Bakhtin e o Círculo

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BAKHTIN E O CÍRCULO ANTE QUESTÕES DE TEORIA LITERÁRIA E TEORIA LINGUÍSTICA – PRIMEIROS TEMPOS Patrícia Gomes de Mello Sales (Netlli/URCA) Maria de Fatima Almeida (UFPB/PROLING) RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | AS AUTORAS RECEBIDO EM 21/09/2012 ● APROVADO EM 21/09/2012 (AUTORAS CONVIDADAS) Resumo Neste trabalho, traçamos um panorama do contexto russo em que viviam Bakhtin e os outros integrantes do Círculo, considerando especificadamente a linguística e a literatura, para que sejam perscrutadas as influências que sofreram Bakhtin e o Círculo, de modo a que se tenha uma visão mais responsiva do sentido que tinham seus escritos e suas ideias na época em que foram produzidos. Entradas para indexação PALAVRAS-CHAVE: Contexto. Literatura. Linguística. Bakhtin. Círculo. Texto integral

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Contextualização de Bakhtin e do Círculo

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  • BAKHTIN E O CRCULO ANTE QUESTES DE TEORIA

    LITERRIA E TEORIA LINGUSTICA PRIMEIROS TEMPOS

    Patr cia Gomes de Mello Sales (Netlli/URCA) Maria de Fa tima Almeida (UFPB/PROLING)

    RESUMO | INDEXAO | TEXTO | REFERNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | AS AUTORAS RECEBIDO EM 21/09/2012 APROVADO EM 21/09/2012 (AUTORAS CONVIDADAS)

    Resumo

    Neste trabalho, traamos um panorama do contexto russo em que viviam Bakhtin e os outros integrantes do Crculo, considerando especificadamente a lingustica e a literatura, para que sejam perscrutadas as influncias que sofreram Bakhtin e o Crculo, de modo a que se tenha uma viso mais responsiva do sentido que tinham seus escritos e suas ideias na poca em que foram produzidos.

    Entradas para indexao

    PALAVRAS-CHAVE: Contexto. Literatura. Lingustica. Bakhtin. Crculo.

    Texto integral

  • Ser na vida realmente significa agir.

    M. M. Bakhtin

    1 Incio do dilogo

    Desde muito cedo, Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (18951975) vivenciou a

    diversidade lingustica e um pluralismo cultural, que mais tarde seriam refletidos

    em seus posicionamentos tericos e filosficos, entre outros conceitos, na forma de

    heteroglossia e dialogismo. Seu pensamento ou suas ideias foram expressos em

    diferentes momentos de sua vida e foram marcados por grandes acontecimentos,

    no s na Rssia, mas em todo mundo.

    Para podermos entender seu pensamento preciso fazer leituras atentas e

    procurar entender o contexto vivido por ele e pelo Crculo no momento da

    produo das obras, por isso, optamos em separar os vrios Bakhtins, visto que sua

    obra abrange uma diversidade imensa de reflexes filosficas, culturais,

    lingusticas e literrias.

    Faremos uma reflexo do primeiro Bakhtin, principalmente sobre a

    literatura e a lingustica, contextualizando os acontecimentos na Rssia do incio

    do sculo XX e aludindo a alguns autores alvo de interesse de Bakhtin e dos

    membros do Crculo.

    Em nosso entender, e para alguns estudiosos tais como Clark e Holquist

    ([1984] 2008), a produo do Crculo, em especial a de Bakhtin, corresponde a

    quatro perodos: o primeiro foi voltado para estudos de cunho filosfico, quando o

    Crculo procurou desenvolver o conceito do ser-evento, dentro de uma filosofia que

    desse conta do ato tico; o segundo explorou elaboraes sobre o dialogismo e

    abriu a discusso sobre linguagem com vrias obras publicadas; o terceiro est

    ligado elaborao da teoria do romance; o quarto retoma os conceitos filosficos

    do primeiro perodo e os completa.

    Neste trabalho, nos deteremos no dilogo dos primeiros tempos

    bakhtinianos, mais precisamente do incio de seus estudos secundrios at as

    principais obras e acontecimentos do final dos anos 1920, deixando os demais

    perodos para possveis trabalhos posteriores.

