Contribuicoes a Historia Intelectual Do Brasil Republicano 2012 1
AVELAR - Contribuições a História intelectual no Brasil republicano
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Contribuies histria intelectual
do Brasil republicano
Alexandre de S Avelar
Daniel Barbosa Andrade Faria
Mateus Henrique de Faria Pereira
(organizadores)
Coleo Seminrio Brasileiro de Histria da Historiografia
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Contribuies histria intelectual do Brasil republicano
Alexandre de S Avelar Daniel Barbosa Andrade Faria
Mateus Henrique de Faria Pereira (organizadores)
2012
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Reitor | Joo Luiz Martins Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior
Diretor-Presidente | Gustavo Henrique Bianco de Souza Assessor Especial | Alvimar Ambrsio CONSELHO EDITORIAL Adalgimar Gomes Gonalves Andr Barros Cota Elza Conceio de Oliveira Sebastio Fbio Faversani Gilbert Cardoso Bouyer Gilson Ianinni Gustavo Henrique Bianco de Souza Carla Mercs da Rocha Jatob Ferreira Hildeberto Caldas de Sousa Leonardo Barbosa Godefroid Rinaldo Cardoso dos Santos
Coordenador | Valdei Lopes de Arajo Vice-Coordenadora | Cludia Maria das Graas Chaves Editor geral | Fbio Duarte Joly Ncleo Editorial | Ncleo de Estudos em Histria da Historiografia e Modernidade Editora | Helena Miranda Mollo CONSELHO EDITORIAL Luisa Rauter Pereira (UFOP) Valdei Lopes de Arajo (UFOP) Helena Miranda Mollo (UFOP) Temstocles Cezar (UFRGS) Lucia Paschoal Guimares (UERJ)
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EDUFOP PPGHIS-UFOP
Projeto Grfico
ACI - UFOP
Editorao Eletrnica Fbio Duarte Joly
FICHA CATALOGRFICA
Todos os direitos reservados Editora UFOP http//:www.ufop.br e-mail : [email protected] Tel.: 31 3559-1463 Telefax.: 31 3559-1255 Centro de Vivncia | Sala 03 | Campus Morro do Cruzeiro 35400.000 | Ouro Preto | MG
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Coleo Seminrio Brasileiro de Histria da Historiografia
A coleo Seminrio Brasileiro de Histria da Historiografia vem luz com seus
primeiros ttulos, frutos de cinco de seus Simpsios Temticos acontecidos durante o
evento em 2011, o 5SNHH, cujo tema foi a Biografia e Histria Intelectual.
O leitor ter acesso a contribuies que vo das perquiries sobre a histria do
tempo presente, a histria da historiografia religiosa, historiografia da Amrica,
historiografia brasileira no Oitocentos e as interfaces entre a histria da historiografia e a
histria das cincias.
Agradecemos a todos os organizadores dos volumes e principalmente aos autores,
que responderam prontamente ao desafio de rever seus textos aps as discusses durante
os dias passados em Mariana.
O Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto,
a Sociedade Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia (SBTHH) e o Ncleo de Estudos
em Histria da Historiografia e Modernidade convidam o leitor a continuar o trabalho de
todos aqui presentes nesses cinco livros, e multiplic-lo.
Desejamos a todos uma boa leitura e esperamos rev-los em mais uma edio do
Seminrio Brasileiro de Histria da Historiografia.
Os editores
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Sumrio
Apresentao................................................................................................................................................11
Introduo - Histria Intelectual do Brasil Repblica:
desafios contemporneos......................................................................................................................12
Alexandre de S Avelar, Daniel Barbosa Andrade Faria
Mateus Henrique de Faria Pereira
Interpretaes do Brasil, marxismo e colees brasilianas:
quando a ausncia diz muito (1931-1959)....................................................................................27
Fbio Franzini
Drama social e histria: memria poltica e
historiografia da dcada de 1930.......................................................................................................39
Marcelo Santos de Abreu
Assimetria das transformaes: Nise da Silveira
(notas de pesquisa)....................................................................................................................................50
Ana Paula Palamartchuk
Os intelectuais e a revista Atlntico...................................................................................................69
Gisella de Amorim Serrano
O serto e a Amaznia: de Oliveira Vianna a Foot Hardman................................................101
Alexandre Pacheco & Robson Mendona Pereira
Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda
ao p de pgina de Casa-Grande & Senzala.................................................................................112
Vanessa Carnielo Ramos
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1964 nos textos do Bruxo Golbery...................................................................................................124
Ana Maria Koch
Os caminhos de um cineasta...............................................................................................................133
Paulo Roberto de Azevedo Maia
Escritos autobiogrficos e escrita da histria: historiografia e relatos
sobre o perodo militar brasileiro....................................................................................................140
Telma Dias Fernandes
Atuao do IHGB do Rio de Janeiro no cenrio cultural republicano:
Ditadura civil-militar, 1969-1972....................................................................................................153
Jessica Suzano Luzes
Historiografia dos intelectuais no Brasil Contemporneo.................................................165
Ana Marlia Carneiro
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Apresentao
Este livro rene os trabalhos apresentados no Simpsio Temtico Histria da
historiografia e histria intelectual do Brasil e do mundo contemporneo durante o V
Seminrio Nacional de Histria da Historiografia, realizado, na cidade de Mariana, em 2011,
pelo Ncleo de Estudos de Histria da Historiografia e Modernidade (NEHM) da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Agradecemos aos autores que confiaram seus
textos para este empreendimento, aos colegas do Ncleo, aos colegas da Sociedade
Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia (SBTHH), aos demais colaboradores para a
realizao do livro, em especial, Helena Miranda Mollo, Fbio Joly e Izaac Erder.
Agradecemos tambm Fapemig, Capes e ao CNPq pelo apoio sempre necessrio.
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Introduo - Histria Intelectual do Brasil Repblica: desafios contemporneos
Alexandre de S Avelar*
Daniel Barbosa Andrade Faria**
Mateus Henrique de Faria Pereira***
Uma das questes mais difceis no que se refere histria da historiografia e
histria das ideias a relao entre contextos/experincias e textos/discursos. A
dificuldade da questo , por um lado, terica; nela temos que lidar com conceitos
aparentemente simples, mas complexos, como os de realidade histrica, experincia,
linguagem etc. Por outro lado, h ainda a dificuldade narrativa propriamente dita.
Mesmo que bem preparado conceitualmente, um historiador pode tropear no momento
em que for construir seu relato, dando conta das interaes sutis entre discursos, textos,
ideias e contextos histricos.
Tais advertncias nos aproximam da proposio de Paul Ricoeur, que entendemos
como um postulado geral para a histria intelectual, qual seja: Se a vida social no possui
uma estrutura simblica, no possvel compreender como vivemos, como fazemos
coisas e projetamos essas atividades em ideias, no h como compreender de que modo a
realidade possa chegar a ser uma ideia, nem como a vida real possa produzir iluses.1
Tendo em vista essas questes, nosso objetivo nessa breve introduo refletir sobre os
* Alexandre de S Avelar, Doutor, Professor do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia, UFU. ** Daniel Barbosa Andrade Faria, Doutor, Professor do Departamento de Histria da Universidade de Braslia, UNB. *** Mateus Henrique de Faria Pereira, Doutor, Professor no Departamento de Histria do Instituto de Cincias Humanas e Sociais na Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP. 1 RICOUER, Paul. Ideologa y utopia. Buenos Aires: Gedisa, 1991, p.51.
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13
desafios que esto colocados aos praticantes da histria intelectual do perodo
republicano de nossa histria.
I
As prticas da histria intelectual nos dias de hoje denotam uma ausncia de
modelos tericos e conceitos bem definidos que indiquem caminhos seguros para a
interpretao de seus objetos panorama que, de resto, no difere do conjunto mais
amplo da historiografia. As posies dos historiadores tm oscilado entre a percepo de
que se trata de um estado provisrio da disciplina histrica a ser posteriormente
superado por uma nova sntese e a celebrao das possibilidades abertas com a chegada
do tempo das heresias eclticas.2 Por enquanto, os esforos mais promissores tm
buscado redimensionar o papel dos textos, evitando as respostas mais simplificadoras
para o seu estatuto de documentos histricos. Os textos, usados como fontes para a
histria intelectual, de acordo com as abordagens mais densas, so compreendidos como
pertencentes a gneros fronteirios em constante dilogo entre si (textos literrios,
filosficos, cientficos, historiogrficos etc) e tambm como eventos histricos em si
mesmos ou ento deflagradores de outros eventos.3
Ao pesquisador que se dedicar inquirio terica da histria intelectual praticada
no Brasil, alguns desafios se lanam quase de imediato. Superamos a tradio de pesquisa
que enfatizava as ideias e os seus autores colocados em uma relao de quase
transparncia entre discursos e contextos tidos como previamente explicativos? Aqui, o
risco quase nunca evitado era, e talvez ainda seja, o estabelecimento de uma dialtica
do reflexo, em que as produes do intelecto seriam mecanicamente derivadas da
realidade social que lhes daria forma e sentido. Esta concepo estreita ocupou, por
muito tempo, campos diversificados, abrangendo Direito, Cincia Poltica, Sociologia e
Filosofia. Em uma verso um pouco mais sofisticada, tem-se o agrupamento dos textos e
de seus autores em certas correntes de pensamento, geralmente designadas pelas
clssicas categorias do liberalismo, socialismo, positivismo, marxismo etc. Cada uma
2 BACKZO, Bronislaw. Los imaginrios sociales. Buenos Aires: Nueva Visin, 1991. 3 LACAPRA, Dominick. Intellectual History and its ways. The American Historical Review, v.97, n.2. p. 430-431.
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destas correntes teria, portanto, seus prprios pensadores, temas, mtodos e teorias. Em
que pese a importncia de toda classificao, muitas vezes ela passa a funcionar como um
catlogo que, ao invs de auxiliar o estudioso a compreender determinada obra e autor,
conduz a uma interpretao empobrecida e pouco problematizadora.
