializações distin-tas. Havia produtores, investidores, transportadores,peritos em lavagem de dinheiro, distribuidores. Osgrupos responsáveis por cada uma dessas tarefasmudavamde carregamento para carregamento.

A compartimentalização garantia que, caso a polí-cia golpeasse uma etapa do negócio, não conseguiriachegar às demais. Todo o sistema era desenhado pa-ra manter o dinheiro separado das drogas, de formaque, se houvesse apreensão de um, o outro não serialocalizado. Essa ampla estrutura era controlada porumpequeno grupo de famílias emCáli.No livro Without a Badge – Undercover in the

World’s Deadliest Organization (Sem Crachá – In-filtrado na Organização Criminosa mais Mortal doMundo), inédito no Brasil, no qual narra a partici-pação de Paul Lir como informante da DEA, Spe-ziale relata que só naquele momento entendeu amagnitude e a sofisticação dos cartéis. Percebeuque os relatórios a que tinha acesso eram inúteis eque “a DEA não havia arranhado nem a superfície”do narcotráfico.– Como é que a gente rompe tudo isso e pega es-

ses caras? – questionou.– A única forma de pegar o cartel é se tornar parte

dele – rebateu Paul Lir.A proposta do criminoso era montar uma célula

de transporte, aquilo de que os cartéis mais neces-sitam. Segundo Paul Lir, essa era, também, a áreaque ele dominava. Seu plano consistia em a DEAcriar uma empresa de importação e exportação defachada, em algum país latino-americano, e ofe-recer aos cartéis um esquema de transporte entreesse país e os Estados Unidos. A célula fajuta rece-beria a droga colombiana em uma pista de pousoclandestina na América Central, reabasteceria aaeronave do cartel para que ela voasse de volta àColômbia e se encarregaria de entregar a cocaínaàs redes de distribuição norte-americanas. Nessemomento, os policiais tratariam de apreender adroga e prender os distribuidores.– Uma vez que entreguemos as drogas aos dis-

tribuidores, vamos embora com o dinheiro. Umaoutra equipe apanha as drogas e os distribuidores.Tem só um detalhe, muito importante. É absoluta-mente imperativo que nós sempre possamos colo-car a culpa pelo fracasso nas outras partes envolvi-das no negócio. Porque quem estiver com o carre-gamento nomomento em que o negócio cair estarámorto – disse o brasileiro.

CRIME | CAMALEÃO DO TRÁFICO

OBRASILEIROQUEENGANOU

TODOMUNDOONOMEDELEéValdelir Oliveira da Cruz. Aliás,Valdelir Alexandre.Oumelhor, Paul Lir Alexander.Ou José PauloRothstein.Ououtro qualquer, se ainda estiver vivo e ativo. Catarinense criadoemPorto Alegre,protagonizouumadas trajetóriasmais espetaculares domundodo tráfico. Fez debobos,de uma só vez,os barões do cartelde Cáli e o governo americano. Foi preso, fugiu edesapareceu. Tudo começou comumcódigo: SGI-2002.

SEGUE

ITAMAR [email protected]

JOSÉ LUIS [email protected]

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P ara montar a armadilha, Paul Lir exigiaque seu nome fosse retirado da lista negrada DEA e reintegrado como informante.Descobrira que amelhormaneira de ficarrico com as drogas não era ser trafican-

te, e sim informante. A DEA garantia recompensasequivalentes a 20% do valor apreendido. Em troca,Lirmostraria tudo que sabia ao agente:–Vouensiná-lo apilotar umavião e a construir uma

pista depousonomeioda selva.Vou recriar você.Speziale conseguiu remover Paul Lir da lista. O

brasileiro anunciou que eles iriam às compras emalgumas das lojasmais caras deNova York. Enquan-to reconfigurava o estilo do agente, começou a fazercontatos. Conversou com duas figuras secundáriasdo tráfico colombiano, Avelino Devia Galvis e Alon-so Tobon, e convenceu-os de que ganhariammuitodinheiro em caso de uma associação. Dessa forma,levou-os a dizer ao cartel que Paul Lir, conhecidopelos colombianos como Oscar Arguello, e Speziale,rebatizado comoGeraldo Bertone, eram confiáveis.–Nomomento emque os colocarmos a pensar em

dinheiro, eles vãomentir por nós – disse Paul Lir.Garantiu aos colombianos que estava transportan-

do droga com um novo sócio, Geraldo Bertone, massurgira um problema. Eles haviam introduzido umacarga de 400 quilos de cocaína nos Estados Unidos,só que o cliente local não tinha dinheiro para pagar.– Você sabe de alguém que queira essa carga?

