Banco Nacional de Perfis Genéticos Criminal: uma discussão bioética

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Revista Brasileira de Bioética 2012;8 (1-4): 30 30-45 Banco Nacional de Perfis Genéticos Criminal: uma discussão bioética DNA Profiles National Databank Criminal: a bioethical discussion Célia Maria Marques de Santana Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Elias Abdalla-Filho Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Resumo: O presente artigo versa sobre alguns aspectos bioéticos do Banco de Perfis Genéticos Criminal Brasileiro.O armazenamento de uma grande quantidade de informações genéticas em banco de dados e o seu uso no auxílio à investigação criminal têm gerado frequentemente vários questionamentos bioéticos relevantes. A partir disso, este estudo discute os aspectos bioéticos relacionados à implantação e utilização desse banco no Brasil. A conclusão a que se chegou foi que, de fato, existem diversas questões bioéticas envolvidas no uso do banco de dados de perfis genéticos criminal. Como exemplo, a possibilidade de vulnerara privacidade, os dados genéticos e autonomia dos indivíduos analisados e incluídos no banco, bem como a discriminação e a estigmatização dos mesmos.E ainda,que essas questões devem ser consideradas e avaliadas para se evitar abusos e desrespeito aos direitos fundamentais e à dignidade humana. Palavras-chave: Identificação humana. Bancos de perfis genéticos. Bioética. Abstract:is article deals with some bioethical aspects of the Brazilian Criminal Databank of DNA Profiles. e storage of a large amount of genetic information in database and its use to aid criminal investigation have often raised several relevant bioethical questions. From this, this paper discusses the bioethical aspects related to the implementation and use of that databank in Brazil. e reached conclusion was that there are really several bioethical aspects involved with the use of genetic profiles criminal databank. As example, the possibility of letting vulnerable those analyzed and included Artigos de atualização Esta seção destina-se a trabalhos que relatam e discutem informações atuais sobre temas de interesse da bioética e espontaneamente enviados pelos autores

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Celia Maria Marques de Santana

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    Banco Nacional de Perfis Genticos Criminal: uma discusso biotica

    DNA Profiles National Databank Criminal: a bioethical discussion

    Clia Maria Marques de SantanaUniversidade de Braslia (UnB), Braslia, Distrito Federal, [email protected]

    Elias Abdalla-FilhoPolcia Civil do Distrito Federal (PCDF), Braslia, Distrito Federal, [email protected]

    Resumo: O presente artigo versa sobre alguns aspectos bioticos do Banco de Perfis Genticos Criminal Brasileiro.O armazenamento de uma grande quantidade de informaes genticas em banco de dados e o seu uso no auxlio investigao criminal tm gerado frequentemente vrios questionamentos bioticos relevantes. A partir disso, este estudo discute os aspectos bioticos relacionados implantao e utilizao desse banco no Brasil. A concluso a que se chegou foi que, de fato, existem diversas questes bioticas envolvidas no uso do banco de dados de perfis genticos criminal. Como exemplo, a possibilidade de vulnerara privacidade, os dados genticos e autonomia dos indivduos analisados e includos no banco, bem como a discriminao e a estigmatizao dos mesmos.E ainda,que essas questes devem ser consideradas e avaliadas para se evitar abusos e desrespeito aos direitos fundamentais e dignidade humana.

    Palavras-chave: Identificao humana. Bancos de perfis genticos. Biotica.

    Abstract:This article deals with some bioethical aspects of the Brazilian Criminal Databank of DNA Profiles. The storage of a large amount of genetic information in database and its use to aid criminal investigation have often raised several relevant bioethical questions. From this, this paper discusses the bioethical aspects related to the implementation and use of that databank in Brazil. The reached conclusion was that there are really several bioethical aspects involved with the use of genetic profiles criminal databank. As example, the possibility of letting vulnerable those analyzed and included

    Artigos de atualizao

    Esta seo destina-se a trabalhos que relatam e discutem informaes atuais sobre temas de interesse da biotica e espontaneamente enviados pelos autores

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    people in the databank in the following aspects: their privacy, genetic data and autonomy, as well as the discrimination and stigmatization of them. And yet, these issues should be considered and evaluated to prevent abuse and disrespect for fundamental rights and human dignity.

    Keywords: Human identification. Databank of DNA profiles. Bioethics.