  • 2 Primeiras leituras e discusses do Crculo

    Em 1914, Bakhtin comea a ter contato com movimentos intelectuais

    vanguardistas e com leituras de pensadores revolucionrios como Marx, Engels,

    filsofos como M. Buber e Immanuel Kant e intelectuais voltados para psicologia

    como Wundt, que influenciariam seus primeiros escritos, deixando ecos. Entre

    essas leituras de cunho revolucionrio e filosfico, Bakhtin se depara com a

    efervescncia religiosa, cultural e poltica que estourava na Rssia com a

    Revoluo de 1917.

    Aqui cabem algumas palavras para situar o contexto vivido pelo Crculo.

    Abriremos janelas para que possamos conhecer um pouco mais de perto o

    conturbado contexto em que Bakhtin desenvolveu suas primeiras obras. Para isso,

    faz-se necessrio um retorno ao sculo XIX, retomando alguns dos literatos lidos e

    estudados por Bakhtin e o Crculo.

    O sculo XIX corresponde Idade de Ouro da literatura russa. Juntamente

    com o Romantismo, o poeta e prosasta Aleksander Sergeivitch Puchkin, chega ao

    auge, alm dele, liam-se poetas como Afanasi Afanasicvich Fet e Fiador Ivanovich

    Tiatchev, o fabulista Yricvich Knilov, o dramaturgo Alexander Sergeievich

    Griboiedov e romancistas como Mikhail Lurievitch Lermontov e Nikolai

    Vasilievitch Ggol tambm entram nesta lista.

    Nesse perodo, h uma tendncia voltada mais para o romance, a novela, o

    conto e o teatro. Outros autores se destacam nesse momento, porm a maior

    referncia em prosa voltada para figura de Ggol, que tentou deixar de lado a fase

    mais romntica e passou a retratar em suas obras as condies da sociedade russa,

    passando agora para uma fase Realista. Ivan Sergeievitch Turgueniev tambm

    uma figura de destaque dessa poca.

    Entre os principais autores lidos por Bakhtin, encontramos o maior

    representante da chamada Escola Natural o j mencionado Ggol (18091852)

    cuja produo literria se desenvolveu entre o incio e meio do sculo XIX, perodo

    de grandes inquietaes em nveis polticos, sociais e culturais, pois foi o perodo

    de maior represso na Rssia, quando governava Nicolau I (18251855). A

    principal caracterstica das suas obras que nelas h uma verdadeira descrio (s

    vezes caricatural e risvel) da realidade vivida pela populao da poca, que nos

  • revela uma fonte documental da realidade humana e social daquele povo, j com

    um enorme carter de protesto.

    A forma que a literatura caminhava era reflexo da literatura francesa e

    toda uma carga de realidade era empregada nas artes, seja na literatura, na pintura

    ou na escultura, pois na Europa, em especial na Frana, os textos mostravam o

    cotidiano da poca e tinham uma boa aceitao do pblico russo, mesmo

    mostrando um socialismo ideal ou quimrico, s vezes at muito idealista, mas

    aquela era a realidade, todas as formas romnticas estavam sendo deixadas de

    lado, agora, o cotidiano, a vida simples do homem do campo era mostrada nas

    obras denominadas por muitos autores como (naturalismo sentimental). Porm, o

    maior poeta da literatura russa foi Aleksandr Sergueivitc Pchkin (1799-1837), de

    quem Bakhtin, amante da boa poesia, usou vrios exemplos de poemas em suas

    obras.

    Como os outros autores citados acima e influenciados por Pchkin, o

    momento histrico da sua vida foi refletido em sua obra, ele falava a lngua do povo

    e os entendia, identificava-se com o povo e sua cultura, feliz com a vida, participou

    de crculos, foi exilado e sofreu muito por no ter contado com pessoas conhecidas,

    eles eram denominados (dekabristas) era a forma como se tratavam os

    participantes do crculo de Pchkin em que este via neles o futuro da nao, pois

    no ficaram calados diante das desigualdades sociais e das injustias e viam na

    literatura uma forma de alertar o mundo contra os abusos sociais.

    De relevante interesse nesse perodo o destaque que dois autores

    tiveram por suas posies filosficas e maneiras inovadoras de escrever. Bakhtin

    os analisa e incansavelmente escreve sobre eles. De um lado, encontramos o

    romancista e filosfico Lev (Leon) Tolsti, que procurou na essncia da natureza a

    existncia humana; de outro, Dostoivski, que buscou desmistificar o naturalismo

    empregado na literatura.