– questionou Paul Lir.Chegaram a mostrar o suposto carregamento a

um representante dos colombianos, Freddy Herre-ra, sobrinho de Helmer Herrera, um dos maiorestraficantes de Cáli. A droga tinha vindo do depósitode evidências da DEA.Herrera relatou ao cartel queamercadoria era autêntica.Dias depois, quando os colombianos finalmente

levantaram o dinheiro para pagar a carga, Paul Lirinformou que a venda já não seria possível: o clienteoriginal havia levantado o recurso. Os 400 quilos decocaína estavamde volta aos depósitos daDEA,mashaviam alcançado o objetivo: convenceram os co-lombianos de que Arguello e Bertone eram de con-fiança e lidavam commuita droga.Em abril de 1991, a primeira vítima mordeu a is-

ca. Um grande traficante colombiano, José LizardoLosada, recebera garantias de Avelino, Alonso e Fre-ddy de que o esquema de transporte do brasileiroera autêntico e estava disposto a usá-lo.Paul Lir foi à Colômbia e contou a Lizardo, que ti-

nha uma empresa de importação e exportação naGuatemala chamada Genesis, com pista para pousona selva.Garantia quepoderia receber carregamentosdaColômbia e levá-los atéNovaYork. Lizardopropôsque o esquema do brasileiro transportasse 767 quilosde cocaína, US$ 2,5mil o quilo. Avelino e Alonso, co-mo intermediários, receberiamcomissão polpuda.Quando tudo estava pronto, incluindo a monta-

gem de uma empresa de fachada na Guatemala, Li-zardo convocou de novo Paul Lir à Colômbia.– Seguiremos adiante se você nos der ummembro

da sua família como garantia – disse o chefão.Paul Lir telefonou para a cunhada, Marjorie de

Souza, emMiami.– Preciso que você passe umas duas semanas com

uns amigosmeus emBogotá.Sem saber que era refém e seria morta caso algo

desse errado, Marjorie viajou para a Colômbia. Fi-cou em um hotel de luxo, vigiada por guarda-costas– na realidade, eram assassinos.

Em 12 de agosto de 1991, o avião com 767 quilosde cocaína pousou na pista construída por Paul Lirno meio da selva guatemalteca para a DEA. A car-ga valia na época US$ 59 milhões (mais de US$ 100milhões em valores atualizados). No dia seguinte, foilevada ao aeroporto em três caminhões e embarcoupara Nova York em um avião da PanAm. Foi diretopara os depósitos daDEA.Como havia dito aos colombianos que o transpor-

te seria por navio, só ummês depois Paul Lir confir-mou o sucesso da operação.– As camisetas estão aqui, meu amigo, e elas são

muito boas – disse ele, por telefone, a Lizardo.Mas uma dificuldade surgiu. Lizardo disse a Paul

Lir que a droga deveria ser entregue a três destinatá-rios diferentes. Era um teste: se todas dessem errado,o traficante saberia que a culpa era do brasileiro.– Quem estiver com a droga quando o carrega-

mento cair é a pessoa que vaimorrer – disse Paul.A primeira entrega, de cem quilos, deveria ser fei-

ta a um colombiano chamadoMario, que mobilizouum auxiliar, Julio Mendez Yepez. Julio chegou emuma van azul ao local do encontro, uma lanchonete.Paul disse-lhe que levaria a van até o depósito, colo-caria a droga em seu interior e a deixaria estaciona-da emdeterminado ponto.

NUMCANTODEMESA,UMMATADOROSTENTAVAARMAA polícia descobriu que a van entregue a Paul Lir

estava com licenciamento vencido. Disfarçados depatrulheiros de trânsito, os agentes abordaram Ju-lio, usando como pretexto o problema nas placas– e então encontraram as drogas, como se fosse poracaso. Também simularam a apreensão dos outros667 quilos. O estratagema permitia a Paul Lir e aSpeziale atribuir a culpa pelo malogro do carrega-mento à célula de Mario. Como parte da operação,Paul telefonou aMario, simulando fúria:– Tem alguma coisa acontecendo, porque a polícia

acabou de dar uma batida nomeu depósito.Com o revés, veio a caça às bruxas. O brasileiro

foi convocado à Colômbia. Quando chegou à sala deconferências de um hotel de luxo em Bogotá, perce-beu que não era uma simples reunião. Havia gradesem todas as aberturas, paredes de aço e seguranças.Em uma ponta de mesa, estava um assassino do

cartel, com a arma àmostra. Se Paul Lir fosse consi-derado culpado pela perda dos 767 quilos, morreriaali mesmo. O brasileiro não se intimidou:– Pagamos ao nosso pessoal na Guatemala muito

dinheiro para garantir o sucesso desse carregamen-to. Mas agora nosso negócio foi infiltrado pela polí-cia. Teremos de mudar tudo. Sofremos uma perdatremenda e devemos ser ressarcidos.Para reforçar seu discurso, entregou aos trafican-

tes jornais de Nova York que noticiavam a apreen-são. Eram exemplares falsificados pela DEA, di-zendo que a polícia havia pego a droga por acaso.Enquanto os homens liam, o informante continuoucom seu teatro:– Onde estáMario? Eu estou aqui, mostrando mi-

nha cara.Mario, o culpado, não está. Por quê?Também partiu para o ataque. Disse que alguém

teria de se responsabilizar por sua perda, já que aculpa não fora dele. Foi tão convincente que o ab-solveram, pediram-lhe desculpas e prometeramindenizá-lo. Sua cunhada foi libertada, ilesa.

Virandoojogodiantedeumtribunal do tráfico

Paul Lir e a segunda mulher, a ex-chacrete Erica Souza (no alto). A vidacriminosa do catarinense no Brasil eraencoberta por imóveis de luxo (no alto,o prédio comercial em que o traficantetinha 12 salas, e abaixo, sua casa em umcondomínio de luxo no Rio)

GABRIELDEPAIVA,

AGÊNCIA

OGLO

BO,BD

01/10/1996GABRIEL

DEPAIVA,AGÊN

CIAOGLO

BO,BD

09/09/2002REPRO

DUÇÃO

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OspersonagensPAUL LIRALEXANDERComeçoua carreiracriminosaemPortoAlegre,aplicandogolpes comonomedeValdelir. Comumanova identidade,migrouparao tráfico internacionalaomesmo tempoqueatuava como informantedeautoridades antidrogasamericanas.

