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AVENTURANDO-SE NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERCULTURAIS PARA A LEI 11.645/08: SABERES E PRÁTICAS CORPORAIS INDIGENAS Considerando que o conhecimento da Lei 11.645/08 que recomenda a inserção de aspectos da cultura afro-indígena nas escolas foi que ao planejarmos as Olimpíadas inclusivas 2015 da Escola Municipal de Educação Básica Ministro Marcos Freire em Cuiabá, MT, tomamos a decisão de dar início ao processo de inserção-inclusão desta lei com as crianças da Educação Infantil e as do 1º, 2º e 3º anos (1º ciclo do ensino fundamental) através da metodologia da pesquisa ação. Acadêmicos do curso de licenciatura em educação física de uma faculdade privada, estagiários, amparados por esta lei, foram orientados a planejarem uma estação de jogos indígenas através de um projeto de implementação/implantação da Lei 11.645/08 com aspectos da cultura indígena durante o Estágio Supervisionado I. Optou-se por dois jogos “corrida com tora” e “arco-e-flecha, que foram desenvolvidos em uma estação temática por cerca de 250 crianças distribuídas em cinco equipes Além do componente lúdico-desafiador destes jogos, percebeu-se o quanto todos participaram interessados em conhecerem os jogos indígenas, tanto as crianças quanto professoras/es. Considera-se que as boas condições de início da inserção dos jogos indígenas nesta comunidade escolar, que possibilitou a interculturalidade, seja apenas um marco desafiador para se continuar aprofundando nesse tema e sobretudo espera-se que a história e a cultura indígena que requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos por parte de todos, sejam conhecidas e valorizadas nas suas peculiaridades e, sobretudo, espera-se que os participantes tenham histórias para se contar sobre esse tema. Palavras-chave: Lei 11.645/08. Interculturalidade. Jogos Indígenas. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10294 ISSN 2177-336X

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AVENTURANDO-SE NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERCULTURAIS

PARA A LEI 11.645/08: SABERES E PRÁTICAS CORPORAIS INDIGENAS

Considerando que o conhecimento da Lei 11.645/08 que recomenda a inserção de

aspectos da cultura afro-indígena nas escolas foi que ao planejarmos as Olimpíadas

inclusivas 2015 da Escola Municipal de Educação Básica Ministro Marcos Freire em

Cuiabá, MT, tomamos a decisão de dar início ao processo de inserção-inclusão desta lei

com as crianças da Educação Infantil e as do 1º, 2º e 3º anos (1º ciclo do ensino

fundamental) através da metodologia da pesquisa ação. Acadêmicos do curso de

licenciatura em educação física de uma faculdade privada, estagiários, amparados por

esta lei, foram orientados a planejarem uma estação de jogos indígenas através de um

projeto de implementação/implantação da Lei 11.645/08 com aspectos da cultura

indígena durante o Estágio Supervisionado I. Optou-se por dois jogos – “corrida com

tora” e “arco-e-flecha, que foram desenvolvidos em uma estação temática por cerca de

250 crianças distribuídas em cinco equipes Além do componente lúdico-desafiador

destes jogos, percebeu-se o quanto todos participaram interessados em conhecerem os

jogos indígenas, tanto as crianças quanto professoras/es. Considera-se que as boas

condições de início da inserção dos jogos indígenas nesta comunidade escolar, que

possibilitou a interculturalidade, seja apenas um marco desafiador para se continuar

aprofundando nesse tema e sobretudo espera-se que a história e a cultura indígena que

requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos por parte de todos, sejam

conhecidas e valorizadas nas suas peculiaridades e, sobretudo, espera-se que os

participantes tenham histórias para se contar sobre esse tema.

Palavras-chave: Lei 11.645/08. Interculturalidade. Jogos Indígenas.

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PRÁTICAS CORPORAIS INDÍGENAS INSERIDAS À EDUCAÇÃO FÍSICA

ESCOLAR NÃO INDÍGENAS

Gédson Cardoso Kempe - FCARP

Attico Inácio Chassot - REAMEC

RESUMO

Nas aulas de Educação Física, usualmente, se observa práticas corporais que são

alienígenas ao mundo cultural dos educandos e, muitas vezes, até do mundo dos

professores. Assim, o objetivo principal desse estudo foi desenvolver uma pesquisa-

ação, sobre as práticas corporais indígenas, para melhor compreender como essas

acontecem e como poderiam ser utilizadas na composição dos currículos da educação

física escolar em escolas não-indígenas. Partindo dessa análise e compreensão, buscou-

se construir uma proposta de uma Educação Intercultural. Num campo mais específico,

houve tentativas de compreender e utilizar práticas corporais sistematizadas de outras

culturas, como uma forma de refletir, por deslocamento, sobre os próprios padrões

culturais, ponderar sobre as relações de identidades e valorizar a pluralidade

sociocultural. Procurou-se avaliar práticas corporais indígenas enquanto caminho

inverso do que usualmente ocorre, isto é, ao invés de impor aos indígenas a cultura dita

branca, houve a tentativa de trazer a cultura destes à escola não-indígena. Assim, se

propôs uma aproximação com culturas usualmente não consideradas na escola não-

indígena. Os dados foram coletados e analisados em uma perspectiva qualitativa,

utilizando-se a observação, entrevista e referenciais acerca do contexto, podendo-se

caracterizar como uma Pesquisa-Ação. Os sujeitos da pesquisa foram os acadêmicos de

um Curso de Licenciatura em Educação Física da Faculdade Rainha da Paz (FCARP),

uma faculdade isolada privada do Oeste do Mato Grosso. Com o presente estudo

evidenciou-se a necessidade de cumprir e fazer cumprir Leis que disciplinam a trazida

da cultura indígena à Escola. Na elaboração da pesquisa houve a convicção de que há

necessidade urgente de se preservar saberes populares detido por diferentes culturas, até

porque muitos destes correm o risco de desaparecerem.

Palavras-chave: Educação Física. Formação de professores. Lei 11.645/2008.

Introdução

Este estudo, recorte de uma dissertação de mestrado da qual fomos orientador e

orientando, se inscreve na área da Educação, especificamente a Educação Física, e o

todo escolar em que está imerso esse componente curricular e visa investigar como as

práticas corporais indígenas poderiam ser utilizadas na composição dos currículos da

educação física escolar.

De caráter qualitativo, o presente estudo buscou “uma avaliação da relevância

política dos grupos e das ideias que vinculam dentro de certa conjuntura ou movimento.

Trata-se de chegar a uma representação de ordem cognitiva, sociológica e politicamente

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fundamentada. Com possível controle ou ratificação de suas distorções no decorrer da

investigação” (THIOLLENT, 2005, p. 69).

O percurso da investigação foi dividido em três grandes etapas: a) levantamento

do material bibliográfico; b) classificação do material selecionado como fonte de

pesquisa; e c) proposição de formas de execução e levantamento das informações e

resultados finais.

Os sujeitos do estudo foram acadêmicos do 5º Semestre do Curso de

Licenciatura em Educação Física da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP) na

cidade de Araputanga-MT, com a faixa etária entre 20 a 40 anos de ambos os sexos.

O estudo foi dividido em três fases a saber:

1ª fase – Situar os acadêmicos acerca dos objetivos da pesquisa e formas que a

mesma se realizaria. Aqui foi oferecido aos alunos opção de participar da pesquisa ou

não, para tal, utilizamos recursos audiovisuais como slides, vídeos, filmes,

documentários, assim como materiais impressos como artigos, livros, relatos e histórias

Com o tema, prática corporal indígena, os acadêmicos tiveram a incumbência de

elaborar no mínimo 10 (dez) seções – planos de aula.

2ª fase –Realização de seções de aula, com duração de 01 (uma) hora/aula, que

foram executados em Escolas públicas não indígenas da região geo-educacional onde

está a Faculdade onde estudavam os acadêmicos de Educação Física, como atividade de

estágio, que em conformidade com o Cronograma de Supervisão Pedagógico-

Avaliativa do Estágio Curricular Supervisionado Fase III – FCARP - Regência:

planejamento de planos de aulas e regência de aula com duração mínima de 40

(quarenta) horas/aula, teóricas e práticas.

Para aprimorar os conhecimentos e o envolvimento acerca das práticas corporais

indígenas, foi realizado um Seminário, intitulado: “1º Seminário de Práticas Corporais

Indígenas”, aberto a toda a população e acadêmicos, em especial aos acadêmicos do

Curso de Licenciatura em Educação Física, envolvidos na pesquisa, onde foram

abordados assuntos referentes às práticas corporais indígenas, através de palestras e

mesas redondas, com condução e orientação pesquisadores da temática. Assim como

oficinas temáticas sobre as práticas corporais indígenas e apresentação das práticas

corporais realizadas e materiais confeccionados.

3ª fase – Ao término de todas as seções, tanto as teóricas quanto as práticas, os

acadêmicos tiveram a oportunidade de, através de uma roda de conversa, expor suas

vivências, pontuando os pontos positivos e negativos, de aplicação das práticas

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corporais indígenas como conteúdo nas aulas de educação física das escolas não

indígenas.

Delimitar a FCARP como espaço para a pesquisa, justifica-se por ser esta

instituição lócus desencadeador de discussões acerca da diversidade cultural e também

de saberes, e de forma mais específica, o local onde há uma maior possibilidade de ter

acadêmicos interessados na temática da pesquisa, por serem futuros profissionais da

área, ou moradores da região. Outro fato a constatar, foi a necessidade dos cursos

formadores de professoras e professores promover e transmitir a cultura brasileira e

regional, em suas diferentes modalidades, tornando-a patrimônio de toda comunidade.

