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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS UFPel INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS ICH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA DAA BACHARELADO EM ANTROPOLOGIA AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS: O GRUPO XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS VINICIUS SCHWOCHOW PAIVA Pelotas, 13 de março de 2013.

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Monografia sobre Ayahuasca no Sul do Rio Grande do Sul

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS – UFPel

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – ICH

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA – DAA

BACHARELADO EM ANTROPOLOGIA

AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS:

O GRUPO XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS

VINICIUS SCHWOCHOW PAIVA

Pelotas, 13 de março de 2013.

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VINICIUS SCHWOCHOW PAIVA

AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS:

O GRUPO XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Curso de Antropologia da Universidade Federal

de Pelotas como requisito parcial à obtenção do

título de Bacharel em Antropologia – Linha de

formação em Antropologia Social e Cultural.

Orientadora: Adriane Luisa Rodolpho

Pelotas, 13 de março de 2013.

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VINICIUS SCHWOCHOW PAIVA

AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS:

O GRUPO XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Curso de Antropologia da Universidade Federal

de Pelotas como requisito parcial à obtenção do

título de Bacharel em Antropologia – Linha de

formação em Antropologia Social e Cultural.

Banca Examinadora:

______________________________________

Adriane Luisa Rodolpho – orientadora (UFPel)

______________________________________

Francisco Luiz Pereira da Silva Neto (UFPel)

______________________________________

Rogério Réus Gonçalves da Rosa (UFPel)

Pelotas, 13 de março de 2013.

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“O mistério da consciência é a

escuridão. Os seres humanos exalam o

cheiro desse mistério, de coisas que são

inexplicáveis.”. – Don Juan Matus

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Maria Luiza; meu pai, Luiz Paulo e minha irmã, Alice.

À minha tia Maria de Lourdes e aos primos Daniel e Diogo.

Ao Jorge Bruxo, a Maria Cecília e a todos informantes deste trabalho.

Aos professores do curso de Antropologia da UFPel, em especial a minha

orientadora, Adriane Rodolpho.

Aos meus queridos amigos e colegas.

Agradeço, por fim, a todas minhas relações e experiências.

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RESUMO

O presente trabalho toma o estudo e investigação de um grupo neo-

ayahuasqueiro chamado, entre seus frequentadores, de Grupo Xamânico Caminho do

Arco-Íris, que utiliza o chá psicoativo comumente denominado de ayahuasca em seus

rituais xamânicos. Esta nova forma de utilização se apresenta como uma reinvenção das

religiões ayahuasqueiras brasileiras criadas no século XX, as quais se constituem,

igualmente, como uma reinvenção do uso milenar e considerado tradicional deste chá

entre as populações indígenas da região amazônica. Assim sendo, considero esta

investigação etnográfica com o Caminho do Arco-Íris como ambiente privilegiado para

a discussão e compreensão rede Nova Era na cidade de Pelotas, bem como para a

conformação e reflexão acerca da nova consciência religiosa, abordando o universo das

religiosidades contemporâneas.

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SUMÁRIO

RESUMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

CAPÍTULO I – A AYAHUASCA: SEUS USOS INDÍGENAS E INSTITUCIONAIS . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

O uso indígena da ayahuasca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

O uso institucional: as religiões brasileiras ayahuasqueiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

CAPÍTULO II – AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS: O GRUPO

XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

A trajetória de Jorge Bruxo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

O Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris: o ritual xamânico e a cosmologia . . . . . . 38

CONCLUSÃO – A “NOVA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA” EM REDE . . . . . . . . . . 53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

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INTRODUÇÃO

Para mi solo recorrer los caminos que tienen

corazón, cualquier camino que tenga corazón.

Por ahí yo recorro, y la única prueba que vale

es atravessar todo su largo. Y por ahí yo recorro

mirando, mirando, sin aliento.1

No final dos anos 1960, o antropólogo Carlos Castañeda lançava um livro que

intitulou de The Teachings of Don Juan2, onde conta seu encontro com um feiticeiro

bruxo conhecido como Don Juan Matus, um xamã índio Yaqui, de Sonora no México,

que expõe suas experiências com plantas alteradoras da consciência e suas concepções

da vida e do mundo. Este autor foi um dos que mais influenciaram o movimento hippie

e um macromovimento sociocultural (Carozzi, 1999) denominado genericamente como

Nova Era, que é também chamado de “nova consciência religiosa” (Soares, 1989),

“nebulosa místico-esotérica” (Champion, 2001) ou “fenômeno neo-esotérico”

(Magnani, 1999). A “nova consciência religiosa” se nutre de diferentes tradições

culturais e filosóficas, assim como em religiões ocidentais, orientais e em sistemas de

crenças indígenas, se caracterizando como um macromovimento vasto e complexo, que

abre a possibilidade para refletir acerca de diversos temas que se interconectam como,

por exemplo, a centralidade da experiência autônoma, a ideia de transformação pessoal

e da sociedade e a concepção monista da realidade, que se mostram avessos à ideia de

uma verdade única e objetiva, dando vazão à singularidade interna e subjetiva do

indivíduo. É um movimento sincrético e de errância pelas religiões, estabelecendo uma

relação com as religiões em geral, isto é, com a religiosidade; e se fundamentando no

“holismo” e na ideia de que “tudo é um”, defendendo “a unidade transcendental das

religiões, que não seriam nada mais que reflexos e fragmentos de uma única religião”

(Labate, 2004: 85).

É dentro deste universo que o presente trabalho se encaixa, por se tratar da

reinvenção de uma reinvenção: a re-ritualização do uso da ayahuasca na cidade de

Pelotas, cidade localizada no extremo sul do Brasil. A palavra ayahuasca pertence à

língua quíchua e é o termo mais utilizado para designar esta bebida psicoativa,

1 “Para mim só existe percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer caminho que tenha coração.

Por ali eu viajo, e o único desafio que vale a pena é percorrer toda sua extensão. E por ali viajo, olhando,

olhando, arquejante.”. Citação de Don Juan, no início do livro “A Erva do Diabo – Os Ensinamentos de

Don Juan”, de Carlos Castañeda. 2 Traduzido para o Brasil como “A Erva do Diabo – Os Ensinamentos de Don Juan”.

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preparada geralmente pela infusão de duas plantas: um cipó, cujo nome científico é

banisteriopsis caapi e a folhas do arbusto psychotria viridis; o termo “aya” significa

“alma, espírito” e “waska” quer dizer “cipó, corda”, traduzindo-a para a língua

portuguesa como cipó das almas (Labate; Araújo, 2002), por exemplo. Em, 2008, a

ayahuasca passou a ser reconhecida pelo IPHAN como patrimônio imaterial da cultura

brasileira. Com isso, a proteção aos saberes associados à ayahuasca passou a ser

discutido e a salvaguarda dos conhecimentos da “cultura ayahuasqueira” dentro deste

contexto plural suscitaram questões de autenticidade entre a grande gama de utilizações

do chá na dinâmica da cultura.

Seguindo a separação feita pela antropóloga Beatriz Labate, autora de A

Reinvenção da Ayahuasca nos Centros Urbanos (2004) e organizadora de O Uso Ritual

da Ayahuasca (2002), a qual molda a primeira reinvenção da ayahuasca quando esta se

emancipa do universo estritamente indígena com a criação das primeiras religiões

ayahuasqueiras – Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal – no último século em

solo brasileiro. A segunda reinvenção se dá no momento em que surgem os neo-

ayahuasqueiros, os quais se interligam a novas redes urbanas de consumo da ayahuasca

e se associam de formas diversas ao macromovimento da Nova Era. Neste contexto,

temos como objeto de estudo desta pesquisa os neo-ayahuasqueiros: “os novos

ayahuasqueiros, ao ocuparem este espaço entre, representam e explicitam a existência

de uma rede, um sistema orgânico de comunicação constante, (...) uma zona fronteiriça

perigosa, característica típica dos espaços de difícil classificação” (Labate, 2004: 95).

Portanto, mostra-se que o uso da ayahuasca no Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris

ocorre independente do contexto institucional, não obstante legal perante a legislação

brasileira, já que o uso da ayahuasca se dá de forma ritualizada e inserida dentro um

contexto onde a religiosidade é imanente. O termo neo-ayahuasqueiros é utilizado com

a intenção de diferenciar a utilização da ayahuasca dentro da religiosidade

contemporânea, pois esta substância psicoativa é de uso milenar pelos povos ameríndios

da floresta amazônica.

É nessa conjuntura, que se pretende abordar a “recriação da cosmologia

xamânica” e a re-ritualização da ayahuasca (Langdon, 1996; Langdon, 2002), bebida

psicoativa de origem indígena, utilizada em diferentes contextos culturais e sociais.

Dentro deste macromovimento chamado de Nova Era, que reúne concepções que

valoram positivamente a experiência pessoal, a intuição e a expansão da consciência,

tendo como objetivo maior a transformação da sociedade através da busca por novos

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paradigmas de conhecimento e desenvolvimento espiritual, intrínseco a valores

alternativos (Carvalho, 2006), que este trabalho aponta. Isto é, em um universo de

multiculturalidade com amplo horizonte de alternativas iniciáticas e críticas ao projeto

da modernidade ocidental.

Como dito anteriormente, o presente trabalho pretende abordar a re-ritualização

do uso da ayahuasca na cidade de Pelotas e discutir o universo das religiosidades

contemporâneas. Neste sentido, este estudo trata da trajetória e criação de um grupo

neo-ayahuasqueiro chamado, entre seus frequentadores, de Grupo Xamânico Caminho

do Arco-Íris, que tem se organizado através de uma pessoa em particular, conhecido

como Jorge Bruxo. A investigação desses novos usos da ayahuasca trás a tona uma

prática que ocorre independente do contexto institucional, através de ayahuasqueiros

independentes; não obstante, fazem parte do campo ayahuasqueiro brasileiro, se

interligando a rede de uso da ayahuasca e se assimilando, como diz Labate (2004: 95),

“as novas modalidades de consumo da ayahuasca, mantendo relações ambíguas com as

religiões ayahuasqueiras brasileiras”. Com isso, me detenho a contar a constituição do

Caminho do Arco-Íris e um pouco da trajetória de Jorge Bruxo, bem como expor a

composição do ritual xamânico3 e a cosmologia do grupo, realizando uma reflexão

acerca dos antigos e novos usos da ayahuasca, assim como da recriação da cosmologia

xamânica e do neo-xamanismo, pensando no modo como as substâncias psicoativas –

em especial a ayahuasca – são tratadas atualmente pela sociedade. Levando em

consideração o fato de que a ayahuasca se encontra, no caso do estudo com este grupo,

num espaço de redução jurídica, por não se vincular institucionalmente a nenhuma

religião, todavia se constituindo dentro de um contexto religioso e ritualizado, o que

legitima sua utilização.

* * *

Considero relevante contar um pouco da minha trajetória até aqui, desde minhas

motivações ao entrar, em 2008, no curso de Bacharelado em Antropologia da

Universidade Federal de Pelotas (UFPel), passando pelo meu percurso durante o curso e

chegando até o presente momento, quando estou prestes a finalizá-lo.

3 O “ritual xamânico” é o modo como é chamado o rito com ayahuasca do grupo Caminho do Arco-Íris.

Todas as categorias êmicas do grupo serão destacadas em itálico.

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Lembro-me que no verão de 2008, recém-formado no ensino médio com 17 anos

e sem saber exatamente qual curso de graduação iria escolher, tinha apenas a intuição de

que algum curso das ciências humanas era o que mais me agradaria. Durante aqueles

meses que antecediam o vestibular de inverno e ainda sem saber qual curso escolher,

chegaram as minhas mãos os livros de Carlos Castañeda4. Li seus primeiros quatro

livros nas aulas do curso pré-vestibular, são eles: A Erva do Diabo (1968), Uma

Estranha Realidade (1974), Viagem a Ixtlan (1972) e Porta Para o Infinito (1974b).

Fiquei abismado, estarrecido com aquele ‘outro mundo’ que ali se encontrava. O

trabalho de campo de Castañeda com Don Juan Matus, aquele velho índio que o

introduziu na cognição dos xamãs do México antigo me clareou os olhos, fez-me definir

que caminho iria seguir e qual curso de graduação escolher: a antropologia. Ali eu

soube que o estudo da antropologia, do xamanismo e das plantas de poder era o meu

caminho. Como falava Don Juan naqueles livros, estava claro para mim que aquele era

o meu caminho do coração. Eu o segui e aqui estou, com o desafio imenso de tentar

abstrair tantas informações, mediar, descrever e interpretar minhas experiências

etnográficas com neo-xamãs, neo-ayahuasqueiros, os quais se articulam ao universo da

Nova Era e comportam uma grande gama de expressões culturais e práticas sociais.

Durante o curso, me fascinei. Poderia fazer uma analogia com o livro de Aldous

Huxley, As Portas da Percepção (1954), de que a antropologia me abriu a percepção

para a diversidade humana e me deu novas perspectivas sobre tantos temas que tentar

expô-los aqui seria difícil e sairia do alvo desta introdução. Passando da metade do

curso, tive uma resenha do livro Drogas e Cultura5 (2008) publicada no número 19 da

revista Cadernos de Campo (2010) dos alunos de pós-graduação em Antropologia da

Universidade de São Paulo (USP). A partir daí, comecei a pensar nas possibilidades de

estudar a ayahuasca na cidade de Pelotas, embora nunca a tivesse experimentado antes.

Sabia apenas que havia grupos que a utilizavam, por conversas com minha professora e

atual orientadora, amigos e alunos dos cursos de Ciências Sociais e da História, grupos

estes os quais conheci posteriormente e que fazem parte do presente trabalho.

Para alcançar os objetivos esperados, durante todo processo de pesquisa

etnográfica, realizei a revisão bibliográfica sobre as temáticas da Nova Era e sobre

4 Este autor teve papel importante mais tarde pois, no dia que conheci o Bruxo, fiquei sabendo que foi

através dos livros de Castañeda que ele conheceu, nos anos 70, o xamanismo e o caminho do coração.

Desse modo, o livro se mostrou como uma “ponte” significativa entre diferentes gerações – a do Bruxo e

a minha –, conectando-nos. 5 LABATE, Beatriz. et. al. (Orgs). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008.

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abordagens qualitativas na compreensão do uso de psicoativos, em especial, a

ayahuasca. A pesquisa etnográfica – em sua descrição densa – parte de um ponto de

vista interpretativo, a partir da perspectiva antropológica de que a cultura é uma

linguagem, um sistema de comunicação, de códigos simbólicos compartilhados, que

formam diferentes categorias nucleantes de representações, as quais se intercomunicam,

formando uma rede de significados (Geertz, 1978). Segundo Langdon (1996), para

realizarmos uma abordagem eficaz do xamanismo, a abordagem da antropologia

simbólica é a mais adequada, por ser dinâmica no seu conceito de cultura e de rito,

tratando os fenômenos culturais – como o xamanismo – e suas representações dentro de

uma teia de relações, no caso do presente estudo, das relações mútuas entre o ritual e o

social.

O xamanismo é, assim, aqui percebido como um sistema sócio-cultural, que

implica em refletir sobre diversos campos da sociedade, tais como a política, a

medicina, o direito e a organização social, expressando questões centrais da cultura e da

sociedade. É um sistema simbólico e cosmológico, que se manifesta de diferentes

formas entre as diversas culturas, se manifestando como expressão cultural relevante na

organização e geração de grupos e atividades sociais. Além disso, “o xamanismo foi

considerado como a primeira forma de conhecimento empregada pelos povos primitivos

do mundo inteiro” (Labate; Araújo, 2002: 129). A definição do xamanismo engloba

algumas ideias, princípios e conceitos, como, por exemplo, a ideia de um universo de

múltiplos níveis, um principio de energia e unificação do universo, bem como de sua

transformação, onde o xamã é visto como mediador entre as relações dos diferentes

aspectos da realidade, os quais são alcançados através de experiências extáticas,

técnicas de êxtase e com o uso de substâncias psicoativas (Langdon, 1996).