As fragilidades deste tipo de histria intelectual ainda largamente praticada se
dimensionam especialmente pela pouca ateno conferida s questes relativas ao texto,
sua linguagem e recepo. Disto emerge, mais amplamente, a determinao da autoria e a
contextualizao social como fatores principais da interpretao. A figura do autor, erigida
como matriz explicativa da obra, leva a uma busca infrutfera da recuperao das
intenes primrias e mesmo psquicas que fundamentariam a criao de determinado
texto ou a tentativa da reconstruo de um mundo mental supostamente imanente
escrita, ou seja, todo o conjunto de princpios lingusticos, convenes simblicas e
suposies ideolgicas nos quais o autor viveu e pensou.4 No se trata aqui de retomar os
debates sobre a morte do autor, sobretudo em sua verso mais superficial: aquela que
diz que nada se pode aprender com o estudo da figura autoral. Trata-se, isto sim, de
entender como esta mesma figura construda, social e historicamente, e em que medida
ela se confunde com a da autoridade interpretativa da obra. Ou seja: em que medida e sob
quais circunstncias certos grupos sociais vivem a expectativa de que o autor tem a
ltima palavra sobre o texto.
Quanto questo contextual, estabelecer os quadros de referncia dos debates
nos quais certos discursos pretendem ou pretenderam intervir , sem dvida, fonte de
uma salutar precauo contra o anacronismo em sua forma mais banal de naturalizao
das condies de um certo presente e projeo dessas sobre outro passado. Dentro desta
perspectiva de reflexo sobre a histria intelectual, a obra de Febvre sobre o problema da
incredulidade no sculo XVI tornou-se uma referncia para o historiador interessado em
realizar o trabalho de recuperao das convenes e ambincias a partir das quais as
intenes autorais poderiam ser decodificadas.5 Febvre acreditava que a cultura literria
do Renascimento no dispunha de um universo lingustico em que seria possvel a
4 HARLAN, David. A histria intelectual e o retorno da Literatura. In: RAGO, Margareth e GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira. Narrar o passado, repensar a histria. Campinas: UNICAMP Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, 2000, p.21. 5 FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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expresso de um pensamento livre das influncias do cristianismo. A criao estaria,
portanto, limitada manipulao de um sistema lingustico prvio que estabeleceria um
horizonte de problemas e valores inescapveis. Dentro deste pressuposto, se este sistema
fosse recuperado, os historiadores teriam acesso ao repertrio de significados possveis
aos leitores e autores situados em um determinado contexto, inscrevendo-os na histria.6
II
No por acaso, essas questes acima aludidas tm sido intensamente debatidas,
em outras latitudes e contextos, ensejando as reflexes dos maiores responsveis pela
vitalidade terica do campo da histria intelectual. Autores, de resto to diferentes entre
si, como Koselleck, Quentin Skinner e LaCapra, dedicam boa parte de suas obras
abordagem terico/metodolgica relativa ao problema do contexto.7 Cada um deles tem
um impacto especfico na produo de histria das ideias no Brasil. Se a quantidade de
citaes for um critrio mais ou menos vlido (mais ou menos porque citar um autor no
o mesmo que incorporar, de fato, seus conceitos), Koselleck aquele que, de longe, tem
uma presena mais marcante no Brasil. Quentin Skinner viria em segundo lugar.
Porm, mais importante do que fazer uma mensurao (aqui meramente
impressionista) sobre o impacto de suas obras, aqui apresentar brevemente como cada
um deles prope uma leitura mais sutil para a relao entre texto e contexto. Mais sutil,
destaque-se, comparando com uma abordagem que considera o texto como reflexo de
um contexto bem demarcado, geralmente. entendido como um cruzamento entre
situao social e cronologia. Essa abordagem parece pressupor que a histria social estaria
mais prxima do solo da histria, da realidade, e que os discursos, os livros, os textos
seriam reaes ou, algumas vezes, meras reprodues desse real. esse tipo de
pressuposto que pode fazer com que se acredite que a histria social mais histrica do
que a histria das ideias.
6 POCOCK. J. O conceito de linguagem e o mtier dhistorien. In: Linguagens do iderio poltico. So Paulo: Edusp, 2003. 7 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006; LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: texts, contexts, language. Londres: Cornell University Press, 1983; SKINNER, Quentin. Fundaes do pensamento politico moderno. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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16
Como cada um dos autores citados pensa sobre o assunto? Koselleck reorganiza a
discusso. Teramos no tanto uma relao entre texto e contexto quanto entre conceitos
e experincia; no haveria, ainda, uma forma de causalidade mecnica, que conduzisse
uma experincia determinada a um conceito em particular. Os conceitos funcionariam
mais como respostas, produes de sentido destinadas a orientar os agentes da histria
diante de uma experincia. Mas, alm disso, os conceitos criariam horizontes, interferindo
na experincia. No se trata aqui de uma relao dialtica, mas de algo mais complexo:
uma rede bastante sutil de interaes entre diferentes nveis da realidade. Assim, a ttulo
de exemplo, a experincia social da acelerao do tempo foi assimilada, entre outras
possibilidades, pelo conceito moderno de Histria. Este, por sua vez, instaurou um
horizonte de expectativas relativo ao futuro, que orientou e orienta os agentes histricos
em suas escolhas.
Skinner tem a mesma ateno que Koselleck no que se refere ao vocabulrio, mas
seu trabalho tem perspectiva diversa. O que os aproxima a ideia de que um vocabulrio,
uma rede conceitual, no um mero ornamento para a ao; pelo contrrio, trata-se de
algo que constitui, num determinado momento, o que pensado como possvel ou
impossvel, o que deve ser feito ou evitado. Por outro lado, Skinner mais preocupado
com o aspecto conflituoso da histria das ideias. Se Koselleck desenha horizontes
compartilhados, Skinner fala mais sobre debates, polmicas, conflitos. As ideias no
seriam, assim, uma tentativa de organizar experincias, mas armas forjadas para a
interveno num conflito. O vocabulrio seria como que o conjunto de regras que criam
um terreno para os embates da histria: portanto, o vocabulrio como um contexto
pragmtico. Um exemplo: Skinner entende que, para se compreender alm do significado
pretendido, necessrio pensar o modo de recepo do mesmo texto.
Dos trs, LaCapra o mais textualista. Embora ele no recuse completamente a
ideia de contexto, em seus trabalhos este parece reduzido a um mnimo e quase toda
ateno voltada para outro aspecto: o da intertextualidade. Segundo essa percepo,
um texto uma montagem, uma aglomerao de textos, conceitos, os mais diversos. O
trabalho do historiador seria, no caso, delinear essa mescla, mostrar como, em sua
tessitura interna, um texto dialoga com outros, abrindo-se para a histria.
No o caso, aqui, de optarmos por uma dessas trs alternativas tampouco
defendemos um ecletismo frouxo. Do ponto de vista dessa apresentao, o mais
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importante observar como diante das teorizaes aqui brevemente comentadas, a
imagem do contexto como realidade social prvia e dos discursos como reflexos,
mecnicos ou dialticos, dessa dita realidade soa bastante ingnua. Em primeiro lugar,
pela complexidade prpria a um texto; em segundo, pela complexidade da relao entre o
texto e aquilo que lhe exterior. Sob este aspecto, cabe a indagao do que se deve
considerar como o contexto a ser reconstrudo. Certamente, deveramos falar em
instituies, tradies literrias e religiosas e, ainda, outras fontes culturais. No
poderamos passar ao largo das presses econmicas e sociais. Lacapra nos lembra, deste
modo, de uma multiplicidade de contextos, cada um devendo conter no somente
outros escritores e leitores contemporneos, mas tambm as tradies encobertas e at
mesmo os impulsos em parte reprimidos os quais no se conformam s convenes que
prevalecem numa comunidade qualquer.8
Nesse sentido, podemos dizer que h recusas do uso do contexto no sentido
retrico, argumentativo e interpretativo na medida em que esses e outros autores, como
Jacques Revel, nos levam a pensar que no existiria um contexto unificado, homogneo,
dentro do qual e em funo do qual os autores determinariam suas escolhas. Portanto, o
que proposto, ao contrrio, construir a pluralidade dos contextos que so necessrios
compreenso dos comportamentos observados.9 Revel destaca ainda que o uso retrico
da noo de contexto muitas vezes apresentado no incio de um estudo para produzir
um efeito de realidade em torno do objeto estudado; ao passo que o uso argumentativo
possibilitava ao pesquisador enquadrar uma realidade particular em um lugar dentro de
determinadas condies gerais; por fim, o uso interpretativo pretendia extrair do contexto
as razes gerais que explicavam situaes particulares. O autor prope inverter o
procedimento habitual que consistia de partir de um contexto geral para situar e
interpretar o texto. Toda essa discusso pode nos indicar caminhos menos ingnuos no
que se refere s relaes entre texto, contexto, conceito e linguagem.
8 Apud HARLAN, David. Op.cit., p. 38. 9 REVEL, Jacques. Microanlise e construo do social. In: _________ (org.). Jogos de escalas: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: FVG, 1998, p. 27-28.
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18
III
Tendo em vista a potncia dessas reflexes, desejvel repensar os conceitos, as
periodizaes e os problemas que tm orientado as pesquisas sobre o perodo
republicano? Em outras palavras, seria possvel escrever uma histria contempornea
desse momento histrico? Uma histria que construa uma relao com o prprio tempo,
criando uma espcie de adeso, mas ao mesmo tempo, tomando distncias, mais
precisamente, essa relao com o tempo que a este adere atravs de uma dissociao e
um anacronismo. (...). Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcanar e
no pode faz-lo, isso significa ser contemporneo. 10
Como se sabe, periodizar tomar partido sobre o que muda e quando, porm,
muitas vezes, um recorte temporal tem apenas eficcia didtica e institucional
engessando a compreenso de certas complexidades.11 Nesse sentido, como ir para alm
dos atuais marcos que tm conduzido a maior parte dos estudos sobre os anos que se
iniciam em 1889 e chegam at os nossos dias; ou, se quisermos em outros termos, dos
diversos contextos dos sculos XX e XXI brasileiros?