Deve-se salientar também que um dos autores deste relato de pesquisa é professor

responsável por disciplinas de formação pedagógica da Licenciatura em Educação

Física, na instituição antes referida.

Os instrumentos para coleta de dados foram empregados em duas fases. Na

primeira foi utilizada a observação, na segunda foi realizado uma entrevista

semiestruturada. As entrevistas aconteceram, seguindo um questionário com 15 (quinze)

perguntas abertas, foi realizada, individualmente, no curso de Educação Física da

FCARP. As entrevistas aconteceram logo após o término das sessões de aulas.

A pesquisa teve uma abordagem qualitativa, para tanto foi utilizado a

observação, entrevista e documentos.

Para a coleta de dados foram percorridos três momentos, a saber: 1) Roda de

conversa, onde eram traçados caminhos a serem percorridos, bem como os conteúdos

das práticas corporais indígenas e materiais que seriam ou poderiam ser utilizados,

sempre levando em consideração os escolares e os espaços físicos de cada unidade

escolar parceira na pesquisa.

2) Seminário de práticas corporais indígenas: contou com a participação do

Grupo de Estudo e Pesquisa do Curso de Educação Física – GRUEFIS, vinculado à

FCARP, objetivou a vivência de práticas corporais indígenas, com foco na Lei nº

11.645, de 2008.

3) Questionário/observações: nessa parte da coleta de dados propiciou a

efetivação dos anseios anteriores à pesquisa. Feedback ímpar, e ao mesmo tempo

orientando novos caminhos.

Com o objetivo de identificar as práticas corporais indígenas que poderiam ser

inseridas no currículo da Educação Física Escolar em Escolas não indígenas, mais

especificamente analisar práticas corporais sistematizadas para compreensão de outras

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culturas, ponderando sobre identidades e as relações com a pluralidade sócio cultural,

assim como avaliar a prática corporal indígena e as contradições com as práticas usuais,

desta forma aproximar culturas indígenas com as práticas curriculares de escolas não

indígenas.

Este estudo se construiu a partir da experiência de mais de 19 anos, do então

mestrando, como docente da Educação Básica, a vivência com o ensino da Educação

Física Escolar em diferentes localidades do Estado de Mato Grosso (MT), em especial,

a região dos municípios de Castanheira e Juína, onde encontram-se aldeias indígenas.

A um dos autores pode ser conferido status privilegiado para propor e

desenvolver pesquisa acerca do tema, pois desenvolve atividades profissionais tanto no

ensino fundamental e também no médio, além de se envolver, enquanto docente do

ensino superior na formação professoras e professores de várias partes da região.

Com a pretensão de oportunizar aos acadêmicos do Curso de Licenciatura em

Educação Física da Faculdade Católica Rainha da Paz – FCARP, contato com uma nova

possibilidade de saberes científicos, que apesar de serem natos da terra, ainda não fazem

parte das práticas corporais aprendidas ou ensinadas dentro das escolas. Também vale

destacar as relações e modificações na forma de ver e viver a vida, o que possibilita,

quase como um subproduto muito significativo a (re)valorização de parentescos,

restabelecendo laços familiares.

Não menos relevante, para a preposição deste estudo, a possibilidade de trazer

para dentro das escolas, mais especificamente nas aulas de educação física, os saberes

primevos, os quais Chassot caracteriza-os como populares, primitivos ou da tradição.

Saber primevo é produzido a partir de práticas sociais de grupos específicos. Pode ser

considerado um saber cotidiano, do ponto de vista de um pequeno grupo. De maneira

geral eles são importantes para que determinada população viva melhor (CHASSOT,

2008).

Assim na “busca” de saberes populares, que correm o risco de extinção, e trazê-

los para a sala de aula. Na escola, esses saberes podem ser trabalhados à luz dos saberes

acadêmicos, para então converterem-se em saberes escolares” (CHASSOT, 2014, p.

119), nesta direção realizamos o presente estudo com pretensão de investigar “Práticas

corporais indígenas inseridas à educação física escolar não indígenas”, analisando a

possibilidade da implantação das mesmas nos currículos escolares e acadêmicos de

escolas não indígenas, priorizando a socialização, privilegiando a postura e a cultura dos

povos indígenas e enfatizando a relevância para a Educação Física escolar.

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Ao levar os acadêmicos a defrontarem-se com problemas elencados nesse

estudo, assim como a sua participação nas discussões preliminares, na realização dos

experimentos e na organização de atividades de intervenção, propiciando um

aprendizado único, diferenciado, desafiador, capaz de desencadear novas motivações,

desta forma podendo tornarem-se agentes transformadores dentro da educação por meio

das práticas corporais indígenas.

Parece possível afirmar que tal situação não terá um desfecho, sem que haja uma

mudança em nossa postura enquanto formadores de futuros professores, uma mudança

significativa onde passemos a procurar e propor caminhos, novas formas de pensar e

agir. Nessa perspectiva proponho a pesquisa que poderá tornar-se significativa para

promover tais mudanças.

Desta forma, sendo menos evasivos no sentido de não adentrar em aldeias e mais

efetivos em colocar em prática o que já fora estudado por detentores de experts em

culturas indígenas brasileiras, sendo provável que assim se contemple a necessidade de

olharmos com novos óculos as práticas corporais indígenas.

Um diálogo onde saberes primevos se fazem saberes escolares

Marcados por algumas incertezas, e, talvez, anunciando propostas alternativas a

novas abordagens para a Educação Física escolar, que visem tornar possível um ensino

emancipatório, capaz de formar sujeitos críticos e conscientes da realidade de sua

comunidade, região e país.

Mesmo colocando-se como lócus da pesquisa o Oeste do Estado do Mato

Grosso, região habitada há séculos por vários povos indígenas, percebemos, no

transcorrer de um semestre de atividade docente, acompanhando atividades de Estágio

Supervisionado, com alunos do 4º Semestre do Curso de Licenciatura em Educação

Física da FCARP, que sabíamos muito pouco sobre nossos ancestrais e vizinhos.

As aulas de Educação Física Escolar são essenciais para a formação integral da

criança e do adolescente, razão pela qual as mesmas têm caráter obrigatório no currículo

escolar. A LDBEN (Lei 9394/96) é explícita: “Art. 26. Os currículos do ensino

fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em

cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida

pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura e da economia” e no

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parágrafo 3º consagra: “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é

componente curricular obrigatório da educação básica”.

Por meio da Lei nº 11.645, de 2008, que inseriu alterações na LDBEN buscando

valorizar as diferentes matrizes formadoras da cultural brasileira, isto está explícito nos

seguintes artigos, nos quais se fez grifos:

Art. 26- A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,

públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-

brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população

brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história

da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a

cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da

sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,

econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos

indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo

escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história

brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

Parafraseado com Chassot (2014) quando propõe que se estimulem os estudantes

a buscarem nos saberes primevos o resgate de práticas sob risco de extinção, fica

evidente a preocupação com a preservação do conhecimento de maneira similar àquela

proposta aqui. O autor completa que “a escola, não obstante, precisa aprender a

valorizar os mais velhos e os não letrados como fontes de conhecimentos que podem ser

levados à sala de aula. Evocamos, uma vez mais, a metáfora que esteve muitas vezes

presente quando se discutia o tema da dissertação: “Quando um velho morre, é como

uma biblioteca que queima” (CHASSOT, 2014, p. 122).

Assim, Chassot (2014, p. 122) diz que “[...] há necessidade de procurar saberes

populares, estudá-los – com ajuda dos saberes acadêmicos – e, se possível, torná-los

saberes escolares [...] ”, para o enfrentamento dos desafios postos por um mundo em

transformação no âmbito do trabalho, do conhecimento e das relações sociais. Inserto

em uma realidade na qual existem várias etnias indígenas, verifica-se o

desconhecimento das práticas corporais dos povos indígenas por parte dos alunos da

escola não indígena. Partindo dessa realidade, parece significativo promover um diálogo

dentro de um processo de socialização e aproximação, e privilegiando a cultura do povo

indígena e trazendo-a para dentro da escola tradicional.

Isso por compreendermos que as “[...] práticas corporais que tradicionalmente

compõem os conteúdos de ensino da Educação Física contribuem para desqualificar e

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até eliminar práticas corporais tradicionais indígenas” (GRANDO, 2004, p. 17), pois na

maior parte das situações as práticas corporais propostas são alienígenas ao mundo

cultural dos educandos e, muitas vezes, até do mundo dos professores.

Assim, Castro (2009, p. 235) “[...] entende que a pedagogia da cultura corporal,

da mesma forma que as intervenções educativas, não poderão permanecer inalteráveis

diante das modificações produzidas no seu entorno social e cultural”. Enfatiza que nesse

sentido, cada escola deve desenvolver currículos que levem em conta os fatores que

configuraram o surgimento e a reprodução de determinadas práticas corporais, bem

como o repertório das manifestações da linguagem corporal que caracterizam os grupos

que coabitam a escola.

Aqui é oportuno recordar Chassot (2008) quando afirma a convicção de que há

necessidade urgente de se preservar saberes populares, até porque muitos correm o risco

de desaparecerem. As práticas corporais indígenas, mesmo que ainda não sejam

reconhecidas como saberes populares, porém, oferecem inúmeras contribuições para a

formação de nossas sociedades. Aliás, muitas dessas práticas corporais indígenas são ou

foram praticadas por nós e por nossos familiares, só que sem a conotação de indígenas,

com outros nomes.