    Tolsti (18281910) teve uma vida agitada e de inquietaes na

    adolescncia. Nunca foi aluno de destaque e foi consideravelmente farrista, porm

    houve um perodo em Iasnaia Poliana, antiga fazenda da famlia, em que Tolsti lia

    a Bblia e Jean-Jacques Rousseau (17121778), buscando respostas para sua

    inquietao e sobre o significado da vida.

  • Influenciado por seu irmo Nicolau, que lhe contava vrias histrias sobre

    os combates no Cucaso e despertando-lhe a vontade de lutar, em 1852, Tolsti

    ingressou no Exrcito, serviu no Cucaso e, concomitantemente a isso, publicava

    captulos de Infncia, e escreve para a revista O contemporneo.

    Entre combates e viagens pela Europa, Tolsti retorna a Iasnaia Poliana

    com ideias fervilhantes na cabea, sentindo-se na obrigao de fazer algo pelo seu

    amado pas. Comeou alfabetizando os servos da fazenda e criando uma escola

    para crianas e adultos. Casou com Sofia Andriivna e as dificuldades financeiras o

    fizeram ter a literatura como um meio de ganhar a vida. Assim, servindo-lhe de

    pano de fundo a bravura e virtudes do povo russo, escreveu Guerra e paz, que foi

    aplaudido com louvor por crticos da poca. Entre suas principais obras temos

    Anna Karnina, que Dostoivski (18211881) afirmou ser uma perfeita obra de

    arte. Mas, a pergunta sobre o sentido da vida o aterrorizava por uma resposta

    jamais encontrada, fundou o tolstosmo, buscando respostas na moral e na religio.

    Com a publicao de Ressurreio foi excomungado, porm tinha achado suas

    possveis respostas. Morreu procurando paz e simplicidade.

    Em lado oposto a Tolsti, encontramos outro glorioso escritor lido e

    estudado por Bakhtin: Dostoivski, que, como citamos anteriormente, conhecia as

    obras de Tolsti e at certo ponto as admirava, porm sua linha era distinta:

    discorria sobre o irracional, sobre diferentes experincias humanas, expondo

    situaes dramticas como assassinato, blasfmias e rebelies e falando sobre os

    conflitos da mente.

    Dostoivski (1821-1881), apesar de ser contemporneo de alguns dos

    autores citados neste trabalho, apresentava inovaes no estilo, desconectando as

    mesmices do naturalismo e pondo limites ao sentimentalismo deixados por Ggol.

    Dostoivski muitas vezes no mostrava as faces do autor, deixando os heris

    falarem por si e dialogarem com o seu leitor. Nas suas obras, o heri pertence

    realidade viva, caracterizando assim, a chamada literatura de protesto, com

    publicaes que, podemos dizer, eram bem frente do seu tempo, marcadas por

    uma espcie de fico filosfica. O prprio Bakhtin defendeu que Dostoivski criou

    o romance plurivocal e polifnico.

    Foi a partir de leituras como as de Tolsti e Dostoivski que Bakhtin

    desenvolveu uma parte do seu trabalho, embasado em teorias filosficas,

  • mostrando a gama de conhecimento intelectual que possua. Numa poca em que

    se empenhou em teorizar sobre a prosa, em especial sobre o romance, pois via

    nesse gnero os valores da vida expressos na arte.

    Alm desses escritores, a Rssia dispunha ainda Ivan Aleksandrovitc

    Goncharov, N. Schchedrin, que em suas obras escreveram a sua maneira, satrica e

    custica sobre a sociedade russa. Foi com a obra de Anton Pavtovich Tchekhov,

    porm, que o realismo russo alcanou grande auge.

    Esse contexto necessrio para podermos entender os autores estudados

    por Bakhtin e que os levaram ao frtil pensamento filosfico em seus primeiros

    tempos. Para escrever suas teorias, Bakhtin precisou ler esses autores e buscar

    suas essncias, mostrando, por exemplo, na obra Problemas da Potica de

    Dostoievski que no mundo ainda no ocorreu nada definitivo, a ltima palavra do

    mundo e sobre o mundo ainda no foi pronunciada, o mundo aberto e livre, tudo

    ainda estar por vir e sempre estar por vir (BAKHTIN, 2010, p. 191).