    Os avanos ocorridos no campo da cincia possibilitam melhorias e a superao de muitos problemas sociais, como melhores condies de sade e nutrio, acesso aos medicamentos essenciais e s tecnologias de diagnstico e terapia de doenas, entre outros. No entanto, isso no ocorre de maneira impune. Nesse sentido, a biotica posta como um campo de reflexo que aborda conflitos envolvendo, por um lado, o desenvolvimento da cincia e das tecnologias a ela associadas, mas por outro lado, os dilemas sociais e ambientais que esto presentes no mundo contemporneo. Tal reflexo objetiva a busca da melhor soluo possvel para os problemas identificados, estando pautada no respeito cidadania e dignidade humana. O desenvolvimento biotecnolgico se iniciou a partir da metade do sculo passado e sofreu um rpido crescimento nos ltimos anos, o que tem proporcionado avanos expressivos nas cincias biolgicas. Isso possibilitou a criao de novas reas,tais como a biologia molecular e, mais especificamente, da gentica forense (1). Se por um lado esses avanos ampliaram as reas de atuao, por outro tm exigido maior responsabilidade e empenho dos pesquisadores frente aos conhecimentos gerados e s aplicaes das novas tcnicas deles originadas. Tais avanos e o uso frequente da anlise da molcula de DNA no mbito forense, associados ao progresso da informtica, permitiram a criao de bancos de perfis genticos criminais (2,3). Esses bancos so bases de dados em que as informaes genticas so armazenadas com a finalidade de identificao civil ou investigao criminal, ou ainda, so bases estruturadas de resultados de anlises de perfis genticos indivduo-especficos. Podem servir para indicar a autoria de um ato delituoso ou para inocentar suspeitos, por meio da comparao dos perfis obtidos em locais de crimes ou de pessoas envolvidas nestes crimes, com os padres genticos armazenados nas bases de dados que formam o banco (3,4). No entanto, a possibilidade de criao de um banco de dados com essa finalidade fez surgir vrios questionamentos ticos e legais no meio jurdico, bem como questionamentos acadmicos bioticos, em especial, nas comisses de tica (4,5). Como exemplo, podem ser citadas as questes ligadas aos aspectos funcionais e estruturais, as questes de segurana dos dados e o tempo de permanncia desses no banco; os aspectos relacionados privacidade dos dados genticos, ao fornecimento de consentimento livre e esclarecido de doao de material biolgico e proteo contra possvel transgresso de direitos e liberdades fundamentais. O presente estudo tem como foco principal discutir aspectos bioticos envolvidos na criao e utilizao do Banco Nacional de Perfis Genticos Criminal no Brasil. A reflexo sobre a eticidade da implantao de um banco de dados dessa natureza se justifica pelos riscos de violao dignidade humana, o desrespeito autonomia e vulnerabilidade dos indivduos, que sero obrigados a doar material gentico para a sua prpria incluso no banco, e pela necessidade de ampliar o debate sobre o tema.

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    A partir disso, utilizou-se teorias bioticas, especialmente o pensamento de Hans Jonas sobre a tcnica, e alguns instrumentos internacionais importantes para a biotica - Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos e Declarao Universal sobre os Dados Genticos (Unesco) -, como aposto terico para a realizao da reflexo proposta.

    Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos

    A Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos possui uma orientao baseada nas legislaes internacionais que pregam os direitos humanos, o respeito s liberdades fundamentais e dignidade humana. Busca promover a integrao dos valores ticos s questes sociais, sobretudo em questes que envolvam populaes em situaes de vulnerabilidade, alm de destacar a importncia que estes valores devem exercer na promoo do bem-estar dos cidados e no desenvolvimento cientfico e tecnolgico (6). Alguns princpios ticos presentes na Declarao esto intimamente relacionados problemtica do arquivamento de perfis genticos em base de dados para fins criminais, tais como:o princpio da autonomia e responsabilidade individual, o princpio da vida privada e da confidencialidade, o princpio do consentimento, o princpio da igualdade, justia e equidade, bem como o princpio da no discriminao e no estigmatizao. O princpio da autonomia, contemplado em seu artigo 5, considerado como a autodeterminao e o poder de usar seu prprio corpo conforme seus prprios interesses (7). O respeito autonomia do indivduo encontra motivao no princpio da dignidade humana, assim como no imperativo categrico kantiano que determina que o ser humano um fim em si mesmo e nunca um meio. Esse princpio possui grande relevncia para as questes que tratam especificamente das informaes genticas e do genoma humano de maneira geral. Afinal, as informaes contidas no genoma so de propriedade do indivduo, embora sejam compartilhadas pela sua famlia e representem, de certa forma, a espcie humana como um todo. Alm disso, pode ser uma referncia para a discusso dos problemas suscitados pelo armazenamento de informaes genticas em bancos de dados e debates sobre a pertena dessas informaes e sobre o direito de consentir ou no a concesso das mesmas. Na concepo de Beauchamp e Childress (7), a escolha autnoma no somente a capacidade de se autogovernar, mas tambm o ato de se governar efetivamente. Eles ainda afirmam que pessoas institucionalizadas, como os presos ou os portadores de deficincias mentais, possuem autonomia reduzida, pois no so capazes de agir com base em seus prprios planos. Com isso, os procedimentos que envolvam a recolha, o tratamento e o armazenamento de material gentico desses indivduos exigem alto nvel de transparncia. Sobre o ponto de vista biotico, esses procedimentos devem ser pautados no respeito autonomia e dignidade da pessoa humana e, especialmente, no respeito ao consentimento livre e informado. O princpio do consentimento livre e esclarecido pode ser considerado, de certa forma, uma expresso do princpio da autonomia, pois somente o indivduo autnomo capaz de consentir ou recusar aes que possam lhe afetar diretamente. No caso do armazenamento de perfis genticos em banco de dados, a autorizao prvia para a coleta e anlise de material biolgico deveria ser condio sine qua non. No entanto, quando se trata de bancos com

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    finalidade criminal, as legislaes especficas desqualificam a necessidade de consentimento para estes procedimentos. Sendo claramente essa uma das questes mais delicadas do uso de bancos de dados com esses fins. Outra questo de fundamental importncia est relacionada ao princpio da igualdade, justia e equidade. Todas as pessoas devem ser tratadas com igualdade de direitos, de dignidade e de forma justa. Com relao obrigatoriedade de fornecer perfil gentico para incluso em um banco de DNA criminal,imposta a um nico grupo de indivduos, ela pode configurar,sem dvida, uma situao onde h ausncia de equidade de tratamento. Vale destacar a relevncia que o princpio da no discriminao e no estigmatizao possui em questes que envolvam dados sensveis, como as informaes genticas. A incluso compulsria de indivduos condenados por crimes especficos no banco de perfis genticos pode ser entendida como discriminatria, considerando a possibilidade de que alguns grupos da populao podem estar super-representados nele. Outra possibilidade, mesmo que remota, seria a utilizao do material gentico para fins diversos daquele para o qual foi coletado (8). Como, por exemplo, o risco de se usar estas informaes para fins de pesquisa de carter eugnico ou em pesquisa comgenesassociados violncia e aoscomportamentos antissociais. O princpio da privacidade e da confidencialidade contemplado a seguir, em seo separada, devido relevncia para o tema.