O antropólogo José Guilherme Magnani (1999: 85) lembra-nos que, para os

movimentos de tipo Nova Era, a “antropologia, para dar um exemplo, é valorizada na

medida em que é tida como depositária de informações sobre os povos primitivos e seu

modo de vida considerado “comunitário”, em contato com a “mãe-terra”, praticando

ritos xamânicos”. Germán Zuluaga (2002: 136) corrobora, ao afirmar que “nos últimos

anos surgiu uma extensa moda new age e neo-xamanismo, cuja origem reside na busca

de novos paradigmas religiosos e médicos (...) (onde) ressaltam as experiências de dois

controvertidos antropólogos: Michael Harner e Carlos Castañeda”. Harner aborda um

Estado Xamânico de Consciência (EXC) e fala do xamanismo como uma grande

aventura mental e emocional, com a intenção de elucidá-lo para sua prática na cultura

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ocidental. O ritual xamânico organizado por Jorge Bruxo trás a tona a reflexão sobre o

que é xamanismo? Nas palavras dele – o xamanismo é uno, é com o Todo, com tudo.

A geração do Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris e a atividade mensal do

ritual xamânico elucidam um configuração moderna do xamanismo e, como bem

sugerem Isabel Rose e Jean Langdon (2010: 85), “o xamanismo frequentemente emerge

de contextos histórico-políticos específicos e que deve ser pensado como uma categoria

dialógica construída com base numa interação entre atores com origens, discursos e

interesses distintos”. Sendo um produto da modernidade, é difícil conceber o

xamanismo como uniforme, pois se conforma dentro de processos dinâmicos, sugerindo

o termo neo-xamanismo para melhor abrangê-lo. Rose e Langdon (op cit.: 87) afirmam

que “o movimento global heterogêneo do neo-xamanismo introduz no xamanismo

elementos não indígenas e vindos de diferentes lugares e contextos”. Outrossim, ao citar

o artigo de Paul Johnson Shamanism from Ecuador to Chicago (2003), Rose e Langdon

(op cit.: 88) dizem que

algumas características comuns desses movimentos seriam a promoção de

um xamanismo primordial como um fenômeno que não está vinculado a culturas ou

contextos específicos; a expressão dos valores do individualismo moderno; uma

orientação para objetivos psicológicos e terapêuticos individuais.

Mostra-se, desse modo, que o xamanismo deixa de ser um fenômeno

estritamente indígena e se transforma em um fenômeno global, principalmente através

dos movimentos de tipo Nova Era. Com isso, ao percebê-lo como uma categoria

dialógica, abre-se espaço para que seja reconhecido como uma forma de interface entre

as sociedades indígenas locais e as sociedades nacionais e globais, refletindo sobre a

fluidez dessas fronteiras nas interações entre todos os atores envolvidos (Rose;

Langdon, 2010). Magnani afirma, em Xamãs na cidade (2005: 221), “que o

qualificativo “xamânico” é muitas vezes mais evocativo do que realmente constitutivo

de uma prática clara e especificamente demarcada”, mostrando as diferenças nas

práticas do xamanismo indígena e do que chama de xamanismo urbano o autor elucida o

fato de que esta nova forma de xamanismo não se caracteriza como uma atualização,

mas como uma nova construção, onde os referenciais indígenas se entrelaçam a outras

vertentes. Lembro bem de ouvir a afirmação – Somos todos xamãs no primeiro ritual

xamânico que participei no Caminho do Arco-Íris, esta fala expressa alguns

pressupostos da Nova Era.

Essa ênfase na reflexividade da experiência pessoal e íntima de cada um faz

da prática xamânica uma das possibilidades à sua disposição para tal busca: nesse

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sentido, todos podem ser xamãs, todos têm o potencial para empreender a “viagem

xamânica” em busca de contatos com planos superiores. (Rose; Langdon, 2010:

223)

O individualismo é uma característica marcante das relações entre a

modernidade e a religião, a dispersão das crenças com a desregulamentação

institucional da religiosidade não supõe um desencantamento do mundo, um declínio

religioso, mas um processo de reconfiguração das crenças que a secularização provoca

(Hervieu-Léger, 2008). Neste contexto, ao tornar-se categoria do “Eu”, a pessoa como

ser psicológico e consciente de si, “se colocaram as questões da liberdade individual, da

consciência individual, do direito de comunicar-se diretamente com Deus, de ser um

sacerdote para si mesmo, de ter um Deus interior” (Mauss, 2003: 395), com isso, diz

Marcel Mauss, “a revolução das mentalidades se completou, temos cada um nosso ‘Eu’”

(idem.: 396). Ocorre, por sua vez, o que é chamado de bricolagem, que remete

construções individuais no cenário maleável e fluído da religião, a qual se encontra em

toda parte. A crença passa a ser uma formulação individual e encontra sua legitimação

invocando a autoridade da tradição. Cada pessoa passa a ter um caráter autônomo do

sujeito da ação e como “legislador de sua própria vida” (Hervieu-Léger, 2008: 33).

Portanto, a sociedade modernizada, racionalizada, laicizada cria uma condição para a

formação de novas formas de religiosidade.

É importante ressaltar que neste tema de pesquisa, no qual é utilizada uma

substância psicoativa como a ayahuasca, o método da observação participante entra em

xeque, já que a experiência de tomar o chá produz um efeito intenso na percepção,

transformando e alterando a consciência do antropólogo como pessoa e, por sua vez,

influenciando sua observação. Como afirma Labate (2004: 50-51), “não há mais

observação participante enquanto uma combinação de ‘observação’ e de ‘participação’:

há participação integral que afeta drasticamente a natureza da observação (que inclui a

‘sensibilidade’ e a ‘razão’)”. Contudo, a utilização desta substância psicoativa é central

na participação no ritual; estar presente e não ingerir o chá traria um problema de

aceitação e confiabilidade por parte dos outros participantes, por isso a importância de

se colocar na mesma posição de todos outros, “de ser afetado pelas mesmas forças que

incidem sobre os nativos” (Greganich, 2012: 26). Devido a isso, escolhi ingerir, como

afirma Bruxo, a bebida sagrada em todos rituais que participei até agora, mesmo

recebendo licença para não fazê-lo por parte de Bruxo (o que penso fazer na

continuidade da pesquisa); mostra-se aí, que não há uma obrigatoriedade de beber a

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ayahuasca para participar do ritual do Caminho do Arco-Íris, evidenciando uma maior

flexibilidade e diferença em relação à religião do Santo Daime, por exemplo, que não

permite tal ato.

Exposta esta problemática, considero importante à utilização de outros

instrumentos de pesquisa, além dos atos cognitivos de olhar, ouvir e escrever (Cardoso

de Oliveira, 2006), já que estes se encontram alterados no momento ritual. Entre estes

outros instrumentos, estão o recurso do gravador e os recursos fotográficos e fílmicos;

destes, apenas o último não foi utilizado durante os rituais que etnografei, não que tenha

gravado ou fotografado todos eles, isto foi conversado com Bruxo ao longo dos cinco

rituais do Caminho do Arco-Íris que participei até agora, tendo gravado e fotografado

somente um deles, o último ritual do espaço devocional realizado no bairro Arco-Íris,

em novembro de 2012, finalizando um ciclo naquele local. Vale comentar que em

fevereiro de 2013, participei do primeiro ritual em seu novo espaço, realizado em uma

tarde na mata de sua nova casa, na zona rural de Pelotas.

Deste modo, concluindo esta introdução, o primeiro capítulo é dedicado a expor

a história da ayahuasca. Passando pelo seu uso indígena, abordando a criação das

religiões ayahuasqueiras e chegando ao objeto de estudo desta pesquisa, os neo-

ayahuasqueiros. O segundo capítulo é destinado a expor a pesquisa etnográfica: com a

trajetória de Jorge Bruxo – tentando abordar a história da ayahuasca na cidade de

Pelotas –, a constituição do Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris, expondo a

estrutura do ritual xamânico e a cosmologia do grupo. Concluindo com uma reflexão

acerca dessas novas modalidades de uso da ayahuasca associadas à nova consciência

religiosa, discutindo a rede formada por essas novas modalidades de consumo, assim

como sobre como são tratadas as substâncias psicoativas na sociedade contemporânea.

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CAPÍTULO I – A AYAHUASCA: SEUS USOS INDÍGENAS E

INSTITUCIONAIS

O presente estudo enfoca o uso de um chá conhecido como ayahuasca dentro de

um contexto ritualístico controlado, mais especificamente, em uma cerimônia de um

grupo Nova Era chamado, entre seus frequentadores de Caminho do Arco-Íris, onde se

percebe claramente o interesse pelo xamanismo, além da influência de outras correntes

filosóficas e religiosas, caracterizando um amplo sincretismo religioso, ou melhor, um

xamanismo eclético, nas palavras de Bruxo.

Para esclarecer melhor a atividade psicoativa desta bebida milenar, explano, a

seguir, os aspectos botânicos e farmacológicos deste chá, obtido a partir da mistura de

duas plantas e largamente utilizada pelos grupos indígenas da região amazônica. Abaixo

uma citação, afirmando que:

O chá hoasca (ayahuasca) é a única preparação botânica, no que diz

respeito à atividade farmacológica, dependente de uma interação sinérgica

entre os alcalóides ativos existentes nas plantas. Um dos componentes, a

Banisteriopsis caapi, contém alcalóides de Beta-carbonila, que são potentes

inibidores MAO-A; o outro componente, as folhas da Psychotria viridis ou

espécies correlatas, contém um potente alucinógeno de ação rápida, a N, N-

dimetiltriptamina (DMT). A DMT não é ativa quando ingerida oralmente,

mas pode se apresentar oralmente ativa quando na presença do inibidor

periférico da MAO – e está interação é a base da ação alucinógena do chá

hoasca. (grifos meus) (Labate; Araújo, 2002: 624)

Como dito acima, o DMT é ativo oralmente quando entra em interação com os

alcalóides de Beta-carbonila – inibidores da MAO – contidos no cipó Banisteriopsis

caapi. Isto se dá porque esta substância é encontrada naturalmente na espécie humana,

ou seja, é originado dentro do organismo humano de forma endógena; além se ser

encontrado no homem, é detectado em outros mamíferos e em diversas plantas do reino

vegetal, entre estas, a Psychotria viridis.

Elucidada as questões botânicas e farmacológicas da ayahuasca, a seguir, me

voltarei para as perspectivas sociológicas, culturais e etnográficas acerca do uso deste

chá psicoativo. Com isso, dividirei a reflexão entre o uso tradicional entre os índios,

instituído no período pré-colombiano (Labate; Araújo, 2002) e datado, por meio de

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iconografias, pelo menos a cerca de quatro mil anos antes do presente; e a utilização da

ayahuasca entre as religiões ayahuasqueiras brasileiras, estabelecido há não muito

tempo, no início do século XX; para, posteriormente, no capítulo seguinte, expor minha

pesquisa etnográfica com o grupo neo-ayahuasqueiro Caminho do Arco-Íris.

O uso indígena da ayahuasca6

Começo, portanto, abordando o simbolismo associado à ayahuasca7 pelos grupos

indígenas da região amazônica, os quais a tem utilizado milenarmente para diversos

fins. Por conseguinte, mostra-se evidente a importância desta bebida psicoativa na

cultura destes povos, estando presente em suas teorias da criação do mundo e, por sua

vez, se mostrando essencial na mitologia e cosmologia dos povos ameríndios que a

utilizam.

Kaxinawá:

Entre os Kaxinawá, de língua Pano, o nome dado à ayahuasca é nixi pae e

significa “cipó da embriaguez”. Para eles, a natureza possui alma e uma ordem própria,

em que a cultura se mostra como uma das possibilidades dessa ordem maior. O conceito

nativo yuxin significa essa força vital que se encontra em todo e qualquer fenômeno

vivo; deste modo, o humano se localiza dentro do espectro maior da natureza, a qual é

permeada pelo espírito. Para os Kaxinawá, é a partir da ingestão do nixi pae que se

consegue perceber o yuxin, o espírito que habita a natureza e todos os seres vivos. Com

isso, o consumo do nixi pae possibilita a percepção de todos os seres em igualdade, pois

em todos é percebido o yuxin, o espírito. Além disso, o estado alterado de consciência

que o consumo do nixi pae provoca, é equiparado aos sonhos, por serem ambos parte da

realidade não ordinária do mundo. Dentro da sociedade Kaxinawá, toda atividade tem

alguma relação de interação com os yuxin, entre estas está à preparação para a morte, na

qual a ingestão do nixi pae é fundamental, por estar relacionada ao destino post mortem

do indivíduo; é quando ingerido o nixi pae que o Kaxinawá percebe a separação de seu

corpo e de seu espírito, e é somente pelo consumo do nixi pae que este consegue

6 Os 6 povos indígenas que exponho como exemplos do uso ‘tradicional’ da ayahuasca, são encontrados

no artigo de Pedro Luz chamado “O uso ameríndio do caapi”, que abre a primeira parte “A ayahuasca

entre os povos da floresta” no livro O Uso Ritual da Ayahuasca, organizado por Beatriz C. Labate e

Wladimyr Araújo, a qual pode ser considerada, ao menos no âmbito brasileiro, a obra que trata de forma

mais completa este tema. 7 “Luis Eduardo Luna arrola 42 termos diferentes ao cipó Banisteriopsis caapi em diversas regiões e

povos do Alto Amazonas, segundo diferentes autores. Um dos mais utilizados é ayahuasca.” (Goulart, S.

In: Labate; Araújo (Orgs.) 2002: 277).

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adquirir a força necessária para obter êxito no empreendimento de chegar à aldeia

celeste. Portanto, mostra-se central a relação da mitologia Kaxinawá com a utilização da

ayahuasca, assim como a importância que esta possui na cosmologia deste povo

ameríndio.

Yaminawá:

Entre os Yaminawá, de língua Pano, a ayahuasca é denominada de shori, a qual

está totalmente associada à prática xamânica. Para eles, tudo que existe tem yoshi, ou

seja, espírito e o contato com os yoshi são realizados através dos sonhos e do consumo

do shori; todavia, por meio dos sonhos não se há controle neste contato, já a beberagem

do shori possibilita um acesso controlado e este mundo espiritual, uma vez que os

procedimentos rituais e os cantos permitem um maior controle da experiência. Quando

sob efeito do shori, os indivíduos acreditam poder intervir no mundo espiritual,

influenciando no mundo cotidiano, ou melhor, no mundo aparente. Durante a

experiência e suas visões, os Yaminawá revivem seus mitos e validam sua cosmologia.

É através do canto dos espíritos, possibilitado pela ingestão do shori, que ocorre a cura;

este canto acontece através do xamã e é pelo canto xamânico que o próprio dirige e

sustenta suas visões por determinados caminhos a procura de seus objetivos. Evidencia-

se a associação do consumo da bebida psicoativa como elo de comunicação com os

espíritos, assegurando o equilíbrio na vida cotidiana dos Yaminawá.