Podemos dizer que a historiografia produzida neste sculo contribuiu com xito
para problematizar e superar questes que singularizam as subperiodizaes do perodo
republicano, com exceo do perodo aps 1985 onde h uma escassez de trabalhos.12
Mas, so raros, por exemplo, os trabalhos que se arriscam em anlises estruturais e de
longa durao; alm disso, nos falta uma maior relao com outras espacialidades. Por
vezes, a histria do Brasil narrada como se ela no estivesse conectada com outras
10 Sobre esse ponto ver, em especial, AGAMBEN, Giorgio. O que o contemporneo e outros ensaios. Chapec: Argos, 2009. (p. 59 e 65). Grifo no original. 11 Ver, em especial, POMIAN, Krzysztof. Periodizao. Enciclopdia Einaudi, volume 29, Tempo/temporalidade. Impressa Nacional, 1993, p. 164-213. 12 Ver, por exemplo, FAUSTO, Boris. Histria Concisa do Brasil. So Paulo: EDUSP, 2001; CARVALHO, Jos Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001; FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, 4 v.; LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. Histria do Brasil. Uma interpretao. So Paulo: SENAC, 2008. Dois dossis recentes organizados pela revista Tempo mostram a vitalidade, mas tambm os limites, dos estudos de alguns dos sub-perodos do Brasil repblica. FERREIRA, Jorge. 1945-1964: A experincia democrtica no Brasil. Apresentao. Tempo. Vol.14, n.28, 2010, p. 11-18; GOMES, ngela de Castro e ABREU, Martha. A nova Velha Repblica: um pouco de histria e historiografia. Apresentao. Tempo. Vol.13, n.26, 2009, p. 1-14.
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19
realidades nacionais em suas semelhanas e diferenas.13 Poderamos mesmo nos
perguntar que tipo de pressuposto reside em definies, nem sempre explicitadas, sobre o
que demarcaria, afinal de contas, uma historiografia brasileira. Seria esta a historiografia
feita por historiadores brasileiros? E os historiadores estrangeiros que tm contribuies
significativas histria do Brasil? Ou, ento, a historiografia brasileira seria aquela que
tem o Brasil como objeto de reflexo, contedo? Neste caso, historiadores brasileiros que
discutem temas internacionais seriam participantes de que tradio historiogrfica? Seu
lugar seria o limbo?14 Ou, por fim, a historiografia brasileira seria aquela escrita em lngua
nacional? Neste caso, um livro traduzido para o portugus passaria a fazer parte desta
historiografia?
Um exemplo de enfrentamento das limitaes criadas por fronteiras geogrficas
est nas recentes discusses sobre a Comisso da Verdade que, de algum modo, conecta
a histria do Brasil da frica do Sul e de outros pases da Amrica Latina. De algum
modo, em um passado recente nesses lugares buscou-se algum tipo de resposta poltica
para a seguinte pergunta: possvel perdoar/anistiar os agentes de Estado que torturaram
e/ou sequestraram (criando a sinistra figura do desaparecido), a partir de ordens diretas
e/ou indiretas dos responsveis de um regime autoritrio?15 O quanto estas experincias
outras dizem a respeito das nossas prprias experincias com um passado que parece se
recusar a passar? As conexes entre temporalidades e espacialidades diversas so mais
raras ainda, mas necessrias.16
O medo do anacronismo e o mito de comparar o comparvel tanto da nossa
histria em si, quanto de outras histrias talvez possam ser elementos que expliquem o
13 Para uma tmida tentativa de problematizao desse quadro, ver, por exemplo, FICO, Carlos et al.. Ditadura e democracia na Amrica Latina: balano histrico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008. 14 Exemplo: um dos melhores livros de histria das ideias surgido no Brasil em tempos mais recentes soa quase extico em sua temtica o que, talvez, explique sua pouca repercusso: Sonia Lacerda. As metamorfoses de Homero. Histria e Antropologia na Crtica Setecentista da Poesia pica. Braslia: EdUnB, 2003. 15 LEFRANC, Sandrine. Politiques du pardon. Paris: PUF, 2002. Ver tambm, entre outros, TELES, Edson L. A. Entre justia e violncia: estado de exceo nas democracias do Brasil e da frica do Sul. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (Org.). O que resta da ditadura: a exceo brasileira. So Paulo: Boitempo, 2010; ROUQUI, Alain. lombre des dictatures: la dmocratie en Amrique Latine. Paris: Albin Michel, 2010; SZNAJDER, Mario; RONIGER, Luis. O legado de violaes dos direitos humanos no cone sul. So Paulo: Perspectiva, 2004. 16 A esse respeito ver o texto de Jos Otvio Nogueira neste livro.
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20
atual quadro.17 Nessa direo, um desafio atual compreender as aproximaes (bem
como os distanciamentos) entre as duas experincias autoritrias e as trs experincias
democrticas, bem como relativizar a dicotomia autoritarismo e democracia, fazendo
emergir novas possibilidades de anlise e relativizando antigas certezas cronolgicas e
conceituais.
IV
Ao reunirmos ensaios de distintas matrizes conceituais e tericas e confessamos
nossa predileo por esta seleo ecltica foroso torna-se estabelecer critrios que
possam servir de guia para o leitor. Entre o arsenal de temas que fertilizaram nossa histria
intelectual, o debate sobre a democracia e nao nos parece aquele capaz de concatenar
os textos aqui escolhidos. Repensar e resignificar esses conceitos centrais pode ser uma
chave para enfrentarmos alguns dos desafios contemporneos da histria intelectual.
Ao que tudo indica, a historiografia brasileira (ao menos nas notas de rodap)
abandonou a viso ingnua do contextualismo puro. Contudo, alguns temas
insistentemente repetidos, e tomados como pressupostos do a entender que ainda
estamos diante de grandes desafios, como j nos referimos. Vamos nos deter, mesmo que
rapidamente, em dois exemplos: a imagem da repblica atrasada at 1930 e a questo de
redemocratizao ps 1985.
Toda uma discusso historiogrfica j mostra como, em meio aos embates polticos
das dcadas de 1920 e 1930, foi se cristalizando a imagem da repblica oligrquica,
atrasada e, por conseguinte, da nao incompleta cujos intelectuais seriam incapazes
de pensar por si prprios, sendo meros repetidores, importadores de ideias.18 O
modernismo, com o marco de 1922, seria o momento em que esse mal teria sido ou
resolvido ou enfrentado. A partir de uma luta poltica, cristalizou-se uma concepo sobre
o estado da sociedade (concepo, esta, bastante questionvel, dados os seus
17 Sobre a utilidade do anacronismo para o historiador, ver LORAUX, Nicole. O elogio do anacronismo. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1992 e RANCIRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON. Marlon (org.). Histria, verdade e tempo. Chapec: Argos, 2011. 18 BRESCIANI, Maria Stela. O charme da cincia e a seduo da objetividade: Oliveira Vianna entre os intrpretes do Brasil. So Paulo: UNESP, 2005.
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21
pressupostos sobre a existncia de uma linha evolutiva da civilizao moderna, na qual o
Brasil estaria atrasado) que ainda hoje rebate na histria das ideias do perodo. um
pressuposto, bastante disseminado por sinal, o de que os escritores do perodo eram
alienados cosmopolitas. No difcil notar que h aqui aquela mesma viso ingnua em
relao ao contexto como matriz explicativa para a histria das ideias: uma sociedade com
baixos ndices de urbanizao s poderia gerar uma elite intelectual importadora de
modelos, formas de pensamento e vises de mundo.
Ficamos ainda mais perplexos quando notamos, neste caso, de que contexto se
trata. Lembrando-nos que o contexto histrico , ele tambm, construdo
historiograficamente, o que geralmente se v com o atributo de realidade nacional um
tecido de ideias e imagens composto pela tradio dos lugares-comuns presentes nas
mais diversas interpretaes do Brasil para as quais, segundo Stella Bresciani,
participam as ideias de que a natureza dos trpicos adversa civilizao, de que a
populao brasileira tem caractersticas sociais, culturais e psicolgicas contrrias
imagem da maturidade poltica cidad atribuda ao liberalismo, de que as elites
intelectuais do pas limitaram-se a importar modelos tericos e ideias europeias, sendo
portanto incapazes de enxergar a realidade nacional. Monta-se assim um quadro de
carncias constitutivas da histria brasileira, as quais teriam como dimenso afetiva o
ressentimento com relao ao pas que insistiria em no dar certo. Aos lugares-comuns
e ao ressentimento soma-se ainda a autoproclamada tarefa dos intelectuais como
aqueles que deveriam indicar o caminho a seguirmos, apontando falhas e vcios de
formao do pas e desvelando as possibilidades da realidade encoberta.
Projetados sobre a Primeira Repblica, tais lugares-comuns constituem as
imagens de uma poca de intelectuais cosmopolitas e alienados (geralmente
pressupondo-se que o cosmopolitismo , em si mesmo, sintoma de alienao) os quais
seriam meros frutos de uma realidade social, ela tambm, atrasada. Ideia de atraso que
pressupe a existncia de um nico tempo universal e homogneo, uma escala
evolutiva determinada pois somente assim, algum poderia dizer que um pas ou uma
nao estaria frente de outro. Pressupe, ainda, uma imagem idealizada desses
pases que encarnariam a civilizao no que ela teria de mais avanado. E, por fim, do
ponto de vista metodolgico, aposta que as ideias esto ou deveriam estar confinadas a
contextos territoriais nacionais, indo de encontro a tudo o que se diz atualmente sobre
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22
circulao e interao de discursos e tomando, como dado apriorstico, o recorte do
Estado-Nao como realidade histrica fundamental.
Quanto redemocratizao, uma estratgia muito eficaz, forjada nos debates sobre
a anistia, foi a de construir a imagem de uma ruptura radical com a ditadura de 1964: a
ditadura ficou no passado. Em 1985, o Brasil teria se tornado, repentinamente, outro.