JERRYSPEZIALEAgentedaDrugEnforcement Administration(DEA),órgãode repressãoàsdrogasdos EstadosUnidos,usouPaul Lircomo informanteparadesarticular cartéis daColômbia. Ficou famosocomo trabalhoeescreveuum livro contandoa“parceria” comobrasileiro.

PRIMEIRAMULHERDEPAUL LIRNa juventude,namorouValdelir,quandomoravamemCanoas,e se casou comPaul Lir emPortoAlegre.ViveramnoPanamáenosEUA.Separada,moraemPortoAlegreemcasadeparentes.Pediuparanãoser identificada.

ERICASOUZAEx-chacrete,passouavivercomPaul Lir nos EstadosUnidos apósele se separardaprimeiramulher.Mãededois filhosdePaul Lir, Ericaoabandonouquandoele foipreso.MoraemMiami.

MÃEDEPAUL LIRFoi vítimados trambiquesdo filhomais velho, ficandoduas vezes semcasaparamorar. Comajudadeoutrofilho, viveempequenacasaalugadanaRegiãoMetropolitana.Pediuparanão ser identificada.

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Cocaínaescondidadentrodetransformadores

A desenvoltura e a lábia de Paul Lir Alexan-der entusiasmavam a agência antinarcó-ticos americana. Os policiais celebravama habilidade do brasileiro para enganaros colombianos, que permitia prisões e

apreensões sem conta. Até o dia em que descobri-ramque tambémestavam sendo feitos de bobos. Em1993, com a ajuda da polícia brasileira, a DEA se deuconta de que seu precioso informante vinha intro-duzindo quantidades colossais de cocaína nos EUA.Paul Lir começou a enganar os americanos emou-

tubro de 1991, quando selou uma parceria com JoséLonguinho de Arruda, ex-condenado por tráfico deMinas Gerais que conhecera no escritório de advo-cacia de um amigo, na Cinelândia, no centro do Rio.A ideia da dupla era criar uma estrutura para enviarcocaína aos Estados Unidos dentro de transforma-dores de energia elétrica. Eles simulariam a expor-tação dos equipamentos, fabricados no Brasil, e osremeteriam pejados de droga.A dupla formou uma quadrilha de 21 pessoas, re-

crutando parentes e conhecidos de Erica Souza (asegunda mulher de Paul Lir) e amigos de Longui-nho, incluindo um compadre dele, Francisco Rebec-chi, dono de uma transportadora semifalida em Be-lo Horizonte. Paul providenciou documentos falsospara os comparsas, divididos em células no Rio, emMinas Gerais, em Rondônia, em Miami, em NovaJersey e, mais tarde, em Mato Grosso. O comandoestava nas mãos de Paulo Ferreira e José Paulo Ro-thstein – dois novos nomes adotados por Paul Lir.O esquema funcionou por meio de três empresas

de fachada. No Brasil, a quadrilha abriu a Eletric-bras Trading Importação e Exportação Ltda (depoischamada de Trafobras Comércio Exterior Ltda),com “fábricas” emMinas Gerais e “escritórios” noRio de Janeiro. Essa era a companhia que exportavaos transformadores fabricados no Brasil.EmMiami, Paul fundou a Iluminare Manufactu-

ring Inc e, em Nova Jersey, a Ameritraf Transfor-mers Distributions Inc, sob controle de um brasilei-ro e de umnicaraguense,Walter Calderon, chamadode Comandante Tonho. Essas companhias eram assupostas importadoras dos transformadores.O braçomineiro do bando estabeleceu galpões em

Contagem (MG), onde trabalhavam Rebecchi, o ge-rente, e mais sete pessoas, incluindo um eletricistae dois engenheiros nicaraguenses, especialistas namontagem dos transformadores comprados legal-mente da Siemens, em São Paulo.No norte do país, o comando era de Longuinho,

que arrendou uma fazenda em Jaru, Rondônia. Ládesciam pequenos aviões tipo Cessna que vinhamda Bolívia carregados de cocaína. Depois de doiscarregamentos realizados em março de 1992 (deuma tonelada e de 750 quilos), essa base foi transfe-rida para uma fazenda de 1,6 mil hectares, em NovaCanaã do Norte (MT), comprada pela quadrilha. Osaviões abarrotados de cocaína começaram a descerlá, em uma pista pavimentada que dava inveja aosvizinhos, multinacionais e grandes latifundiáriosde soja. Para disfarçar, o grupo abriu uma empresaagropastoril de fachada.Desembarcada na fazenda emMatoGrosso, a dro-

ga era escondida em subterrâneos. Na sequência, iapara dentro de toras de árvores. Caminhões com astoras viajavam até os galpões emMinas Gerais. Lá,os especialistas em transformadores recrutados pelaquadrilha retiravam uma das bobinas dos equipa-mentos e colocavam no lugar uma caixa de chumbo