    Privacidade e confidencialidade

    O contexto geral que atribui significado ao princpio da privacidade e da confidencialidade est cercado pelas acepes de integridade da pessoa, dignidade e sua autonomia, com todos os atributos destas noes, enfatizando a garantia do controle de acesso s informaes ntimas dos indivduos e resguardando o direito a no interferncia nas diversas esferas da intimidade. A Declarao Universal de Biotica e Direitos Humanos, em seu artigo 9, faz aluso, em especial, privacidade informacional. Neste cenrio, a privacidade compreendida, portanto, como um direito de no stofrer, sem seu consentimento, a divulgao de informaes sobre sua intimidade (9).A limitao do acesso vida privada dos indivduos se estende aos produtos corporais e aos objetos, aos documentos, aos dados intimamente coligados (10) e aqueles armazenados em bancos de dados. Tudo isso nos remete ao debate sobre o acesso s informaes pessoais em bases informatizadas. Atualmente, a obteno de informaes pessoais dos cidados uma ao corriqueira e que pode gerar, com frequncia, ameaas privacidade individual e provocar uma progressiva diminuio do domnio de liberdade das pessoas (11). Diferentes tipos de bancos de dados informatizados utilizam dados pessoais, podendo implicar em agravos privacidade dos indivduos. Tais agravos so especialmente relevantes quando se trata do armazenamento de dados denominados de sensveis histrico clnico, dados referentes orientao poltica e sexual, cor e ao histrico trabalhista , que podem expor a intimidade dos indivduos. As novas tecnologias podem provocar grande impacto na vida contempornea, o que obriga a pensar em formas de protegera intimidade e a privacidade contra as possveis violaes da vida privada e a utilizao indevida de dados armazenados em bancos

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    automatizados, bem como o uso de material biolgico depositado em biobancos com finalidade diferente da original (12). Especificamente em relao aos bancos de perfis genticos criminais, em geral, encontra-se paralelamente um biobanco associado a eles, onde amostras biolgicas originais ou prprio DNA extrado so armazenados (8,13). Isso pode, de certa forma,provocar condies de vulnerabilidade da privacidade das informaes genticas inseridas nessas amostras. Outra possibilidade, j abordada anteriormente, seria o risco de divulgao de informaes ou o uso dessas para fins de pesquisa de carter discriminatrio ou eugnico.Nesse sentido, as informaes genticas, como dados sensveis que so, devem ser protegidas contra acessos indevidos. Alguns pases j estabeleceram em suas legislaes a obrigao de destruir as amostras biolgicas aps a obteno do perfil gentico. Na Nova Zelndia, desde 1995, apenas o registro dos perfis genticos obtidos dessas amostras so mantidos armazenados. o que tambm se observa na Alemanha, Holanda, Noruega e Blgica. Com isso, afasta-se a possibilidade de uma nova anlise do DNA. Esta pode ser uma estratgia para se tentar evitar a utilizao indevida das informaes genticas desses doadores (4). Ainda nessa concepo, ressalta-se a necessidade de se garantir a privacidade dos indivduos que tm seus perfis genticos armazenados em bases de dados, restringindo a vinculao direta dos dados pessoais identificao pessoal, CPF, filiao, etc., aos dados genticos (2). Especialmente, no que se refere ao controle de acesso s informaes concernentes ao genoma humano.

    A Declarao Internacional sobre Dados Genticos Humanos

    A Declarao tem como objetivo a garantia do respeito dignidade humana e a proteo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em matria de coleta, tratamento, utilizao e conservao de dados genticos, considerando sempre os princpios da igualdade, justia e solidariedade (14). De forma clara, est reconhecida na Declarao a ateno proteo dos dados genticos humanos e das amostras biolgicas contra acessos e divulgaes a terceiros. Ateno tambm dirigida para que informaes genticas de indivduo identificvel sejam coletadas, utilizadas e armazenadas mediante mtodos eticamente aceitveis. A Declarao tambm ressalta a necessidade da garantia da privacidade dos indivduos que possuem perfis genticos armazenados em bancos de dados, restringindo a vinculao direta dos dados pessoais s informaes genticas (14). Em seu artigo 4, que dispe sobre a especificidade dos dados genticos humanos e sobre o carter sensvel atribudo aos mesmos, pondera-se sobre o impacto que o acesso aos dados genticos de uma pessoa pode exercer sobre a sua famlia e a sua descendncia e, at mesmo, sobre o grupo ao pertence (14). Nessa perspectiva, existe a possibilidade da pesquisa familiar dentro de uma base de dados de perfis genticos forense, o que j uma realidade em alguns pases. O Reino Unido e os estados americanos da Califrnia, Colorado, Massachusetts e Nova York, desempenham atualmente a pesquisa ou busca familiar, embora seja vetada pelo Combined DNA Index System (Codis) em nvel federal (4).