    Durante toda sua vida, Bakhtin foi desenvolvendo conceitos ligados

    literatura e outras reas afins, como, por exemplo, o estudo da prosaica, que daria

    incio ao estudo e desenvolvimento da teoria do romance, desenvolvendo a

    questo dos gneros e a questo das vozes polifnicas no romance, trazendo assim

    mais liberdade para esse gnero, coisa que anteriormente ainda no tinha sido

    incorporada nos estudos clssicos pelo seu fator monolgico. No romance, h

    necessariamente, para Bakhtin, a expresso da vida.

    No sculo XX, grande parte dos autores se dedicou poesia como Zinaida

    Nikolaievna Gippius, Boris Nikoluicvich Bugaiev, entre outros, mas o destaque

    recai sobre autores simbolistas como Aleksandr Blok, Andrii Bily e Viatcheslav

    Ivnov, que retomam concepes religiosas e filosficas. Com a revoluo de

    Outubro, o papel dos simbolistas passou a ser uma espcie messinica e com

    louvores ptria, depois o estilo recai para tratar de devaneios de sonhos e

    alucinaes noturnas como pesadelos, bruxas, masoquismo etc. A vida passa mais

    uma vez a ser retratada nos textos, mas, desta vez, monstruosamente, onde o feio

    encontra o Belo e passa a ser tambm Belo, tudo na poesia era belo, at temas

    monstruosos. Os poetas faziam uma ponte estreita entre arte e religio. Bakhtin

    era simpatizante da poesia simbolista e os escritos simbolistas foram uma espcie

    de primeira tentativa de equilbrio entre a religio e os demais aspectos da vida, o

  • que foi abandonado posteriormente, pois ele acreditava no vivo e atual, no numa

    realidade inexistente e sonhada pelos simbolistas.

    Os simbolistas Andrii Bily e Aleksander Blok assumem a admirao por

    Tolsti, publicando a coletnea Sobre a Religio de Liev Tolsti (1912), assim temas

    religiosos, de profecias e de fuga da vida mundana foram retomados pelos

    simbolistas, fazendo-nos lembrar Pchkin com o poema O peregrino, escrito no

    ltimo ano da sua vida. Unindo sempre arte e religio. Vale lembrar que o

    simbolismo era oposto ao naturalismo, ao positivismo e s ideias vanguardistas.

    Nesse perodo, entre 1911 e 1912, Bakhtin encontrava-se em Vilnius, cuja

    populao era formada por poloneses e lituanos, grande parte formada por judeus,

    que, em sua maioria, falava idiche, portanto, ele convivia com um intenso

    pluralismo lingustico e cultural. Em seguida, durante o ano de 1913, reside em

    Odessa, vivenciando todo tipo de variao cultural e lingustica, que, sem dvida,

    influenciariam e deixariam ecos em seu desenvolvimento intelectual. Em 1914,

    Bakhtin seguiu para So Petersburgo para continuar seus estudos superiores. Com

    toda essa efervescncia poltica, cientifica e cultural, no de se estranhar que um

    pensador de mente to frtil ficasse quieto diante de um contexto to turbulento

    pelo qual a Rssia passava.

    Os movimentos literrios e culturais que se destacaram na Rssia nesse

    momento foram o acmesmo, que buscava a bela clareza em oposio ao ideal do

    belo alm dos simbolistas, e o futurismo, cujos representantes eram conhecidos

    por seus experimentos formais, chegaram eles ao extremo na poesia do trans-

    senso e na eliminao de objeto em sua arte fortemente provocativa (CLARK e

    HOLQUIST, [1984] 2008, p.54).

    Nesse mesmo perodo, os formalistas russos chegam com todo vapor

    excluindo os mtodos de estudos literrios voltados para psicologia, histria e

    cultura, defendendo que a linguagem potica tem que ser abordada de forma

    cientfica, estudando a literatura por si mesma. Esse novo grupo (formalistas) era

    formado por estudantes da acadmica de Moscou com o objetivo de formular

    teorias literrias e lingusticas. Isso tudo acontecia em 1914, perodo em que

    Bakhtin est na universidade.