do mesmo tamanho, com 37 quilos de cocaína pura.Por fora, punham um óleo isolante que impedia aidentificação da droga até por cães farejadores.DeMinas, os transformadores seguiam para o Rio

de Janeiro, onde a papelada de exportação era pre-parada por despachantes aduaneiros contratadospor Paul Lir. Em seguida, os equipamentos seguiamde navio para os falsos clientes em Miami e NovaJersey. Depois que a droga era vendida nos EstadosUnidos, os dólares entravam no Brasil por meio deum esquema similar: vinham dentro de caixas desom e amplificadores importados pela empresa deum amigo de Lir, que jamais foi responsabilizado eatualmente tem uma transportadora na Califórnia.Na primeira “venda”, Paul Lir enviou, como um

teste, apenas transformadores, sem drogas. Os equi-pamentos entraramnosEstadosUnidos semdificul-dades. Em dezembro, remeteu cinco equipamentospara Miami, desta vez com 165 quilos de cocaína.Eles foram examinados na alfândega e liberados. In-vestigações da Polícia Federal apontarammais tardeque a quadrilha enviou, ao todo, 343 transformado-res com cerca de 37 quilos de cocaína pura cada um,o que totalizaria 10,6 toneladas de droga despejadasem território americano durante apenas um ano, dedezembro de 1991 a dezembro de 1992.

AGENTESDADEAFORAMLEVADOSASHOWSERTANEJOA traição eclodiu quando Paul Lir e o agente Jerry

Speziale preparavam uma armadilha que teria car-regamento de fachada da DEA com escala no Brasil.A escolha do país havia sido insistência do brasilei-ro. Entre uma remessa e outra de transformadores,Paul Lir recebeu Speziale e outros agentes da DEAem São Paulo. Usando ternos Armani e sempre cer-cado de guarda-costas, levou os americanos em sualimusine a um show de Leandro e Leonardo. Con-duziu-os à beira do palco e disse que uma empresasua estava promovendo o espetáculo. Na verdade,Paul Lir tentava entrar no ramo, chegando a fazer asociedade comuma empresa paulistana.O império de Paul Lir começou a ruir em 3 de

dezembro de 1992, data da prisão de Francisco Re-becchi, o gerente do braço mineiro do bando, emBelo Horizonte. Ele foi capturado ao tentar vender17 quilos de cocaína a um policial disfarçado. Na ca-deia, no Rio, entregou o esquema à Polícia Federal.Daí para a frente, a quadrilha deu início a uma ope-ração “salve-se quem e o que puder”.Paul Lir ainda tentou reverter a situação. Telefo-

nou a Jerry Speziale e disse que tinha informaçõessobre um carregamento enviado a Miami por umtraficante chamado José Paulo Rothstein. Já que adroga que enviara com outro nome seria apreendi-da, pensou Paul Lir, ele pelo menos poderia recebera comissão como informante.Mas a equipe da DEA em Miami investigou e

descobriu que Rothstein e Paul Lir eram a mesmapessoa. “Paul me ensinou tudo que ele sabia sobre otráfico de drogas. E então me ensinou sobre traição.Olhando para isso agora, tenho de admitir que Paulera brilhante”, desabafou Speziale em seu livro.Quando o esquema foi descoberto, a quadrilha ti-

nha estocados 1,5 mil quilos de cocaína na fazendaemNova Canaã do Norte. As apreensões feitas coma quadrilha, somadas, foram as maiores registradasaté então no Brasil. SEGUE

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CereaisviaSedex

N o dia 19 de abril de 1993, Paul Lir Ale-xander desembarcou emMiami com asegunda mulher, Erica Souza. Foi presopela DEA no próprio aeroporto. Passa-ria os 17 anos seguintes encarcerado,

primeiro nos Estados Unidos, depois no Brasil.Não se sabe ao certo por que ele decidiu viajar a

um país onde era procurado. Quando seu esquemafoi desmascarado, correu a Bogotá para dar explica-ções a PachoHerrera, o chefão do tráfico para quemtransportava a droga. Herrera disse que o brasileirodeveria ficar por lá, onde seria protegido, e jamaisvoltar a pôr os pés nos EUA.Mas Paul Lir sabia que,quando vazasse a informação de que ele trabalharapara a DEA, seria umhomemmorto na Colômbia.Uma possibilidade é que tenha acreditado que

passaria a conversa nos americanos mais uma vez.Durante a vida toda, sempre conseguira enrolar to-domundo e tinha uma autoconfiança sem limites.– Ele achava que nada era impossível – conta a

primeira mulher, que morava emMiami na época eesteve na casa do ex-marido no dia da captura.A Justiça americana condenou o brasileiro a 23

anos de prisão pelo tráfico de 1,8 tonelada de coca-ína – o total apreendido nos dois últimos carrega-mentos de transformadores. Depois, a pena foi re-duzida para 13 anos. A investigação apontou que otraficante amealhara US$ 20 milhões em dinheiro,sem contar valores em uma série de contas bancá-rias, empresas e imóveis, além de iates na Itália e naEspanha. Algumas listas apontamPaul Lir como umdos 20 traficantes mais ricos da história, com fortu-na avaliada emUS$ 100milhões a US$ 170milhões.Fotos do tempo em que estava preso na Flórida