Ashaninka:

Entre os Ashaninka, de língua Aruák, a ayahuasca é chamada de kamarampi,

palavra que provém do verbo “kamaramk” e significa vomitar; também é chamada de

hananeroca, palavra que vem de “Hananerite” e denota “rio celestial”. Demonstra-se,

desse modo, que, etimologicamente, a palavra pela qual é chamada a ayahuasca liga-se

ao pós-morte, pois “rio celestial”, para os Ashaninka, é para onde vão as almas dos

mortos. Outrossim, o uso do kamarampi é considerado como uma forma de resistência a

missionarização, se caracterizando como um aspecto de distinção étnica do grupo e se

constituindo como um elemento fundamental em sua cosmologia e mitologia. Para

exemplificar melhor, no mito de destruição do mundo, aqueles que bebem o kamarampi

são avisados de um grande dilúvio que virá e, a partir deste aviso, constroem uma balsa;

depois de construída, bebem novamente o kamarampi e, assim como antes, são

advertidos que a chuva começaria no dia seguinte; muitos não acreditam e somente

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aqueles que beberam é que sobrevivem. Mostra-se aí a relação entre beber kamarampi e

a continuidade da vida. Há também outros mitos que relacionam a beberagem com a

imortalidade, bem como sua associação com virtudes religiosas e morais. São

interessantes outros fatos, como o de colocarem uma tigela com kamarampi na

sepultura dos homens que acabaram de falecer, bem como a crença nativa de que, ao

beber o kamarampi, abre-se a possibilidade de enxergar os espíritos na sua forma real,

que, para os Ashaninka, é a forma humana, somente aqueles que o bebem é que

conseguem vê-los assim, na sua forma verdadeira.

Piro:

Para os Piro, de língua Aruák, que também chamam a ayahuasca de kamarampi,

a beberagem revela o mundo em sua expressão real, isto é, na maneira como ele é

vivido pelos “seres poderosos”. Ao ingerir o kamarampi, entra-se no mundo destes

seres e, ao entrar em contato com a “mãe” kamarampi, o indivíduo torna-se como um

deles e consegue perceber a forma ilusória do mundo, o qual é criado de forma

intencional por estes seres, através de canções. Aquele que beber o kamarampi alega

seu uso para prevenir alguma morte iminente ou, quando se é xamã, para acessar o

conhecimento que o possibilite precaver futuras mortes. Evidencia-se que, entre os Piro,

beber o kamarampi assegura a conservação e a continuidade da vida, assim como o

poder de apreender a realidade para além das aparências, em sua forma real.

Airo-pai:

Entre os Airo-pai, de língua Tukano, a ayahuasca é chamada de yagé e possui

importância fundamental para a comunicação do xamã com os espíritos, pois, se não

ingerido, o canto do xamã se torna ineficaz. É pelo canto do xamã que se alcança a

eficácia na comunicação com os seres do “outro mundo”. É interessante o fato de que,

apesar de concordarem nos aspectos gerais de sua cosmologia, cada xamã é capaz de

uma interpretação idiossincrática sobre esta, pelo efeito de suas visões particulares

através do consumo do yagé. Ou seja, estas visões se encontram dentro de um conjunto

cultural comum, amplo e compartilhado por todos, entretanto fluída por ser resultado de

experiências pessoais provocadas pela ingestão do chá psicoativo. O objetivo dos rituais

com o yagé é estabelecer contato com os seres do “outro mundo”, para, com isso,

alcançar conhecimento e proteção, bem como para conseguir êxito na produção de

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alimentos, já que são estes seres que controlam o tempo, essencial no controle do

desenvolvimento e colheita das plantas.

Siona:

Para os Siona, grupo indígena amazônico do rio Putumayo, situado ao sul da

Colômbia e analisado por Langdon (2002), o nome utilizado para designar a ayahuasca

é yagé ou iko; como bem afirma Langdon “tomar Banisteriopsis ritualmente faz parte

do que podemos chamar de recriação da cosmologia xamânica (...), que representa um

saber englobando toda cosmologia e práticas rituais compartilhadas pelo grupo”

(Labate; Araújo, 2002: 70-71). Deste modo, nota-se que a ayahuasca se constitui como a

principal substância para a realização das atividades xamânicas dos Siona, as quais não

se limitam ao xamã, mas englobam a sociedade como um todo. Não obstante, o xamã

possui importância principal nos ritos com a ayahuasca, pois é ele que, a partir dos seus

cantos, designa quais aspectos do universo quer que ou participantes “vejam”, ou seja,

ele é o guia e há um esforço para que todos o acompanhem durante o processo ritual.

Afirma a autora:

Os Siona dizem que o xamã “dá as dicas com seus cânticos, e a

gente vai vendo” o “outro lado”: suas cenas, sua beleza, suas cores, seus

cheiros, seus ritmos e seus sons se tornam realidade. Uma vez no “outro

lado”, o povo do yagé aparece e serve como guia, as entidades se apresentam

e a pessoa vê o que o xamã está tentando mostrar. (Labate; Araújo, 2002: 72)

Evidencia-se como a realidade é dividida entre o lado da realidade visível e o

lado invisível, isto é, “este lado” e o “outro lado”, sendo o visível influenciado pelo

invisível. Estas forças que influenciam na vida cotidiana são responsáveis por vários

fatores desta como, por exemplo, o clima e o desenvolvimento das plantas (a escassez

de alimentos), bem como a causa de doenças, de catástrofes e de conflitos no grupo. É o

xamã que media essas relações com os seres do “outro mundo”, competindo a ele

negociar com as forças invisíveis; e isto se dá através da utilização do yagé, sendo ele

quem proporciona a habilidade do xamã para esta tarefa por meio de seu uso frequente.

* * *

Analisando e tentando comparar as características comuns ligadas à utilização da

ayahuasca entre os grupos indígenas expostos acima, assim como com o intuito de

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trazer a tona outros traços constituintes da experiência com esta bebida psicoativa, nota-

se muitas semelhanças associadas a esta por tais grupos. Isto se dá, provavelmente, por

compartilharem de um modo de vida e um meio em comum: na região amazônica.

Como se pode perceber, seu uso é fortemente ligado ao xamanismo, onde o xamã se

localiza em uma posição de especialista no preparo e consumo, bem como sendo ele o

responsável pela administração e pelo andamento correto do ritual, mediando a relação

entre o mundo invisível e espiritual e o mundo ordinário da vida cotidiana, o visível. É o

xamã que orienta as visões através de seus cânticos – os quais são acessados pela

comunicação com os espíritos –, assim como ensina os iniciantes acerca das

características das plantas – no caso, o cipó Banisteriopsis caapi e o arbusto Psychotria

viridis e correlatos. Não obstante a influência do xamã e do processo ritual, a

experiência transcendental é individual, pois cada indivíduo possui uma trajetória única,

isto é, a experiência enteógena8 se interpenetra ao universo simbólico de cada um,

apesar de todos compartilharem de um complexo cultural comum. Ou seja, o aspecto

subjetivo em cada corpo, em cada organismo, em cada sujeito é único e relevante,

todavia, nestes grupos ameríndios, o xamã é quem possui e domina os códigos e meios

para interpretar e direcionar as experiências e visões de maneira inteligível.

Do mesmo modo, nota-se que, em todos grupos expostos neste trabalho, a

utilização da ayahuasca se encontra conectada ao destino pós-morte (post mortem), já

que a experiência está ligada e é relacionada a imortalidade – não é por acaso que sua

tradução para o português pode ser “cipó dos mortos” –, a qual é vivenciada durante a

experiência extática provocado pela ingestão do chá. Com isso, se coloca a questão da

separação da alma do corpo, já que a experiência “é entendida como uma

transcendência da condição humana” (Labate; Araújo, 2002: 61). É durante o transe que

ocorre a separação do espírito (alma) e do corpo, possibilitando a apreensão do mundo

8 Ouvi o termo “enteógeno” no segundo ritual que participei, quando Daniel – um dos participantes–,

dissociando-o do termo “alucinógeno” (o qual é considerado um conceito do senso comum), o explicou,

dizendo se consistir em uma experiência extremamente interna, sendo uma nomenclatura proposta por

um etnobotânico inglês chamado Gordon Wasson, que remeteria a “entheos”, significando “Deus dentro”.

Já conhecia este termo naquele momento e o explico melhor citando uma nota da página 407 do artigo

chamado “Santo Daime: rito da ordem”, de Fernando de La Rocque Couto, encontrado no livro O Uso

Ritual da Ayahuasca (Labate; Araújo (Orgs.) 2002): “Em grego, “entheos” significa literalmente “Deus

dentro” e era a palavra utilizada para descrever o estado em que a pessoa se encontra quando está

inspirada e possuída por um Deus, que entrou em seu corpo. Era aplicada a transes, assim como àqueles

ritos religiosos em que os estados místicos eram experienciados através da ingestão de substâncias

transubstanciais com a deidade. Combinada com a raiz “gen”, que denota a ação de tornar-se, essa palavra

compõe o termo que se propõe: “enteógeno”. Trecho traduzido da obra El camino a Eleusis, de Wasson,

Hoffman e Ruck (1980, pp. 231-235).”. Comprova-se nesta passagem que a explicação de Daniel estava

correta.

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para além do corpo, isto é, como consciência antes dos sentidos corporais. Neste “outro

mundo”,

todas as coisas são iguais, são espíritos e espíritos humanos, ou

melhor, têm aspecto humano mas são mais que homens, são seres poderosos,

transcenderam a temporalidade vivendo na eternidade, num espaço próprio

que, no entanto, abarca todos os espaços, uma vez que de lá tudo se vê e lá

tudo se sabe. (Labate; Araújo, 2002: 63)

Este fator revela o caráter de revelação das coisas para além das aparências –

considerado o mundo visível – expondo a verdade através deste contato e suas visões

proporcionadas pelo estado alterado de consciência. Igualmente, é atribuída a ayahuasca

um aspecto de planta-professora, retendo uma pedagogia interna, pois é ela que mostra

como se deve viver corretamente, tanto na questão pessoal, como em relação a

sociedade e na relação com o mundo sobrenatural. É também a partir da ingestão do chá

que provém os conhecimentos terapêuticos, auxiliando no diagnóstico de doenças e na

cura xamânica.

Enfim, esta reflexão aqui apresentada mostra a grande importância atribuída a

bebida psicoativa preparada pela infusão do cipó Banisteriopsis caapi e as folhas do

arbusto Psychotria viridis, como este chá se associa a cosmologia e mitologia destes

povos amazônicos que a utilizam. Sendo valorizada como uma forma de coesão social e

reprodução cultural, contribuindo para a harmonia geral e se constituindo como uma

forma de identidade social e cultural, assim como se estabelecendo enquanto uma

maneira de resistência aos processos de colonização e missionarização. A experiência

enteógena, mística e extática produzida pela ingestão da ayahuasca se mostra

indispensável na continuidade e afirmação das crenças das populações ameríndias que a

utilizam, marcando fortemente estes grupos e os indivíduos que delas fazem parte e,

portanto, se constituindo como uma experiência cultural e subjetiva.

O uso institucional: as religiões brasileiras ayahuasqueiras

Trato aqui da reinvenção dos usos indígenas da ayahuasca pelas religiões

brasileiras ayahuasqueiras: o Santo Daime, a Barquinha e a União do vegetal, realizando

um conciso histórico dessas religiões, as quais possuem um caráter único, por ser

unicamente no Brasil onde se desenvolveram tais religiões por populações não-

indígenas. Estas religiões são marcadas pela reelaboração das tradições indígenas e

influenciadas pelo cristianismo; esta formulação se dá pelo contato com o

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curandeirismo amazônico e o catolicismo popular, assim como pela influência da

tradição afro-brasileira e o espiritismo kardecista, além dos elementos indígenas e da

aproximação com o xamanismo.

Santo Daime:

A primeira religião brasileira que utilizou a ayahuasca como sacramento foi o

Santo Daime, definido como “um movimento eclético de caráter espiritualista”

(Groisman, 1999: 28) e fortemente relacionado com a floresta amazônica, com

influências do vegetalismo ayahuasqueiro e do curandeirismo amazônico. Este culto foi

organizado, no início da década de 1930, por Raimundo Irineu Serra, em Rio

Branco/AC. A partir daí, a bebida passa a ser chamada do mesmo nome da religião ou

apenas de “daime”, numa acepção as invocações realizadas pelos seus frequentadores ao

“espírito” do chá, os quais fazem pedidos afirmando “dai-me luz”, “dai-me força”, “dai-

me amor”, etc. Raimundo Irineu Serra nasceu no estado do Maranhão em 1892 e se

mudou em 1912 – com vinte anos de idade – para o estado do Acre, recrutado por

patrões amazônicos para trabalhar como seringueiro. Ficou conhecido como Mestre

Irineu quando, em conjunto com seus dois irmãos, fundou o culto daimista.

Conta-se que o Mestre Irineu teve seu primeiro contato com a ayahuasca com

ayahuasqueiros peruanos, quando estava na floresta. Nesta primeira experiência ouviu

uma voz lhe ordenando que fosse sozinho para a mata durante oito dias e que ficasse

apenas bebendo ayahuasca e comendo macaxeira; ele o fez e, nestes dias, teve uma

miração9, onde entrou em contato com uma mulher, idosa e muito bela, de nome

“Clara”10

, que se encontrava “sentada dentro da lua, perto dele. Era a Rainha da Floresta

ou a Virgem da Conceição. Esta Deusa Universal lhe declarou: “o que você está vendo

ninguém jamais viu, só tu”. Disse também que vinha lhe “entregar seus ensinos”, pois

ele tinha uma missão a cumprir. E lhe deu o título de Chefe Império Juramidam.”11

(Labate, 2004: 69).

Em sua origem, o Santo Daime era composto, praticamente, por ex-seringueiros,

os quais haviam deixado esta atividade com o declínio da exploração da borracha.

9 Visão provocada pelo consumo do chá.

10Este encontro de Mestre Irineu com esta Senhora é de extrema importância, pois remete a uma filiação

mítica – o elo – com o plano espiritual, sendo ela identificada pelos adeptos do Santo Daime como Nossa

Senhora da Conceição. 11

Segundo La Rocque Couto, “Raimundo Irineu Serra compõe com a “Rainha da Floresta” a paternidade

simbólico-espiritual dessa doutrina, sendo identificado como Jesus Cristo (Juramidã)” (La Rocque Couto,

F. In: Labate; Araújo (Orgs.) 2002: 388).

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Passaram a morar na região periférica da cidade de Rio Branco, em que as relações de

compadrio e mutirão, bem como as festividades aos santos cristãos se tornaram parte do

contexto de suas vidas cotidianas. É daí que provêm as influências do catolicismo

popular na doutrina religiosa desenvolvida pelo Mestre Irineu, juntamente com

instruções recebidas por ele durante suas experiências com a bebida. Os rituais –

chamados de “trabalhos” – consistem na entoação dos hinários12

e no bailado13

; dessa

forma, “o culto do Santo Daime recupera o significado sagrado da festa, da dança e do

canto. A ausência da dança, da música, da festa, é vista, aliás, como um empecilho para

a comunicação com a realidade sagrada” (Labate; Araújo, 2002: 291), características

estas oriundas do catolicismo popular.

O culto do Santo Daime serve de identificação para dois grupos: o Alto Santo –

grupo primordial fundado por Mestre Irineu – e o CEFLURIS14

, fundado em 1974 por

Sebastião Mota de Melo (conhecido como Padrinho Sebastião), o qual conquistou

importante posição e recebeu permissão de Mestre Irineu para produzir o daime

(ayahuasca) de forma independente em sua própria comunidade, chamada de Colônia

Cinco Mil. Foi somente após o falecimento de Mestre Irineu, quando ocorreram

conflitos de sucessão e herança espiritual, que o CEFLURIS foi fundado; em 1983 a

comunidade se mudou para um território, cedido pelo INCRA15

, na beira do Igarapé

Mapiá, município de Pauini (Amazonas), onde foi fundada a comunidade do Céu do

Mapiá, sendo, até os dias de hoje, a sede e o “centro social e simbólico” (Labate, 2004:

71) do CEFLURIS no Brasil, recebendo pessoas de várias partes do país que anseiam

por um desenvolvimento espiritual e sendo tratada, segundo Groisman (1999: 27),

“como uma autêntica peregrinação”. Hoje o CEFLURIS – que tem como presidente

Alfredo Mota (Padrinho Alfredo), filho de Padrinho Sebastião (falecido em 1990) –

rompeu “as fronteiras regionais e internacionais, com a instalação de filiais no sul do

país e no exterior” (Labate; Araújo, 2002: 386).