    Em 1917, formam-se o OPOJAZ (Obscestvo izucenija Poeticeskogo Jazyka -

    Sociedade para o Estudo da Linguagem Potica) de So Petersburgo e o Crculo

  • Lingustico de Moscou. Os formalistas, negando a metafsica, o subjetivismo e a

    religiosidade, eram completamente contra a forma simbolista de encarar a

    literatura. Para eles, a obra literria era um processo palpvel e imediato. No

    prefcio do livro teoria da literatura: formalistas russos, Boris Schnaiderman

    (EIKHENBAUM, 1976, p. 12) explica que

    Surgindo numa poca de grandes discusses, na poca em que o suprematismo de Malivitch, o construtivismo, a poesia csmica de Khlibnikov e Maiakovski subvertiam todas as noes do consagrado [...] o assim chamado formalismo procurou na literatura viva e no apenas nos monumentos do passado aquilo que podia caracterizar a linguagem da obra literria. Ele estudou o especfico, o inerente literatura. Mas, ao mesmo tempo, as novas correntes artsticas afirmavam a necessidade de fundir a arte na vida cotidiana (grifo nosso).

    Os formalistas possuam um vocabulrio cientfico, uma linguagem prpria

    e tcnica e sempre procuravam distinguir separadamente a arte da vida. Apesar de

    Boris Schnaiderman ter usado a palavra fundir, os formalistas estudavam

    separadamente a obra artstica sem se importar com o autor e nem com o

    contexto. Vale lembrar que essa recusa foi apenas na primeira fase do formalismo.

    Bakhtin, de modo oposto, valoriza o autor, o contexto e todos os valores sociais e

    ticos dos acontecimentos literrios, fundindo-os com a arte viva do cotidiano.

    Para os formalistas, o texto era autossuficiente, falava por si s. Para Bakhtin, toda

    enunciao nunca acabada, nunca se esgota, sempre ter um sentido restante,

    mesmo depois de uma longa anlise. Para os formalistas e toda a crtica literria

    que dominava, obra era um todo acabado, falava por si mesma, sem precisar de

    explicaes contextuais, assim, na crtica literria de Bakhtin, a palavra de ordem

    dominante sempre foi que o texto no dado, porm concebido. O princpio dos

    Formalistas era diametralmente oposto: o texto a soma de suas disposies

    (CLARK e HOLQUIST, [1984] 2008, p. 211).

    Nesse contexto, j estavam avanados os estudos lingusticos, mais

    especificadamente com a publicao, em 1916, do Curso de Lingustica Geral, de

    Ferdinand de Saussure, no qual a lingustica comeava a se delinear como uma

    cincia independente. E, com o Crculo Lingustico de Moscou, abria-se um paralelo

    entre estudos lingusticos e literrios.

  • Entre os vrios grupos intelectuais da Rssia, em 1918, em Nevel,

    formava-se o primeiro Crculo de que Bakhtin fez parte, denominado Seminrio

    Kantiano ou Crculo de Nevel, composto por Matvei Kagan, Ana Sergueivna,

    Mikhail Tubianski, Lev Pumpianskii, Maria Yudina, Valentin Voloshnov, Bris

    Mikhailivich Zubkin e Mikhail Bakhtin, que juntos discutiam grandes filsofos e

    todo o contexto atual da poca. Como por exemplo, Nikolai Alexandrovitch

    Berdiaev (1874-1948), conterrneo de Bakhtin que procurava aproximar o

    pensamento marxista com o kantiano. Nesse grupo, alm de discusses eram

    organizadas palestras, concertos e realizaes de vrios debates no s filosficos,

    mas tambm religiosos, artsticos, polticos etc., levando Bakhtin a escrever e

    publicar seu primeiro texto Arte e responsabilidade na revista Deniskosstva em

    1919.

    A partir desse momento, comeam os deslocamentos do Crculo, entrada e

    sadas de membros como Pvel N. Medvedev, Tubianski, Kanaev, Zalieski,

    Vaguinov e Kliouev, isso entre vrios debates e publicaes do grupo. Em Vitebsk,

    acontecia uma verdadeira revoluo no campo das artes, onde at as paredes

    sentiam sua impulso com desenhos dos suprematismos com formas de

    quadrados, cubos, tringulos e estrelas. Movimento este que tinha como objetivo

    maior levar as artes para as ruas, num universo que encantava Bakhtin.