mostram que, mesmo encarcerado, o traficante nãoabria mão da vaidade. Esculpia o corpo à base demusculação, andava sempre com óculos escuros degrife e fugia do uniforme da prisão.– Não sou bandido – justificava.– Quem fez o que tu fizeste é bandido, sim – dis-

se-lhe a mãe.A idosa visitou o filho três vezes no presídio, em

1995. Paul Lir mandou as passagens aéreas para elaviajar de Porto Alegre a Miami, onde passaria umatemporada de três meses na Flórida. A mãe perma-neceu 18 dias na casa do filho emMiami, comErica,e decidiu voltar ao Brasil por problemas de saúde.– Foi a última vez que vi meu filho. Ele estava

bem, mas magro, perdendo os cabelos. Na verdade,

acho que eleme chamou para vigiar a Erica. Ela saíatodas as noites para dançar nas boates. Mas eu nãoia ficar de babá dela – conta a idosa.Enquanto pagava por seus crimes nos Estados

Unidos, Paul Lir tentava safar o butim amealhadonoBrasil. Ele tinha duas dezenas de imóveis emMinase no Rio, incluindo galpões, casas, salas comerciais,sítios e fazendas, além de nove veículos – automó-veis e caminhões. Para evitar o confisco, simulou avenda de parte do patrimônio para o sogro – 12 sa-las comerciais no Edifício Barra Space Center, naBarra da Tijuca, e dois terrenos em um condomíniona mesma região. Sargento da PM do Rio aposen-tado, o homem nem de longe teria recursos para oinvestimento. Acabou implicado na Justiça. Ericaabandonou omarido.Paul Lir estava preso havia uma década quando

voltou a ficar sob os holofotes em razão da publi-cação do livro do agente da DEA Jerry Speziale. Naobra, o policial revelava a colaboração com o brasi-leiro e contava como, usando o que aprendera comPaul Lir, continuava a realizar operações, a apre-ender toneladas de cocaína e a prender traficantes.“Paul estava na cadeia,mas a voz dele seguia semprecomigo, sussurrando em meu ouvido, dizendo queeu não era bom o bastante, esperto o bastante, habi-lidoso o bastante, para fazer as coisas tão bem comoele faria. Às vezes, eu penso em Paul, meu mentorno negócio das drogas. O trabalho que fizemos jun-tos provocou um estrago tremendo no negócio decocaína de Cáli”, escreveu Speziale.O brasileiro não gostou de ser retratado. Mandou

dizer que mataria Speziale e a família. Também seenfureceu com a notícia de que sua vida viraria umfilme – que não chegou a ser finalizado.Em 2005, Paul Lir foi extraditado ao Brasil para

responder a processo por tráfico internacional emMinas Gerais. Ficou até março de 2006 na carcera-gem da Polícia Federal, emBeloHorizonte.– Ele era bem falante e articulado. Passava os dias

contando histórias para outros presos – recorda oadvogadoAdalberto Lustosa deMatos, seu defensor.Emmaio, foi condenado a 42 anos de prisão pela

9ª Vara Criminal Federal e recolhido à Penitenciá-ria Nelson Hungria, em Contagem. Recorreu e con-seguiu reduzir a pena a 27 anos e nove meses – atéjaneiro de 2037. Foi recolhido a uma cela individualde dois metros quadrados, com TV e rádio, em umaala exclusiva para condenados pela Justiça Federal.

Atrásdasgrades,massemperderapose

Paul Lir nos temposd e f a r t u r a ( àe s que rd a , c omErica, a segundamulher), na prisãona Flórida (C) eforagido segundoin fo rmações nosite do ConselhoNacional de Justiça(D)

N a penitenciária de Contagem, Paul Lirgostava de conversar apenas com umboliviano e com um apenado conheci-do por Jorge Tadeu, apontado como umdos coordenadores do tráfico na fron-

teira do Brasil com o Paraguai, integrante do bandode Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Mantinha um celular dentro da prisão, peloqual costumava falar em inglês.Embora preso, não perdia a pose. Vivia bem pen-

teado e com óculos escuros. Vestia trajes esportivose, nas duas horas de sol diárias, caminhava peloscorredores. Preocupado com a alimentação, evita-va refrigerantes e mandava comprar sucos diet, lei-te de soja e outros produtos de baixo teor calórico.Cereais chegavam via Sedex.– Ele me ajudou muito. Quando eu não tinha di-

nheiro, mandava comprar comida para mim – lem-bra um ex-detento gaúcho que conviveu comLir emContagem, localizado por ZHnoVale do Taquari.O ex-traficante convenceu o novo amigo a chamar

a cunhada para visitá-lo.– Ele tinha visto uma foto dela e queria namoro.

Pagou passagem aérea para minha mulher e para aminha cunhada, mas ela se assustou e não passou daportaria da cadeia – relata o ex-apenado.Das 17 pessoas que o visitaram, 11 eram mulhe-

res, algumas até 30 anos mais jovens. Na cadeiade Contagem, as visitantes podiam dormir com ospresos nas noites de sábado para domingo. Por tersido extraditado dos Estados Unidos, Paul Lir exi-gia tratamento VIP.– Era muito autoritário e tinha mania de grande-

za. Queria uma vida de príncipe dentro da cadeia,cobrava que a cela tivesse pintura diferenciada, quea namorada não fosse revistada – recorda o advoga-do Adalberto Lustosa deMatos.O criminalista lembra que Paul Lir insistiu para

ser transferido para uma penitenciária administradapela ONG Associação de Proteção e Assistência aoscondenados (APAC), na qual presos ajudam na ad-ministração e têm as chaves da cadeia.– Perdi a paciência com ele. Não iria passar ates-

tado de burrice, pedindo à Justiça algo que serianegado – afirma o advogado, que também defendeuFernandinho Beira-Mar.Matos lembra que Paul Lir era muito “chorão”.