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    Pesquisa familiar uma busca adicional deliberada, que se realiza em um banco de dados de DNA criminal aps a realizao de uma busca de rotina onde nenhum perfil indivduo especfico foi identificado, com finalidade de potencialmente apontar parentes biolgicos prximos da pessoa que produziu o perfil desconhecido retirado de uma cena de crime. Esta pesquisa se baseia no fato de que parentes de primeira ordem pai, irmo ou filhos que compartilham informaes genticas, possuem um nmero maior de informaes em comum do que indivduos no aparentados (15). Em consonncia com a declarao sobre biotica, a declarao sobre os dados genticos tambm considera a possibilidade de discriminao e estigmatizao a partir de dados genticos. J em seu artigo 8, ela indica a necessidade de um consentimento prvio, livre, informado e expresso para a coleta de dados genticos, protemicos ou de amostras biolgicas. Dados protemicos so relativos s protenas de um indivduo. O termo de consentimento necessrio at mesmo em casos em que a coleta seja realizada a partir de mtodos no invasivos e por instituies pblicas ou privadas (14). O prximo tpico visa destacara relao existente entre a biotecnocincia, suas aplicaes tecnolgicas e a responsabilidade tica.

    A tica de Hans Jonas e sua aplicao

    Na medida em que a tica perpassa, inevitavelmente, o fazer da cincia e das leis, e reconhecendo a existncia de inmeros aspectos ticos implicados na constituio de um banco de dados de perfis genticos forense, bem como as possibilidades de diversas influncias nos valores da vida em comum em sociedade (13), que se passa a discorrer um pouco sobre as contribuies de Hans Jonas neste contexto especfico. Hans Jonas foi um dos autores deste sculo que abordou com mais propriedade as questes relacionadas tica da responsabilidade, no campo da cincia (16), destacando a ineficcia da tica e da filosofia atual diante do homem tecnolgico. Diante de uma crise tica provocada pelas novas tecnologias no campo da ecologia e pelos avanos das cincias da vida, em particular a biologia, Jonas buscou novos princpios para a tica em situaes onde os exageros tecnolgicos e o excesso de poder podem provocar mudanas no agir. Constatou assim, que modificaes no estatuto da tica so necessrias para que haja adequao aos novos tempos (16). Este argumento evidencia o fato de que os imperativos da tica tradicional e do dever no conseguem impor limites ao e ao grande poder da tecnologia. Outro pressuposto desse autor que, no momento em que o homem adotar uma postura responsvel pelo por vir, a prudncia passar, ento, a ser o cerne do agir moral.Alm disso, os seus pensamentos sobre a conduta humana frente aos desafios trazidos pela tecnologia e as cincias modernas, e a sabedoria prtica por ele defendida, parecem adequados e atuais para serem aplicados em discusses que envolvam a problemtica do uso da tecnologia da anlise do DNA em bancos de dados de perfis genticos criminais (13). Pois, ao afirmar que diante de novas capacidades de ao so exigidas novas regras da tica ou at mesmo uma tica de novo tipo, ele aponta para a necessidade de se atribuir uma moralidade cincia e s suas aplicaes.

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    Nesta perspectiva, Jonas afirma que o progresso da tcnica tem certa autonomia, o que pode aumentar as possibilidades futuras (16). A partir disso, deve-se pensar nos efeitos remotos possveis, que de certa maneira podem alterar a representao de vida em comunidade, e pensar em formas de precauo frente a estes. Assim parece ser prudente, no caso de implantao e utilizao de um banco de perfis genticos para fins forenses, pensar sempre em conjunto o pblico e o privado, a tranquilidade social e a vigilncia controlada, os direitos individuais e os deveres pblicos, tendo sempre o cuidado de no deixar a balana pender para nenhum lado (13). Um exemplo de efeito remoto da utilizao do DNA na identificao humana seria a possibilidade de que os marcadores genticos,usados para obter os perfis, sejam capazes, em um futuro prximo, de revelar traos somticos ou comportamentais dos indivduos, tendo em vista o dinamismo caracterstico da cincia, o que poderia gerar discriminao e uma grande exposio da intimidade destes. Considerando o pressuposto de que as novas tecnologias podem provocar grande impacto na vida contempornea, vlido pensar em meios de se protegera intimidade, a privacidade contra possveis violaes da vida privadae na utilizao indevida de dados pessoais armazenados em bancos automatizados, bem como no uso de material biolgico depositados em biobancos com finalidade difente da original.Esse momento adequado para se apresentar algumas especificaes dos bancos de dados de perfis genticos com finalidade criminal.

    Banco de Perfis Genticos Criminal

    Acmulo de dados , sem duvida, uma consequncia dos avanos da modernidade. No se pode impedir e nem mesmo diminuir a sua produo, pois eles so teis para a sociedade, em geral, e para os cidados, em particular. No entanto,os direitos e as liberdades desses mesmos cidados no podem ser esquecidos (17).Resumidamente, os bancos de dados de perfis genticos para fins forenses so bases que armazenam dados procedentes de indivduos j condenados por tipos especficos de crimes ou, a depender do pas, de suspeitos ou indiciados, bem como perfis obtidos de vestgios biolgicos encontrados em locais de crimes; e, em alguns casos, perfis de vtimas.Os bancos diferem quanto s formas de constituio, especialmente, no que se refere ao tempo de permanncia dos perfis genticos na base de dados. Em alguns casos, os dados permanecem por tempo indefinido na base (como, por exemplo, na Inglaterra, Noruega e ustria). Na sua grande maioria, os bancos so constitudos por perfis genticos de condenados, por amostras de suspeitos e/ou por amostras annimas coletadas em locais de crimes. A Alemanha o nico pas que no dissocia os dados pessoais dos dados genticos de cada indivduo, mantendo-os em uma mesma base (18). Outra classificao possvel aquela que tem por critrio principal o contedo ou a finalidade dos bancos. De acordo com o contedo, os bancos podem ter dados alfanumricos, DNA extrado ou material biolgico. Entretanto, os bancos que contm somente dados alfanumricos so considerados bancos de dados propriamente ditos. Os depsitos de amostras biolgicas e DNA extrados so denominados de biobancos. Os bancos com propsito de