Deste modo, seja como feridas do passado e que, como tais, ali deveriam permanecer
no discurso dos militares que recentemente se mostraram contrrios abertura dos
arquivos, seja como memria de um passado distante, uma vez que estaramos numa
outra era democrtica, uma determinada presena do passado brotou de estratgias
polticas bem especficas e criou a imagem de uma ruptura na experincia social e poltica
brasileira. O autoritarismo aparece, ento, como algo bem delimitado, historicamente: em
tempos que nos parecem cada vez mais distantes.
Podemos perceber o impacto dessa imagem na questo do esquecimento a que
foram relegados os pensadores ditos autoritrios brasileiros, como se eles fossem uma
anomalia em nossa tradio de pensamento. Cite-se, novamente, o caso do modernismo
em que os autores considerados autoritrios ou de direita passaram a ser estudados
(quando eram) como desviantes, infiltrados e mesmo falsos modernistas. como se o
autoritarismo emergisse como algo estranho, alheio e mesmo adverso s tradies
intelectuais brasileiras. Outro exemplo a exaltao recorrente figura pblica de Getlio
Vargas e sua poltica cultural, de patrimnio etc geralmente, nos termos que ele mesmo
e seus assessores propagandistas inventaram (figura paternal, apaixonado pela brasilidade
e protetor do povo esquecido pelas elites insensveis).
O caso da ditadura militar um pouco diverso, porque, quanto a esta, todos
reconhecem o carter autoritrio; aqui o esquecimento (ou, dizendo melhor,
silenciamento) adotou outras estratgias: a imagem de que todos foram vtimas ou
resistiram, e de que o autoritarismo brotou de dentro das corporaes militares contra a
vontade da sociedade (muito usado por jornalistas que se declaram paladinos da
democracia), a ideia de que se trata de um passado ultrapassado, quase pr-histrico,
como se no existisse mais tortura, e o problema dos desaparecidos estivesse superado.
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Em suas Seis propostas para o prximo milnio, Italo Calvino,19 afirma que o
espelho retrovisor criou a possibilidade indita de enxergamos o que est atrs, fora de
nosso campo natural de viso. Sendo que, justamente, a invisibilidade do que ficou para
trs seria uma das matrizes da experincia do pnico: a sensao, comum em pesadelos,
de estarmos sendo perseguidos por um desconhecido que apressa seus passos no mesmo
ritmo que ns e, por outro lado, o alvio sentido quando passamos por uma porta e a
fechamos rapidamente. No somente pela segurana do abrigo, mas porque fechando a
porta tiramos o que nos persegue do nosso campo de viso. Como sempre, Calvino fez
uma observao repleta de acuidade. Mas, produziu uma viso um tanto idlica do espelho
retrovisor ao no notar um problema deste artefato: o famoso ponto cego, o ponto de
invisibilidade que parece se dever a uma impossibilidade fsica e no apenas um problema
de melhor ou pior design (porque a nica forma de vermos todo o campo que ficou para
trs seria recorrendo a um espelho que encobrisse todo nosso campo de viso. Mas, ento,
no poderamos ver o que se passa nossa frente). A pergunta que nos vem : ao falarmos
tanto sobre a ditadura militar, no poderamos ter tambm alguns pontos cegos? Quantas
seriam e quais as duraes das mltiplas formas de autoritarismo e pensamento
autoritrio no Brasil? de se notar que os regimes de exceo no se autodescrevem
como autoritrios: ocultam-se em termos como democracia social, estado de exceo
rumo normalidade, propagao da democracia pelo mundo, sacrifcio desinteressado
e apoltico de parte de profissionais da ordem social, forma de evitar o ressurgimento de
conflitos e revanchismos etc. Estamos longe de algo fixado e bem definido.
Que tipo de implicao isso tem para a histria intelectual? Podemos destacar duas.
A primeira o pressuposto de que a cultura autntica, ou algo como a verdadeira
tradio intelectual brasileira a da resistncia democrtica. No haveria um humanismo
ditatorial. Mas tambm no se explica porque houve tanto investimento dos rgos
oficiais em cultura e porque intelectuais e artistas renomados participaram de aes
estatais. No o caso aqui de negar a existncia e o valor de aes de resistncia cultural,
mas apenas de questionar a naturalidade pressuposta para o campo da cultura e das
ideias como automaticamente no-autoritrios. A segunda implicao retoma o assunto
19 CALVINO, talo. Seis propostas para o novo milnio: lies americanas. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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do contexto histrico. Citemos, apenas a ttulo de exemplo, o romance Quatro-olhos de
Renato Pompeu.20 Ele foi publicado em 1976 e tem em sua trama relaes evidentes com a
ditadura. O protagonista algum que enlouquece devido ao ambiente sufocante da
perseguio. Este romance pode ser lido como uma alegoria da ditadura? Sem dvida.
Mas, alm disso, ele pode ter outros sentidos. Mesmo nos atendo questo da
perseguio e do autoritarismo, outras contextualizaes possveis, perfazendo outras
duraes e periodizaes, poderiam dar ao romance outras dimenses histricas. No
necessariamente delimitadas dcada de 1970. Isto porque um texto, em sua
complexidade, dialoga com vrias historicidades, sobrepostas, misturadas, conflitantes.
Nada impede um historiador de tratar o romance de Renato Pompeu como um
documento sobre a ditadura. Mas, por outro lado, nada assegura o pressuposto de que
essa seja a nica e mesmo a mais desejvel leitura histrica do livro.
Ao final, poderamos recuperar um debate que muitos davam por esgotado: o das
ideias e os seus lugares. Mas no o faremos, nos termos de Roberto Schwarz e Maria Sylvia
Carvalho Franco, a partir da avaliao da adequao ou inadequao dos discursos nossa
realidade aqui invariavelmente delimitada pelo modo de produo. Pensemos em
outros lugares para as ideias, outras possibilidades de escrita, outros locus de enunciao.
A ampliao dos contatos com a crtica literria campo j bastante prdigo no exerccio
crtico dos textos eruditos oferece um caminho de abertura para novas reflexes e
problematizaes.21 Outra chave de leitura que pode produzir estimulantes resultados
dada pelo recurso retrica, especialmente a partir dos estudos sobre as formas de
elocuo do discurso e dos instrumentos de persuaso, sobremaneira fornecidos pelos
usos diversificados dos tropos.22 A histria poltica renovada, sobretudo no que toca s
anlises sobre os intelectuais, amplia o campo de compreenso dos processos de
constituio autoral.23 Estes campos abertos e pelos quais os textos aqui reunidos
transitam formatam diversificadas estratgias de enfrentamento a pelo menos trs
20 Renato Pompeu. Quatro-Olhos. So Paulo: Editora Alfa-mega, 1976. 21Para David Harlan: O retorno da literatura mergulhou os estudos histricos numa profunda crise epistemolgica, questionando nossa crena num passado fixo e determinvel, comprometendo a possibilidade de representao histrica e abalando nossa habilidade de nos localizarmos no tempo. Ver HARLAN, David. Op.cit., p.16. 22 CARVALHO, Jos Murilo de. Histria intelectual no Brasil: a retrica como chave de leitura. Topoi, n.1, 2000, p.145. 23 SIRINELLI, Jean Franois. Intellectuels et passions franaises. Paris: Fayard, 1990.
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desafios lanados pela crtica ps-estruturalista: a desconfiana em relao ao sentido fixo
e determinado da narrativa histrica; a convico de que a linguagem um sistema
autnomo de transformaes no intencionais; e as incertezas quanto s capacidades
representacionais. Os impulsos mais recentes da profisso historiadora parecem nos
sinalizar em direo a uma histria intelectual menos limitada a uma apreciao intrnseca
das obras e dos processos ideolgicos e que possa falar no apenas sobre o nosso
passado, mas sobre o nosso presente.
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Interpretaes do Brasil, marxismo e colees brasilianas: quando a ausncia diz muito (1931-1959)
Fbio Franzini*
Na histria da historiografia brasileira, tanto o marxismo quanto as chamadas
colees brasilianas ocupam lugar de destaque, graas s obras que produziram, no caso
do primeiro, e publicaram, no caso das segundas. No entanto, ambos formam um curioso
binmio quando tomados em conjunto: embora sejam frutos da mesma poca e
estivessem, de certa forma, imbudos de propsitos semelhantes, suas aes correm em
paralelo, sem jamais se tocarem. Mais precisamente, as anlises e interpretaes da
histria e da realidade brasileiras formuladas sob o referencial da teoria marxista nunca
encontraram lugar nos prestigiosos conjuntos de volumes publicados pelos grandes selos
do pas entre as dcadas de 1930 e 1950 a Coleo Brasiliana, da Companhia Editora
Nacional, e a Coleo Documentos Brasileiros, da Livraria Jos Olympio Editora.
Tal desencontro poderia, a princpio, ser atribudo s tenses poltico-ideolgicas
do perodo, e com certa razo; como Rodrigo Patto S Motta bem o demonstra (PATTO S
MOTTA, 2006: 136, passim), particularmente aps 1935 os livros considerados
subversivos isto , associados de alguma maneira ao comunismo tambm se
tornaram vtimas do aparato repressivo estatal, preocupado, como sempre, com a
manuteno da ordem. Para alm desse pano de fundo, contudo, h que se lembrar
outros fatores candentes e em direta associao poca, como o interesse crescente pela
compreenso da realidade e da formao brasileiras, a expanso do mercado do livro e as
demandas e vicissitudes a ela associadas, tudo isso dentro de um sistema intelectual um
tanto limitado. Um cenrio bem mais multifacetado e complexo, cujo exame pode lanar
* Fbio Franzini, Doutor, Professor da Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade Federal de So Paulo, UNIFESP.
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luz significativa sobre os caminhos da historiografia nacional na primeira metade do
sculo XX e as formas de circulao do saber por ela produzido.