    Estudava-se a lingustica de Saussure e de seus adeptos, que viam na

    lngua o objeto de estudo lingustico. Os participantes do Crculo liam estudiosos

    como Franz Brentano (1838-1917), cuja teoria do ato vigorava desenvolvendo

    uma teoria psicolgica do ato, voltada participao do sujeito na realidade que o

    insere, que deixou ecos em muitos escritos de Bakhtin e do Crculo, como no livro

    Para uma filosofia do ato responsvel (escrito entre 1919-1921). Nesse perodo,

    tambm era forte a influncia de Buhler (1879-1963), que via na sintaxe a forma

    de comunicao.

    Era nesse contexto lingustico que o Crculo se desenvolvia. Vale lembrar

    que antes das concepes lingusticas desenvolvidas no sculo XX, durante todo o

    sculo XIX, os estudos lingusticos eram voltados quase que exclusivamente para o

    carter histrico. Na Europa, encontramos ainda a Escola de Genebra e a Escola de

    Praga, que no se limitavam aos estudos puramente formais da lngua, pois

    adotavam a viso de sistema funcional da linguagem, discutindo a funo

  • comunicativa da linguagem. Ainda temos a Escola de Copenhague, com destaque

    para figura de Hjelmslev, que adotava os pressupostos saussurianos, a partir dos

    quais desenvolveu a glossemtica, estudo da forma e da substncia, designados por

    ele de expresso e contedo. No estudo lingustico bakhtiniano, tudo possui um

    significado, ele compreende as caractersticas formais ou repetidas da linguagem

    como significados no formais, no repetveis e sempre reais, tudo tem uma

    inteno para o signo bakhtiniano, desde a escolha, o uso at a causa ao feito que

    aquilo pode causar. Bakhtin encontra sentido na vida.

    3 Final dos anos 20

    Na Rssia acontecia uma reviravolta, pois em 1924 morre Lnin e com ele

    vrios projetos de interao da implantao do Estado revolucionrio que buscava

    sada na cincia, nas artes, na cultura e principalmente uma reorganizao dos

    aparelhos ideolgicos do Estado. Com isso, assume Stalin e novamente a situao

    muda para uma poltica nacionalista e reformista, que, entre vrios projetos, tinha

    a inteno da criao do grande russo (lngua universal russa) guiada pelos

    postulados de Nicolai Y. Marr (18641934), silenciando muitos intelectuais da

    poca. Diante de tudo isso, era impossvel intelectuais do nvel dos que

    compunham a Crculo no se manifestarem. Por no corroborarem com esse

    pensamento, os membros do Crculo sofreram graves acusaes e pagaram um alto

    preo.

    Nessa poca, estudava-se e traduzia-se Freud, apesar de ele no ser bem

    aceito pelo pblico russo e o seu interesse recair primeiro sobre mdicos e

    psiclogos. Porm, Bakhtin apesar de no ser nem mdico nem psiclogo, mas por

    ser um intelectual que discutia os acontecimentos de forma geral, era um assduo

    estudioso do pensamento freudiano. Nesse perodo, o Crculo encontrava-se em

    Leningrado e Bahktin e alguns dos componentes do Crculo passavam por uma

    situao financeira difcil, porm estreitavam relaes com importantes

    intelectuais como Ivan Ivanovich Kanaev, que era bilogo, da a ligao entre

    discusses psicanalticas e lingusticas. Formava-se o segundo momento do

    Crculo.

  • Sem contar que Bakhtin e o Crculo, em sua primeira formao, eram

    embasados em dilogos Kantianos, o que levou Bakhtin, j na segunda formao do

    Crculo, em 1925, a ministrar o Curso sobre a crtica do juzo de Kant. Por isso,

    nesses primeiros tempos, os textos so pura filosofia com pitadas de psicologia

    que, misturadas, podem nos conduzir a estudos estticos, lingusticos, filosficos,

    literrios, enfim, a um complexo dilogo com o que acontecia na Rssia, no mundo

    e na vida de cada participante do Crculo.