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    Jose LuisComentrio do textoConfirmar condenao da Inglaterra

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    identificao gentica so compostos por nmeros associados ao cdigo de identificao de um indivduo (4,18). Similarmente ao que aconteceu em outros pases, a criao de um banco de perfis genticos criminal no Brasil apresentada como estratgia poltica e de governo para preveno e reduo da criminalidade. Na opinio de Machado e Silva (19), esta uma estratgia que se apia na retrica da grande eficcia e confiabilidade da gentica forense das tcnicas de identificao humana por meio da anlise do DNA, o que tem diminudo significativamente o espao para crticas a essa premissa. Sobretudo pelo destaque dado prova de DNA, colocada como a prova pericial mais confivel e importante frente outras provas. As primeiras discusses sobre a criao de um banco de dados de perfis genticos forense surgiram nos Estados Unidos, em 1989. Um software piloto do atual sistema Codis foi lanado em 1990 e, no ano seguinte, mais ou menos quinze estados j haviam promulgado leis autorizando a implantao de um banco de dados de DNA criminal. Em 1994, foi estabelecido, por meio legal, o sistema em escala nacional o National DNA Index System (NDIS)(20). Em Portugal, conforme a Lei n 5/2008 de 12 de fevereiro, a criao de uma base de dados de perfis genticos, para fins de identificao civil e criminal, foi aprovada com as seguintes caractersticas: um banco de perfis de condenados e outro de suspeitos/indiciados; so includos no banco os indiciados ou condenados com pena superior a trs anos de priso, todos voluntrios mediante consentimento livre e informado; e um banco com informaes de cadveres no identificados e de pessoas desaparecidas para fim de identificao civil. O tempo de permanncia do perfil na base depende da durao da pena condenatria, sendo que a eliminao do perfil ocorre logo aps o cumprimento da pena (21). J a Inglaterra tem um dos bancos de perfis genticos criminais mais rgidos e abrangentes do mundo, pois inclui uma maior proporo da populao (1). ONational DNA Database (NDNAD) foi a primeira base de dados de DNA do mundo, criada em 1995.O banco ingls inclui o perfil de todas as pessoas que cometeram qualquer infrao penal. A lei britnica estabelece que as amostras biolgicas e os perfis genticos sejam detidos por tempo ilimitado. So tambm exemplos de banco de grande abrangncia, quanto incluso de perfis, os bancos da ustria, Eslovnia e Suia. De acordo com o ltimo Annual Report, publicado em 2010 pelo banco ingls, existem armazenados em sua base de dados o perfil gentico de mais de 4.859.934 pessoas (22). A Holanda, por sua vez, aps a Reforma do Cdigo de Processo Penal que entrou em vigor em primeiro de setembro de 1994, todos os testes de DNA passaram a ser realizados sem o consentimento do suspeito mediante autorizao judicial, para crimes com pena de priso de oito ou mais anos, em casos de estupro e abuso sexual, e recentemente, abarca delitos com pena de pelo menos quatro anos de priso (23). Nos Estados Unidos da Amrica, no entanto, as leis federais garantem a recolha de material gentico, sem consentimento, de americanos presos por crimes federais mesmo antes de qualquer julgamento e de imigrantes ilegais que estejam detidos pelas autoridades, por qualquer que seja o crime. O Codis, at janeiro de 2013, possua nas suas bases de dados mais de 10.142.600 perfis genticos de condenados armazenados e 472.500 de perfis genticos obtidos de vestgios retirados de cenas de crimes. Nesse mesmo perodo, mais de 200.300 consultas foram realizadas ao Codis em assistncia a mais de 192.400 investigaes criminais (24).

    Jose LuisRealceEstigmatizao. Imigrantes ilegais podem ter seu DNA colhido por qualquer crime n os EUA.

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    O governo brasileiro, em maio de 2010, estabeleceu um acordo com o Federal Bureau of Investigation (FBI) para a utilizao do software Codis, j usado em mais de 30 pases. Com isso, o banco brasileiro, a princpio, teria os mesmos padres do banco norte-americano. A partir da implantao do sistema Codis no Brasil, criou-se a Rede Integrada de Banco de Perfis Genticos (RIBPG) projeto da Polcia Federal e das Secretrias Estaduais de Segurana Pblica, em parceria com a Secretria Nacional Segurana Pblica (Senasp) , possibilitando o compartilhamento e a comparao de perfis genticos em todo o pas, por meio de um banco central em que todos os laboratrios forenses estaduais esto associados (4). Em princpio, o Distrito Federal e mais 15 estados da federao j possuem laboratrios especializados que participam dessa rede, sendo eles: Amazonas, Amap, Bahia, Cear, Esprito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Par, Paraba, Pernambuco, Paran, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e So Paulo. A Polcia Federal tambm possui um laboratrio credenciado rede (4,8). At o incio do ano passado, a anlise de DNA era usada apenas na investigao criminal especfica que deu origem coleta de material biolgico. Ou melhor, em casos fechados, em que existem vestgios coletados na cena do crime e coletados da vtima ou do suspeito. No entanto, com a publicao da Lei de n 12.654, em junho de 2012 (25), uma nova dinmica na investigao de crimes graves sem suspeitos conhecidos fica estabelecida. Tal lei dispe sobre a coleta e armazenamento de perfis genticos com finalidade de identificao criminal a critrio do juiz e foi regulamentada pelo Decreto de n 7.950/2013 (26), que estabelece a identificao gentica como forma de identificao criminal.