Esse é um bom exemplo e certamente muitos já passaram por esses dilemas,

principalmente na atualidade, onde atuar nas Escolas está cada dia mais desafiador por

vários fatores não citados aqui, por se tratarem de temas que demandariam outros

trabalhos e pesquisas. É explícito que a Educação Física é um componente curricular

obrigatório garantido na Lei e integrado à proposta pedagógica da Escola, é uma

disciplina formativa e deve ter as mesmas valorizações das demais disciplinas.

Por essa e outras razões, somos tomados por uma quase certeza de estarmos no

caminho certo. Devemos ampliar as discussões sobre a Educação Física e suas práticas,

para que as mesmas possam ser reconhecidas como uma disciplina formadora, assim

como de fato ela deve ser. Ampliar os desafios, propormos práticas inovadoras, nos

remetendo a rever nossos conceitos e métodos de ensino.

Talvez um dos maiores desafios desta pesquisa tenha sido propiciar a mudança

de olhares dos acadêmicos acerca das práticas corporais indígenas, já que quase todos

tinham visão estereotipada dos povos indígenas, pois foram formados dentro dessa

ótica. Fazer o caminho inverso do que habitualmente se faz, foi essencial para essa

mudança de postura.

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Dedicarmo-nos à formação de professoras e professores, parece-nos, no

momento, a decisão mais certa, pois dentro de um processo onde se busca a mudança é

crucial que se inicie em nós. Também não queremos afirmar que todo o processo de

formação está equivocado, mas sim, enfatizar a necessidade de oportunizar novos

saberes, novos conhecimentos que venham acrescentar nessa formação em curso.

Através da fala dos acadêmicos, observa-se a necessidade da inserção dos

mesmos em novas práticas, novas formas de perceberem a Educação Física, priorizando

saberes adormecidos, encobertos por preconceitos, dogmas estereotipados por quem na

verdade sempre procurou, de forma unilateral, se impor como dominante. Estabelece-se

assim a necessidade de colocar em prática esses saberes, na busca de novas

possibilidades para a docência da Educação Física.

Com o transcorrer das observações, na medida em que os problemas se

apresentavam, observa-se nos acadêmicos a falta de uma vivência direcionada às

práticas corporais indígenas, local destinado ao fazer pensar, aprender e praticar, todas

as possibilidades que se desenham através dessa nova prática. Parecia surgir a

necessidade de uma nova disciplina nos currículos das Instituições Superiores. Em

vários momentos da pesquisa, testemunhamos o total desconhecimento sobre os povos

indígenas, dentro e fora da Escola. Ao abordarmos a temática indígena na Escola, é

comum sermos indagados sobre os “índios”. Primeiramente, não deveríamos usar esse

termo: “índios”, uma vez que o mesmo foi uma criação dos colonizadores, para

justificar um erro, intencional ou não.

De acordo com Gusmão (2003), “Índio” é uma construção branca, pois, “os

povos indígenas são guarani, avá, terena e outros, mas não são índios”. Segundo a

autora, chamar todos de “índios” implica desrespeitar a especificidade de cada grupo,

“alocá-los em um único “padrão cultural”, desconsiderando o que são de fato e o que

pensam sobre si mesmos como componentes de uma história singular de grupo que tem

suas próprias marcas, portadoras de significados, sentidos e visão de mundo únicos”

(GUSMÃO, (2003) Apud OLIVEIRA, 2007).

Na Escola, essas indagações não devem possuir simples respostas, pelo

contrário, devem demandar debates e pesquisas, principalmente, dentro das aulas de

Educação Física. Os acadêmicos souberam aproveitar tais momentos, aprofundando

sobre as práticas corporais indígenas e oportunizando aos escolares serem inseridos nas

atividades, pesquisando sobre as práticas, confeccionando os materiais e vivenciando a

sua prática. Essas ações nos deixam mais convictos para, mais uma vez, enfatizar a

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necessidade da inclusão das práticas corporais indígenas nas aulas de Educação Física.

Há possibilidades de se elaborar projetos de caráter interdisciplinar, envolvendo toda a

comunidade escolar.

Pensar as práticas corporais indígenas com esses óculos, seria mais uma vez,

diminuí-la, reduzindo a uma mera imagem folclórica essenciais em datas

comemorativas, onde tem a função de mostrar a escola como um local onde as culturas

são respeitadas, principalmente as culturas renegadas. Uma simples prática cultural fora

do processo socioeducativo, os educandos, disseminando estereótipos, que atentem aos

interesses dos dominantes e aos menos informados, dando uma sensação de saciedade

de outras culturas, de civilidade, necessárias à formação de seres “críticos”, que na

verdade são apenas reprodutores de estigmas.

O fato de discutirmos, dentro da Escola, sobre essas práticas ocasionou uma

movimentação de várias esferas daquela comunidade escolar. Parece que o professor

regente veio até à coordenação e falou sobre um estagiário do Curso de Educação Física

que iria ministrar suas aulas naquela unidade escolar, e teria como conteúdo as práticas

corporais indígenas. Essa por sua vez fez o mesmo percurso com a direção da escola.

Uma nítida mudança de olhar sobre as práticas dos povos indígenas, pois se

imagina o ponto de interrogação em suas cabeças, perante o fato de as práticas corporais

indígenas nas aulas de Educação Física? O que vai acontecer? Como vai acontecer?

Estamos preparados? Temos espaço físico? E os materiais, são suficientes?

Nesse ponto, pensamos ser as práticas corporais indígenas, fator que pode

propiciar prazer, ao mesmo tempo, se tornar um agente diversificador dos conteúdos da

Educação Física, por seu caráter inovador e com resquícios nostálgico, pois podemos

reviver novas/velhas maneiras de aprender sobre nossos limites, respeitando o limite

dos outros.

Ao contrário do que parece, as práticas corporais indígenas são de fácil

aplicabilidade, apresentando inúmeras possibilidades tais como a confecção de

materiais, realização de teatros, coreografias e danças, entre outras, que pensamos poder

oportunizar aos profissionais de Educação Física um grande leque de possibilidades e

variações, o que fatalmente poderá desencadear um grande interesse pela disciplina.

Conviver com as diferenças dos outros não pode ser considerado um fardo,

tampouco nos esforçarmos para negar a existência de outras culturas, outras práticas,

contudo, devemos sim é reconhecer nossa dependência dessas práticas, afinal, mesmo

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não reconhecendo essas sociedades, vivemos rodeados de práticas pertinentes aos povos

indígenas.

(Quase) Conclusões

Quando nos dedicamos a esses estudos, desafiadores porque, quase inéditos na

realidade estudada, lembramo-nos de citação atribuída a Isaac Newton, talvez um dos

maiores gênios da Ciência, “Se consegui enxergar tão longe, é porque me apoiei em

ombros de outros gigantes! ” Não sem razão que há um excerto desta frase na abertura

Google acadêmico.

Dentro de um processo de socialização entre os povos não indígenas, vemos um

total asfixiamento da cultura indígena, onde sempre permeiam a ideia de inferioridade e

uma imposição de uma cultura elitizada. Dentro desse processo devemos promover

ações que venham realizar o estreitamento e a sutura de todo esse processo.

Esse comentário reflete que, mesmo sendo a região onde se realizou a

investigação aqui descrita rodeada de aldeias e povos indígenas, a comunidade escolar

regional apresenta ainda uma visão estereotipada sobre os povos indígenas e sobre sua

cultura, por sinal, a compreensão apresentada nos remete a imagens e rótulos impostos

pelas mídias ou através das próprias escolas, por meio dos livros didáticos, que na sua

maioria apresentam-se distantes de nossas realidades.

As práticas realizadas no presente estudo nos evidenciaram outros desafios: a

urgente necessidade de produção, com assessorias de pesquisadores e especialistas de

diferentes mídias, subsídios didáticos, textos, sobre as práticas corporais indígenas para

serem utilizados em sala e também fora dela.

Realizar discussões, principalmente no meio acadêmico, formador de novos

profissionais, objetivando o aprimoramento dos conhecimentos. Através da realização

do 1º Seminário Sobre as Práticas Corporais Indígenas, descrito na seção “Resultados e

Discussões” que fez parte da dissertação da qual este texto é um excerto, passamos a

conviver com práticas inovadoras, que podem diminuir as diferenças, e oferecer novas

alternativas às práticas corporais usualmente presentes nas aulas de Educação Física.

Trazer a temática das práticas corporais indígenas para dentro da Escola é

procurar fazer o caminho inverso ao habitual. O propósito, aqui, foi o de demonstrar,

que as práticas corporais indígenas passem a reconhecer os povos indígenas, longe de

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um senso comum, e considerá-los como portadores de uma cultura pura que tem suas

identidades sistematicamente negadas.

Encaramos a presente pesquisa como ponto de partida para o ensino crítico da

temática indígena pensando na atualidade, desvinculando da ideia de um passado

colonial e com ênfase na sua sociodiversidades desmistificando imagens genéricas do

índio, e da cultura indígena. Repensando a ideia equivocada da presença do “índio”

apenas na época remota, problematizando a sua influência nas várias instâncias, no

processo de formação de nossas sociedades, enfatizando momentos de convivência

entre os povos indígenas e os povos não indígenas.

É nesta dimensão, que nos encorajamos e somos encorajados por nossos pares

para prosseguir meus estudos, tanto contribuído para a melhor implementação de uma

nova disciplina, fazendo-a catalisadora de um espaço para a trazida de uma continuação

de estudos desenvolvidos nesta dissertação, bem como um de nós definir-se na busca de

uma formação doutoral. Estes são sonhos. É preciso fazer realidade de nossas utopias.

Referências

ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas,

SP: Papirus, 1995.

BRASIL, Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que

estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da

rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e

Indígena”.