O Santo Daime, apesar da divisão em dois grupos e da fragmentação pelo país e

no mundo, possui um núcleo ritual comum. Não obstante, o Alto Santo e o CEFLURIS

divergem em alguns aspectos: a possessão, a expansão da doutrina pelo mundo e a

utilização ritual da Santa Maria (Cannabis) – características do segundo grupo – não são

12

Quando os adeptos cantam coletivamente os hinos, os quais se constituem como expressão do contato

com o sagrado, representando revelações divinas manifestadas em forma musical. 13

Que consiste na execução de uma coreografia, em que se dão passos laterais, sem sair do lugar: “dois

pra lá, dois pra cá”, entre outros. 14

Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. 15

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

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aceitas pelo primeiro. No entanto, convergem nos elementos da doutrina e do rito como,

por exemplo: a reencarnação e a evolução espiritual, a noção de que fazem parte do

Exército de Juramidã (representando um batalhão), utilizando fardas e enfatizando uma

postura militar, em que é destacada a ordem e a disciplina. O tempo do rito pode variar

de quatro a oito horas, de acordo com o hinário escolhido, que é cantado durante todo

período; a disciplina se evidencia na obrigação, entre os fardados, de permanecer

bailando e cantando de forma ativa durante todo ritual, esta postura compõe a

“corrente”, a qual envolve uma “força” que atinge a todos participantes.

Evidencia-se que, embora as divergências, existem muitas semelhanças entre

estes dois grupos no que condiz a estrutura mitológica e ritual, caracterizando o Santo

Daime “como instância de cura espiritual e como uma significativa manifestação (ainda

pouco conhecida) de religiosidade popular de nosso país” (Labate; Araújo, 2002: 386),

composta por uma série de componentes simbólicos que fundamentam a utilização de

um chá psicoativo como a ayahuasca.

Barquinha:

A Barquinha foi fundada, em 1945, por Daniel Pereira de Mattos e pode ser

considerada a religião ayahuasqueira mais eclética, influenciada pelas preces marcadas

pelo catolicismo popular, pelas mirações relacionadas ao xamanismo indígena e pela

incorporação dos cultos africanos, se caracterizando, seguramente, como a que possui

maior influência desta última tradição, pela aproximação com a umbanda.

Daniel Pereira de Mattos ou Frei Daniel chegou à região acreana no início do

século XX e, décadas depois, encontrou com o Mestre Irineu com o intuito de se curar

de seus vícios, principalmente o do alcoolismo, sendo reconhecido como um boêmio na

cidade de Rio Branco/AC. Em uma de suas bebedeiras, diz-se que recebeu uma

mensagem de dois anjos que desceram do céu com um livro azul para lhe entregar; o

mesmo acontecimento se deu novamente, desta vez durante uma miração, quando esses

anjos lhe deram este livro, contendo uma missão para ele realizar. A partir daí, parou de

beber e, com a ingestão da ayahuasca, começou a receber salmos (hinos), os quais se

enumeram mais de duzentos, até seu falecimento, no ano de 1958. Em seu início,

recebia a ayahuasca (daime) de Mestre Irineu e, posteriormente, sob incentivo do

mesmo a seguir sua própria missão, começou a produzir o seu próprio chá.

A trajetória de vida de Frei Daniel – que foi colocado, ainda criança, em uma

escola de aprendizes de marinheiros e foi para o Acre a serviço da Marinha – influência

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a cosmologia deste culto, marcada pela referência a seres aquáticos, entre os quais se

encontram sereias, golfinhos e polvos, que se constituem como entidades espirituais de

caráter menos elevado, com menor grau de luz; estas entidades do mar fazem parte de

um conjunto de “três planos cosmológicos: o astral, a terra e o mar. O plano astral é

considerado o mais elevado, povoado por entidades com maior grau de luz, tais como

São Francisco das Chagas, São Sebastião e São José” (Labate, 2004: 79). No plano

terrestre, com entidades com menor grau de luz, se encontram os pretos-velhos, os

caboclos e os índios, revelando aí a aproximação com os elementos umbandistas e

indígenas.

A Barca, para seus integrantes, possui dois significados: primeiro, significa a

missão deixada por Frei Daniel e, segundo, expressa a viagem de suas vidas, de cada

um, dentro da grande viagem. Os rituais, realizados dentro de uma Igreja – a qual é

percebida, do mesmo modo, como uma embarcação –, são marcados pela ingestão do

daime, o qual é apreendido como a luz, esta associada ao conhecimento; o daime é

igualmente representado como “a renovação, a revitalização e cura. O homem ao

“navegar” com ele nasce novamente e com isso se reintegra” (Labate; Araújo, 2002:

544).

Atualmente, a Barquinha conta com cerca de quinhentos adeptos, os quais se

concentram, em sua maioria, em alguns grupos na cidade de Rio Branco, assim como se

fazem presentes no Estado de Rondônia e no Rio de Janeiro, permanecendo uma

doutrina quase que restrita ao norte do país e pouco conhecida no Brasil.

União do Vegetal (UDV):

O baiano José Gabriel da Costa ou Mestre Gabriel, nascido em 1922, integrou,

durante a Segunda Guerra Mundial, o “exército da borracha”, quando saiu da Bahia e

foi para Rondônia trabalhar como seringueiro. Foi num seringal, próximo à Bolívia, que

teve seu primeiro contato com o vegetal – como é chamada a ayahuasca nesta religião –,

a partir do contato com outros seringueiros da região amazônica. A União do Vegetal

(UDV) foi fundada, ou melhor, recriada – como aparece no mito fundante da doutrina –,

em 1961, por Mestre Gabriel, que passou os três anos anteriores, desde seu primeiro

contato com a ayahuasca, em 1959, examinando o vegetal junto de sua família no

seringal. Isto se deu como “um processo de recordação de sua missão de (re)criar a

União do Vegetal” na Terra (Labate; Araújo, 2002: 561), se constituindo como “uma

obra milenar, que tem no rei Salomão o seu criador (...), a União do Vegetal não teve

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uma história de continuidade temporal no planeta, permanecendo desconhecida por

muitos séculos” (ibid.), por isso que se apresenta como uma recriação. Mestre Gabriel,

algum tempo depois de fundar a UDV, começou o processo de expansão na cidade de

Porto Velho (RO), dando continuidade ao consumo do vegetal e estruturando o corpo

doutrinário do culto, até vir a falecer no ano de 1971.

A União do Vegetal (UDV) é o grupo mais sóbrio entre os três,

possuindo, em relação àqueles, um ambiente despojado de signos religiosos

populares (não há por exemplo uma vela ou imagem de santo; os uniformes

são austeros). Mais do que devoção, hinos ou preces, o trabalho está voltado

para a concentração mental e uma evolução espiritual (Luna, 1995). A UDV

possui uma forte relação com o espiritismo kardecista, através de noções

como evolução espiritual, reencarnação e cientificação (estado de perfeição

total que o espírito alcança). A influência abertamente cristã, em relação aos

outros grupos, parece menos evidente, porém Jesus Cristo e a Virgem nossa

Senhora possuem grande peso na doutrina. Para Luna (1995), a UDV possui

uma sensibilidade protestante luterana. Nas sessões da UDV, somente

algumas pessoas entoam as chamadas (cânticos que chamam as forças da

natureza) deixadas pelo Mestre Gabriel. Além destas, a cosmologia do grupo

é composta por uma série de histórias (espécie de parábolas) que foram

transmitidas pelo fundador. Histórias e chamadas incluem figuras de

universos religiosos distintos, como a Princesa Samaúma, Iemanjá, Salomão

(autor de toda a ciência), Caiano (o primeiro hoasqueiro) e Tiuaco, entre

outros (Labate, 2004: 82-83).

Em 1982, a UDV mudou sua sede para Brasília, procurando manter uma unidade

administrativa e doutrinária, organizando-se de forma hierárquica (discípulos, corpo

instrutivo, corpo do conselho e quadro de mestres) e secreta. Mantendo um

Departamento de Memória e Documentação (onde registra suas origens e a história do

Mestre Gabriel), bem como um Departamento Médico-Científico, desenvolvendo

pesquisas (biopsicofarmacológicas) – que se preocupam com a saúde de seus associados

– com instituições científicas.

Seus rituais (sessões) duram cerca de quatro horas e são realizadas duas vezes ao

mês, onde ocorrem meditações, músicas, leitura de documentos, conversações

ritualizadas etc. Além da forte influência do espiritismo kardecista – não trata com

incorporações ou passes –, conta com elementos da cultura africana e indígena, todavia

prezando por preservar sua origem cabocla, evidenciando aí seu caráter eclético. Hoje

em dia, conta com mais de sete mil associados em todas as regiões do país e em suas

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principais cidades, assim como fora dele: com núcleos nos EUA, na Europa e no Japão

(Labate, 2004). Por utilizar uma linguagem arquetípica, conta com discípulos de

diferentes classes e setores sociais, expressando uma grande diversidade cultural e se

estabelecendo como a “religião do sentir” (Labate; Araújo, 2002: 567).

* * *

Concluo aqui esta concisa reflexão acerca do uso tradicional da ayahuasca entre

alguns povos indígenas da floresta amazônica e sua primeira ressignificação e

reinvenção, com a criação das religiões ayahuasqueiras. Estas que saíram do contexto

indígena, se ampliando para as cidades – inicialmente, no norte do Brasil e, hoje em dia,

por todo país, se expandindo para fora dele. Caracterizando, dessa forma, um novo tipo

de consumo da ayahuasca, assim como uma nova forma de religiosidade, a qual possui

uma matriz comum, não obstante com versões bem distintas pelas diferentes

apropriações que resultaram das cisões com os grupos originas. Abordarei, no capítulo

seguinte, uma nova reinvenção, que parte, desta vez, de uma nova abordagem – a

reinvenção de uma reinvenção – acerca do consumo da ayahuasca, associada ao

movimento Nova Era. É na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul/Brasil, que almejo

discutir esta re-ritualização, através de uma pesquisa etnográfica realizada com um

grupo neo-ayahuasqueiro, objeto de estudo do presente trabalho, chamado, entre os seus

frequentadores, de Caminho do Arco-Íris. Com isso, pretendo debater o tema das

religiosidades contemporâneas e do surgimento de uma nova consciência religiosa.

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CAPÍTULO II – AYAHUASCA ENTRE NEO-AYAHUASQUEIROS: O

GRUPO XAMÂNICO CAMINHO DO ARCO-ÍRIS

No começo deste capítulo, será descrito meu primeiro contato e experiência

pessoal com a ayahuasca com o grupo neo-ayahuasqueiro Instituto Espiritual Xamânico

Cascata de Luz, o qual não é objeto de estudo deste trabalho, mas merece destaque

como componente da rede ayahuasqueira da cidade de Pelotas. Na segunda e maior

parte, será abordada a constituição do grupo neo-ayahuasqueiro Caminho do Arco-Íris,

este sim objeto de estudo do presente trabalho.

Foi no ambiente universitário da UFPel que consegui me informar sobre os

grupos que utilizam a ayahuasca na cidade de Pelotas. Em meados do ano de 2010,

quando cursava a disciplina de Antropologia da Religião com a professora, que hoje me

orienta, Drª Adriane Luisa Rodolpho, fiquei sabendo da existência de uma vertente do

Santo Daime na cidade. No ano seguinte, a partir do contato com alunos do Instituto de

Ciências Humanas, soube que havia outros dois grupos. Ou melhor, a informação não

era acerca dos grupos, mas de pessoas que tinham acesso à ayahuasca e organizavam

rituais com características mais voltadas ao xamanismo. A vontade de conhecer de

alguma forma o xamanismo e ter minha primeira experiência com a ayahuasca fez com

que, em 2012, eu entrasse em contato com estes grupos; tendo como objetivo de – se

tudo percorresse bem em relação a minha experiência pessoal com a ayahuasca e em

relação aos grupos e seus organizadores – aprofundar estes temas e realizar uma

pesquisa com eles.

Em maio de 2012, através da indicação da amiga Fram Amaral, entrei em

contato, via facebook, com um dos grupos: o Instituto Espiritual Xamânico Cascata de

Luz, explicitando a pessoa que me havia indicado, bem como a vontade de ter minha

primeira experiência com a ayahuasca. A resposta foi positiva; foi dito que era de

costume realizar-se uma entrevista – que poderia ser até por telefone – e me deixou seu

número de celular para que eu ligasse no dia seguinte para conversarmos. Liguei,

conversamos melhor e ficou confirmada minha presença no ritual do dia seguinte, sendo

sugerido que eu levasse alguma fruta para compartilhar com todos ao final do ritual,

assim como o valor de dez reais. Esta foi a minha primeira e última ligação com este

grupo – pois encerraram suas atividades pouco tempo depois – e, por isso, prezo aqui

por não expô-los, somente descrevendo um pouco das características do ritual e seus

elementos.

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Vale comentar que se denominava como Instituto Espiritual Xamânico Cascata

de Luz e que realizava um Ritual com a Ayahuasca – Curas e Bençãos. Foi no último

sábado daquele mês, às 14 horas, que começaria o ritual! Localizava-se no centro da

cidade. Cheguei um pouco antes do horário e fui recebido com satisfação. Lá dentro,

sentado em uma das cadeiras que rodeavam a sala, esperávamos a chegada dos que

restavam conversando sobre o clima de paz do ambiente, a ayahuasca, as imagens nas

paredes: o Mestre Irineu, a palavra “Namastê”, Jesus – que se localizava no centro da

parede principal –, a foto de um lobo uivando, entre outras.

Quando todos chegaram, o padrinho explanou acerca do xamanismo e seu

caráter universalista, o qual não se constitui com uma religião; falou sobre a ayahuasca

como uma ferramenta facilitadora para o acesso a si mesmo e, a partir disso, ao que nos

transcende, bem como informações de que o chá poderia fazer efeito nos cinco dias

posteriores à ingestão, mas que sairia do organismo cerca de três horas depois de

ingerida. Terminada a explanação inicial, todos devem se apresentar e falar as intenções

que os levaram até lá: haviam psicólogos, massoterapeutas, estudantes universitários,

entre outros. Logo após, foram realizados exercícios de respiração que consistiam:

inspirar o ar cinco vezes repetidamente e expirar, repetindo quatro vezes o processo;

inspirar o ar por uma narina e expirar por outra e, após, inspirar com a mesma que

recém expirou e expirar pela outra, repetindo três vezes. Concluído os exercícios de

respiração, todos rezaram ajoelhados e em silêncio e, logo após, reorganizamos as

cadeiras que rodeavam as paredes e as separamos entre os dois lados do recinto na

diagonal, de um jeito que elas ficassem viradas para a parede principal, onde havia um

pequeno altar com nove velas e as imagens, que não lembro todas pois participei

somente uma única vez.

Antes de sentarmos, homens (estávamos entre uns dez) do lado direito e

mulheres (mais ou menos, sete) do esquerdo em relação ao altar, cada um pegou uma

almofada para colocar embaixo dos pés, já que estávamos descalços. Já acomodados,

foi-nos aconselhado a prestar atenção na música e na respiração, para que ficássemos

calmos. Primeiramente, foram chamadas as mulheres, as quais fizeram uma fila e, após,

os homens. A ayahuasca, com coloração marrom/cobre (no meu paladar, um líquido

espesso de gosto forte e amargo), era mantida em uma garrafa de vidro arredondada e

esverdeada, a qual era passada para uma jarra de vidro transparente para facilitar a

colocação em um pequeno copo, de 50ml; servia-se duas vezes e devia-se beber uma

logo depois da outra, somando 100ml; realizada a ingestão, voltava-se para a sua

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cadeira, prestando atenção no som das músicas que saiam das caixas de som nos cantos

das paredes. As músicas variavam entre: sons da floresta, mantras, canções indígenas,

música gospel, assim como algumas canções da MPB como Roberto Carlos e Oswaldo

Montenegro.