    A legislao que cria e regulamenta o Banco de Perfis Genticos Criminal Brasileiro

    Com apenas quatro dispositivos, a Lei n 12.654/2012, altera a Lei n 12.037/2009, que trata da identificao civil e criminal, e a Lei n 7.210/1984,que trata sobre a execuo penal (25). A caracterstica principal dessa Lei encontra-se estabelecida em seu art. 2, que modifica o artigo 9 da Lei de Execuo Penal.

    Art. 9-A Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violncia de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, sero submetidos, obrigatoriamente, identificao do perfil gentico, mediante extrao de DNA - cido desoxirribonuclico, por tcnica adequada e indolor (25).

    Nestes termos, fica estabelecida a coleta compulsria de material gentico de todo indivduo condenado por um crime doloso contra pessoa, de natureza grave e cometido mediante violncia, e posterior armazenamento dos perfis genticos em banco de dados criminal. O que implica no uso do sistema Codis para a identificao gentica de condenados por crimes de natureza grave crime contra a pessoa (homicdio, leso corporal de natureza grave, aborto etc.) e crimes hediondos (estupro, homicdio quando praticado por grupo de

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    extermnio, latrocnio, extorso qualificada pela morte etc.). No entanto, os autores do presente estudo questionam alguns aspectos em relao Lei 12.654/2012 tal como foi elaborada. Entre eles: ausncia de dispositivo que garanta a padronizao dos laboratrios oficiais responsveis pelas anlises do DNA; a necessidade de criao de um sistema de controle das atividades e funcionamento do banco, como a criao de um conselho fiscalizador que possa assegurar a transparncia do processo na tentativa de promover um aumento da confiabilidade dos bancos de DNA perante a sociedade; e ausncia de um dispositivo especfico que trate sobre o armazenamento das amostras biolgicas e a possibilidade de destruio das mesmas. Em seu artigo 5, que trata sobre o armazenamento dos perfis genticos em banco de dados, no est especificado qual procedimento dever ser adotado caso futuramente se descubra que as regies do DNA utilizadas na identificao humana sejam, na verdade, regies codificantes e com capacidade de revelar caractersticas somticas e comportamentais das pessoas. Essa possibilidade pode ser vislumbrada diante dos constantes avanos cientficos no campo da gentica forense. O pargrafo 2, por sua vez, no aborda a questo do armazenamento das amostras biolgicas e a possibilidade de descarte das mesmas, tendo em vista seu grau de importncia. Em maro de 2013, publicou-se o decreto de n 7.950 para regulamentar a Lei N 12.654/2012e institu o banco nacional de perfis genticos e a rede integrada de bancos de perfis genticos. A partir dele fica estabelecido que a unidade de percia oficial do Ministrio da Justia o mbito de gesto do banco (26). A rede integrada tem como escopo consentir o compartilhamento e a comparao de perfis genticos includos nos bancos da Unio, dos estados e do Distrito Federal. A adeso dos estados e do Distrito Federal rede ser feita mediante convnio de cooperao tcnica entre o Ministrio da Justia e as unidades da federao. No artigo 2 do Decreto, encontra-se estabelecido a criao de um comit gestor, que promover a coordenao das aes dos rgos gerenciadores de banco de dados de perfis genticos e a integrao dos dados nos seus respectivos mbitos: Unio, Estados e Distrito Federal (26). importante destacar a possibilidade de participao de um membro da Comisso Nacional de tica em Pesquisa (Conep) nas reunies desse comit, bem como um membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).As funes desse comit esto dispostas no artigo 5. Entre elas, destaca-se a obrigao de definir medidas e padres que vo assegurar o respeito aos direitos e garantias individuais nos procedimentos de coleta, de anlise e de incluso, armazenamento e manuteno dos perfis genticos nos bancos de dados; o comprometimento na definio de medidas que assegurem a confiabilidade e o sigilo dos dados, indicando a necessidade de se realizar auditorias no banco nacional de perfis genticos e na rede integrada (26). Com isso, o governo brasileiro sinaliza uma preocupao em resguardar direitos e liberdades dos indivduos que tero seus perfis genticos armazenados no banco. Para tanto, necessrio que os procedimentos envolvidos no exame de DNA, ou seja, na obteno do perfil gentico, sejam rigorosos quanto qualidade e que o acesso s informaes produzidas seja bastante restrito. De acordo com o artigo 7 do Decreto, fica estabelecida a necessidade de se excluir

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    do banco o perfil gentico do individuo identificado criminalmente, logo aps decorrido o prazo de prescrio do crime. Esse um aspecto considerado de grande relevncia nas legislaes dos pases que j possuem bancos de DNA criminal, visto que,juntamente com a prescrio do crime, encerra-se tambm a obrigao e o pr-requisito bsico que determinam o armazenamento do perfil gentico em um banco dessa espcie, regra para a qual a legislao britnica representa uma exceo.