    Essa uma poca de grande efervescncia intelectual do Crculo, em que

    Bakhtin escreve os textos O autor e o heri na atividade esttica (1922-1924) e O

    problema do contedo, do material e da forma na criao literria (1923-1924);

    saem textos assinados por Medvedev, tais como os artigos O mtodo formal ou o

    salierismo erudito (1924) e Sociologismo sem sociologia (1926); textos assinados

    por Kanaev, tais como os artigos Hereditariedade: uma introduo para no

    especialistas (1925) e O vitalismo contemporneo (1926); textos assinados por

    Voloshnov, tais como os artigos Para alm do social: sobre o freudismo (1925), O

    discurso na vida e o discurso na arte (1926) e o livro O freudismo: ensaio crtico

    (1927). Em entrevista a Duvakin, em 1973, Bakhtin revelou que, nessa poca,

    estudava na Universidade livros de lingustica e psicologia escritos por seus

    professores, principalmente de Alexandr Vassilievitch Vvendenski, profundo

    conhecedor do pensamento kantiano.

    Bakhtin e o Crculo, assim como outros grupos de intelectuais da poca

    formavam a Intelligentsia e estavam numa categoria que questionavam os

    acontecimentos da poca, procurando solues para determinados fatos polticos,

    cientficos e sociais. Por isso, por no se calar diante de todos esses acontecimentos

    e principalmente discorrer crticas nova doutrina estabelecida por Marr e acatada

    por Stalin, muitos dos membros do Crculo pagaram alto preo.

    Em 1928, Bakhtin preso, sob a acusao de participar de um culto de

    tradio religiosa ortodoxa no oficial, denominada de Ressurreio (curiosamente

    mesmo nome da ltima obra publicada de Tolsti), e, em 1930, foi deportado para

    Kustanai; Voloshnov se salva por contrair tuberculose, mas morre pouco tempo

    depois, em 1936; em 1938, Medvedev morre executado.

    Mas antes, esses trs integrantes do grupo j tinham produzidos trabalhos

    que representam umas das maiores contribuies da Rssia aos estudos da

  • linguagem no mundo todo. So os livros: O mtodo formal nos estudos literrios:

    introduo crtica a uma potica sociolgica, assinado por Medvedev e publicado

    em 1928; Marxismo e filosofia da linguagem, que aparece em sua primeira edio

    de 1929 assinado por Volochnov; e Problema da obra de Dostoivski, em 1929, de

    autoria de Bakhtin.

    Em Marxismo e filosofia da linguagem, encontramos um estudo minucioso

    sobre vrias correntes lingusticas, trazendo uma verdadeira revoluo, criticando

    as leituras mecanicistas, superficiais e contraditrias das correntes lingusticas e

    literrias predominantes na poca. Nesse livro, denominada de subjetivismo

    idealista a corrente dos adeptos do pensamento de Humboldt e Vossler, que tratam

    a lngua como uma manifestao da alma, afirmando que esta a viso do falante

    da realidade, constituindo assim, para eles uma lngua que a identidade de um

    povo e pode ser estudada coletivamente. Tambm Saussure com o estruturalismo,

    separando a fala individual da lngua coletiva, criticado por colocar como objeto

    de estudo a lngua idealizada, esttica e baseada no sistema, estudo este dominado

    pelos membros do Crculo de objetivismo abstrato.

    Como alternativa a essas duas orientaes do pensamento filosfico-

    lingustico da poca, Bakhtin/Volochnov apresentam a interao verbal como

    realidade fundamental da lngua, em resumo, assim:

    A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas lingusticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato psicofisiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui assim a realidade fundamental da lngua (BAKHTIN/VOLOCHNOV, [1929] 2009, p. 127).

    A obra de Bakhtin e do Crculo abrange uma rea vastssima, pois eles

    procuraram responder no s aos filsofos e pensadores que estudavam, mas a

    todos aqueles pensamentos que no s estavam acabados, mas tambm em pleno

    desenvolvimento, unindo vida, cultura e cincia e entendendo os diversos fatores

    lingusticos e literrios atravs de todas as formas possveis de dilogo.

    Concluso

  • Pesquisar a obra de Bakhtin e o Crculo requer que se recubra um contexto

    que parte de literatos, filsofos e cientistas do sculo XIX da Rssia e do mundo a

    pensamentos que estavam em pleno desenvolvimento no sculo XX.