Ainda que seja difcil definir com preciso o momento especfico em que esse
cenrio toma forma, certo que na passagem dos anos 1920 para 1930 ele j est bem
delineado em seus contornos bsicos.1 Com a revoluo de 1930, o presente em ebulio
e as incertezas do futuro impuseram, entre outras coisas, a exigncia pelo
aprofundamento e pela sistematizao das reflexes que se desenvolviam havia algum
tempo; como escreveria um dos grandes intelectuais da poca, Afonso Arinos de Melo
Franco, assistia-se ento ao contato cada vez mais estreito da inteligncia com a
realidade, algo que propiciava a recuperao do Brasil pelo seu prprio pensamento
(FRANCO, 1938: 121-122).
Junto aos intrpretes da realidade, tambm os editores ganharam papel
fundamental nesse processo: primeiro, por se multiplicarem em todos os pontos do pas
(ainda que as principais empresas se concentrassem no Rio de Janeiro, por razes bvias) a
exercer a imprescindvel tarefa de converter manuscritos em impressos; depois, por
acreditarem, tal como Monteiro Lobato na dcada anterior, que um pas se faz com
homens e livros, empenhando-se em por a nao em sintonia consigo mesmo e com o
mundo por meio da publicao de nossos novos autores, em diferentes gneros, e de
tradues de ttulos clssicos e contemporneos; finalmente, por criarem produtos
diferenciados, como as colees, que, ao reunirem obras dotadas de certa especificidade
temtica,2 acabaram por se converter em um dos espaos privilegiados para a veiculao
do pensamento da poca, segundo Heloisa Pontes (PONTES, 2001: 449).
Logo, no por acaso que a primeira grande difuso do marxismo no Brasil e o
surgimento das brasilianas ocorrem praticamente ao mesmo tempo. Conforme Edgard
Carone (CARONE, 2004: 63), aps 1930 acontece a multiplicao espantosa de livros
marxistas e de editoras voltadas exclusivamente a esta linha de pensamento, ou de outras
que publicam esse gnero, por ser de venda garantida. Editoras como Pax, Cultura
Brasileira, Calvino, Unitas, Caramuru, Nosso Livro, Alba, Editorial Trabalho e tantas outras,
em geral pequenas e efmeras, dedicaram-se aos clssicos do marxismo (em geral
1 A este respeito, ver: FRANZINI, 2010. 2 Sobre a particularidade editorial das colees, ver: TOLEDO, 2001: 4-8.
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traduzidos do francs), literatura de esquerda (Gorki, Tolstoi, John Reed etc.) e, em
menor proporo, a trabalhos originais de autores brasileiros, como Raul Maia e Almachio
Diniz; alm disso, Carone observa e Motta (PATTO S MOTTA, 2006: 137) confirma que,
junto aos tratados tericos e aos romances, pela primeira vez so publicadas obras de
viagens Rssia, de autoria de estrangeiros e de brasileiros, que despertavam interesse a
ponto de o livro Rssia, de Maurcio de Medeiros, ating[ir] em poucos meses seis edies
consecutivas. Verdadeiro sucesso em um pas onde as edies oscilam entre 2 mil e 3 mil
exemplares e duram anos para se esgotarem (Idem: 64).
Enquanto isso, a Companhia Editora Nacional lana, em 1931, a srie que, pelo seu
sucesso, se tornaria sinnimo de uma biblioteca metafrica do pas (SOR, s/d: 11): a
Coleo Brasiliana. Dirigida pelo respeitado educador Fernando de Azevedo, ela tinha por
objetivo reunir ensaios sobre a formao histrica e social do Brasil, estudos de figuras e
de problemas nacionais (geogrficos, etnolgicos, polticos, econmicos, militares etc.),
reedies de obras raras de notrio interesse e tradues de obras estrangeiras sobre
assuntos brasileiros, configurando-se, dessa forma, como a mais vasta e a mais completa
coleo e sistematizao que se tentou at hoje de estudos brasileiros (ANURIO, 1938:
303). Na prtica, tal perspectiva levou publicao de autores nacionais e estrangeiros,
alguns bem conhecidos, outros novos e trabalhos tanto originais quanto reeditados; uma
miscelnea, mas da qual se sobressaa um trao marcante: o apelo histria. Desde o livro
inaugural, Figuras do Imprio e outros ensaios, de Batista Pereira, a sucesso dos volumes
revelava que descobrir o Brasil aos brasileiros equivalia a promover o encontro do
presente com o passado, fosse sob a forma de biografias e ensaios poltico-sociais, fosse
sob a forma de relatos histricos e obras de carter historiogrfico.3
Cinco anos depois, sob clara inspirao da Brasiliana, o editor Jos Olympio
tambm d incio sua prpria srie dedicada ao descobrimento do Brasil, a Coleo
Documentos Brasileiros. Tendo frente Gilberto Freyre, quela altura j consagrado por
Casa-grande & senzala (1933), o esprito do projeto foi apresentado com preciso no
prefcio, assinado pelo prprio Freyre, ao seu primeiro volume, Razes do Brasil, do jovem
crtico e professor Srgio Buarque de Holanda:
3 Para o detalhamento das caractersticas da Coleo Brasiliana e de seu projeto editorial, ver: DUTRA, 2006.
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A srie que hoje se inicia com o trabalho de Srgio Buarque de Holanda, Razes
do Brasil, vem trazer ao movimento intelectual que agita o nosso pas, nsia de
introspeco social que um dos traos mais vivos da nova inteligncia
brasileira, uma variedade de material, em grande parte ainda virgem. Desde o
inventrio biografia; desde o documento em estado quase bruto
interpretao sociolgica em forma de ensaio.
O caracterstico mais saliente dos trabalhos a ser [sic] publicados nesta coleo
ser a objetividade. Animando-a, o jovem editor Jos Olympio mais uma vez se
revela bem de sua gerao e do seu tempo. Ao interesse pela divulgao do
novo romance brasileiro ele junta agora o interesse pela divulgao do
documento virgem e do estudo documentado que fixe, interprete ou esclarea
aspectos significativos da nossa formao ou da nossa atualidade. No podia ser
mais oportuna nem mais feliz a sua iniciativa (FREYRE, 1936a: V).
Como se depreende do texto de Freyre, a essncia da nova coleo revelava-se em
seu comprometimento com aquilo que trazia j no prprio nome e vrias vezes repetido
no texto de apresentao: o documento. Desencavado do passado ou produzido no
presente, em estado quase bruto ou analisado de forma criteriosa, ele estaria na base
dos trabalhos a serem publicados, como dito praticamente a cada pargrafo. O propsito
era, parece claro, a afirmao de um conhecimento verdadeiro sobre o Brasil, do
conhecimento do Brasil real, fundamentado no em reconstrues ou especulaes e sim
em interpretaes comprovveis a seu respeito. Numa palavra, tratava-se de afirmar o
conhecimento cientfico sobre o Brasil, elaborado por especialistas que davam vida aos
documentos para junt-los histria social do brasileiro (Idem: VII).
No difcil perceber, assim, que o marxismo tambm poderia ser considerado
parte daquela nsia de introspeco social que, segundo Freyre, caracterizava ento a
nova inteligncia brasileira. A repercusso do livro de estreia de Caio Prado Junior,
Evoluo poltica do Brasil. Ensaio de interpretao materialista da histria brasileira, bem
o demonstra: ainda em 1933, pouco depois do seu aparecimento, um breve comentrio de
Adhemar Vidal (VIDAL, 1933: 211) nas pginas do Boletim de Ariel o qualificava como uma
obra apressada e a exigir reviso, tantas as falhas injustificveis, mas que representava,
assim mesmo como est, um nobre esforo mental: bem escrito e, sobretudo, muito
interessante. Menos de um ano depois, na mesma revista, uma resenha de pgina e meia,
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assinada por Raul Karacik, principiava por notar a sede de leitura que vinha empolgando
o Brasil aps a Revoluo de Outubro de 1930, apresentando a sua viso particular do
significado desse verdadeiro despertar:
Nunca se leu tanto entre ns. A esto as casas editoras a se multiplicarem e a
lanarem incessantemente em traduo as principais obras dos mais notveis
escritores destes ltimos anos. Stefan Zweig, Emil Ludwig, Maurois, Freud,
Havelock Ellis, Gladkov, Ilya Ehrenburg etc. vo se tornando familiares do
pblico que l.
Os temas polticos e sociais, entretanto, so os que tm cado mais no nosso
agrado, principalmente as obras de Marx e Engels e seus maiores discpulos, e as
que versam sobre a Revoluo Russa e suas consequncias. As edies em
portugus das obras de Marx, Engels, Plekhnov, Lnin, Trotski, Bukhrin, Max
Beer... tm se sucedido (KARACIK, 1934: 158).
Para Karacik, o interesse pela literatura marxista devia-se, evidentemente,
prpria revoluo de 30, a qual, se no foi uma revoluo profunda, que modificasse as
relaes sociais, arrastou uma grande massa, interessando a toda populao, trazendo
superfcie uma vasta messe de problemas que passavam antes despercebidos da maioria.
Como estes problemas no podiam deixar de suscitar nos meios intelectuais a ateno
para eles, os intelectuais honestos, despidos de preconceitos acabavam por direcionar
suas preferncias para socilogos, economistas e historiadores materialistas, sobretudo
da ala esquerda [sic], donde o aparecimento de escritores por eles influenciados e de
edies de obras abordando o caso brasileiro. Todas essas consideraes, dizia o
articulista, vieram a pelo ao concluirmos a leitura do livro do sr. Caio Prado Junior, da
aristocrtica famlia paulista A [sic] Evoluo Poltica do Brasil, autor que demonstrava
ser um perfeito possuidor do mtodo dialtico-materialista, que maneja com
desenvoltura (Idem: 158).