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A AVENTURA DA AÇÃO INTERCULTURAL ESCOLAR COM JOGOS

INDÍGENAS - HISTÓRIA QUE SE DEVE CONTAR

Valda da Costa Nunes

COEDUC/PPGE/UFMT - SME/CUIABÁ

RESUMO

Considerando que o conhecimento da Lei 11.645/08 que recomenda a inserção de

aspectos da cultura afro-indígena nas escolas foi que ao planejarmos as Olimpíadas

inclusivas 2015 da Escola Municipal de Educação Básica Ministro Marcos Freire em

Cuiabá, MT, tomamos a decisão de dar início ao processo de inserção-inclusão desta lei

com as crianças da Educação Infantil e as do 1º, 2º e 3º anos (1º ciclo do ensino

fundamental) através da metodologia da pesquisa ação. Acadêmicos do curso de

licenciatura em educação física de uma faculdade privada, estagiários, amparados por

esta lei, foram orientados a planejarem uma estação de jogos indígenas através de um

projeto de implementação/implantação da Lei 11.645/08 com aspectos da cultura

indígena durante o Estágio Supervisionado I. Optou-se por dois jogos – “corrida com

tora” e “arco-e-flecha, que foram desenvolvidos em uma estação temática por cerca de

250 crianças distribuídas em cinco equipes Além do componente lúdico-desafiador

destes jogos, percebeu-se o quanto todos participaram interessados em conhecerem os

jogos indígenas, tanto as crianças quanto professoras/es. Considera-se que as boas

condições de início da inserção dos jogos indígenas nesta comunidade escolar, que

possibilitou a interculturalidade, seja apenas um marco desafiador para se continuar

aprofundando nesse tema e sobretudo espera-se que a história e a cultura indígena que

requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos por parte de todos, sejam

conhecidas e valorizadas nas suas peculiaridades e, sobretudo, espera-se que os

participantes tenham histórias para se contar sobre esse tema.

Palavras-chave: Lei 11.645/08; Interculturalidade; Jogos indígenas;

Introdução

Ao pronunciar que “O homem é um animal amarrado a teias de significados que

ele mesmo teceu”, Max Weber admite que somos seres de escolha e, ao concordar com

esta tese, Clifford Geertz (2013), assume a cultura como sendo essas teias e a sua

análise como uma ciência interpretativa à procura do significado, acrescentando que “A

cultura é formada por teias de significados tecidas pelos homens”.

Sob os efeitos semióticos das imagens que estas teses complementares me

provocam, e reconhecendo que a Lei 11.645/08 é um forte fio de uma possível ampla e

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significativa teia de conhecimentos que vem auxiliando profissionais que se sentem

provocados, impelidos e comprometidos com as questões indígenas em nosso estado,

em nosso país, foi que enveredamos numa pesquisa ação que envolveu acadêmicos de

educação física de uma instituição privada de ensino superior, alunos e alunas de uma

escola municipal de educação básica (Educação Infantil e 1º Ciclo), de Cuiabá, MT

buscando criar metodologias para tecer esta teia de significados em torno da experiência

de implantação desta lei.

Durante o planejamento das Olimpíadas inclusivas 2015, e ao realizar a escolha

de alguns jogos que fossem provocativos, instigantes, diferentes, mais próximos de uma

aventura, para compor as suas estações temáticas, optamos por incluir, dois jogos da

cultura indígena – “corrida de tora” e “arco e flecha” que foram eleitos não por acaso,

mas pelo fato de que já era do nosso interesse, implementar esta Lei 11.645/08 nesta

escola a fim de possibilitar aos alunos e alunas, a iniciação no conhecimento da cultura

indígena e, ao mesmo tempo, poderem corporificar experiências motoras

compartilhadas.

Mas as teias mudam com o passar dos tempos mudando também os seus apoios

e passando a gerar necessidades de mudanças educacionais e consequentemente,

mudanças no próprio ser humano diz Goulart (2011) em seu texto sobre professores e

aranhas. Ao mudar o apoio ou os apoios, o professor ou professora se desequilibra e

sente necessidade de lançar um novo fio ou partir para a construção de uma nova teia.

Assim, o objetivo desta pesquisa ação, foi o de compreender como se deu a

tecedura da teia de significados desta implementação/implantação da Lei 11.645/08,

pela identificação de seus fios fundantes.

O primeiro fio – a sensibilização dos estagiários

O primeiro fio, foi a providência, como orientadora, de mostrar aos acadêmicos

estagiários, alguns fios da teia de significados em torno da cultura indígena e de como

ela tem avançado ao longo da história. Conversamos sobre a obra de Berta Gleizer

Ribeiro, “O índio na história do Brasil” a fim de demonstrar-lhes que a história que se

conta sobre os indígenas no nosso país nada tem a ver com a verdadeira história sobre

eles e que não se conta; uma história de marginalização progressiva tanto geográfica

quanto cultural.

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10308ISSN 2177-336X

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A intensão foi a de sensibilizar aos acadêmicos/as para que se sentissem

provocados a querem se enveredar na construção da teia da implantação da Lei

11.645/08 de maneira consciente.

O segundo fio – a Lei 11.645/08

O segundo fio dessa etapa, foi a proposição da leitura conjunta, com os

acadêmicos estagiários, da Lei 11.645/08, por considerarmos que ela representa um

avanço em termos de políticas públicas, uma vez que atinge, pela educação, professores,

equipe gestora, alunos e seus familiares. Tal leitura, foi mais acompanhada de perto

durante a elaboração dos projetos de intervenção dos acadêmicos e acadêmicasi de um

curso de graduação de licenciatura em Educação Física de Cuiabá, MT, durante a

disciplina de Estágio I, com crianças da Educação Infantil e do 1º ciclo do Ensino

Fundamental. Alguns textos complementares de algumas obras foram ainda sugeridos a

eles e elas.

O terceiro fio – o jogo e os jogos “corrida de tora” e “arco-e-flecha”

O terceiro fio, foi o do conhecimento sobre os jogos “corrida de tora” e “arco e

flecha” buscando fazer adaptações às condições motoras das crianças, às suas

potencialidades e peculiaridades. Para isso, a tora ao invés de ser de madeira de lei que é

maciça e normalmente pesada, pensou-se em uma de bananeira de pequeno diâmetro

que foi colhida alguns dias antes dos jogos para que se desidratasse e ficasse mais leve

ainda. Uma tora mais longa, sendo possível ser carregada por até três crianças e outra

menor para até duas crianças. Queríamos que tudo desse certo, para que a experiência

corporal de cada um/uma pudesse vir a ser significativa e agradável para que pudessem,

ao referirem-se a elas o fizessem destacando ou qualificando-as como tendo sido

prazerosa. Os preparativos eram no sentido de ampliar as teias de significados.

Os jogos são a melhor maneira de se trabalhar com crianças, devido aos

simbolismos que eles podem lhes oferecer e devido às possibilidades de tê-los como

referência e forma de aprendizagem pela identificação ou não com tais elementos

simbólicos.

Grando et all (2010) menciona que

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10309ISSN 2177-336X

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[...] o jogo como conteúdo da educação física deve ser inserido

no trabalho pedagógico do professor no sentido de levar os

alunos a vivenciarem práticas sociais que tenham significados,

que desafiem para conhecerem novas formas de movimentarem-

se [...]

Assim, os jogos indígenas “corrida de tora” e “arco e flecha”, por possuírem tais

aspectos educativos significantes e desafiantes, foi uma escolha privilegiada para nós e

para as crianças, sobretudo por atender à demanda de necessidades da novidade, do

diferente que chegou de forma arrojada encantando a todos os participantes na escola.

Sendo assim, o riso, a alegria, foram componentes intrínsecos das experiências

deles e delas, o suficiente para tirarem seus pés do chão. O diferente, o inusitado, o

inesperado leva a criança a sentir-se surpresa, maravilhada e provocada a participar da

atividade proposta se ela contiver tais características.

O quarto fio – o espaço de corrida e de lançamento

O quarto fio, foi o da preparação do espaço de corrida e o de lançamento.

Limpeza cuidadosa, eliminação de possíveis objetos causadores de acidentes, “desenho”

da pista de corrida retirando todas as pedrinhas do diâmetro da corrida deixando a terra

bem batida pois as crianças correriam de pés descalços. Foi indicado o local com uma

faixa designando “Jogos Indígenas”. De ambos os lados da pista, bandeirolas coloridas

foram afixadas dando um caráter festivo à estação e às olimpíadas em geral.

Queríamos, eu como orientadora do estágio e os estagiários, criar imagens que,

aliadas à experiência corporal das crianças, pudessem atingir a todos os seus sentidos

pela: visão do espaço bem preparado; pelo toque na espessura e superfície lisa da tora

de bananeira; pela noção do espaço e tempo de corrida do percurso. Todos esses

preparos prévios são indicadores de que havia interesse em que “tudo” desse “certo” do

início ao “fim” para que cada um dos envolvidos na construção da teia e significados

interculturais na escola, pudesse ter um ponto de partida e um desenho que pudesse

servir de base para a sustentação de outros futuros fios.

Rubem Alves (1985) profundo admirador das aranhas, diz que os fios, por mais

finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a coisas sólidas: árvores, paredes,

caibros. Se as amarras são cortadas a teia é soprada pelo vento, e a aranha perde a casa e

foi principalmente porque essa ação cultural na escola envolveu crianças da Educação

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Infantil e do 1º ciclo que tivemos essa preocupação com possibilitar amplas

possibilidades de amarrar e desamarrar teias em coisas concretas.