    Aspectos bioticos do Banco Nacional de Perfis Genticos Criminal

    A construo de uma base de dados com finalidade criminal pode ser considerada por muitos cientistas forenses e por juristas, como mais um meio eficaz na resoluo de crimes e determinao da culpabilidade ou inocncia de suspeitos e indiciados. Porm, vrias crticas tm sido feitas sua utilizao, sob o ponto de vista tecnolgico, tico e jurdico. Um dos aspectos questionados diz respeito privacidade, dignidade e autonomia dos indivduos analisados. Estando o sujeito obrigado a realizar o exame, a biotica chamada a se posicionar entre a autonomia e a segurana. Em outras palavras, em nome de uma proteo para a sociedade, no possvel respeitar a autonomia do condenado, caso ele no queira realizar o exame. Questiona-se, tambm, acerca do princpio da presuno de inocncia do ordenamento jurdico brasileiro, que afirma que ningum obrigado a produzir provas contra si.No caso do sujeito condenado isso no ocorre, uma vez que ele j foi julgado com as provas disponveis at ento. H quem defenda a constituio de bancos com amostras colhidas de toda a populao adulta, partindo do pressuposto que o DNA um dado de identificao equivalente impresso digital (17). No entanto, para outros, o DNA possui dados genticos relacionados com a hereditariedade do indivduo, sendo mais que um mero dado de identificao individual (27). Isso acarreta uma complexidade maior da questo e, consequentemente, um grau maior de responsabilidade envolvido na constituio de tais bancos. Na viso de Mora Snchez (2), a formao de um banco com toda populao adulta deve ser pouco provvel devido aos numerosos problemas ticos e legais envolvidos. Devido s elevadas expectativas sociais atribudas tecnologia de DNA por novas polticas de segurana pblica e de controle da criminalidade, o sucesso da utilizao de um banco de DNA criminal vai depender, essencialmente, do alto nvel de desempenho dos laboratrios criminais, do apoio legislativo, do poder atribudo s provas de DNA pela Justia, da existncia de um debate pblico acerca das implicaes ticas envolvidas e de um controle social bem estruturado. Em uma perspectiva crtica do grande valor atribudo utilizao de bancos de perfis genticos criminais em todo o mundo, Acosta (17) aponta para o fato de que essa ferramenta deve ser vista como mais um instrumento de ajuda investigao criminal, e no como o nico ou o mais importante. Por outro lado, no se pode deixar de ressaltar o grande valor que a prova de DNA possui para a investigao, especialmente em crimes em que no haja a figura da prova testemunhal. Por fim, cabe salientar a importncia da utilizao de bancos como esse na elucidao de crimes sem suspeitos e em casos de crimes antigos. No entanto, a criao de um banco com essa finalidade deve ser pautada no conjunto de valores que se encontram representados em nossa sociedade, sobretudo na dignidade da

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    pessoa humana (28). inquestionvel a necessidade de se reconhecer e valorizar bases ticas slidas na construo desse banco. Sobretudo, no que diz respeito coleta de produtos biolgicos, pois,sempre que possvel, deve ser antecedida por uma explicao dos procedimentos que permeiam a efetivao da tcnica, bem como das consequncias de um eventual resultado positivo. O consentimento do indivduo para a coleta de material biolgico indispensvel, mesmo em se tratando de presos ou de pessoas em condio de vulnerabilidade (29). Alis, esses ltimos merecem, por razes bvias, uma ateno tica ainda maior. Nesse sentido, a obteno de dados genticos com fins de identificao pode demonstrar um duplo aspecto, que deve ser levado em conta na reflexo sobre os benefcios de sua utilizao. Por um lado, a obteno de um perfil gentico pode afetar direitos fundamentais do individuo tanto na coleta das amostras biolgicas, devido interveno no corpo,quanto na incidncia sobre sua vida privada. Por outro lado, a tcnica bastante til na identificao humana podendo determinar vnculo biolgico entre pessoas, a culpabilidade ou a inocncia de um individuo no mbito da justia. Nessa seara, no se pode esquecer que existem vrias bases de dados onde esto inseridas diferentes tipos de informaes das pessoas,e que so constantemente comparadas, utilizadas e, muitas vezes, divulgadas. Como por exemplo, o banco de identificao datiloscpica, onde impresses digitais esto registradas, podendo em dado momento serem comparadas com impresses encontradas em cenas de crimes (17). Entretanto, ao se comparar banco de perfis genticos com banco de impresses digitais, deve-se considerar uma diferena fundamental entre os dois: o tipo de amostra e o seu grau informativo. De uma amostra de impresso digital no se pode obter mais informaes do que as puramente identificativas. Por outro lado, das amostras biolgicas coletadas para anlise de DNA com finalidade de identificao, pode-se estudar todas as informaes genticas daquele genoma (3), o que pode representar uma profunda intromisso na intimidade de um indivduo. Isso tem uma importncia biotica grande, uma vez que o grau de exposio pode ser infinitamente maior na amostra biolgica. Dessa forma, qualquer dado pessoal de carter gentico pode ser considerado como um dado que interfere na intimidade gentica, ou melhor, em toda a intimidade do sujeito, devido ao alto grau de revelao que ele tem sobre a constituio dessa pessoa. Assim, deve ser protegido pelo direito fundamental da intimidade (2).A Biotica de Proteo, uma representante da biotica crtica latino-americana, nos mostra que nas relaes nas quais as informaes circulam, observa-se tambm a presena de estruturas de poder, gerando vulnerabilidades e manipulaes. Esta biotica se refere s providncias que devem ser tomadas para proteger populaes e indivduos mais vulnerveis e que no disporiam de outros meios que lhe garantissem condies necessrias para uma vida digna (30). A partir disso, a busca da garantia dos direitos humanos, em um corte no assistencialista, deve ter em conta a necessidade de proteger a privacidade e garantir a confidencialidade, no apenas em funo da salvaguarda do indivduo, mas tambm defend-lo contra a manipulao de informaes, contra os esquemas de poder e dominao, que na Amrica Latina expem, sobretudo, os mais pobres.Em situaes como essa, nas quais a vida passa a ser objeto da poltica podendo implicar em abusos contra direitos fundamentais e morais, que Schramm (31) coloca a biotica como