Aps por em relevo os aspectos estruturantes do livro a lgica da colonizao, os
conflitos de interesses entre colnia e metrpole, a transferncia da Corte e a
independncia, as turbulncias da Regncia, o escravismo e o abolicionismo , Karacik
conclua seu texto aconselhando a leitura desta magnfica obra, que, como j dissemos,
com o Mau de Castro Rebelo, constitui um dos raros ensaios srios de interpretao
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materialista da histria tentados no Brasil (Idem: 159). Arguta percepo, pois, de acordo
com Edgard Carone (CARONE, 2004: 170-171), enquanto Mau, aparecido em 1932, pode
ser considerado o primeiro livro marxista brasileiro, Evoluo poltica do Brasil era o
ponto alto de uma tendncia muito recente entre ns, dentro da qual ambos se
apresentavam ainda como os nicos trabalhos sobre assuntos histricos, dado que a
maior parte da literatura marxista [aqui] publicada trata[va] de temas atuais.
Nada disso, contudo, tornaria nem a Brasiliana, nem a Documentos Brasileiros,
sensveis a autores comprometidos com a interpretao materialista da histria, como j
foi dito. Se, no caso da primeira, ainda seria possvel apontar o conservadorismo do editor
Octalles Marcondes Ferreira como um impeditivo, o mesmo no pode se aplicar a Jos
Olympio. De postura liberal, ele era um dos principais fomentadores do novo e crtico
romance social que surgia poca no pas, e mais adiante ainda daria guarida profissional
a autores assumidamente de esquerda perseguidos pela ditadura do Estado Novo, como
Graciliano Ramos e Jorge Amado.
Ademais, a crescente tenso poltica entre 1935 e 1937 e, depois, a
institucionalizao da censura fizeram-no sofrer bastante assim como outros editores e
autores com a violncia contra a livre manifestao do pensamento, que retaliava tanto
os romances tidos por comunistas que publicava quanto as suas edies de livros
integralistas, os quais defendiam o tipo errado de fascismo, na expresso de Laurence
Hallewell (HALLEWELL, 2004: 456); ainda assim, no cederia s presses e manteria firme a
linha da Casa, chegando at a lanar o ensaio autobiogrfico de Trotski, Minha vida, em
1943.
As orientaes tericas dos diretores de cada coleo tambm devem ser
consideradas no exame dessa ausncia. Fernando de Azevedo no somente no
desconhecia Marx como at o cita positivamente em alguns textos, mas estava longe de
ser um marxista (cf. TOTTI, 2008); j para seu sucessor a partir de 1957, o historiador
Amrico Jacobina Lacombe, este era um dilogo impossvel na dcada de 1960, por
exemplo, ele seria crtico ferrenho da coleo Histria Nova do Brasil, escrita por um grupo
de historiadores do ISEB, Nelson Werneck Sodr frente, justamente por conta de sua
ideologia materialista (cf. LOURENO, 2008: 395-396). Assim, o mximo a que a srie da
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Nacional chega publicao de alguns poucos ttulos de tom histrico-sociolgico mais
crtico,4 os quais se diluem em meio ao predomnio de obras ainda inspiradas pelo
pensamento oitocentista. importante notar, contudo, que aps o Estado Novo e o
fortalecimento do grupo catlico junto ao Ministrio da Educao e Sade, o prestgio de
Fernando de Azevedo foi duramente abalado, algo que teve reflexos diretos sobre as
colees que dirigia na Nacional, como a Atualidades Pedaggicas e a Brasiliana; esta,
como mostra Maria Rita de Almeida Toledo (TOLEDO, 2001: 206), transforma-se em uma
espcie de moeda de troca da Companhia Editora Nacional. Muitos ttulos so publicados
para evitar represlias contra a editora, passando por cima das propostas editoriais das
quais a coleo nasceu.
Quanto a Documentos Brasileiros, a reticncia de Gilberto Freyre ao materialismo
histrico-dialtico se explicitara j s pginas iniciais da primeira edio de Casa-grande &
senzala, nas quais, logo aps anunciar que o ensaio assentava-se sobre o critrio de
diferenciao fundamental entre raa e cultura, ele dizia:
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histrico, tantas vezes
exagerado nas suas generalizaes principalmente em trabalhos de sectrios
e fanticos , temos de admitir influncia considervel, embora nem sempre
preponderante, da tcnica da produo econmica sobre a estrutura das
sociedades; na caracterizao da sua fisionomia moral. uma influncia sujeita
reao de outras, porm poderosa como nenhuma na capacidade de
aristocratizar ou de democratizar as sociedades; de desenvolver tendncias para
a poligamia ou a monogamia; para a estratificao ou a mobilidade (FREYRE,
1936b: XI).
Como a sequncia do texto demonstrava, esse reconhecimento um tanto
envergonhado no significava uma capitulao. Servia, ao contrrio, para consolidar a
interpretao sociocultural que propunha, vinculada a Franz Boas, citado para lembrar
que, admitida a possibilidade da eugenia eliminar os elementos indesejveis de uma
4 Por exemplo: margem da histria do Brasil, de Vicente Licnio Cardoso (1933), A escravido africana no Brasil, de Evaristo de Moraes (1933), A primeira revoluo social brasileira, de Afonso Ruy (1942).
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sociedade, a seleo eugnica deixaria de suprimir as condies sociais responsveis pelos
proletariados miserveis gente doente e mal nutrida; e, persistindo tais condies
sociais, de novo se formariam os mesmos proletariados (Idem: XI). Mesmo que na pgina
seguinte expressasse, em nota de rodap, a sua concordncia com vrios pontos do
trabalho de Caio Prado, o referencial com que trabalhava era outro, bem distante de Marx
e Engels. Uma distncia cultivada com zelo e, no raro, ironia em seus trabalhos seguintes,
a comear de Sobrados e mucambos (1936), em cujo prefcio afirmava ser ridculo se
declarar satisfeito com interpretaes marxistas ou explicaes behavioristas ou
paretistas; com puras descries semelhantes s da histria natural de comunidades
botnicas ou animais acerca do passado humano, para o qual deveria deixar-se espao
para a dvida e at para o mistrio (FREYRE, 1985: LI).
Ao deixar a direo da coleo, em 1937, Freyre substitudo por Octavio Tarqunio
de Sousa, historiador dedicado ao estudo do Imprio e, em especial, biografia de suas
figuras-chave. Se tal predileo necessariamente implicava algumas diferenas ante a
interpretao materialista da histria, estas, no entanto, no o colocavam em franca
oposio ao marxismo, at porque seu propsito era o de entender o homem em si
mesmo e em relao com seu meio e seu momento. Deste modo, como constatou Mrcia
de Almeida Gonalves (GONALVES, 2009: 300) ao analisar a introduo Histria dos
fundadores do Imprio do Brasil, em que o prprio Marx discutido por Tarqunio, para
ele a luta de classes no implicava a negao da interferncia de grandes personalidades,
dotadas de qualidades morais e intelectuais, no desenvolvimento das sociedades. Mesmo
assim, essa aparente maior tolerncia ao marxismo no foi suficiente para abrir a coleo
esquerda, ainda que, aos olhos de hoje, se pudesse contra argumentar com o exemplo da
presena nada desprezvel de Nelson Werneck Sodr em meio ao seu variegado conjunto:
com quatro ttulos nela publicados entre 1940 e 1958, Sodr era um autor superado em
nmero apenas pelos prprios Gilberto Freyre, com treze, e Octavio Tarqunio, com cinco.
Nesse cenrio, entretanto, Sodr que j havia publicado um livro tambm na
Brasiliana, Panorama do segundo Imprio (1939) significa uma perigosa armadilha e um
exemplo emblemtico. Uma perigosa armadilha porque, em primeiro lugar, sua insero
na Documentos Brasileiros devia-se, ao menos na origem, a Jos Olympio, que lhe
assegurara pessoalmente a publicao da Histria da literatura brasileira, seu primeiro
ttulo na editora, em 1940; depois, porque ele, diferentemente de Caio Prado Junior, no
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nasce um historiador marxista: para ficarmos apenas nos livros que lanou pela coleo,
a citada Histria da literatura brasileira, Oeste (1941) e Formao da sociedade brasileira
(1944), o que se percebe um intelectual ecltico, ainda no totalmente alinhado ao
marxismo.
Segundo Paulo Ribeiro da Cunha (DA CUNHA, 2002: 89-93, passim), nesta primeira
fase de sua carreira como escritor dedicado ao estudo da formao e da realidade
nacionais, compreendida entre os anos trinta e quarenta, Sodr combinava fundamentos
da anlise materialista a referncias e influncias de vria ordem, como Azevedo Amaral,
Vilfredo Pareto, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Fernando de Azevedo, entre muitos
outros. Mais importante, ele o fazia de modo consciente, pragmtico, como se pode
perceber logo no primeiro pargrafo da introduo Formao da sociedade brasileira:
Escrevendo esta Formao da Sociedade Brasileira no tive outra inteno que a
de oferecer ao leitor comum, dentro das possibilidades de um levantamento to
sumrio, uma viso de conjunto de como viveu o nosso povo at os dias que
precederam a crise de 1929. Para tal me valeram os mestres, os que fizeram,
antes de mim e melhor do que eu, a descrio do processo do desenvolvimento
brasileiro. Vali-me desses mestres com frequncia, e no h, pois, coisas
originais nestas pginas. Original ser, se quiserem, a maneira como reuni, de
cada um, aquilo que me pareceu a respeito desta ou daquela passagem o mais
apropriado (SODR, 1944: 5).
Embora dissesse, na sequncia, considerar que, entre os fatores que presidem a
evoluo das sociedades, o econmico te[nha] uma importncia superior, acreditando ser
isso cincia adquirida, notava tambm ter reservado lugar no balano das foras aos
demais fatores culturais, bem como a uma preponderncia acentuada, uma insistncia
repetida, na interpretao da dinmica social. Com escopo to amplo, os mestres a que
recorrera reconstituam toda a espinha dorsal da historiografia brasileira at ento, de
Southey a Caio Prado, passando por Varnhagen, Capistrano, Euclides da Cunha, Joo
Ribeiro, Oliveira Vianna, Taunay, Alcntara Machado, Gilberto Freyre...