Tentava sempre protelar pagamentos – mas quitouemdia os honorários.

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O nome Paul Lir Alexandre passou a ser conhecido pela Polícia Civil gaúchaem 2010. Em setembro daquele ano, agentes do Departamento Estadualde Investigações do Narcotráfico (Denarc) apreenderam 358 quilos deentorpecentes (201 de cocaína e 157 entre lidocaína e cafeína) emMarianaPimentel (ao lado), cidade vizinha a Barra do Ribeiro. A droga estavaenterrada em tonéis plásticos em uma propriedade rural.Dias depois, o delegado Luis Fernando Oliveira foi convidado para umareunião no Consulado dos Estados Unidos em São Paulo. Foram recebidospor policiais da Drug Enforcement Administration (DEA) que trabalhavamna capital paulista. O objetivo do encontro era troca de informações sobre onarcotráfico. A origem da droga (Bolívia), a quantidade e omodo de escondê-la despertaram a atenção dos agentes norte-americanos. Paul Lir estavaforagido havia ummês e poderia estar envolvido no esquema.– Desde então, tentamos localizá-lo, descobrimos parentes e pessoas docírculo de amizade no Estado e até no Exterior – diz o delegado Luis Fernando.

Ummêsdepoisdafuga,mega-apreensãonoRS

E m agosto de 2010, Paul Lir Alexan-der, um dos maiores traficantes deque se tem notícia, fugiu da prisãoem Minas Gerais e nunca mais foivisto. E quem abriu as portas para

ele foram as autoridades brasileiras.Uma semana antes, havia obtido a progres-

são para o regime semiaberto. Deixou o pre-sídio em Contagem e foi para a PenitenciáriaJosé Maria Alkmin, em Ribeirão das Neves,nas imediações de Belo Horizonte. No dia 11,foi beneficiado com uma saída temporária desete dias – que se estende até hoje.Seu paradeiro é um mistério. Parentes e

amigos que tiveram contato com ele por tele-fone nos dias que se seguiram à fuga concor-dam em um ponto: Paul Lir teria fugido coma namorada de então, umamineira, e entradono Paraguai por Ciudad del Este. Dias depois,a mulher ligou para um parente do traficanteno Rio Grande do Sul e, aos prantos, relatouque ele havia desaparecido.Segundo a namorada mineira, Paul Lir te-

ria atravessado a fronteira para o lado brasi-leiro, indo de carro até a entrada de uma fa-zenda onde ficaria refugiado. Teria dito quefaria contato em breve. Se não se comunicas-se, é porque tinha morrido.Cerca de dois meses depois da fuga, uma

pessoa enviou e-mail para um amigo de PaulLir que vivia em Miami, dizendo que o bra-sileiro tinha marcado um encontro, mas nãoaparecera. Pessoas próximas repetem essasinformações como prova de que o foragido es-taria morto. Mas a mãe de Paul Lir, uma apo-sentada de 79 anos, garante que ele está vivo:– O senhor acha que ele está morto? Es-

tá nada. Está vivo. E bem vivo. Mais vivo doque eu. Não sei se posso falar isso, mas eleestá por aí. Diz que ele fez uma plástica nacara, implantou cabelo e tirou as identifica-ções da mão. “A senhora nem vai conhecerseu filho”, me disseram. Mas é claro que euvou conhecer, até se o virarem do avesso.Afirma que o filho continuou a telefonar

depois da fuga. Teriam sido cerca de quatroligações. O traficante fazia chamadas a co-brar e teria inclusive enviado dinheiro paraela cobrir o custo dos telefonemas.

– Quando ele fugiu, não fiquei sabendo.Depois, ele ligou pra mim lá do... Ai, tenhoaté medo de ele saber que estou falando is-so aí... ele ligou lá do Paraguai. Ele disse quetinha passado da ponte, que estava bem, queestava com a namorada.Segundo a idosa, Paul Lir disse na primeira

ligação que estava com saudade e que man-daria duas pessoas buscarem-na em PortoAlegre para ela ficar com ele, porque ele es-tava fora da prisão. Os emissários designadosseriam a namorada e um motorista. Ela serecusou a ir.– Se tu estás com saudade, tu vens aqui.

Esse pessoal pode até me matar no meio daestrada – disse a mãe.Pau Lir riu. Então, disse:– Não posso ir. Fugi da prisão. Ganhei um

semiaberto e não voltei.–Mas onde tu estás? – questionou amãe.O filho custou a contar.– A senhora não vai contar pra ninguém?– Tu podes me dizer. Não vou falar, tu és

meu filho, por que eu vou falar?Foi então que Paul Lir revelou estar no Pa-

raguai, com um carro alugado.– E se uma blitz te pega? – questionou uma

mãe ainda zelosa.– Não tem perigo, eu tomo cuidado.– Tu não estás usando o teu nome, estás?