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    alternativa biopoltica. O significado dado aqui ao termo vulnerabilidade aquele construdo por Garrafa e Prado (32). O lado mais fraco de um assunto ou questo, podendo ser utilizado termos como fragilidade, desamparo, desproteo, desfavor, ou at mesmo de abandono. Abarcando, tambm, o sentido dado por Lorenzo (33), ou seja, susceptibilidade, podendo possuir um sentido de risco, que diz respeito possibilidade de um evento encontrar os indivduos em sua trajetria. O tema banco de perfis genticos criminal foi bastante debatido no campo tcnico, entre pesquisadores forenses e pessoas ligadas segurana pblica. No entanto, considerando o carter especial das informaes envolvidas e as implicaes bioticas e legais apresentadas imprescindvel ampliar o debate, para que outros atores da sociedade civil sejam inseridos nele e que novas vises de mundo sejam apresentadas, em respeito ao pluralismo moral. Portanto, a biotica chamada a fornecer razes e propostas que possam orientar o dilogo abrangente e crtico com os pesquisadores e todos os profissionais envolvidos. E no se deve esquecer que o pressuposto bsico o agir responsvel diante da possibilidade de causar mculas dignidade humana (34,35). Posto que essa questo se encontra delimitada entre dois extremos conflituosos: de um lado, os interesses da sociedade e, de outro, os direitos dos acusados. Emerge, ento, a seguinte questo: possvel o alcance de um equilbrio em que ambos os interesses sejam preservados? Mesmo que, nesse momento, no se tenha vislumbrado uma resposta para esta pergunta, vale lembrar a responsabilidade que o estado moderno tem de oferecer proteo a todos os cidados, mediante elaborao de polticas pblicas, sem discriminao de raa, credo e classe social, e, ainda, sem desrespeito intimidade e vida privada.

    Consideraes finais

    A criao e a utilizao do banco nacional de perfis genticos criminal no Brasil, com o objetivo principal de identificar a autoria de crimes que no apresentam suspeitos, por se tratar de um tema polmico devido s implicaes legais e ticas que o envolvem, foi alvo de grande discusso no campo tcnico e jurdico. Entretanto, o debate tico foi incipiente ou mesmo inexistente. A partir disso, uma discusso biotica sobre o tema foi proposta na tentativa de ampliar o debate em torno das questes ticas suscitadas. importante destacar que, ao se colocar em discusso a utilizao desses bancos de dados, no se pretende necessariamente fazer oposio ao seu uso. Mas enfatizar que a prudncia e a cautela so princpios extremamente teis em processos que envolvam dados sensveis, como as informaes genticas. A necessidade de proteo dos dados genticos no vai contra a promoo dos avanos cientficos, desde que suas aplicaes sejam pautadas no respeito dignidade humana, no respeito aos direitos humanos e no princpio da responsabilidade defendido por Hans Jonas. Pode-se pensar do ponto de vista da biotica, um banco de perfis genticos mais justo, no qual toda a populao adulta fosse includa. Como acontece com o banco de digitais. Dessa forma, eliminar-se-ia a questo da discriminao e estigmatizao no caso da obrigatoriedade de incluso no banco de um nico grupo de indivduos. Apesar da possibilidade de um banco formado com toda a populao adulta ser bastante dispendiosa para o Estado, esta seria uma

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    condio mais equitativa de distribuio dos benefcios e dos possveis danos. O fato de se ter o perfil gentico includo em um banco criminal pode transformar uma pessoa em um suspeito automtico de todos os futuros crimes em que pesquisas de perfis genticos sejam realizadas com objetivo de investigao criminal. Isso, por sua vez, pode vir a comprometer de forma significativa, o princpio da presuno de inocncia, adotado no mbito da justia brasileira, ficaria comprometido (4). Quanto privacidade e intimidade gentica dos indivduos includos em um banco de DNA criminal, fato que a disseminao das informaes contidas no genoma humano pode provocar condies de vulnerabilidade, embora se afirme que a anlise feita no DNA, com objetivo de identificao humana, no tenha poder de expor caractersticas sobre a sade ou sobre outros padres genticos diversos das pessoas. No entanto, com a constante evoluo da cincia, este quadro pode mudar, pois j existem trabalhos cientficos relacionando a parte no codificante do DNA s caractersticas fsicas dos doadores. Isso justificaria o argumento da exposio s situaes de vulnerabilidade.Portanto, legtimo pensar que as experincias e, mesmo as legislaes aplicadas aos pases ditos desenvolvidos, a exemplo dos EUA e da Europa, no sejam consideradas como referencial inquestionvel e exclusivo para a busca de recursos ou solues para os problemas brasileiros. Esta uma advertncia feita em relao ao formato do banco de perfis genticos brasileiro,que Foi construdo com base no banco americano. Pois, a realidade vivenciada por cada pas possui singularidades prprias, e os problemas e questes a serem enfrentados esto longe de serem os mesmos.Diante disto, importante considerar estratgias poltico-sociais alternativas ou complementares ao uso de bancos de perfis genticos, no combate e na preveno do aumento da criminalidade. igualmente importante haver um controle rigoroso de sua utilizao, com especial restrio de acesso aos dados genticos arquivados, uma avaliao frequente da efetiva eficcia do banco para a resoluo de crimes e um maior comprometimento com padres ticos nos procedimentos de anlises. Por fim, mas no menos importante, fundamental garantir, por vias legais, a proteo das amostras biolgicas depositadas em bancos paralelos aos bancos de dados de perfis genticos forenses.

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