Ao mesmo tempo, o caso de Sodr emblemtico porque a interpretao da
histria e da sociedade brasileiras por ele realizada, embora indubitavelmente crtica, era
at esse momento pautada por uma srie de mediaes, que diluam a sua radicalidade e
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a tornavam palatvel para a Coleo Documentos Brasileiros, como antes a haviam
tornado para a Brasiliana. significativo, nesse sentido, que a introduo da mesma
Formao da sociedade brasileira registre o agradecimento do autor aos meus amigos
Octavio Tarqunio de Sousa, Srgio Buarque de Holanda e Hermes Lima, que leram os
originais deste trabalho e tiveram a gentileza de fornecer observaes e reparos que me
foram utilssimos (Idem: 7-8).
Mais significativo ainda, a Introduo revoluo brasileira, de 1958, cujo ttulo no
deixava dvida acerca de seu carter, seria o ltimo livro que publicaria na Coleo
Documentos Brasileiros e na editora do tambm amigo Jos Olympio. Da por diante, os
prximos sairiam todos sob o sinete da Civilizao Brasileira de nio Silveira,
assumidamente progressista e uma das principais editoras voltadas divulgao da
literatura de esquerda nas dcadas de 1960 e 1970, em especial nas reas da sociologia,
poltica e economia.
Pode-se afirmar, desta forma, que a incompatibilidade entre o marxismo e as
brasilianas expressa de forma concreta a clebre frmula de Antonio Candido (2000: 101),
para quem, se fosse possvel estabelecer uma lei de evoluo da nossa vida espiritual,
poderamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialtica do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ou seja, num momento em que
imperava descobrir o Brasil, como j foi dito, e compreender a nossa formao (outra
palavra-chave da poca, como se sabe), uma teoria interpretativa que no apenas vinha de
fora, mas, sobretudo, pretendia-se universal, parecia no corresponder s expectativas de
nosso sistema intelectual, nem a ele se adequar, seno como excrescncia. Inserida nesse
contexto de relaes de fora, a historiografia tambm mostrava seus limites.
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Drama social e histria: memria poltica e historiografia da dcada de 1930
Marcelo Santos de Abreu*
No debate contemporneo acerca da histria da historiografia, h uma
preocupao constante que remonta a um lugar comum para os historiadores: toda
histria histria contempornea (CROCE, 1962). Acusar o comprometimento da escrita
da histria com o tempo de sua produo insuficiente porque no instaura um problema
de investigao. Fazer da historiografia um problema exige ultrapassar o bvio e
desvendar as formas pelas quais um presente torna a compreenso do passado necessria
e possvel.
A preocupao deste texto toca o domnio da necessidade de se compreender o
passado: como um tema e um perodo tornam-se relevantes para a reflexo histrica em
certa circunstncia? Pensar esse problema implica destacar as relaes entre memria,
histria e os usos do passado. E como os usos da histria, entendida como forma
racionalizada de representao do passado, articulam-se aos imperativos de orientao
temporal que presidem a ao social (KOSELLECK, 2006: 313).
Toma-se como objeto para esta reflexo o debate que se instaura acerca da histria
poltica dos anos de 1930, particularmente acerca da Revoluo de 1930 e seus
desdobramentos ou aquilo que foi entendido como o tempo revolucionrio a
desdobrar-se em novas formas de organizao do mundo poltico brasileiro desde 1930. A
Revoluo de 1930 marcaria a emergncia de novos atores no campo poltico e de
padres de dominao igualmente novos estendendo-se no tempo at um ponto final: o
golpe civil-militar de 1964.
* Marcelo Santos de Abreu, Doutor, Professor do Departamento de Histria do Instituto de Cincias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.
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A ideia central que, no contexto crtico dos anos 1960, figurava-se a histria
poltica da dcada de 1930 como resposta adequada aos dramas do presente. Um drama
desdobrava-se em outro, requerendo interpretaes que ultrapassassem os limites da
memria histrica. Tratava-se, ento, de compreender o passado de forma sistemtica
para dar sentidos ao presente, distinguindo as linhas de fora estruturas sociais, grupos e
projetos polticos subjacentes aos acontecimentos e personagens singulares. Nesse
movimento, a escrita da histria consagrava marcos da memria poltica e, ao mesmo
tempo, formulava seu questionamento. Por um lado, institua a Revoluo de 1930 como
ponto de inflexo no tempo caro produo historiogrfica (DECCA & VESENTINI, 1976;
GOMES, 1994). Por outro, o trabalho de memria, que desde 1930 se desenvolvera em
muitas frentes de livros de memrias ao periodismo poltico dirio , e os usos do
passado que encerravam seriam questionados. O argumento aqui defendido que o
questionamento fundava-se na percepo do esgotamento dos usos polticos do passado
amparados na memria dos eventos da dcada de 1930 porque as condies do drama
eram outras.
Drama social uma categoria heurstica para compreender situaes histricas
conflituosas. Ela se articula a uma percepo da vida social como vida no tempo. Isto
implica pensar o social no como a conjugao mais ou menos orgnica de estruturas
sociais que tenderiam a certa estabilidade, a uma durao que confina um tempo imvel.
Os grupos que constituem as sociedades aparentemente mais estveis manipulam as
estruturas sociais e, ao faz-lo, transformam-nas. Estas alteraes ocorrem especialmente
em contextos sociais de mudana e assumem as formas de um drama: uma disposio dos
atores sociais na cena pblica caracterizada pela articulao de arenas em um campo
poltico, espaos relacionais onde o conflito se torna manifesto. E tambm por outra
qualidade fundamental do drama: a cultura prescreve os smbolos e modos de interao
antagnica (TURNER, 1974: 134).
Poderamos dizer: memria e histria estabelecem, cada uma sua maneira, as
representaes do passado acionadas no drama social; trata-se, portanto, de qualificar
aquilo que se chamou de usos polticos do passado e os usos da histria (HARTOG &
REVEL, 1998; GUIMARES, 2000). No basta apontar a confluncia entre cultura histrica e
cultura poltica que o uso do passado supe, mas sim pensar como estes usos, enquanto
parte integrante da interao conflituosa que move a vida, acontecem: como as diversas
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representaes do passado so operadas politicamente, porque todas elas, mesmo as
racionalmente controladas, configuram repertrios simblicos para a ao no tempo.
Relacionar as noes de usos do passado e de drama social uma das chaves possveis
para se compreender esta operao cultural que fazer histria no sentido moderno da
palavra mover-se no tempo, ser por ele movido e refletir sobre tal movimento
simultaneamente (KOSELLECK, 2006: 49-58).
Estes pressupostos tericos guiam a interpretao deste ensaio que no pretende
esgotar a anlise do debate aberto nos anos de 1960 acerca da dcada de 1930. A
inteno mais modesta e restringe-se a situar o debate face produo memorialstica
anterior e desvendar o tempo presente a insinuar-se em dois textos seminais: Revolues
do Brasil Contemporneo (1965), de Edgar Carone, e A Revoluo de 1930: historiografia e
histria (1969), de Boris Fausto. Entre estes estudos e os eventos que analisavam havia um
espao de pouco mais de 30 anos: quase nenhuma distncia, portanto, sobretudo se
pensarmos como a poltica brasileira foi marcada pelas experincias decorrentes da
Revoluo de 1930.
Desde o final do Estado Novo, o campo poltico cindia-se em oposies binrias
como getulistas e antigetulistas. Nos anos de 1950, a estas categorias somam-se outras:
populistas e antipopulistas, nacionalistas e entreguistas (FERREIRA, 2001). medida
que o conflito se acirrava, outras categorias seriam acionadas para qualificar os atores em
disputa. Uma das caractersticas do drama social , justamente, a configurao de um
campo caracterizado por relaes antagnicas que se materializam nestas oposies
binrias. Nesse caso, por antagonismos que tinham por referncia a memria histrica da
dcada de 1930 e seus desdobramentos. A durao daquele passado expressava-se ainda
na presena de personagens que encarnavam as posies antagnicas originais. Era
recorrente no discurso poltico, por exemplo, a identificao positiva ou negativa entre
Joo Goulart e Getlio Vargas, como em um editorial de O Estado de So Paulo durante as
eleies de 1955. O jornal avaliava positivamente a ideia de um golpe preventivo contra a
candidatura PSD-PTB proposta por Carlos Lacerda no Congresso Nacional. O bravo
matutino perguntava-se como seria possvel, dentro da lei, desentulhar o terreno para
fazer as instituies voltarem a funcionar apropriadamente.
Depois de reconhecer os riscos que os regimes de exceo comportavam,
terminava por afirmar que no era possvel no levar em considerao os riscos maiores a
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que nos submeteram as Foras Armadas deixando por duas vezes de instaurar o
processo do estado novo e de seu bando (O ESTADO DE SO PAULO, 8 de julho de
1955). Avaliao no muito diversa e palavras no to diferentes poderiam ser repetidas
ainda em 1964, quando, como em 1945 e 1954, havia fortes esperanas de que o
processo do estado novo fosse definitivamente instaurado. Para certos grupos, os fatos e
personagens da dcada de 1930 permaneciam obsedantes: sua lembrana remetia a um
uso exemplar do passado na luta poltica.
A evocao desse exemplo colhido na imprensa peridica remonta copiosa
literatura testemunhal produzida sobre os anos de 1930. Tal produo evidenciava a
importncia que os fatos polticos da dcada teriam para seus contemporneos,
particularmente a revoluo de outubro, apreendida de imediato como um marco das
alteraes do Estado nacional por todos os grupos independentemente dos projetos
antagnicos que defendiam (OLIVEIRA, 1980: 37). H dois traos comuns a estas obras. Em
primeiro lugar, a inteno de comunicar aos contemporneos a experincia pessoal dos
acontecimentos.