– quis saber a mãe.– Isso aí é melhor a senhora ficar quieta,

não falar nada – cortou o traficante.

MÃEDECRIMINOSOFICOUDUASVEZESSEMMORADIAEm um telefonema posterior, segundo o

relato da mãe, Paul Lir revelou que havia en-ganado a namorada, fazendo-a pensar quetinha morrido.– É a primeira vez que estou falando isso,

mas ele continuava falando comigo por tele-fone. Ele contou que havia deixado a namo-rada no hotel e que tinha dito para ela que, senão aparecesse até certo horário, era porquealguém tinha matado ele. Mas ele mesmo quese matou. Fingiu, né? Se mandou. Queria co-

meçar outra vida, mas não ia levá-la junto. Foielemesmo quemme contou isso. Aposto o quequiser como está vivo.Emoutra conversa, a idosa não abriumão de

repreender Paul Lir:–Tumataste os filhos dos outros – disse ela.– Como assim, matei o filho dos outros?

– perguntou o traficante.–Mataste. Vendeste bastante droga ematas-

te os filhos dos outros.Paul Lir ouviu essa acusação em silêncio.Hoje, amãe guarda rancor do ex-traficante.

Segundo a idosa, três anos atrás, tempos de-pois do último contato com o filho foragido,ele mandou vender o apartamento em queela morava havia duas décadas em Porto Ale-gre. Ela conta, entre lágrimas, que recebeu anotificação de que o apartamento tinha sidovendido e que precisaria desocupá-lo.– Eu não tinha dinheiro nem para amudan-

ça. Liguei para um filho que é pobre, coitadi-nho, para ele me buscar, que eu não tinha pa-ra onde ir – conta a mulher, que hoje mora dealuguel em uma casa de fundos, com quarto,sala e cozinha.A primeira mulher de Paul Lir afirma que

o ex-marido não teve nada a ver com a ven-da. Assume a responsabilidade de ter nego-ciado o imóvel para pagar dívidas vinculadasa ele. Mas a mãe está convencida de que ofilho está por trás do despejo e que inclusi-ve teria sido visto em Porto Alegre, por umfamiliar, em uma passagem pela cidade paratratar do negócio.Segundo a idosa, essa foi a segunda vez

em que se viu na rua por culpa de Paul Lir.Quando o então iniciante na vida bandidaainda vivia no Rio Grande do Sul, ela serviude fiadora para um de seus negócios. Ele nãopagou a dívida, e ela foi obrigada a entregar acasa em quemorava, em Canoas.– Não quero vê-lo nunca mais. Ele fez uma

sujeira comigo. Tenho muito medo dele. Eutinha saudades, mas depois que ele me botoupara a rua, não tenho mais. Só raiva. Minhafilha diz: “Mãe, a gente não deve ter raiva,que ele já morreu”. Eu respondi: “Morreu?Ele já morreu três, quatro vezes. Morrer, pa-ra ele, é mudar de nome”.

Orastro indecifráveldeummestredamentiraedodespiste

RONALD

OBERN

ARDI,BD

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A ntes de ser Paul Lir, ele se chamava Val-delir. E foi registrado duas vezes. Na pri-meira, a mãe seguiu escondida até o car-tório. A relação com omarido era marca-da por brigas e ameaças. Com frequência,

ele ameaçava fugir com os filhos. Por isso, resolveuregistrá-los com o nome do avô, Alexandre. O es-paço reservado ao pai na certidão ficou em branco.Surgia assim Valdelir Alexandre, nascido no dia 27de julho de 1956, emTubarão, Santa Catarina.O segundo registro ocorreria no Rio Grande do

Sul, anos depois. A família havia se mudado paraPorto Alegre em 1960. Valdelir passou a morar nacasa do avô materno, na Vila Jardim, com a mãe etrês irmãos. O pai deixou-os na Capital e viajou paraSão Paulo. Só reapareceu quatro anos depois.Quando voltou, empregou-se como motorneiro

nos bondes da Carris e levantou uma casa nas ime-diações da atual Avenida Castelo Branco. A famíliacresceu: nascerammais duas crianças. Um dia, o paidecidiu que era hora de registrá-las em seu nome. Oprimogênito virou Valdelir Oliveira da Cruz.De Porto Alegre, a família se mudou para Cacho-

eirinha, em uma vila perto do Rio Gravataí e, a par-tir de 1969, para a Rua Machadinho, no bairro RioBranco, em Canoas. Em 1972, graças a uma bolsa deestudos da Secretaria Estadual de Educação, Valde-lir cursou a 4ª série do ginasial (equivalente à 8ª sé-rie do Ensino Fundamental) no tradicional ColégioRosário, emPorto Alegre.Em casa, a rotina era de brigas entre o pai e amãe.

Uma noite, quando chegava da escola, Valdelir pre-senciou uma discussão violenta. Tinha 16 anos.– Vou acabar com a raça dele – anunciou.Atravessou a rua, apanhou uma acha de lenha em

um armazémpróximo e deu uma paulada no pai.– O velho saiu para a rua, e ele continuou baten-

do. Parecia que não era ele, omeu filho, uma criançafazendo aquilo. Depois o velho correu atrás dele e ojogou em uma cerca de arame. Os dois nunca maisse deram – conta amãe.Assustado com ameaças feitas pelo pai, Valdelir

saiu de casa e deixou de ir à escola.Aos 16 anos, Valdelir só usava calça social, cultiva-

va uma vasta cabeleira e passava horas na frente doespelho. A vaidade do rapaz chamava a atenção navizinhança da RuaMachadinho.