Sendo assim, a corrida de tora e o arco e flecha, por causa de todo o aparato do

espaço e por causa da tora e do arco com a flecha, possivelmente serão lembrados pelas

crianças, sempre, por causa das teias de significados construídos por elas juntamente

com seus pares educativos – professoras referência, professoras e professores de

educação física, de artes, seus coleguinhas de turma e de outras turmas, todos imbuídos

do mesmo espírito de desejo de participar de algo que só de olhar de longe, parecia ser

interessante e possibilitar momentos e experiências corporal – esperar a vez para

empunhar a tora nos ombros juntamente com um colega, correr o percurso e se deliciar

de alegria.

O quinto fio – corporificação de experiências interculturais: o diálogo

Assim, chegou o esperado dia, o dia que seria diferente de todos, o dia em que às

crianças seriam proporcionadas possibilidades de corporificarem experiências,

interculturais significativas, possibilitando-lhes o reconhecimento do outro, da cultura

do outro, da diversidade étnico-cultural do nosso país, condição primordial para o

diálogo e a convivência pacífica.

Em se tratando do diálogo, quem poderia falar com propriedade, senão Paulo

Freire que o ressalta em suas obras como sendo uma condição sine qua non para que a

educação, a liberdade, os direitos, a justiça, as culturas e para o olhar atento e

reconhecimento do Outro dentro e fora delas?

O diálogo crítico para Freire, é um princípio para que a educação se realize sem

transferência de conhecimentos de um para outro no processo educativo, mas numa

perspectiva que possibilita a transcendência de seus participantes com igualdade de

direitos pelo exercício pleno do direito ao uso da palavra, o direito à diferença.

Freire e Gadotti (1992, p 10), partindo das necessidades dos educadores

atentarem para as diferenças de cor, classe, raça, sexo, que as teorias multiculturais

apresentam, enfatiza, que “[...] a diferença não deve apenas ser respeitada. Ela é a

riqueza da humanidade, base de uma filosofia do diálogo”.

Através do diálogo crítico isso pode ser possível, pois ele cria condições

favoráveis para que as culturas sejam reconhecidas apesar de causarem estranhamento

inicial impactante. Por ser aberto, tal forma de diálogo aceita que mesmo “não sendo

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bonitas” para o observador que delas não faz parte, o é, para outros e principalmente

para o povo que a criou, que a teceu fio a fio ao longo de suas existências e que as

trazem tecidas nos seus corpos, na tecedura de seus corpos, em cada componente dele -

ossos, músculos, órgãos, pensamentos, sentimentos, emoções.

Pertencer a uma cultura, é uma experiência de corpo inteiro que atinge a

totalidade do ser de uma determinada cultura. Assim, podemos dizer que os corpos

podem se dialogar uns com os outros na perspectiva intercultural.

Mas afinal, o que é o diálogo?

O diálogo é o encontro entre homens, mediatizados pelo mundo,

para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo,

os homens o transformam, o diálogo impõe-se como um

caminho pelo qual os homens encontram seu significado

enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade

existencial” (FREIRE, 1980, p. 42).

Para pensarmos e efetivarmos atitude intercultural e promover a

interculturalidade na escola, o diálogo deveria ser o grande parceiro dessa empreitada.

Os resultados poderão ser favoráveis se ele se efetivar na sala de aula, nos pátios, nas

quadras, tanto entre os alunos quanto entre alunos- professores-professoras-alunos.

Assim, será possível encontrar o real significado e sentido de ser humano, o

sentido da existência através do amor. Sim, é isso mesmo! “O diálogo não pode existir

sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Designar o mundo, que é ato de

criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor. O amor é ao

mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo” (FREIRE, 1979, p. 42-43).

Para que o espírito da interculturalidade de estabeleça na escola, o diálogo deve

se instalar concomitante, uma vez que a intercultura convida aos que desejam se

enveredarem nesse ato, a também dialogar. A interculturalidade é, então, um ato de

adoção, por amor ao conhecimento relacional do e com os Outros. É amor em

movimento livre, arrojado, pungente, que corporifica os aspectos éticos, étnicos e

estéticos no qual o pensar, sentir e agir são equalizados indistintamente nos processos

de corporificação das experiências.

O sexto fio – a cultura

Mas, e a cultura, o que é a cultura?

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Passos (2010, p. 23), diz que cultura é uma coisa que somente pessoas possuem

e que “[...] jamais poderão adotar uma que já esteja inteiramente feita”. Sendo assim,

cada um possui a sua e [...] “Terão, para vivê-la, que tecê-la, [...] com muitas lágrimas,

renúncias, marcas no corpo e na alma [...]” Sendo assim, a cultura do outro não pode ser

apropriada tão completamente, mas degustada aos poucos como forma de

interculturalidade com o Outro. Como forma de reconhecimento de que o que há

naquela ou naquele, falta em mim e eu me realizo ao reconhecer tal ausência em mim

que me completo no Outro ou em outra cultura. Assim, cultura pode ser considerada

uma forma de diálogo.

As cerca de 250 crianças distribuídas em cinco equipes que passaram por esta

estação de Jogos Indígenas, durante as Olimpíadas Inclusivas 2015 juntamente com

suas professoras que as acompanharam e mais os quatro estagiários e eu, que se

empenharam nesse processo de aprendizado de aspectos interculturais, estamos de

algum modo protagonizando uma educação que, ao contrário das visões etnocêntricas,

valorizam e respeitam as diferenças das diferentes culturas.

Ao ajudar a contar e recontar as histórias passadas e repassadas sobre esse tema,

o professor e a professora auxilia a si mesmos e aos seus alunos a estabelecerem

conexões entre os fios de significados culturais e seus sentidos numa perspectiva

intercultural ressignificante das teias culturais devido ao fato de estar considerando o

Outro ou Outros do passado e os Outros do presente (seus alunos).

Empresto aqui, palavras de Tassinari (2010) que ao prefaciar a obra „Jogos e

culturas indígenas: possibilidades para a educação intercultural na escola‟, organizada

por Grando e Passos. A autora menciona a importância de criar espaços para que as

crianças possam praticar, dentre outros, os jogos, que segundo ela, Mário de Andrade

soube valorizar muito bem enquanto gestor do Departamento de Cultura de São Paulo,

(1935-1938) com a criação de Parques Infantis, como “[...] uma forma de reconhecer

heranças de tradições muito antigas transmitidas pelas próprias crianças em considerá-

las parte de um patrimônio cultural com possibilidades fecundas de educação”.

Se além da experiência corporal que as crianças podem ter com os jogos

indígenas, não só com os apresentados aqui, mas tantos outros, se elas puderem ter

momentos destinados à reflexão sobre o significado de tais jogos para os seus

praticantes em suas aldeias específicas, sobre os significados para elas próprias, tanto

melhor será para seus aprendizados.

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Grando et al (2010, p. 92), diz que o jogo contribui para que a criança possa

criar novas formas “[...] de compreender sua realidade sociocultural, seu grupo social, a

sociedade onde vive, outros povos e outras possibilidades de viver coletivamente”.

Compreender a sua cultura, é fundamental para as crianças, e ela o faz através dos

passeios e escaladas que realiza sobre a teia de significados da sua cultura para alçar

com liberdade, voos que transcendem que faz dela um ser peculiar, único no mundo.

É no interior do jogo, que a criança, pelo exercício da liberdade de pensar, sentir

e agir, vai construindo a sua própria teia de significados, e se tornando, pela experiência,

parte intrínseca da cultura que seus pares desenhou, arquitetou e construiu ao longo de

suas existências.

Quando a criança joga, sente-se desafiada pelas condições que o ato de jogar lhe

oferece e então, ela vai se apropriando pelo ato da escolha, dos elementos que essa ação

favorece e ao mesmo tempo criando e recriando o jogo.

Considerações

À sombra de duas mangueiras em uma rampa natural que se assemelha a

arquibancadas, foi possível tecer fios aparentemente tênues, mas que ao contrário,

contêm características e elementos que poderão possibilitar a urdidura e a tecedura da

teia intercultural tão necessária para o reconhecimento de aspectos da cultura dos povos

indígenas e ao mesmo tempo criação de condições favoráveis para que os alunos, alunas

com seus professores e professoras, vão se apropriando, na ação, do conhecimento de

suas origens.

As crianças do turno vespertino não se beneficiaram desses jogos no dia das

olimpíadas devido ao forte calor e baixa umidade relativa do ar que fez naquele 9 de

outubro, mas em breve isso se dará.

Todos os participantes das equipes - branca, verde, azul, amarela, vermelha

participaram com interesse deixando transbordar aspectos do componente lúdico (risos,

leveza de movimentos, sensação de liberdade, supressão da realidade, interesse em

participaram e conhecerem esses dois jogos indígenas – “corrida de tora” e “arco e

flecha”.

Micro ações interculturais como esta, contém na sua essência, qualidades que

extrapolam a nossa percepção. Ela representa finos fios de uma grande teia idealizada

por alguns, mas que juntamente com outros provenientes de sala de aula e em outros

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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momentos na escola e fora dela, poderão contribuir para que a teia de significados

inclusivos de outras culturas prevaleça, em detrimento das pedagogias excludentes ou

das que não são nem uma nem outra.

Considera-se que as boas condições de início da inserção de jogos indígenas

nesta comunidade escolar, seja apenas um marco desafiador para continuarmos

aprofundando nesse tema que requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos da

parte de todos para que a história e a cultura indígena sejam conhecidas e valorizadas

nas suas peculiaridades e sobretudo espera-se que os participantes tenham histórias para

contarem a partir de suas experiências vividas de modo compartilhado nos espaços e

tempos da sua escola.

Referências

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BRASIL, Ministério da Educação. Lei 11.645/08. Relações étnico-raciais.