Depois de, aproximadamente, uma hora e trinta minutos, fomos chamados para

tomar outra vez o chá – que, desta vez, era opcional, mas altamente aconselhável –, a

maioria tomou, inclusive eu. Exceto aqueles que estavam se sentindo mal, que são

encaminhados para a sala ao fundo: com tapetes no chão, colchões, cobertores,

almofadas e cadeiras, ficando sob cuidados e sendo atendidos pelos “ajudantes”, isto é,

aqueles que tem mais experiência, os quais utilizavam roupas brancas. Volta-se para a

sua cadeira e fica-se mais o mesmo período de tempo anterior sentado, contabilizando

quase quatro horas.

Passado este tempo, somos avisados que podemos nos levantar e, logo em

seguida, todos o fazem, arredam as cadeiras novamente envolta das paredes e começa-se

o bailado, que é opcional. A partir deste momento, fica-se livre para se sentar, se deitar

na sala ao fundo ou bailar com os outros, todavia, é mantida uma ordem, sempre

separando os homens de um lado e as mulheres de outro. A música, por sua vez, fica

mais agitada e festiva, acredito que os hinos das religiões ayahuasqueiras se faziam

presentes, o que não identifiquei naquele dia. Passou um tempo e o padrinho ofereceu

mais meio copo (25ml) para os que bailavam. O ritual continuou por mais três horas,

com as músicas e o bailado; lembro que, em certo momento, os “ajudantes” pegaram

instrumentos musicais como o chocalho e outro de percussão que parecia um bongô e

começaram a acompanhar as músicas. Quando perto do término – colocou-se músicas

mais calmas e rezas no notebook – e o padrinho se ajoelhou com a cabeça ao chão, de

frente para a imagem de Jesus, e outros o acompanharam.

Finalizada a reza, a música parou e nos encaminhamos todos para a sala ao

fundo, onde já estavam aqueles que haviam passado mal ou feito limpeza16

– realizada

no banheiro ou em sacos plásticos – e outros “ajudantes”. No espaço ao fundo,

conversamos sobre a experiência – cada um fala se quiser –, reza-se ajoelhado e em

silêncio e faz-se os mesmo exercícios de respiração do início, terminando o rito. Após o

16

A limpeza é realizada, principalmente, através do vomito; mas também é feita através da urina, da

diarreia, de bocejos, do suor etc. Tudo aquilo que é, de alguma forma, expelido do corpo. Na visão de

Bruxo: - limpeza é quando a gente faz limpezas espirituais, que a gente carrega energias espirituais de

milhares de anos, de várias reencarnações nossas. (...) e isso acontece praticamente com todo mundo que

faz um trabalho ritual com a ayahuasca tem essas limpezas, ela proporciona isso, abrir, limpar o ser

humano.

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término do ritual, quem quiser pode ir embora, mas quase todos ficam para

confraternizar as frutas, bolachas e sucos que foram trazidos. Encaminha-se para os

fundos da casa, no pátio, onde havia uma fogueira – onde é consagrado o tabaco – e

duas mesas com os alimentos, sendo nenhum com carne e bebidas naturais. Nesse

momento, o clima é de conversação e descontração, as pessoas se conhecem, trocam

experiências e compartilham dos alimentos, seus conhecimentos e suas histórias de

vida. Algum tempo depois, me despedi e fui embora, eram quase 23 horas.

Neste primeiro ritual que participei com a ayahuasca, me senti bem em relação

aos seus efeitos fisiológicos, apesar do embrulho no estômago causado pela ingestão do

chá no início do ritual, não vomitei e, como disse o padrinho, realizei a limpeza através

dos bocejos, considerada outra maneira de purificar o corpo das energias negativas. Esta

primeira experiência me levou a confirmar meu interesse pelas plantas alteradoras da

consciência e pelas novas abordagens sobre o xamanismo, o que fez com que eu

seguisse neste caminho. Este grupo, depois de dois anos e meio, encerrou suas

atividades por tempo indeterminado, pois o padrinho e a madrinha se ausentaram da

cidade de Pelotas para começar um novo ciclo em suas vidas. Abaixo um trecho da

mensagem enviada via e-mail, quando convidavam para o ritual de encerramento:

E que este momento não tenha tom de despedida, pois estaremos

conectados sempre através do espírito que habita e une a todos nós. Disso

sabemos, todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma

família. Tudo está relacionado entre si. Somos todos UM. Que os nossos

corações nos guiem sempre pelo caminho do AMOR.

Apesar do encerramento, essa experiência se revelou importante, pois, além de

deixar-me mais tranquilo no que diz respeito à ingestão da ayahuasca, se mostrou como

uma prévia, ao menos em alguns elementos do ritual e da experiência com a ayahuasca,

do que eu encontraria no ritual xamânico organizado por Bruxo com o Caminho do

Arco-Íris.

* * *

Alguns dias depois de ter tido minha primeira experiência com a ayahuasca, fui

apresentado ao Jorge Bruxo no centro da cidade de Pelotas, local onde vende seus

artesanatos. Este contato se deu através de Odilom, um amigo e estudante de Ciências

Sociais no Instituto de Ciências Humanas na UFPel. Foi lá onde combinamos que, no

dia seguinte, ele iria me apresentar para o Bruxo, sabendo de meu interesse na

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ayahuasca, no xamanismo e nas minhas intenções de estudo. Naquele dia, haveria um

ritual xamânico organizado por Bruxo à noite e Odilom iria encontrá-lo para avisar que

não iria poder participar, além de me apresentar e perguntar sobre as minhas

possibilidades para tal.

Encontramos-nos na praça do centro histórico de Pelotas, em frente à Biblioteca

Pública e caminhamos em direção ao centro comercial, chamado de Calçadão. No

centro dali, na reta do chafariz central seguindo a Rua Sete de Setembro, chegamos ao

local onde o Bruxo expõe os seus artesanatos e os de sua esposa, Maria. Nos

cumprimentamos e conversamos. Odilom disse que não poderia ir ao ritual logo mais a

noite e perguntou se eu poderia participar, afirmando também que eu fazia o curso de

antropologia. Eu disse que há tempos estava por conhecê-lo, falei sobre Carlos

Castañeda, que me motivou a entrar no curso de antropologia e que gostaria de

participar e ter mais experiências com a ayahuasca, comentando que havia participado

de um ritual com a ayahuasca pela primeira vez, dias antes, no Instituto Espiritual

Xamânico Cascata de Luz. Bruxo falou que já havia participado de rituais lá e disse que

conhecia o pessoal, me falando os nomes do padrinho e da madrinha e de outros

participantes que pude reconhecer. Ali comecei a perceber a constituição de uma rede

ayahuasqueira em Pelotas. Combinamos que eu participaria de um próximo ritual e

Bruxo anotou o meu e-mail para avisar-me do próximo ritual xamânico que faria na

mata, pois no ritual em sua casa naquela noite preferia que não fosse nenhuma pessoa

nova, também por pedido de Maria e para não haver interferências energéticas,

afirmando que estariam presentes somente os conhecidos. Logo conversamos uma

pouco mais e nos despedimos. Saímos felizes pelo contato e pela conexão que tivemos.

Aproximadamente duas semanas depois, recebi um e-mail de Bruxo

convidando-me para o ritual xamânico naquela semana, que seria em sua casa, no

espaço devocional, em comemoração ao aniversário de um ano daquele local. Para

aquele ritual do dia 13 de junho de 2012, especialmente, pedia-se a contribuição de um

cobertor no valor de 14 reais. Sendo o valor dos outros rituais – nos dias 27 de julho, 14

de setembro e 12 de novembro – 20 reais, além de levar alguma fruta ou alimento sem

carne para compartilhar com todos ao final do ritual.

Portanto, a partir daí comecei a fundir meu caminho do coração com o Caminho

do Arco-Íris. Na introdução daquele primeiro ritual xamânico que participei, Bruxo

disse – Não somos uma instituição, não somos uma religião... somos um GRUPO. Hoje

percebo esta declaração com mais clareza, evidentemente com esta fala ele estava se

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diferenciando dos outros dois grupos que compunham a rede ayahuasqueira em Pelotas:

o Instituto Espiritual Xamânico Cascata de Luz e a Igreja do Santo Daime. Apesar de

participar de alguns rituais no primeiro e ser um dos fundadores do segundo na cidade,

Bruxo se afastou dos dois por divergências ideológicas, que pretendo elucidar melhor

contando um pouco de sua trajetória de vida.

Vale lembrar que acompanhei o grupo a partir do aniversário de um ano do

espaço devocional, em junho de 2012, até o encerramento dos rituais na casa do bairro

Arco-Íris, em novembro daquele ano. Pois Bruxo e Maria se mudaram para a zona rural

no ano de 2013 e no dia 8 de fevereiro foi feito o primeiro ritual nesta nova casa e o

primeiro que participei na mata e durante o dia. Portanto, quero deixar claro que

participei destes 5 rituais e é com o que pude perceber neste pequeno período e

experiência que este trabalho foi feito. Certamente há lacunas e muito que aprender. Os

rituais contavam com uma média de 8 pessoas, junto comigo; e conheci novas 14

pessoas neste período. Em todos os rituais que participei minha locomoção até sua casa

foi de ônibus. A casa no bairro chamado de Arco-Íris17

é distante aproximadamente 9km

e leva cerca de 30 minutos para chegar, partindo do centro da cidade. Meu ponto de

referência para descer do ônibus era uma árvore de esquina, plantada pelo próprio

Bruxo há muitos anos, pois morou lá durante 28 anos.

A seguir, abordarei uma sucinta trajetória de Jorge Bruxo, meu interlocutor

principal e idealizador do ritual xamânico; para, em seguida, expor os elementos

constituintes deste ritual e a cosmologia do Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris.

A trajetória de Bruxo:

Jorge Corrêa, mais conhecido pelo apelido de Bruxo ou Bruxinho, nasceu em

Pelotas. É encontrado há mais de 40 anos no centro da cidade, onde vende seus

artesanatos e de sua esposa, Maria, com quem tem 4 filhos. Hoje com 58 anos, tem

cabelo comprido atrás e escasso em cima, sempre preso com uma colinha. Seu nariz

pontudo é a razão de seu apelido. De estatura média, deve medir cerca de 1,70cm e é

magro. Quase sempre vestindo roupas simples ou coloridas, o que reflete seu caráter e

humor. Sempre se encontra aberto a uma conversa enquanto espera algum cliente e,

logo que algum se aproxima, corre e afirma – Fique a vontade! Foi e é como artesão

que conseguiu seu sustento e de sua família, sendo considerado o primeiro hippie de

17

Interessante o fato de que o grupo se chama Caminho do Arco-Íris, fazendo referência ao nome do

bairro, não obstante com o intuito de se referir ao principal símbolo da Nova Era.

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Pelotas, notícia de jornal pelo que me contaram e ele confirmou. Em uma entrevista

gravada, conversamos sobre sua trajetória, que vou contar um pouco a seguir:

Bruxo conta que – Nos anos 70 começou o movimento hippie e aquilo foi muito

forte dentro de mim, eu acabei abandonando tudo e me atirando de coração. Foi pelo

artesanato,18

por onde eu criei os meus filhos e conheci a minha esposa.

Ao mencionar os livros de Carlos Castañeda, Bruxo afirma que – Esse foi o

primeiro que difundiu o caminho do xamanismo no mundo todo, nos anos 70, foi

quando eu conheci o xamanismo mesmo, sem a ayahuasca. Por leitura, que os livros

dele me modificaram, me mostraram o caminho do coração.

Naquele período, quando ele recebeu o chamado, Jorge Bruxo ficou sabendo da

existência do Santo Daime, mas conta que acabou não tendo contato, pelas

circunstâncias da vida e pelo fato de que, naquela época, o Santo Daime não estava

espalhado por todas as regiões do Brasil como hoje.

Todavia, teve contato com o Santo Daime muito anos depois, diz ele – Depois,

com o decorrer dos anos, o Universo me colocou no caminho. Uns sete anos atrás, eu

descobri que tinha uma Igreja do Santo Daime em Porto Alegre. Aí eu fui, participei

pela primeira vez lá e achei um caminho incrível. Que modificou mais a minha vida. Eu

já achava que andava no caminho do coração, no caminho certo, mas ela me abriu

mais portais e fui me purificando.

Depois desse contato, Bruxo continuou frequentando os rituais em Porto Alegre,

tendo que viajar a cada 15 dias de Pelotas até lá para participar. Por essas

circunstâncias, juntamente com mais duas pessoas, por volta do ano de 2005, se fardou

no Santo Daime em Porto Alegre e trouxe uma vertente para Pelotas. Em suas palavras

– Aí a gente se fardou e começamos a ter essa bebida sagrada aqui em Pelotas. Em sua

pesquisa sobre o contexto simbólico do uso do Santo Daime, o antropólogo Alberto

Groisman (1999: 71), diz-nos que se ‘fardar’ representa “o ingresso no sistema de

direitos e deveres do adepto”.

Durante dois anos, Bruxo participou e organizou os rituais no Santo Daime em

Pelotas. Entretanto, rompeu com este grupo, principalmente, por divergências

ideológicas. Suas divergências se relacionam a composição do ritual e suas regras.

Bruxo exemplificou, dizendo em relação ao ritual – Ele te limita, ele não te

deixa receber, ficar a vontade. Assim, é um trabalho de corrente e, as vezes, tu estas

18

Bruxo vende: filtro dos sonhos, roupas tingidas, colares, pulseiras, bolsas e sandálias em couro, roupas

para cachorro, entre outros.

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recebendo um ensinamento e tu não pode parar, tens que estar sempre bailando na

corrente. E isso, na minha visão, me limitava!

Não obstante a isso, Bruxo mantém relações de amizade com várias pessoas que

frequentam o Santo Daime, alguns dos quais, inclusive, participam do ritual xamânico

do Caminho do Arco-Íris, como por exemplo, Rovani, que é participante assíduo nos

dois grupos.

Apesar de não comparecer assiduamente aos rituais do Santo Daime, ele diz – O

Santo Daime é divino, o Mestre Irineu é muito certo, muita disciplina.

Bruxo conta o que o motivava em sua busca, dizendo – Algo me atraia mais

ainda, o xamanismo, xamanismo me atraia mais! E aí eu comecei a ir a procura de

xamanismo. E o Universo, novamente, me colocou... e conheci uns irmãos de São

Paulo, que eu nem conhecia pessoalmente, mas através da internet. E o Astral, assim, o

Universo foi tão divino, que nos conectou. Eu acabei indo lá conhecer eles, sem saber

quem eram... e quando eu desci no aeroporto, senti aquela vibração de amor

incondicional.

Ao se afastar do Santo Daime, Bruxo procurou meios de continuar realizando

rituais com a ayahuasca. Ele conta como conseguiu passar a receber o chá em Pelotas

para realizar seus próprios rituais, idealizados por ele.

Bruxo afirma que – A internet é uma ferramenta da Nova Era, tu entrando com

o coração, ela te conecta nas coisas que tu quer. Foi o que aconteceu comigo, eu queria

o xamanismo de coração e essa ferramenta da Nova Era me colocou em contato.

(Jorge Bruxo)

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A partir do contato pela internet com o grupo de São Paulo, chamado de Céu da

Nova Aliança19

, Bruxo começou a receber a ayahuasca – a qual provém do Acre/AC –

em Pelotas e começou a realizar seus próprios rituais, a cerca de três anos atrás.