– Ele era um bonequinho. Bonito demais. Tinhamania de enrolar o cabelo, alisar, fazer umas voltas.Vestia terno até para ir na esquina. As pessoas pen-savam que ele era bicha – conta a primeiramulher.Ela começou a namorar Valdelir nessa época.

Eram vizinhos em Canoas e trabalhavam no centrode Porto Alegre. Com frequência, tomavam o mes-mo ônibus. O rapaz começou a puxar conversa ese oferecer para pagar a passagem da moça, algunsanos mais velha e mãe de uma menina de seis me-ses. Em 1975, os dois tiveram ummenino.A garota namorou Valdelir, mas se casou com

Paul Lir. Por volta de 1984, ele foi a Minas Geraisdisposto a adotar ares americanos. Entrou em umadelegacia e saiu de lá como Paul Lir Alexander,nome constante da carteira de identidade número2391639. Safou-se de todos os credores que o pro-curavam com o nome antigo.

TRAMBIQUESEMPORTOALEGREEEMPRESADEFACHADANORIOEm janeiro de 1985, oficializou o casamento com

a namorada e se mudou para um confortável apar-tamento de 153 metros quadrados no ResidencialQuintanares, na Avenida Padre Cacique, em PortoAlegre, distante três quadras do Beira-Rio. Até en-tão, era o melhor condomínio do bairro MeninoDeus, com vista privilegiada para o Guaíba, ginásiode esportes e duas piscinas térmicas.Como de costume, o aluguel não foi pago. Fiadora,

amãe teve de vender a casa para quitar a dívida.– Ele e a mulher só queriam saber de viver bem, à

custa dos outros – reclama a idosa.O agora Paul Lir se apresentava como agente de

exportação de sapatos e dono de fábrica em NovoHamburgo. Depois foi para São Paulo, onde tirouuma nova carteira de identidade, sob o número19555890, com o mesmo nome americanizado. Ins-talou-se emFranca, meca do calçado paulista. Criouuma empresa fantasma em uma casa na Vila SantaCruz, onde nunca morou e jamais fabricou um péde sapato. Sumiu da cidade meses antes de a políciadesarticular uma quadrilha que traficava cocaínapara os EUA em embalagens de calçados.A primeira mulher conta que, na sequência, pas-

saram um ano no Panamá, onde o brasileiro posavade exportador de calçados. Em 1985, estabeleceram-se emMiami, nos Estados Unidos.– Ele foi para lá sem falar nada de inglês e apren-

deu rapidinho – afirma amulher.O começo da carreira de falcatruas, com o nome

de Valdelir Oliveira da Cruz, está documentado nosarquivos do Tribunal de Justiça do Estado. Partedos processos foi localizada por Zero Hora. O maisantigo é datado de setembro de 1975. Aos 19 anos,Valdelir foi fichado pela polícia por causa de umcheque sem fundos (equivalente a R$ 2,4mil).Em setembro de 1977, o futuro agente duplo com-

prou na Companhia Geral de Assessórios, umaconcessionária da GM, um flamante Chevette azulmetálico zero quilômetro. Pagou cerca de 40% doautomóvel com um cheque frio (R$ 11,2 mil). Doismeses depois, o carro foi apreendido, e Valdelir aca-bou condenado a pagar uma multa (R$ 2,7 mil) quejamais quitou.Há também registros de apreensão deum Passat financiado e não pago. Por causa de dívi-da com um restaurante, ele chegou a ter decretada asua prisão cível por 20 dias, em março de 1981. Atéfevereiro de 1987 a Justiça cobrou da Delegacia deCapturas a prisão de Valdelir, mas ele jamais foi en-contrado. Em Goiás, aplicou um golpe numa agên-cia do Banco Real. A Justiça mandou apreender umcaminhão e umUno do avalista.Em 1988, Paul Lir Alexander voltou de Miami

com ameta de ampliar “frentes de trabalho” no Rio.O primeiro passo foi abrir a Anglobrás MineraçãoLtda, que venderia diamantes brutos e manufatura-dos para a Diamondex Incorporated, com sede emMiami, da qual Paul também era o dono.Nessa época, ele costumava chegar ao Rio de ja-

tinho, fazia-se passar por empresário americano eforçava o sotaque de “gringo”. Foi quando se encan-tou com Erica Souza, ex-dançarina do programa deTV Cassino do Chacrinha. Lir levou a ex-chacretepara viver com ele emMiami.No Rio, Paul Lir propôs uma parceria com delega-

dos das polícias Civil e Federal. Pelo acerto, ele for-neceria informações sobre carregamentos de drogase ficaria commetade do que fosse apreendido. O es-quema ruiu em 1990, levando o traficante a constarda lista negra das autoridades americanas, da qualfoi resgatado pelo agente Jerry Speziale.

Parafugirdecredoreseautoridades,Valdelir tornou-sePaul Lir

OpequenoValdelirainda bebê, emSanta Catarina (E)e com a mãe e osirmãos (primogê-nito, Paul Lir é oprimeiro a partirda direita)

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