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pensamento de Paulo Freire. 3ª edição. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

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PASSOS, Luiz Augusto. Cultura: Flecha humana e cósmica que aponta o caminho para

os sentidos IN: GRANDO, Beleni Saléte e PASSOS, Luiz Augusto (ORGs.) O eu e o

outro na escola: contribuições para incluir a história e a cultura dos povos indígenas na

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10315ISSN 2177-336X

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ELAÇÕES ENTRE SABERES DO CORPO BAKAIRI E A PRÁTICA

PEDAGÓGICA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

Edinéia Tavares Lopes /Bolsista PNPD/CAPES-PPGE/UFMT, PPGECIMA-UFS

Darlene Yaminalo Taukane /Pesquisadora do Povo Bakairi

Beleni Saléte Grando /Colaboradora Pesquisa PPGE/UFMT

Este texto tem o objetivo de sistematizar saberes e práticas que possibilitam inserir a

história e a cultura do Povo Bakairi no ensino de Ciências Naturais na educação escolar

de um município do estado de Mato Grosso. O ato de produzir e pintar os corpos são

diferentes entre os grupos indígenas e ao aprendermos a forma como os Bakairi o fazem

nos auxilia na compreensão dos conceitos que devemos rever na cultura brasileira que

marginaliza e generaliza os povos e suas formas de identificação. Podemos também

compreender outras formas de produzir conhecimento e estabelecer diálogos

interculturais entre os próprios saberes e fazeres a que a ciência também recorre e nela

identificar relação com as produções de conhecimentos ancestrais e tradicionais.

Ademais, a inclusão da temática indígena no currículo escolar, no âmbito do ensino de

CN, se dá a partir da compreensão de que há diferentes formas de ver e de agir sobre e

no mundo, as quais produzem diversos conhecimentos como os da ciência e os

conhecimentos tradicionais indígenas.

Palavras-Chave: Lei 11.645/2008. Ensino de Ciências Naturais. Pinturas Corporais

Bakairi.

A temática indígena na escola: aproximações ao tema

A diversidade cultural brasileira coloca diversas demandas para a educação

nacional e, por consequência, aos professores, no sentido de que estes e aquela não

podem ignorar o multiculturalismo presente na sala de aula. Nesse sentido, é defendido

por Candau (2006) a perspectiva do professor enquanto agente cultural, pois, para a

autora, a compreensão das relações entre educação e cultura/s refere-se à concepção da

escola como espaço de “cruzamento de culturas”, atravessado por “tensões e conflitos”.

No que diz respeito aos documentos oficiais, os Parâmetros Curriculares

Nacionais para a Educação Básica (EB) destacam a Pluralidade Cultural como sendo

tema transversal. Nessa linha de pensamento, em 2003, são instituídas as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas, que têm por objetivo:

[...] a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de

atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à

pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de

negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da

democracia brasileira (BRASIL, 2013, p. 512)

A partir das diretrizes, foram aprovadas duas leis complementares à Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9.396/1996: a Lei 10.639, de 2003,

que trata da obrigatoriedade da inclusão de História e Cultura afro-brasileiras e africana

nos currículos da Educação Básica, e a Lei 11.645 de 2008, que amplia a anterior,

destacando a inclusão da história e cultura indígenas como obrigatoriedade no currículo.

Esta última nos desafia a inserir no currículo escolar as contribuições desses

povos para a(s) cultura(s) brasileira(s), propondo sua compreensão para além da visão

colonizadora de ensino. Logo, essa problemática coloca inúmeras provocações aos

pesquisadores e educadores brasileiros, no que diz respeito à produção científica e à

(re/des) construção de práticas que atendam a essa realidade. Assim, vale ressaltar que

não se trata apenas de mudar um ensino etnocêntrico, marcadamente de raiz europeia,

mas “de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial,

social e econômica brasileira” (BRASIL, 2013, p. 503).

Destarte, tais provocações têm nos impulsionado a investigar as possibilidades de

inclusão da temática indígena no ensino de Ciências Naturais na EB em um município

do interior do estado de Mato Grosso (MT). Nessas investigações, temos defendido a

inclusão da temática indígena – sem propor a exclusão, por exemplo, da africana – no

ensino das Ciências Naturais na EB, partindo da compreensão de que, consoante Brasil

(2013), a referida lei “[...] provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige

que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino,

condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação

oferecida pelas escolas” (BRASIL, 2013, p. 503). De tal maneira, essa defesa se insere

numa perspectiva intercultural, que se pauta na busca pelo reconhecimento das

diferenças “[...] entre os agentes socioculturais no mundo contemporâneo e de

potencializar a conexão crítica, criativa e decolonial entre seus respectivos contextos”

(FLEURI, 2012, p. 21).

Com isso, a perspectiva do nosso estudo e da prática pedagógica, pauta na

pesquisa desenvolvida junto a uma comunidade indígena de MT, é a de que, para que

possamos inserir a “história e a cultura indígenas”, o fazemos de um tempo e de um

espaço específico, de um povo específico, pois reconhecemos que os mais de 300

grupos étnicos indígenas do Brasil atual têm suas culturas e histórias permanentemente

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10317ISSN 2177-336X

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em movimento, e por isso mesmo, para inserirmos o conhecimento que prevê a Lei

11.645/08, este deve ser pautado na realidade sociocultural e histórica de um povo

específico e contextualizado na sociedade atual.

Assim, reconhecemos que os saberes e práticas sociais de um povo, para ser

transformado em conteúdo de ensino e prática pedagógica, requerem uma reflexão sobre

quais são as condições históricas e culturais que possibilitaram a sua produção e

reconhecimento como relevante para a comunidade ontem e hoje. Por isso, trazemos,

neste texto, de forma sistematizada, saberes e práticas que nos possibilitaram inserir a

história e a cultura do Povo Bakairi no ensino de ciências na educação escolar.

Ao enfatizar os saberes e práticas como conhecimento da sociedade brasileira e a

revisão histórica de suas relações com os povos nativos, nos cabe refletir inicialmente

como a sociedade brasileira, e por isso a escola, tem tratado ou reconhecido os povos

indígenas, suas histórias e suas culturas. Ou seja, como o conhecimento, sistematizado e

inserido na prática pedagógica, vem produzindo relações de exclusão e desvalorização

dessa parcela da população brasileira.

O conhecimento que se transforma em prática pedagógica a partir dos estudos da

história e cultura do Povo Bakairi se traduz na prática pedagógica para o ensino de

Ciências Naturais ao mesmo tempo em que busca refletir e ultrapassar as visões

equivocadas acerca dos povos indígenas manifestadas em diversas realidades

brasileiras.

O contexto sociocultural e histórico da inclusão da temática indígena na escola

Este texto é subsidiado pela pesquisa de doutoramento da primeira autora

realizada entre 2011 e 2012 junto ao povo Kurâ Bakairi de Paranatinga, em MT, cujo

foco foi a Educação Escolar Indígena (EEI), e sua pesquisa realizada entre 2015 e 2016,

com o objetivo de inserir a cultura Bakairi no ensino das Ciências Naturais das escolas

do município no qual está o território indígena. A última fase da pesquisa (2015 e 2016)

teve como recorte o estudo das pinturas corporais, que, para a escrita final deste texto,

passou pelo crivo crítico de pesquisadores e lideranças do próprio povo Kurâ Bakairi.

Os Bakairi, como são conhecidos na literatura sobre os povos ameríndios,

atualmente habitam dois territórios em MT delimitados em: Terra Indígena Santana,

localizada no município de Nobres; e Terra Indígena Bakairi (TIB), que está demarcada

em sua maioria no município de Paranatinga e uma pequena parte em Planalto da Serra.

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Os Bakairi se autodenominam Kurâ, que remete à ideia de “nosso povo, aquilo que é

inerente do povo Kurâ” (TAUKANE, 1999, p. 35). Sua língua pertence ao tronco Karib

e praticamente todos os Bakairi são bilíngues. Atualmente existem 10 aldeias na TIB.

Os dados da pesquisa que trazemos neste texto são da Aldeia Aturua.

Ao privilegiarmos um povo indígena, estamos considerando que, entre os mais de

300 povos e as mais de 274 línguas faladas no Brasil pelos povos nativosii, estaremos

apresentando os saberes e as práticas que identificam o Povo Kurâ Bakairi e, por isso

mesmo, práticas que os diferenciam dos demais povos. Aspectos de como vivem e quais

as práticas que garantem a educação tradicionalmente passada nos rituais nos auxiliam a

discutir as concepções distorcidas que permeiam as práticas conservadoras nas escolas.

Essas práticas consolidaram aspectos que, enraizados na cultura dominante

brasileira, reproduzem na escola a visão estereotipada e distorcida sobre quem são os

indígenas atuais: todos os índios são iguais em termos de cultura e história; os indígenas

são preguiçosos, moram na floresta e vivem nus; para sobreviver, vivem em aldeias,

caçam, pescam e coletam seus alimentos. Esses argumentos buscam reforçar a visão de

que os indígenas eram os que viviam antes da colonização, os demais não mais existem,

pois a cultura não muda como qualquer outra. Ser indígena significa ter a mesma

história e costumes, língua, estrutura familiar, religiosidade, entre outros, e, por fim,

todos os indígenas não trabalham, pois desde a colonização eles não trabalhavam e por

isso buscavam-se outros povos para escravizar. O imaginário social brasileiro carece ser

desmontado quando pretendemos atender aos preceitos da Lei 11.645/08, pois com

esses estereótipos não avançam os estudos que nos possibilitam conhecer a história e a

cultura de um povo indígena do Brasil.