Bruxo conta como foi idealizando o ritual xamânico, afirmando – Com o tempo

foi se formando, pelo Universo, pelo Astral, um trabalho pessoal, assim, não pessoal

meu, mas do Universo. No qual eu não me intitulo como padrinho, nada... sou apenas

um guardião da ayahuasca e do ritual, ali, pra auxiliar as pessoas que estão no ritual,

um ritual sério, sem dogmas, sem exigências; mas sim com disciplina, né... disciplina

interior, porque todo ritual com a bebida ayahuasca é sagrado, então tem que ter uma

disciplina com o Universo, respeito com tudo, com os seres divinos.

Desde então, Bruxo vem no caminho do xamanismo. E conta o que entende por

xamanismo, afirmando – O xamanismo é mais uno com tudo, autoconhecimento. Santo

Daime é bom, é ótimo, abre os portais para as pessoas, mas ele limita um pouco,

porque é dentro de uma disciplina religiosa. E o xamanismo não, xamanismo é uno, é

com o Todo, com tudo; tu tens contato direto com tudo, te conecta com as árvores, te

conecta com o Universo, enfim, com tudo. E é um autoconhecimento, porque aí és tu e a

sagrada bebida ayahuasca, que te dá todos os ensinamentos, porque ela é uma planta

de saber, ela dá aquilo que tu necessita na hora. Às vezes, ela leva tempos pra te

apresentar algo que tu precisa conhecer de ti mesmo. Mas ela vai te dando aos poucos

pra não te chocar com a realidade, ela é muito sagrada.

Ao finalizar a entrevista, o questionei sobre o que significava a ayahuasca no seu

ver, ele respondeu – Pra mim é algo muito sagrado, algo inexplicável, algo que te

purifica, te limpa, te dá outra visão. A partir do momento que eu comunguei a

ayahuasca, eu mudei muito, muito mesmo (...), me abriu mais portais, mais

conhecimento, mais consciência, mais direção na vida; enfim, me deu, claramente, uma

visão de que esse mundo que nós vivemos aqui é um mundo maya, um mundo de ilusão.

Existe algo muito mais forte além disso, no qual ela nos conecta! E alivia a minha

existência aqui, fica mais leve, porque eu tenho contato com coisas superiores, com o

Universo, com Deus, entro em contato direto, ela é uma ferramenta que abre os portais

e a gente entra em contato direto com Deus, com essa energia crística que existe, que é

o verdadeiro caminho, o caminho do amor.

19

Site: http://www.ceudanovaalianca.com.br/.

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Desde 2009, quando se afastou do Santo Daime e começou a receber a

ayahuasca em Pelotas, um grupo começou a se formar e, como disse Bruxo – As

pessoas foram se conectando de coração.

Os rituais continuaram sendo realizados na mata, na zona rural da cidade de

Pelotas, em sítios de amigos. Durante esses anos, dezenas de pessoas participaram dos

rituais com o Bruxo. Com isso, um grupo de pessoas que frequentam os rituais de forma

mais assídua foi se constituindo.

No meio do ano de 2011, um quarto com banheiro ficou vago em sua casa e

Bruxo a transformou em um espaço devocional, local onde começou realizar os rituais

que são o foco de estudo do presente trabalho. Foi no aniversário de um ano deste

espaço que participei do meu primeiro ritual e foi ao final deste rito que foi escolhido,

por sugestão da esposa de Paulo, um dos participantes mais antigos do grupo e em

votação, o nome Caminho do Arco-Íris. Este nome faz alusão ao nome do bairro onde

morava Bruxo a época, não obstante remete de forma direta a um dos símbolos da Nova

Era, o arco-íris.

O Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris: o ritual xamânico e a cosmologia:

A seguir vou apresentar as características do espaço devocional no recinto de

sua casa, nos rituais que participei em 2012.

Para entrar no recinto do ritual deve-se tirar os calçados. A sala, retangular, tem

cerca de 4x5m², o local é pequeno, mas carregado de símbolos. Ao entrar se percebe as

imagens nas paredes, duas pequenas mesas, um banheiro e um suporte para o pequeno

aparelho de som.

Na parede, a esquerda de quem entra, estão: uma pequena figura do Mestre

Ascensionado Saint Germain (figura 1), uma representação um pouco maior da Mãe

Maria (figura 2), acima da primeira mesa e uma grande imagem do Mestre Jesus (figura

3) ao centro da parede, se posicionando acima da mesa do altar. Ao lado, uma

montagem contendo as imagens dos Sete Mestres Ascensionados (figura 4) juntos a uma

imagem do Mestre Jesus (ao meio deles), se situando acima do lugar de Bruxo no ritual,

que fica ao lado do altar e do aparelho de som. No canto da parede, encontra-se em um

suporte ligado as duas paredes, o aparelho e duas caixas de som (figura 5); acima dele,

um filtro dos sonhos com uma pena e um adorno xamânico. Abaixo do aparelho de

som, no chão, um pedaço de um tronco de madeira, encostado nas paredes que se

encontram, parecido com o cipó Banisteriopsis caapi e que o simboliza. Em sua volta,

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várias pedras, um incensário e instrumentos musicais20

(figura 6): chocalhos/maracás,

um maracá sem as mãos do homem – como afirmou o Bruxo, uma kalimba e um

pequeno tipo de tambor.

Fig. 1: Saint Germain | Fig. 2: Mãe Maria | Fig. 3: Mestre Jesus | Fig. 4: Mestres Ascensionados

Figura 5 Figura 6

Na parede ao fundo: foto do Arcanjo Uriel e Maha Shivarathri (figura 7).

Deuses hindus, como Vishnu, Shiva e o símbolo do “OM” (figura 8). A foto do Mestre

Irineu, a figura em neon de uma onça (figura 9) e uma imagem com letras e pessoas de

fenótipos orientais com a palavra Reiki.

20

Todos feitos de artesanalmente.

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40

Figura 8 Figura 9 Figura 7

Na parede à direita, a Bandeira da Paz e uma grande imagem de Shiva/Hare-

Krishna (figura 10). E, na parede que compõe a porta de entrada e a porta do banheiro,

há um adorno de um réptil, figuras de xamãs indígenas (figura 11), uma delas transposta

por imagens do arco-íris, com o planeta Terra e a espiral de uma galáxia.

Figura 10

Figura 11

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41

Figura 12 Figura 13 Figura 14

Na mesa do altar: uma toalha de cor roxa que a cobre, as cumbucas21

que são

escolhidas por cada um e utilizadas para servir a ayahuasca, pequenas pedras e caracóis,

um castiçal, dois copos com as medidas de 100ml e 50ml e as garrafas contendo a

ayahuasca (figuras 15 e 16).

Figura 15

21

Bruxo: por milhares de anos os xamãs, e até hoje, os xamãs nas matas comungam em cumbucas e aí a

gente procurou andar na raiz, foi uma intuição.

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Figura 16 Figura 17

Na mesa ao lado: uma toalha de cor lilás que a cobre, uma jarra d’água e uma

taça, o Sincronário da Paz22

(figura 18) e o livro Preces Xamânicas23

(figura 17), uma

grande vela rosa, os óleos de mirra e de menta e o zibute (pó branco passado na região

dos chakras, principalmente na região da testa, da garganta e do peito), o palo santo24

(ao lado esquerdo do castiçal na primeira foto acima), uma máquina fotográfica e uma

lanterna; abaixo da mesa, papéis higiênicos, incensos, defumadores e, no pote ao fundo,

tabaco com outras ervas (figura 19).

22

O Sincronário da Paz é bastante recorrente nos grupos Nova Era, pois propõe uma mudança do

calendário gregoriano (em que se percebe um grave erro) para este Sincronário de 13 Luas (meses) de 28

dias + 1 dia, contabilizando os 365 dias que o planeta Terra completa seu movimento de translação ao

redor do Sol. Este dia que fecha a conta é chamado de “Fora do Tempo” e é considerado um dia de

renovação, meditação e oração, pois é o fim de um ciclo e o começo de outro; no calendário gregoriano, o

dia “Fora do Tempo” cai no dia 25 de julho. No dia 25 de julho de 2012, aconteceu, no Largo Edmar

Fetter - Mercado Público de Pelotas, uma audiência pública que marcava o Dia Municipal da Cultura e da

Paz e contava com a presença de vereadores da cidade, bem como alguns participantes do ritual xamânico

do Caminho do Arco-Íris, membros do Santo Daime, do Mística Andina e frequentadores dos sítios

conhecidos na zona rural de Pelotas, isto é, pessoas reconhecidas por mim que se associam, de alguma

forma, ao macromovimento da Nova Era. Vale dizer que o Sincronário da Paz é marcadamente

influenciado pelo códigos maias, propondo uma revolução do tempo. Como consta no seu site

[http://www.sincronariodapaz.org], “trata-se de uma ferramenta cuja frequência em relação aos ciclos

universais da natureza e cuja matemática são perfeitas!”; uma frase característica desta proposta é:

“Tempo é Arte”. Dependendo de quem vai ao ritual xamânico (em uns rituais foi feito e em outros não),

faz-se também a soma do kin (dia) de cada um, chegando a um único kin desta soma, para, com isso,

saber a energia que todos juntos então ressonando naquele ritual. 23

O livro Preces Xamânicas, de Alba Maria, foi adquirido por Bruxo através da internet diretamente com

a autora. Ele diz: foi uma coisa que o Universo presenteou para os nossos rituais (...) mesmo não sabendo

o que teria dentro daquele livro, senti que seria um livro precioso para as nossas preces (...) a partir daí,

se tornou uma ferramenta nossa. 24

Traduzido como “madeira sagrada”.

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Figura 18 Figura 19

No chão: um grande tapete e cobertores para cobrir o chão gelado feito de

lajotas, cobertores para se tapar e almofadas para se encostar; perto do banheiro, um par

de chinelos para quem for utilizá-lo e baldes, para cada um fazer a limpeza se não

conseguir chegar ao banheiro. Por fim, uma cesta de palha onde se coloca as frutas

levadas.

Quando a seleção musical do ritual vai começar, a luz negra é acesa, assim como

uma vela no banheiro e no altar, apagando-se as luzes elétricas. Quando o ritual é na

mata, ao invés da luz negra, a fogueira é acesa!

A formalidade do ritual se dá, na abertura e no encerramento, com três práticas:

primeiro, os Agradecimentos em voz alta, segundo, a leitura de uma prece, através do

livro Preces Xamânicas e terceiro, com as orações Pai Nosso e Ave Maria. Estas

práticas sempre ocorrem, seja nos rituais realizados na mata ou no espaço devocional.

Abaixo três exemplos de Agradecimentos:

Milena – Agradecer a ayahuasca que me curou, que me cura, que me ensina,

que me liberta... impressionante! Desde que comecei a comungar com a ayahuasca,

constantemente, tenho observado minhas atitudes, vejo quando estou errada e tento

mudar sempre. Agradecer ao Bruxo, também, por entender-me, por respeitar-me, por

não julgar-me nunca, por receber-me, por este espaço, por este caminho xamânico de

amor, de aprendizados, por cada um de vocês que me ensinam com suas atitudes... e é

isso, gratidão, obrigado, feliz por estar aqui.

Odilom – Agradeço ao Bruxinho, que está sempre acolhendo todo mundo e

sempre firme nessa caminhada, agradecer a todos os irmãos, aqueles que não puderam

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estar aqui que, de uma forma ou outra estão sempre fazendo parte da corrente,

agradecer aos xamãs, a todos os mestres e agradecer a oportunidade de estar aqui... é

isso, aho25

.

João – Agradecer primeiramente ao Mestre, agradecer ao Bruxo que me

recebeu hoje e a todos vocês, agradecer ao Universo que permite que hoje eu esteja

nesse lugar, agradecer a minha família que de longe me guarda, agradecer a todos os

xamãs que hoje estão em rituais por todo o Universo, agradecer a Natureza Cósmica

Superior por permitir que eu me encontre hoje junto a vocês e agradecer a todos os

Iluminados que desceram a Terra e que propiciaram a nós todo esse aprendizado,

muito grato.

Abaixo três exemplos de Preces Xamânicas sorteadas por cada um e lidas em

voz alta:

– Árvore: Irmã árvore, que as raízes profundas do teu ser, minha querida,

possam me ensinar que, quanto mais profundas são tuas raízes, maior será o tamanho

que te leva ao céu. Sendo assim, que eu não precise temer a escuridão que minhas

raízes tocarão, pois igualmente o Criador me dará em luz.

– Morte: Um dia, Grande Senhora, meu corpo físico finalizará seu ato de existir.

E, nesse momento, pegarei tua mão e, juntas, atravessaremos as portas que me

aguardam. Tenha paciência e ajude-me a viver minha morte em vida, atravessando

comigo os portais que me pertencem.

– Pássaro: Com douradas asas eu sigo a trilha que me mostras e deixa-me

caminhar em teu peito macio, em tuas plumas reluzentes, e seguir contigo a Grande

Viagem, porque estais em mim, és um amigo.

Após a leitura das preces, as orações Pai Nosso e Ave Maria são rezadas em

conjunto e em voz alta. Vale dizer que, por serem em voz alta, as versões das rezas

podem variar, fazendo com que alguns se percam ou silenciem a afirmação da oração.

No meu caso, para dar um exemplo, por vir de uma família cristã/católica, sempre

pronunciei a palavra “ofensas” ao invés de “dívidas”, este fato fez com que eu

procurasse na internet a versão que ouvia no ritual e, ao escrevê-la no site de busca, fui

encaminhado ao site26

do Mestre Irineu. Isto se mostrou relevante por se constituir

como um elemento do rito do Santo Daime no ritual xamânico do Caminho do Arco-

25

"Aho" é um termo nativo-americano característico da linguagem Nova Era que faz analogia com a

afirmação "Amém", significando “assim seja”. 26

http://www.mestreirineu.org/oracoes.htm

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Íris. Outra questão interessante é que “ao rezar o ‘Pai Nosso’, os daimistas invertem a

relação estabelecida pelo cristianismo: ‘Venha a nós o Vosso Reino’, os adeptos

afirmam: ‘Vamos nós ao Vosso Reino’” (Labate; Araújo, 2002: 382). Já que, pela

ingestão da ayahuasca, tem-se acesso e vai-se ao mundo espiritual, através do voo

xamânico.

Quando perguntei ao Bruxo o motivo dessas duas orações, ele afirmou: – por

serem orações milenares e em respeito ao Mestre Irineu. Abaixo as orações:

– Pai Nosso: Pai Nosso que estais no céu | Santificado seja o Vosso nome |

Vamos nós ao Vosso reino| Seja feita a Vossa vontade | Assim na Terra como no céu | O

pão nosso de cada dia nos daí hoje, Senhor | A perdoai nossas dívidas, assim como nós

perdoamos aos nossos devedores | Não nos deixei, Senhor, cairmos em tentação| Mas

livrai-nos e defendei-nos, Senhor, de todo mal | Amém, Jesus, Maria e José.

– Ave Maria: Ave Maria cheia de graça | O Senhor é convosco | Bendita sois

vós entre as mulheres | Bendito é o fruto do vosso ventre Jesus | Santa Maria mãe de

Deus, rogai a Deus por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte | Amém, Jesus,

Maria e José.

A seguir, faço um apanhado dos 5 rituais que participei. Nas vezes que cito as

narrativas de Bruxo ou outras pessoas, baseio-me especialmente no último ritual

realizado naquele espaço, em novembro de 2012, o qual foi gravado com a permissão de

Bruxo e dos outros participantes.