    Contexto esse de grandes turbulncias e inquietaes politicas,

    intelectuais, religiosas e culturais que foram refletidas por todos os pensadores

    intelectualmente envolvidos naquela atmosfera que abarcava o mundo que era

    refletido nas artes de modo geral, principalmente aquelas como a literatura que

    ora servia de fuga e deleite de uma realidade difcil, ora servia de anlise do

    cotidiano e crtica social.

    Foi a partir de leituras como as de Tolsti e Dostoivski que Bakhtin

    desenvolveu uma parte do seu trabalho, embasado em teorias filosficas,

    mostrando a gama de conhecimento intelectual que possua.

    Todos os membros do Crculo de uma forma ou de outra eram ligados

    direta ou indiretamente a eventos ou associaes artsticas e acadmicas como

    teatro, revistas, universidades, concertos etc. Cada um possua um saber em reas

    muitas vezes distintas. Procuravam fazer uma espcie de troca de conhecimentos

    com constantes reunies e debates a base de muita leitura, cigarro e ch forte.

    Os primeiros trabalhos de Bakhtin e do Crculo foram alternativas terico-

    filosficas a Kant, ao marrismo, ao freudismo, ao formalismo russo, ao objetivismo

    abstrato (de Saussure) e ao subjetivismo idealista (de Humboldt e Vossler).

    Possuidor de largo conhecimento, Bakhtin procurava entender as teorias

    desenvolvidas at aquele momento, apontava suas falhas e procurava solues,

    sempre embasado no dia-a-dia das pessoas, na fala em seu ato concreto e vivo, no

    dilogo constante entre os sujeitos, estabelecendo sempre a relao entre o eu e o

    outro.

    Assim, considerando especificadamente a lingustica e a literatura,

    tentamos percorrer as influncias que sofreram Bakhtin e o Crculo, de modo a que

    se tenha uma viso mais responsiva do sentido que tinham seus escritos e suas

    ideias na poca em que foram produzidos.

    Enfim, sem dvida, Bakhtin e todos os membros do Crculo representam

    um conjunto de pensadores no que contriburam para o desenvolvimento

    intelectual do sculo XX, em especial em seus primeiros tempos, quando

    comearam a desenvolver, criticar e mostrar caminhos metodolgicos para

  • problemas da linguagem, esttica, literatura, filosofia, enfim, todas as reas

    relacionadas com a atividade humana, mostrando hoje o quando estavam frente

    do seu tempo e o quanto suas ideias continuam atualssimas.

    Referncias

    BAKHTIN, M. M. [1963]. Problemas da potica de Dostoivski. 5. ed. Traduo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHNOV, V. N.). [1929]. Marxismo e filosofia da linguagem. 13. ed. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. So Paulo: Hucitec, 2009. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. [1984]. Mikhail Bakhtin. Traduo J. Guinsburg. So Paulo: Perspectiva, 2008. EIKHENBAUM et al. Teoria da literatura: formalistas russos. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakthin. Traduo Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.

    Para citar este artigo

    SALES, Patrcia Gomes de Mello, ALMEIDA, Maria de Ftima. Bakhtin e o Crculo ante questes de teoria literria e teoria lingustica primeiros tempos. Miguilim Revista Eletrnica do Netlli, Crato, v. 1., n. 1., 2012, p. 04-17.

    Os autores

    Patrcia Gomes de Mello Sales graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri-URCA. Participa do Ncleo de Estudos de Teoria Lingustica e Literria-NETLLI, na linha de pesquisa O Contexto de Mikhail Bakhtin. Atua na rea de letras com nfase em lingustica. Atualmente professora de lnguas do Colgio Monteiro Lobato. Maria de Ftima Almeida possui graduao em Letras (1979), graduao em Cincias Jurdicas e Sociais (1983), Mestrado Em Letras (1988) pela Universidade Federal da Paraba e doutorado em Lingustica pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). professora adjunta IV do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas e participa do Programa de Lingustica / PROLING atuando na rea de Teoria Lingustica, Linguagem e Ensino, principalmente no campo da: linguagem, enunciao, interao e discurso. lder do Grupo de Estudos em Linguagem, Enunciao e Interao /GPLEI. Atualmente realiza um Estgio Ps Doutoral na Universidade de Braslia sob a orientao da Professora Doutora Stella Maris Bortoni-Ricardo. Participa do projeto PONTES desenvolvendo pesquisas na rea de formao docente na concepo dialgica da linguagem.