Assim, neste trabalho, permeiam os saberes que articulam os saberes específicos

de um povo com os saberes necessários à revisão dos conteúdos que se consolidaram na

educação escolar com uma prática pedagógica preconceituosa e eurocêntrica, que

desqualifica os saberes e práticas que constituem a cosmovisão ameríndia e suas

práticas que salvaguardam a vida em cada contexto socioambiental.

Há consenso na literatura nacional no que diz respeito ao fato de a imagem dos

povos indígenas brasileiros ser caracterizada por estereótipos construídos pelos

discursos veiculados pela mídia e pela escola. Nesse sentido, as incursões

investigatórias sobre a inserção da temática indígena nas escolas brasileiras explicitam

que o ensino da história e das culturas desses povos ora é caracterizado pelo

silenciamento ora por discursos equivocados.

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Pensar nas populações indígenas como um conjunto uniforme de culturas é um

erro, uma vez que cada povo é um povo, com suas particularidades, rituais, línguas,

costumes e comportamentos sociais. A retirada das especificidades de seus contextos

culturais de produção leva à imposição de valores externos que desconsideram todo o

legado cultural e tecnológico dos povos indígenas brasileiros. Tal imposição pode levar

à construção dos estereótipos e, o que é mais grave, ao preconceito e a discriminação.

Em Paranatinga residem dois povos indígenas: os Bakairi e os Xavante, cujas

identidades socioculturais são totalmente diferentes, assim como a história de contato

com o colonizador, as formas de organização dos seus territórios e cosmologias,

organização familiar e também a própria língua. Diferente dos Bakairi, que é da família

linguística Karib, a língua Xavante pertence ao tronco Macro-Jê.

Para introdução aos estudos da história do povo Bakairi, recorremos à literatura

que nos informa que o contato do colonizador se deu em 1723 por José Pires e que a

primeira descrição etnográfica sobre eles foi realizada em 1884 por Karl Von Den

Stenein. Desde a primeira descrição, suas pinturas corporais foram evidenciadas por

serem práticas sociais relevantes para o Bakairi desde sempre. Atualmente, como ocorre

com todos os grupos humanos, a dinâmica das relações sociais que, inclusive, promoveu

a diminuição da população, também levou às mudanças nos territórios, nas educações (a

partir da escola) e provocou alterações e ressignificações de suas práticas tradicionais,

assim como ocorre com as pinturas.

Assim, a nosso ver, propor uma prática pedagógica para incluir história e cultura

indígenas no município de Paranatinga passa pela sensibilização de que, mesmo que

existam dois povos, cada um deverá ser estudado de forma única, pois suas

peculiaridades culturais não nos permitem generalizações ou comparações, pois são

povos diferentes e, como tais, quando os alunos se inserem nas escolas urbanas, não os

devemos considerar indígenas, mas aluno bakairi e aluno xavante.

Da temática escolhida: ideia de cultura estática

As práticas corporais são formas de produção cultural que marcam no gesto e na

forma como a pessoa se constitui como pertencente a um dado grupo e a uma cultura.

Com os estudos de Mauss (2003), Grando (2009) nos esclarece que as técnicas

corporais resultam de práticas sociais que educam os corpos/pessoas para que possam

ser inseridos/as nos grupos sociais e neles se reconheçam e sejam reconhecidos/as. As

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práticas corporais são formas de expressão das identidades e dos contextos interétnicos,

como os vivenciados pelos munícipes de Paranatinga, Bakairi, Xavante e os demais não

indígenas, que podem expressar todo um contexto histórico e cultural que contribui para

identificar e ao mesmo tempo diferenciar cada grupo social específico.

As pinturas corporais são manifestações culturais que podem apresentar diversos

significados, os quais estão profundamente ligados à cultura de quem as produz e

utiliza. A pintura corporal foi uma das primeiras formas de comunicação entre os seres

humanos. Antes do surgimento da escrita, o corpo já servia para expressar e deixar

registrado como linguagem o que desejamos comunicar ao outro a respeito de quem

somos. Assim, essa técnica corporal é utilizada desde os primórdios em todas as

civilizações americanas, africanas, asiáticas, europeias. Além das insígnias tribais (de

ontem e de hoje), as pinturas sempre evidenciaram as tecnologias dominadas pelo grupo

humano que a utiliza, pois, para além dos rituais, o corpo é protegido/untado para a vida

cotidiana frente aos desafios do ambiente – proteção contra insetos, raios solares, e

outros inimigos do mundo dos vivos e dos mortos.

Dentre as diversas práticas corporais, as pinturas corporais sempre estiveram

entre as mais diversas sociedades e em todos os períodos da história humana, inclusive

na atualidade. O ser humano sempre buscou marcar no corpo sua natureza social. Se por

um lado o corpo nos evidencia que somos todos iguais, humanos, por outro, é nele

próprio que nos diferenciamos e nos tornamos únicos. As pinturas corporais, sejam elas

permanentes ou ritualísticas e temporárias, servem para identificarmos quem somos no

próprio grupo e para dizer aos demais qual é o nosso grupo.

Com isso, trazemos neste texto as “Pinturas Corporais Bakairi” como uma forma

de dar a conhecer quem são os Kurâ Bakairi, pois cada indivíduo vive no espaço e

tempo do corpo (GRANDO; HASSE, 2002). Essas pinturas corporais são feitas a partir

da extração de pigmentos de partes de plantas como o urucum e o jenipapo.

Os Kurâ recorrem a essa mesma prática social até os dias atuais, pois, como

afirmam os mais velhos, os “Kurâ Bakari vieram com essas práticas culturais marcadas

em seus corpos” (LOPES, 2015). Desse modo, para os mais velhos, a origem das

pinturas corporais se deu desde os tempos imemoriais, pois os Bakairi usam as pinturas

e se enfeitam ainda hoje como faziam seus antepassados. As pinturas são repassadas de

geração a geração e são memorizadas como saberes por meio dos desenhos, dos nomes

das pinturas e da diferenciação dos grafismos que se diferenciam para as pinturas de

homens, de mulheres e de crianças.

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Para os Bakairi, é durante a arte de pintar o corpo que a pessoa que está sendo

pintada se transforma no “outro”. O “outro” que o grafismo nele está sendo impresso o

faz ser representado. Esse outro pode ser um animal ou qualquer outro ser da natureza.

(COLLET, 2006). A representação, quando impressa no corpo de indivíduos desse povo

possui um significado muito importante dentro de sua cultura, pois, além de representar,

por exemplo, um animal, é o momento em que conseguem se transformar nesse ser,

adquirindo suas características próprias, como força, agilidade, entre outros atributos.

Essas pinturas são utilizadas em diversos eventos e rituais Kurâ Bakairi.

O conjunto de pinturas corporais é denominado de kwywenu, que significa

nossa pintura, e iwenu, quando se refere à pintura dele (a), e ywenu, quando se refere à

pintura do meu corpo. As cores básicas das pinturas são branco, preto, avermelhado e

azulado, que são provenientes de jenipapo, urucum, carvão, cera de breuzim - retirada

de uma planta da região -, e barro, chamado de tabatinga, que produz tinta branca.

As pinturas femininas são feitas nas laterais do corpo, nos braços, no rosto. A

pintura nas mulheres começa abaixo da linha dos seios e vai até aos tornozelos, os

traços são definidos de acordo com o desenho que a pessoa escolhe. Os desenhos podem

ser de traços simples até aos mais elaborados e trabalhosos. As mulheres usam cocar

desde tempos imemoriais, quando, numa determinada época, as Yamurikuman se

debelaram contra os homens. Elas usam cocar como sinônimo de igualdade, direitos

iguais perante aos homens. Yamurikuman significa mulheres guerreiras, mas hoje em

dia esse nome é atribuído ao conjunto de cantos das mulheres. Usam colares de

miçanga, brincos de penas e algodão nos tornozelos.

As pinturas corporais que se destinam às crianças são as utilizadas nas laterais

do corpo: “Xurui”, que representa o peixe pintado (Figura 01a), o “Âgudo”, que

representa a sucuri, o “Saro”, que significa ariranha, e “Mainmai Iwenu”, que significa

jabuti e é pintado na direção do estômago. Eles acreditam que as crianças, sendo

pintadas com desenhos desses bichos, crescem mais rapidamente e mais fortes. Elas são

enfeitadas principalmente para se protegerem de espíritos sobrenaturais.

Os homens também pintam as partes laterais do corpo, a parte do peito e as

costas. Geralmente os adornos masculinos são: cocar, brincos de penas, pintura

corporal, chocalhos e algodão branco para amarrar nos tornozelos e nos braços. Quem

porta um chocalho normalmente é a pessoa que vai iniciar os cantos, o tirador de cantos.

Os chocalhos são usados tanto pelos homens como pelas mulheres.

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As pinturas faciais das mulheres são feitas de traços largos de urucum na testa.

Dos cantos externos dos olhos até os cantos superiores e inferiores das orelhas são feitos

os traços com jenipapo, com urucum, de carvão misturado com resina de breuzim.

Existem várias pinturas faciais para os homens: desenhos de peixes, de onças, de

japuíras e outros. Durante as festas tradicionais desse povo, tanto os homens como as

mulheres exibem seus corpos como tela humana. Existem algumas restrições da pessoa

da comunidade em pintar seu corpo, geralmente em casos de a pessoa estar doente, estar

de luto ou os pais terem bebê recém-nascido.