As pessoas vão chegando ao espaço devocional, cada um escolhe seu lugar e aos

poucos vão se acomodando. Enquanto tudo é preparado – o lugar de cada um, dividindo

os cobertores e almofadas, as velas acendidas e os baldes distribuídos – ouve-se, ao

fundo, o som baixo de músicas calmas, ambientes e instrumentais. A espera dos que

ainda estão por chegar, as pessoas conversam entre si, trocam experiências e

conhecimentos, firmando vínculos de solidariedade.

Quando há uma pessoa que está participando pela primeira vez, Bruxo conversa

e explica sobre o ritual, instruindo:

– Se sentir vontade de acompanhar a música, cantar baixinho para não

estragar a harmonia; pode sair na rua se tiver vontade, pra olhar as estrelas, só não

pode passar do portão, dentro do pátio; limpeza na rua não, somente no balde ou no

banheiro; enfim, te sente a vontade. Não é que nem no Santo Daime que tem que bailar,

que pode sentar um pouco e logo tem que bailar. O xamanismo não! É um trabalho

mais teu, interior, do que de corrente... tem momentos que é corrente o trabalho, mas é

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mais interior, mais contigo mesmo! E espero que tu goste, tu te sente à vontade!

Também não conversar com ninguém durante o trabalho, mesmo que dê vontade, não

conversa. Porque cada um está no seu processo. E, enfim, pode cantar e tudo, só não

tirando a harmonia do trabalho... acho que tu vai te sentir em casa!

Quando todos chegam e se estabelecem em seus lugares, começa o ritual. A

pessoa que está a direita de Bruxo, ou seja, no sentido anti-horário no círculo, agita o

Chocalho27

feito de sementes na volta do corpo de Bruxo – que abre os braços e fecha

os olhos – primeiro, na frente do corpo e depois nas costas, passando por todos os lados

e acima da cabeça28

. Logo após, faz-se o mesmo com o Palo Santo, o qual é queimado

no fogo da vela, fazendo com que queime a madeira e saia um cheiro característico e

uma fumaça branca, esta é passada em todas as partes do corpo da pessoa, na frente e

nas costas. Realizada as purificações no Bruxo, ele faz o mesmo ato naquela pessoa que

recém o fez. Desse modo, com os dois purificados, cada um fica encarregado de uma

das ações: um deles passa o Chocalho e outro o Palo Santo no resto das pessoas,

realizando a limpeza energética em todos, sempre seguindo a ordem anti-horária.

Vale comentar, que nos últimos rituais que estive presente na mata, também se

passou uma folhagem de louro em volta dos corpos e Bruxo deu a cada pessoa um

pouco de tabaco, dizendo-nos para oferecer ao pai fogo, isto é, com intenção jogar o

tabaco ao fogo como um presente, uma dádiva.

Finalizadas as orações de abertura do ritual, cada um se levanta e escolhe uma

cumbuca no altar, seguindo a ordem, ou seja, a primeira pessoa a direita de Bruxo

começa, finalizando a volta nele. Após as escolhas, a ayahuasca começa a ser servida.

Primeiramente, é despejada da garrafa no copo (dosando 100ml) para, em seguida,

passá-la para a cumbuca. A ordem segue a mesma e, quando há alguém do sexo

feminino presente, Bruxo pergunta se a mulher em questão poderia servir o chá para

todos, valorizando positivamente a energia feminina.

Posteriormente a ingestão do chá, liga-se o aparelho de som com a seleção

musical escolhida para aquele ritual. Como diz Bruxo: – Cada ritual a seleção

diferencia, porque no momento vem à intuição de formar uma seleção de músicas.

27

Escrevo Chocalho com a letra “C” em maiúsculo, para diferenciá-lo dos maracás/chocalhos de

acompanhar as músicas, pois são diferentes no que diz respeito à aparência do objeto e ao simbolismo,

sendo este feito de sementes e utilizado para purificação das energias, somente neste momento do rito. 28

Sobre esta ação vale um comentário pessoal: certo ritual cheguei com dores no lado do corpo, pois

havia caído de bicicleta no dia anterior; antes de começar o ritual, comentei em conversa com Maria,

esposa de Bruxo, e ela me deu arnica – remédio homeopático –, no momento do ritual em que iria

passar/agitar o Chocalho em mim, o Bruxinho perguntou aonde doía, eu apontei e ele agitou com mais

força e intenção naquele local!

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Depois de ativada as músicas, o silêncio impera no recinto, pois todos ficam

quietos, em seus respectivos lugares, prestando atenção a si mesmo, nos sons e nos

efeitos da ayahuasca no organismo, a qual começa a fazer efeito cerca de 30 minutos

depois de ingerida.

Durante o tempo de duração do ritual, que varia em torno de 6 a 8 horas, escuta-

se de Bruxo a frase: – Estão abertos os trabalhos, significando a permissão para

comungar a ayahuasca; certas vezes, mais ao fim do ritual, é afirmado Estão abertos os

trabalhos – 25, denotando a dosagem a ser bebida. Algumas vezes, quando tal

afirmação é dita, o Bruxo coloca a garrafa com ayahuasca no centro do espaço

devocional, o que, por sua vez, provoca a reação daqueles que querem comungar, os

quais – não todos – se ajoelham perante a garrafa. É importante ressaltar o fato de que

sempre seja outra pessoa a servir-te, ou seja, há um respeito e um controle para que a

pessoa, ela própria, nunca sirva a si mesma e, como foi dito, dando a preferência para as

mulheres realizarem este ato. Bruxo, como guardião da ayahuasca e mediador do ritual,

sempre se atenta para os detalhes, não obstante, quando este se encontra na força29

e em

um processo mais intenso, outros estão aptos a servir.

Esses efeitos variam de pessoa para pessoa. Inicialmente, como um mal estar no

estômago (que, no meu caso, é aliviado ao deitar), bem como a variação na temperatura

corporal (suor nas mãos) e os efeitos psíquicos: mudança na percepção do tempo, com a

vinda de um estado reflexivo de pensamento e um sentimento de unidade, serenidade e

sensatez. A expansão e transcendência da condição humana são sentidas nesta

percepção de unidade, de dissolução do ego e de pertença ao Todo. A ayahuasca, ao te

levar de forma intensa ao íntimo da memória e emoção, faz a pessoa sofrer para resolver

as intempéries da mente e, com isso, ela se entrega, se iguala ao seu semelhante, suas

amarras se desfazem. A expansão da mente esclarece muitos pensamentos e leva-nos a

entender melhor a condição humana. Em fevereiro de 2013, no primeiro ritual que

fizemos no novo sítio – também meu primeiro na mata – foi quando tive entendimentos

mais profundos, questionando-me sobre a existência do tempo, das limitações deste

trabalho e com uma percepção estética da natureza aflorada e expandida, sentindo uma

pertença a tudo que me rodeava, o sol, as borboletas, as árvores. Já no plano

29

Nas palavras de Bruxo: a força é inexplicável, né... a gente tenta explicar, mas é inexplicável. A força é

a energia do Uno, do Todo, do Xamanismo. Então, quando a ayahuasca te abre os portais, te abre, tu

sente aquela força. Que não tem como falar, não tem como explicar, a gente sente, mas não tem como

explicar.

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estritamente físico, minhas capacidades motoras se tornaram mais lentas, pois tinha

dificuldades para escrever em minha caderneta, o que passou depois de um ‘tempo’.

Em alguns rituais, ouvi afirmações como, por exemplo – Eu me conheço!,

denotando o processo de autoconhecimento e explanações como – Nós não viemos aqui

para ‘tomar’ a ayahuasca, mas para tentar chegar perto da iluminação desses aqui!,

apontando para as imagens de Jesus e dos Mestres Ascencionados na parede. Algumas

sensações afloram e afirmações são ouvidas em meio ao ritual, dependendo de cada

pessoa, por exemplo: – Gratidão, gratidão, gratidão a tudo e a todos, ao Universo e ao

Cosmos; – Muita luz, muita luz, a todos os seres; – Sinto muito, me perdoe, te amo, sou

grato; – Om namah shivaya; –Salve Deus; – Todos somos xamãs; – É muito amor; –

Paz a todos os seres; – Amor a todos os seres e – Somos todos um.

Quando começam os efeitos da ayahuasca, cada um tem uma reação, pois a

experiência é, antes de tudo, singular a cada um. Alguns ficam sentados de pernas

cruzadas, outros logo se deitam e, dependendo da música ou do estado de ânimo, se

levantam e permanecem em pé, o que ocorre, normalmente, quando é feito o bailado. O

bailado acontece em alguns momentos do ritual, sem obrigação alguma e nota-se, as

vezes, somente uma pessoa bailando, o que, por sua vez, contagia alguns que se juntam

e começam a bailar juntos. Enquanto isso, a pessoa ao lado pode estar deitada ou

sentada, ou até em pé sem bailar.

Há uma flexibilidade característica no ritual xamânico em relação a outros

grupos ayahuasqueiros, em que há uma rigidez ritual mais acentuada como, por

exemplo, a obrigação de ficar sentado ou de bailar, respectivamente, no Instituto

Espiritual Xamânico e no Santo Daime. No ritual xamânico do Caminho do Arco-Íris,

se dá a possibilidade para, cada pessoa em sua singularidade, vivenciar e passar por seus

processos. Em certos momentos, todos se encontram deitados e de olhos fechados,

podendo, inclusive, estarem cochilando. Os suspiros, bocejos e o agitar das mãos umas

nas outras, são notórios quando o recinto silencia na troca das canções. Volta e meia,

ouve-se o som e o ritmo dos maracás agitados, quase sempre, por Bruxo. Todavia, é

dada a liberdade a todos para fazerem o mesmo se assim desejarem, sempre mantendo a

harmonia.

Palmas e cantos, em tom baixo, também são recorrentes. Os bocejos começam a

vir e alguns vão ao banheiro. Incensos e defumadores são acesos e, de vez em quando,

passados em volta de cada um, principalmente por Bruxo e por Rovani. A performance

corporal é singular a cada um, alguns fazem gestos com as mãos em volta do corpo,

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assim como o sinal da cruz e o movimento das mãos debaixo para cima, outros optam

por permanecer imóveis ou com as costas apoiadas na parede.

A performance do corpo legitima e agrega eficácia ao conjunto das ações no

ritual, corroborando para a confiança na eficácia do ritual e da experiência em si. Do

mesmo modo, o ritmo dos maracás e dos outros instrumentos musicais, bem como as

músicas, orações, ícaros30

, mantras indianos etc... todos esses elementos se unem,

formando a teia de significados que compõem momento ritual.

Dependendo da música, se esta é conhecida, é cantada em coro e em baixo tom.

Percebe-se o movimento dos corpos seguindo o ritmo dos sons e acompanhando o

processo – a força – que a ingestão da ayahuasca provoca e afeta a todos, por isso é

enfatizada a necessidade de se firmar31

, para não se deixar dominar pela força. O som

do sino ressoa no recinto, é para despertar aqueles que estão deitados. As risadas são

controladas pelo Bruxo, algumas vezes percebi que, quando havia alguém rindo em

demasia ou alto demais, ele pedia silêncio.

Quando ocorre a limpeza32

de alguém no balde, Bruxo prontamente vai auxiliá-

lo: pegando o papel higiênico, passando o defumador ou conversando. Logo que a

pessoa termina, ele pega o balde e leva ao banheiro para limpá-lo, voltando a deixar o

balde com a pessoa. Depois disso, a pessoa em questão é acompanhada durante o resto

do rito, dando-se a esta pessoa uma atenção maior, não só por Bruxo – que é o mais

ativo neste auxílio (considerando a responsabilidade que tem como organizador do

ritual e guardião da ayahuasca), mas por todos ou outros presentes. Fazer a limpeza não

impede a pessoa de beber novamente a ayahuasca se assim achar necessário. A limpeza

não é vista como algo ruim, pelo contrário, é percebida de forma positiva, pois o corpo

está se purificando e expulsando aquilo que não lhe faz bem. Fica claro que o ritual com

a ayahuasca é também um ritual de limpeza e de cura, se caracterizando como uma

confluência entre o terapêutico e o religioso.

Quando a seleção musical acaba, realiza-se o encerramento do ritual retomando

as ações que foram feitas na abertura, com: os Agradecimentos, as Preces Xamânicas e

as orações Pai Nosso e Ave Maria.

30

Segundo Ralph Metzner (2002, p. 15), “Os sons entoados pelos ayahuasqueiros são chamados de

icaros, e em geral possuem uma qualidade bastante harmoniosa. Estas canções são assimiladas pelos

curandeiros durante o período de aprendizado, e são sempre entendidas como sendo as canções dos

espíritos que se aliam a cada um deles”. 31

Bruxo: pra não se deixar levar, a gente tem que se firmar, (...) na luz, no agora, no caminho do

coração. Ser firme, se firmar, porque a ayahuasca te abre os portais (...) então, a gente tem que se firmar

no bem. 32

No balde, a limpeza ocorre pelo vomito. Se for por baixo (diarréia), a limpeza é realizada no banheiro.

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Finalizada as rezas, são compartilhados os alimentos – sem carne – integrais e as

frutas (bolos, pães ou tortas, bananas e maças, na maioria das vezes), quando os efeitos

psicoativos do chá já se atenuaram, a conversação é retomada, a qual se baseia, no geral,

sobre o ritual e as experiências pessoais que tiveram, bem como sobre outros assuntos

mais aleatórios, o clima é de tranquilidade e a riso é livre, poder-se-ia dizer. Esta parte é

fundamental no ritual, pois é quando cada um dá seu testemunho, o que confere

legitimidade ao ritual e delimita o ethos do grupo. Ao final, todos se despedem com

abraços e beijos, demonstrando muita emoção e afetividade.

* * *

Exponho, a seguir, algumas músicas, mantras, vozes, ícaros, orações e hinos que

compõem a seleção musical. Os quais se mostram representativos dos rituais,

expressando a diversidade que compõe os elementos do rito e demonstrando a

aproximação com a nova consciência religiosa. No entanto, é relevante deixar claro que

essas são apenas uma pequena fração da totalidade de canções e sons que compõem a

seleção musical de todo o ritual e que minha escolha se baseou na relevância das

canções por se posicionarem na abertura ou finalização da seleção, bem como com o

intuito de expor a heterogeneidade de sons que, juntos, arranjam a composição da

seleção.

Abaixo, o Gayatri Mantra33

, muitas vezes colocado entre os sons da seleção

musical dos rituais em que participei. Este mantra é repetido durante vários minutos:

Om bhur bhuvaha svaha | Tat savitur varenyam | Bhargo devasya dhimahi |

Dhiyo yonah prachodayat34

Abaixo, a letra35

de um hino do Santo Daime que consegui identificar nos

rituais. Evidencia-se, com isso, elementos do Santo Daime no ritual xamânico do

Caminho do Arco-Íris.

Hino: Eu vou me levantar

33

Conheci este mantra no ano de 2009, quando participei das meditações do Mística Andina, outro grupo

que pode ser associado ao macromovimento da Nova Era. 34

Tradução: Ó deus da vida que traz felicidade | Dá-nos tua luz que destrói pecados | Que a tua

divinidade nos penetre | E possa inspirar nossa mente. Encontrada no site: http://letras.mus.br/deva-

premal/843181/traducao.html. 35

Letras encontradas na internet, que compõem o Hinário de Cura.

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Eu vou me levantar | Com ajuda do Senhor (2x)

Peguei a minha espada | Foi para guerrear (2x)

Esta força quem me deu | Foi o Mestre Juramidam (2x)

Para eu me levantar | Com a espada na mão (2x)

Curo tudo, expulso tudo | Com o poder do Pai Eterno (2x)

E da Virgem Soberana | E do Divino Espírito Santo (2x)

A canção Madre Ayahuasca, cantada em espanhol, também se fez presente em

vários rituais. Na letra se confirmam as denotações nas quais a ayahuasca é mãe, cura,

mostra os caminhos, produz visões e é considerada como uma medicina, abaixo a letra:

Madre Ayahuasca aquí están tus hijos

hoy hemos venido para estar contigo.

Madre Ayahuasca curaciones pido

para mis hermanos que hoy están conmigo.

Madre Ayahuasca muéstranos caminos

pintando visiones con un buen destino.

Madre Ayahuasca muy agradecidos

santa medicina que cura la tribu.

A seguir, ficam claros alguns elementos do cristianismo: a Grande Invocação,

afirmada por João nas vezes em que participou dos rituais junto a mim e a Oração de

São Francisco de Assis, a qual é colocada sempre na finalização da seleção musical pelo

Bruxo e como ele diz é uma oração que te prega cada vez mais humildade, que a gente

tem que ter nessa vida é humildade, amor ao próximo.

Grande Invocação:

Do ponto de Luz na mente de Deus, que flua Luz à mente dos homens e que a

Luz desça à Terra. | Do ponto de Amor no coração de Deus, que flua amor aos

corações dos homens, que Cristo retorne à Terra. | Do centro onde a vontade de Deus é

conhecida, que o propósito guie as pequenas vontades dos homens, propósito que os

mestres conhecem e servem. | Do centro a que chamamos a raça dos homens, que se

realize o plano de Amor e de Luz e se feche a porta onde se encontra o mal. | Que a

Luz, o Amor e o Poder restabeleçam o Plano Divino sobre a Terra, hoje e por toda a

eternidade. Amém.

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Oração de São Francisco de Assis:

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. | Onde houver ódio, que eu leve o

amor; | Onde houver ofensa, que eu leve o perdão; | Onde houver discórdia, que eu leve

a união; | Onde houver dúvida, que eu leve a fé; | Onde houver erro, que eu leve a

verdade; | Onde houver desespero, que eu leve a esperança; | Onde houver tristeza, que

eu leva alegria; | Onde houver trevas, que eu leve a luz; | Ó Mestre, fazei que eu

procure mais... | Consolar, que ser consolado; | Compreender, que ser compreendido; |

Amar, que ser amado. | Pois, é dando que se recebe, | É perdoando que se é perdoado |

E é morrendo que se vive | Para a vida eterna.

* * *

Concluindo este capítulo, fica evidente a conformação de uma rede

ayahuasqueira na cidade de Pelotas, com a presença do Santo Daime, do Instituto

Espiritual Xamânico Cascata de Luz e do Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris; estes

três grupos, apesar das diferenças entre si, agregam pessoas com interesses e visões de

mundo semelhantes, não obstante, dentro deste circuito (Magnani 1999), realizam seus

próprios interesses. Cada um desses grupos se insere na rede ayahuasqueira brasileira

por distintos meios e se colocam no campo maior de consumo da ayahuasca no Brasil,

se caracterizando como formas diferentes de reinvenção do uso tradicional da

ayahuasca. Mostra-se a diversificação de apropriações desta bebida, o que está

intimamente ligado ao contexto cultural contemporâneo. A Nova Era, neste contexto,

empresta e se associa a estes novos usos, se aproximando com referenciais linguísticos e

ideológicos. Revelaram-se, neste trabalho, estas aproximações com as características e

elementos que compõe o ritual xamânico do Caminho do Arco-Íris e com a trajetória de

vida de Jorge Bruxo. Na conclusão, a seguir, tentarei realizar uma reflexão mais

aprofundada destes pontos.

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CONCLUSÃO – A “NOVA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA” EM REDE

Portanto, cabe aqui expor que o ritual xamânico idealizado pelo neo-

ayahuasqueiro Jorge Bruxo junto ao Grupo Xamânico Caminho do Arco-Íris se

caracteriza por uma bricolagem de diferentes crenças, se associando aos elementos da

nova consciência religiosa e se articulando por diferentes pessoas a rede ayahuasqueira

em Pelotas e brasileira.

A seguir tenho como objetivo esclarecer a constituição do grupo como

pertencente aos movimentos de tipo Nova Era, por vários aspectos os quais vou elencar

a seguir:

Primeiramente, percebe-se a centralidade, nas práticas consideradas como

“alternativas”, ao “experimentalismo” ou ao caráter “experiencial” das atividades, as

quais indicam uma postura individualizada perante tais e, por conseguinte, “abrangem

uma rede mais ampla de relações sociais” (Soares, 1989: 137). Isso se mostrou

manifesto nos Agradecimentos (parte estruturante do ritual xamânico) “agradeço por

(...) ter essa experiência aqui com vocês”, assim como quando o Bruxo instrui como

seria a experiência no ritual xamânico, quando diz “é um trabalho mais teu (...) interior,

mais contigo mesmo”, percebe nessas passagens a centralidade da experiência

autônoma. O consumo da ayahuasca provoca uma expansão da consciência e trás a tona

à vontade por uma transformação pessoal, outra característica marcante da Nova Era, na

qual se realiza “um trabalho de transformação da interioridade do sujeito” (Champion,

2001: 26).

A categoria trabalho é também muito presente no discurso dos interlocutores:

Como disse Bruxo:

– Quando tu estas num ritual de xamanismo com a ayahuasca, tu tá aberto e tu

tá trabalhando; não trabalhando com a forma física, normal, sim, com a forma

espiritual, porque tu estas com os chakrás abertos, com os portais, estas te doando,

estas trabalhando, pro bem (...), pra humanidade, pro Universo.

Como bem afirma Soares (1989: 131), “trabalho designa o empenho espiritual”,

para explicar melhor o significado do trabalho, deve-se contextualizá-lo dentro da

categoria energia, pois as duas se entrelaçam. Soares compreende a “energia” como

uma categoria-chave, produtora de mediação simbólica e moeda cultural. A energia faz

a ligação corpo-espírito-natureza, pois ela permeia tanto o material como o espiritual,

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fazendo-a estar presente tanto no homem como na natureza e conferindo a esta última

um caráter humanizado, espiritualizado, pois ela engloba o homem.

Ao abarcar a natureza, “o espírito se desindividualiza, se descola da

personalidade e de suas complexas singularidades, assumindo a identidade difusa de

uma presença conectora inteligente” (op. cit.,: 125) e continua, “ampliada ao extremo,

convertida em totalidade, a natureza desdobra-se na categoria inclusiva cosmos,

traduzindo, assim o movimento triádico para o registro sincrônico” (idem). A partir

deste entendimento pode-se perceber como as experiências místicas – como as que se

dão com a ayahuasca – podem ser consideradas vias de acesso a ensinamentos e canal

de respostas, como foi pedido por Bruxo no final dos Agradecimentos iniciais do ritual

de novembro de 2012: “que o trabalho nos dê muita luz, muita cura, muita harmonia,

clareza, respostas”. A energia é a “via direta das conexões cósmicas” (op. cit.: 126)

permeia a fala de Bruxo, por exemplo: “a força é a energia do Uno, do Todo, do

Xamanismo”.

Com isso, o corpo é percebido não apenas como o aspecto material, ou seja, o

invólucro do ser que ali está. Todavia, podem-se apreender estas percepções do corpo

não como um mero objeto, mas como um sujeito da percepção, no qual o corpo seria a

estrutura sensiente que possibilita essa apreensão do mundo, isto é, na condição de

antropólogo, a “experiência corporal como ponto de partida para análise cultural”

(Carvalho; Steil, 2008: 6). O corpo é uma dádiva.

A categoria “energia”, segundo Soares, “explica a enorme facilidade com que as

tradições religiosas mais diversas tendem a ser incorporadas ao grande mosaico

formado por bricolages particulares” (op. cit., p. 129). As palavras como “comungar” o

chá, o espaço de “devoção”, assim como a reza das orações “Pai Nosso” e “Ave Maria”

são claros elementos do cristianismo. As imagens de deuses hindus como Buda, Shiva,

Hare-Krishna e Vishnu, bem como os mantras indianos, revelam as características

orientalistas da cosmologia presente nos rituais; as Preces Xamânicas, as cumbucas, as

músicas xamânicas indígenas e ícaros (canções de cura) expressam a idealização do

arcaico e a vontade de se aproximar da raiz, da essência. Como bem trás Soares (op.

cit.: 135), “a espontaneidade remete ao primitivo (sempre valorizado), que se desdobra

no arcaico e no profundo. Deslizando no plano diacrônico, o arcaico estica a

antropologia ecológico-mística até raiz (outra noção relevante)”. Os elementos do Santo

Daime, com a figura do Mestre Irineu, bem como os hinos tocados na seleção musical,

igualmente revelam essa confluência de tradições religiosas. Percebe-se como a nova

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consciência religiosa estabelece uma relação com vários elementos e formas de

religiosidade, caracterizando uma errância pelas religiões institucionalizadas, resultante

da configuração cultural contemporânea.

O ritual xamânico formulado por Bruxo poderia ser associado ao que Groisman

(1999) intitula de práxis xamânica, compreendendo a relação íntima entre o xamanismo

e o uso de plantas alteradoras da consciência, caso da ayahuasca. Esta práxis ocorre

neste contexto suscitado pela modernidade e o surgimento da nova consciência

religiosa, normatizando de forma mais fluída os instintos e as emoções dos indivíduos,

bem como seus processos cognitivos.

É importante trazer para a reflexão a “vacuidade institucional que completa o

mundo alternativo” (op. cit., p. 139) e faz parte da utilização da ayahuasca entre os neo-

ayahuasqueiros. Isso é decorrência das características da modernidade, onde ocorrem

redefinições do lugar da religião e da religiosidade, a qual é resultado da modificação do

“compromisso religioso em mais um exercício de opção da subjetividade individual”

(op. cit., p. 143), sugerindo “que o fenômeno da “nova consciência religiosa” representa

a realização, talvez mais rigorosa e radical, da experiência religiosa moderna” (op. cit.,

p. 143).

A New Age como um movimento enraizado em uma rede de redes

vasta e complexa, no seu discurso e na sua prática, combina como direções

de mudança tanto a transformação individual como a sacralização do self e da

natureza, a cura, a espiritualidade, a circulação, o sincretismo, a liberação do

corpo e, como será visto, o anti-autoritarismo e a autonomia. (Carozzi 1999:

153)

No âmbito local, na cidade de Pelotas, como disse anteriormente, comecei a

perceber a constituição da rede ayahuasqueira na cidade em minha primeira conversa

com o Bruxo, quando me falou que conhecia alguns integrantes do grupo no qual

participei do meu primeiro ritual, no Instituto Espiritual Xamânico Cascata de Luz; um

tempo depois, fiquei sabendo que ele foi ao ritual de encerramento daquele grupo, o

mesmo que fui convidado para participar via e-mail e optei por não ir. Um tempo

depois, em conversas informais com os participantes no ritual xamânico do Caminho do

Arco-Íris, soube que outros participantes, que conheci nos rituais, também se faziam

presentes nos rituais de lá, mas preferiam o ritual organizado pelo Bruxo. Com o tempo,

em outras conversas informais, soube que alguns participavam dos rituais no Santo

Daime (além do Bruxo, que não costuma ir mais), bem como faziam ou já haviam

participado de outros grupos e outras atividades como, por exemplo: o Mística Andina e

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o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), assim como as atividades de artes

marciais como o tai chi chuan e o ioga, além de Ione que é umbandista.

Com o exposto acima, percebi que a rede ayahuasqueira em Pelotas se constituía

maior do que imaginava a princípio, pois haviam três grupos (hoje dois, que eu saiba)

que utilizavam a ayahuasca na cidade, cada um com sua cosmologia e sua estrutura

ritual, assim como com formas distintas de contato com a rede ayahuasqueira brasileira.

Nota-se, com essas informações, que há um circuito neo-esotérico (Magnani, 1999) na

cidade de Pelotas e que haviam trajetos que iam para além da ayahuasca, pois os

participantes realizavam e participavam, em sua maioria, de outras atividades. Cabe

aqui conceituar o circuito e o trajeto; um circuito é formado pelas interconexões dos

espaços, os quais possibilitam o exercício da sociabilidade entre seus usuários, mas de

forma independente aos endereços particulares que o compõem. No interior do circuito,

coexiste a categoria trajeto, sendo este o resultado de escolhas particulares dentro do

circuito; o trânsito de trajetos semelhantes dentro do circuito, forma “uma teia de

encontros mais vasta, ampliando a sociabilidade estabelecida no interior de cada espaço

identificado com o universo neo-esô” (Magnani, 1999: 69). Um dos circuitos, seria o

“circuito ayahuasqueiro” com os três grupos que identifiquei, sendo que o trajeto se

constitui como resultado da escolha individual de participar de um ou de outro grupo,

ou mesmo de dois ou de todos.

Sobre a legitimidade da utilização da ayahuasca e a situação de vácuo jurídico e

institucional no qual se encontra, no caso deste trabalho, o uso da ayahuasca no grupo

neo-ayahuasqueiro Caminho do Arco-Íris se conforma como um uso legítimo, já que a

legislação brasileira permite o uso ritual e religioso da ayahuasca. No caso do Caminho

do Arco-Íris, a ayahuasca é consagrada e a utilização do chá psicoativo se dá em um

contexto ritualizado. A religião é etnocêntrica e, neste caso, é definida de maneira

negativa36

, isto é, por oposição, por aquilo que não é religião, que seria o uso recreativo,

terapêutico ou não-ritual. Mostra-se aí que há um paradoxo, pois há a regularização do

uso religioso e ritual, mas não o terapêutico e, como afirmei anteriormente, acredito que

exista uma confluência desses usos, o religioso e o terapêutico, dentro de um contexto

ritual, no Caminho do Arco-Íris. Deve-se esclarecer, que “a tensão (...) entre o uso ritual

e não-ritual existe nos planos teórico e conceitual, e da perspectiva das representações

36

Beatriz C. Labate em comunicação pessoal.

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dominantes, porque na prática não se coloca desta forma para os sujeitos diretamente

envolvidos com essas atividades, os neo-ayahuasqueiros” (Labate, 2004: 98-99).

O uso religioso das plantas psicodélicas é uma questão de direitos

civis; sua restrição é a repressão de uma legítima sensibilidade religiosa. De

fato, não é uma sensibilidade que está sendo reprimida, mas a sensibilidade

religiosa, uma experiência da religio baseada no relacionamento entre plantas

e seres humanos que existe muito antes do advento da história. (McKenna,

1995: 22-23).

Como bem explicita Terence McKenna na citação acima, as “drogas” não

existem, isto é, são invenções humanas, datadas a não muito tempo e seus significados

variam conforme contextos culturais específicos. A desterritorialização da ayahuasca da

região amazônica fez com que esta alcançasse uma diversificação de usos, os quais

fazem parte da dinâmica cultural da sociedade contemporânea, fazendo com que seja

um tema candente de estudos e investigações científicas, especialmente na antropologia,

para que a reflexão sobre este fenômeno tão complexo receba uma abordagem

transdisciplinar e adequada aos múltiplos campos que permeia.

Concluindo, pode-se pensar em relação ao Grupo Xamânico Caminho do Arco-

Íris, nas comunidades emocionais (Hervieu-Léger, 2004), as quais são entendidas como

uma formação em torno de grupos voluntários, apontados por um compromisso pessoal

e uma adesão de tipo afetiva. Estas são características da modernidade e se encontram

presentes nas relações inerentes ao universo Nova Era e, em especial, marcante do

Caminho do Arco-Íris. Constituindo, na linguagem apropriada deste universo simbólico,

um feixe da nova consciência religiosa no coração da cidade Pelotas/RS, pois é ali que

Bruxo é encontrado há anos, vendendo seus artesanatos, como agente central de uma

rede de relações diversas, voluntárias, pessoais e afetivas, seguindo o seu caminho do

coração.

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