Tradicionalmente, são os mais velhos que detêm o conhecimento dessa prática e

são eles que devem incentivar os mais novos a iniciarem e terem gosto pela arte da

pintura corporal. Os mais velhos dizem que, quando o povo Kurâ Bakairi não conhecia

roupa, a pintura corporal era usada como vestimenta. Além dos fatores estéticos,

também era usada para evitar o mau olhado e proteção dos espíritos maus. Atualmente,

as pinturas corporais são mais usadas durante as festividades culturais, como na semana

do índio, no batizado de milho, na furação de orelhas e em outras atividades que a

comunidade considera importante, como na formatura do Ensino Médio. Os grafismos

são ensinados na educação escolar das crianças kurâ nas aldeias. Ilustramos a seguir

com a pintura „Tuturein”, que se refere à jiboia (Figura 01b) e a pintura denominada de

“Semimu”, que significa morcego (Figura 01c) (COLLET, 2006; BARROS, 2003).

Figura 01: a) Xurui (peixe pintado) pintura de crianças, b) Tuturein (Jiboia) pintura dos homens, c)

Semimu (Morcego) pintura das mulheres

Fonte: Desenhos de Kaya Agari, Exposição Kurâ-Bakairi Yakuigady e Kywenu, Museu de Arte de Mato

Grosso, 2015.

Mesmo com as tradicionais pinturas corporais e com o ensino dessa arte na

escola, por conta das dinâmicas socioeconômicas impostas pelas relações cotidianas

com os não indígenas, numa perspectiva colonizadora, está havendo mudança nas

práticas corporais, entre elas o uso não tão frequente das pinturas corporais. Isso, no

entanto, não significa que os Bakairi esperavam manter sua cultura estática, mas essa

cobrança de que não podem mudar suas culturas se instala nas relações com os demais

munícipes que permanentemente os analisam e os condenam: “os Bakairi não são mais

índios”, “os Bakairi perderam sua cultura”, “eles têm carro, moto”.

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Essa reflexão é pertinente para o trabalho pedagógico da Lei 11.645/08, pois,

como afirma Laraia (1986, p. 96): “[...] existem dois tipos de mudança cultural: uma

que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o

resultado do contato de um sistema cultural com um outro” . Com isso, o autor nos

mostra que a cultura é sempre resultado de mudanças históricas, um processo lento e

gradual de mudanças, e lidar com essas mudanças, reconhecendo-as como constitutivas

do ser humano, nos permite não termos uma visão de cunho preconceituoso. Além de

sofrer mudanças internas decorrentes da mudança de pensamento dos indivíduos que

formam as sociedades culturais, existem ainda as mudanças recorrentes do contato e da

descoberta de outras culturas, a absorção voluntária ou não de características de outras

culturas que porventura venha a entrar em contato com outra (LARAIA, 1986).

Desse modo, as mudanças ocorridas na cultura Bakairi são resultados de

processos históricos pelos quais esse povo passou, pois nesse processo ocorreram

contatos com outros povos indígenas e não indígenas, assim como os contextos dos

territórios e das possibilidades econômicas de produção da vida coletiva geraram

dinâmicas que diferenciam os Bakairi de hoje dos seus antepassados. Assim, é

necessária a compreensão da cultura, ou das culturas, e de como elas são construídas

para aprendermos a conviver, respeitar e reconhecer as diferenças.

Da mesma forma que os colonizadores, as culturas que identificam as práticas

sociais cotidianas nas cidades e regiões do país foram marcadas pelas culturas indígenas

locais, sejam nas formas de falar (os vários sotaques e até dialetos que temos da língua

portuguesa no Brasil), nas formas de se alimentar e de usar o milho e a mandioca

(plantas domesticadas e plantadas), de fazer uso da água ou higiene – como o banho e a

depilação, que são práticas corporais da cultura brasileira enraizadas de tal forma que

nos identificam fora do país.

Dos saberes e fazeres tradicionais aos saberes e fazeres da ciência

Para a produção da pintura corporal, além das insígnias que marcam as crianças,

os homens e as mulheres, a forma como o Kurâ Bakairi desenvolveu a tecnologia capaz

de marcar os corpos, expressa sua história e cultura específica. Para além das cores, o

uso da natureza para garantir as marcas no corpo também traz saberes e práticas sociais

ancestrais, e duas frutas presentes em seus territórios são a base para a produção das

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pinturas: o jenipapo e o urucum, conforme trazemos a seguir, em diálogo com os

saberes das ciências.

O urucuzeiro é conhecido cientificamente por Bixa orellana L., é um arbusto

tropical pertencente à divisão Magnoliophyta conhecida como Angiospermas, que pode

apresentar tamanhos variados com flores e frutos (STRINGHETA e SILVA, 2008).

Essa planta pertence à classe Dicotiledoneae, família Bixaceae e gênero Bixa. As

Dicotiledôneas, também conhecidas por Magnoliopsidas, pertencem à divisão

Angiospermae. As sementes do urucum apresentam em sua película externa (cobertura

carnosa denominada arilo da semente) uma substância vermelha denominada bixina. A

bixina é uma das principais matérias-primas utilizadas na produção de corantes naturais

que são encontrados no país, como no colorau usado como corante natural para dar e

realçar cor nos alimentos (STRINGHETA e SILVA, 2008). Para a extração do

pigmento bixina os Bakairi maceram com as mãos as sementes do urucuzeiro, que em

contato com a água formam uma pasta. Adicionam também pequenas quantidades de

óleo vegetal. Após a formação da pasta, os Bakairi deixam essa mistura em repouso até

apresentar consistência de tinta. Essa tinta geralmente é feita um dia antes de seu uso.

A Genipa americana L., conhecida popularmente como jenipapeiro, pertence à

família Rubiaceae (família do café) e é uma árvore nativa do Brasil que pode chegar a

20m de altura. Além disso, é uma espécie vegetal pertencente à subdivisão

Angiospermae, classe Dicotiledoneae, a mesma do urucum. O fruto de jenipapeiro,

enquanto verde, possui uma substância corante, denominado genipina, que, em contato

com o ar, apresenta uma coloração azul-escuro ou violeta (RENHE, 2009). Para a

extração do pigmento genipina é necessário deixar a polpa do jenipapeiro entrar em

contato com água numa temperatura mais alta do que a ambiente. Nesse processo a

coloração dessa mistura fica escura e apresenta consistência mais „firme‟. Para o

preparo dessa tinta escura, esse povo indígena corta a polpa do jenipapo em pequenos

pedaços ou a rala e insere um pouco de água e leva ao fogo até que mude de cor e esteja

no „ponto de fazer as pinturas‟.

Esses pigmentos são fortemente utilizados pelas indústrias alimentícias, de

cosméticos, têxteis, farmacêuticas, entre outras, pois, atualmente, é dada preferência aos

corantes de origens naturais. Com a extração dos pigmentos naturais, como a bixina e a

genipina, é possível produzir outras substâncias com base em diferentes processos

químicos. O pigmento bixina pode ser encontrado em produtos como colorau, manteiga,

margarina, batons, maquiagens, filtros solares, entre outros. O pigmento genipina pode

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ser encontrado em diversos produtos industrializados. Além disso, o jenipapo pode ser

consumido, enquanto fruto, em sucos, junto com outros alimentos, e em algumas

indústrias, como as alimentícias, como fonte de corantes alimentícios. O pigmento

genipina juntamente com outros derivados (outras substâncias) pode ser usado na

detecção de impressões digitais a partir de outros meios tecnológicos. Assim,

percebemos a grande utilização desses pigmentos em diversos meios e produtos, que

muitas vezes empregamos diariamente, mas não sabemos o que os constituem.

Considerações finais

Podemos concluir, assim, que o ato de produzir e pintar os corpos são diferentes

entre os grupos indígenas e ao aprendermos a forma como os Bakairi o fazem nos

auxilia na compreensão dos conceitos que devemos rever na cultura brasileira que

marginaliza e generaliza os povos e suas formas de identificação.

Por mais que haja saberes partilhados e que possamos encontrar identificações

entre as práticas corporais, como o fato de a maioria dos indígenas do Brasil recorrer a

frutos como fonte para extração dos pigmentos, como o fruto do urucuzeiro (urucum) e

do jenipapeiro (jenipapo), outros elementos como o carvão, a argila e outros também

são utilizados. Assim, ao focarmos nos conhecimentos produzidos pelos Bakairi,

podemos também compreender outras formas de produzir conhecimento e estabelecer

diálogos interculturais entre os próprios saberes e fazeres a que a ciência também

recorre e nela identificar relação com as produções de conhecimentos ancestrais e

tradicionais.

Ao buscarmos fazer uso dos diferentes conhecimentos, como os produzidos

pelos discursos científicos e os produzidos pelos discursos do cotidiano Bakairi,

compreendendo seus significados, em ambos reconhecemos que os conhecimentos,

mesmo diferentes, são “sistemas de significados” produzidos e de “propriedade coletiva

de um grupo”, o que, para Geertz (1989),

[...] denota um padrão de significados transmitido historicamente,

incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas

expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens

comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas

atividades em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p. 66)

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Assim, a inclusão da temática indígena no currículo escolar, no âmbito do ensino

de Ciências Naturais, se dá a partir da compreensão de que há diferentes formas de ver e

de agir sobre e no mundo, as quais produzem diversos conhecimentos como os da

ciência e os conhecimentos tradicionais indígenas.

Referências

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10327ISSN 2177-336X

35

i Agradeço aqui, aos acadêmicos Ronimárcio, Cilmar, às acadêmicas Dalva e Fabiana, que sob nossa

orientação, elaboraram o projeto “Jogos indígenas na escola – Lei 11.645/08” e juntamente conosco, com

a escola e com as crianças, ajudaram a construir o primeiro fio da teia de significados da inclusão de

aspectos da cultura indígena na Escola Ministro Marcos Freire. Agora, é só dar continuidade com outras

iniciativas metodológicas. ii Segundo dados do censo do IBGE realizado em 2010 e coletado em 02/12/2015 no site da FUNAI.

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