Neste movimento, que evidenciava a confluncia das experincias pessoais com a
histria em transformao (ARIS, 1989: 87), os autores reivindicavam a condio de
expectadores e protagonistas do drama palavra, alis, usada com frequncia nesta
literatura. Ao faz-lo, alavam indivduos condio de atores privilegiados e figuravam os
acontecimentos singulares a serem lembrados e analisados posteriormente. Em segundo
lugar, muitas vezes a narrativa dos fatos vividos era precedida por uma breve histria da
Repblica, como em dois livros que defendiam posies antagnicas acerca dos eventos:
Outubro, 1930 (FRANCO, 1980: 1-61), e A repblica que a revoluo destruiu (CASTRO,
1982). Nos dois textos, a apreenso da histria republicana imediatamente anterior
Revoluo de 1930 levaria, contudo, a imagens diferentes do evento. Tanto para Virglio de
Melo Franco como para todos os seus companheiros de jornada revolucionria, 1930 era
um ponto de ruptura, e os homens que tomavam parte na obra revolucionria, embora
formados na Repblica Velha, superariam os vcios anteriores para dar lugar ao novo.
Para Sertrio de Castro, ao contrrio, os protagonistas do drama de 1930 participavam dos
vcios anteriores: tinham poder porque se valeram dos mecanismos que pretensamente
desejavam destruir e a prpria revoluo seria evidncia da continuidade do desprezo
pelas virtudes democrticas, porque afinal ela fora a reao derrota eleitoral. Conquanto
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os diagnsticos e prognsticos apontassem para caminhos diferentes, ambos os autores
sustentavam, embora atentos realidade da poltica de massas, uma viso segundo a qual
a histria era obra de indivduos e ideias a governar o tempo em mudana.
Esta viso permeava o conjunto da literatura acera dos anos de 1930 e dava forma
memria histrica que serviria ao poltica por bastante tempo, permitindo que a
soluo para os problemas da Repblica pudesse resumir-se a desentulhar o terreno,
instaurar o processo do estado novo e seu bando ou varrer a corrupo. E, do outro
lado da cena, reivindicar a herana de Vargas e o trabalhismo como smbolos para se
conquistar direitos e viabilizar as reformas desejadas. Um uso do passado adequado s
condies estruturais caracterizadas pela participao restrita na vida poltica, isto ,
quando o drama e suas aes eram condicionados por formas autoritrias de controle
poltico ou pela reduo dos atores na cena pblica na vigncia da democracia liberal
inaugurada em 1946. Mas desde os anos de 1950, estas condies vinham se alterando
significativamente. Tomam a cena atores cuja presena no se confundia com uma
personagem, mas sim com a massa annima a exigir a difuso de direitos, estabelecendo
uma agenda que levaria s presses por reformas de carter redistributivo nos anos de
1960. Dessa forma, o debate pblico no se restringia ao universo da poltica institucional
estendendo-se ao campo das realidades econmicas, de foras sociais impessoais, das
estruturas sociais. Mudar o Brasil, naquela circunstncia, no poderia restringir-se a
transformaes nos costumes polticos e suas personagens, implicava antes encontrar
respostas para o seu desenvolvimento (TOLEDO, 1982).
A reviso da histria contempornea uma delas, fornecendo as interpretaes
que dariam forma ao debate pblico. nesse tempo que acontece um deslocamento dos
estudos histricos: do interesse substantivo pelo perodo colonial, passa-se investigao
dos perodos imperial e republicano. E, mais importante, inaugura-se a investigao
sistemtica acerca da escravido e a transio para o trabalho livre, a industrializao e a
reviso da histria poltica republicana, como se a explicao do presente exigisse a
indagao das realidades econmicas e polticas pretritas (LAPA, 1976).
A Revoluo de 1930 ganharia destaque na reviso da histria poltica que serviria
compreenso das realidades presentes; as anlises, no entanto, enfatizariam mais as
foras sociais do que as personagens e seus atos. Em Revolues do Brasil
Contemporneo, h uma tese implcita que se anuncia na estrutura da obra em trs
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sees: A Revoluo Ascendente (1922-1927); A Revoluo Triunfante (1927-1932); A
Revoluo Descendente (1932-1937). Cabe perguntar: que revoluo ascende, triunfa e
acaba justamente em 1937? possvel afirmar que se trata das tentativas de reforma
liberal do Estado Nacional protagonizadas pela pequena-burguesia urbana em aliana
com as oligarquias dissidentes. As condies que preparam o terreno para a ciso da
elite poltica encontravam-se nas transformaes econmicas e sociais como o
crescimento do setor urbano industrial e consequente aumento do mercado interno, por
um lado, e a diversificao dos grupos sociais na arena poltica, como a pequena-
burguesia e o operariado. Nestas transformaes, o operariado urbano forava a discusso
da questo social e as fraes pequeno-burguesas e oligrquicas precisavam encontrar
respostas para estas demandas. Alm disso, a crtica ao liberalismo econmico sustentava
a ideia de intervenes permanentes na economia, especialmente no que se referia ao
produto de exportao por excelncia. Contudo, o liberalismo poltico persistia como a
ideia-fora a sustentar a unidade das oligarquias.
Carone qualifica a composio poltica vitoriosa em 1930 como uma cristalizao
paradoxal das oposies que reunia as oligarquias dissidentes a elementos civis e
militares da pequena-burguesia urbana. Excludos da Aliana Liberal, aos trabalhadores
urbanos cabia apenas esperar que o programa aliancista realizasse as vagas promessas
em torno da questo social. O programa era tmido nesse aspecto, to vago quanto as
propostas de reforma do sistema eleitoral que constituam o principal ponto na
perspectiva da pequena-burguesia urbana sobretudo dos democrticos de So Paulo
e dos polticos mais jovens das oligarquias dissidentes do Rio Grande do Sul e Minas
Gerais.
A debilidade do programa poltico aliancista satisfazia as estratgias da
campanha poltica. Mas foram as mquinas polticas dos estados dissidentes, Minas Gerais
e Rio Grande do Sul, que garantiram o sucesso eleitoral da Aliana Liberal. Foram estas
mesmas mquinas que tambm asseguraram o sucesso do movimento militar. Na chefia
da revoluo armada, os tenentes instituram-se como representantes de outra
tendncia dentro da aliana. Este grupo poltico caracterizava-se pela crtica aos princpios
liberais de organizao do Estado, especialmente o federalismo, e defendiam a instituio
de um governo forte como meio de promover a integrao nacional efetiva e a
incorporao controlada das massas vida poltica. Para Carone, todo o perodo
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subsequente ao da Revoluo de 1930 marcado pela luta entre os tenentes e a
oligarquia (CARONE, 1975: 89).
A Revoluo de 1930: historiografia e histria, apresentada como tese de
doutorado por Boris Fausto em 1969, representou uma inovao porque tomava a
historiografia existente sobre a Revoluo de 1930 como base para a anlise. Boris Fausto
construiu uma interpretao que se filiava ao debate sobre o populismo realizado pelos
cientistas sociais, especialmente a hiptese de Weffort acerca do Estado de compromisso
como forma poltica que caracterizaria o pacto populista. O autor contestou, ento, as
teses que tomavam a Revoluo de 1930 como ascenso da burguesia industrial ou da
classe mdia, um ataque dirigido s posies dualistas defendidas pelo ISEB e parte da
esquerda nacionalista dos anos de 1950 e 1960.
A primeira se baseava na transposio para o caso brasileiro da histria europeia
vulgarizada pela ortodoxia marxista. Esta supunha a existncia de etapas universais do
desenvolvimento histrico que levavam revoluo burguesa, a que se seguiria
revoluo proletria. A outra dizia respeito percepo do tenentismo, vitorioso em 1930,
como expresso dos anseios da classe mdia urbana. Segundo Fausto, nenhuma das duas
hipteses era validada pela anlise cuidadosa da realidade histrica. Em primeiro lugar,
no haveria um antagonismo entre a burguesia industrial e as oligarquias agrrias, uma
vez que a industrializao incipiente fora produto das inverses do capital cafeeiro e
possibilitada por um mercado interno efetivamente vinculado grande lavoura de
exportao. A segunda tese tambm no se sustentaria porque o tenentismo encontrava
explicaes mais corretas na anlise do prprio aparelho militar e pela subordinao da
classe mdia burguesia agrria.
Para terminar a apresentao dos argumentos centrais do autor, resta definir como
ele pensou a Revoluo de 1930 enquanto resultado da crise dos anos 20 que tornara
evidente as disparidades regionais e as contradies que opunham as diversas fraes da
classe dominante. Explica o episdio revolucionrio como evidncia da crise de
hegemonia da burguesia cafeeira. A perda da capacidade de direo poltica e produo
do consenso fazem emergir a aglutinao das oligarquias no vinculadas ao caf, de
diferentes reas militares onde a oposio hegemonia tem caractersticas especficas. A
estas foras se somaram as classes mdias urbanas e a presena difuso das massas
populares. A ciso entre as classes dominantes realizava-se tendo por fundo as
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disparidades regionais, de modo que as divises puras de frao burguesia agrria,
burguesia industrial no se consolidam e no explicam o episdio revolucionrio
(FAUSTO, 1969: 131).
E desta aglutinao extravagante surgiria a composio do Estado de
compromisso como momento da direo poltica que, no representando diretamente os
interesses especficos de nenhuma das fraes burguesas, viria a favorecer a
modernizao econmica com a industrializao e diversificao da agricultura, a
expanso do prprio aparelho estatal abrindo espao para as classes mdias e a
incorporao controlada dos trabalhadores urbanos vida poltica pela represso de suas
manifestaes autnomas e concesso progressiva de direitos sociais.
As duas interpretaes diferem, fundamentalmente, da memria poltica dos anos
de 1930. Os autores pertenciam a um ofcio que se constitua dentro da Universidade e em
dilogo com as Cincias Sociais. A posio no campo das Cincias Humanas e o
deslocamento temporal no garantiam maior objetividade na apreenso do passado. Nas
duas obras, como em outras do mesmo perodo, registram-se marcas de seu prprio
tempo nas respostas que encaminham ao problema de investigao. So comprometidas
com o presente em outro sentido: integram-se s lutas polticas de ento. Delas participam
de outra forma porque de outra maneira que davam a ver o perodo que buscavam
compreender, sujeitando suas proposies a usos mais precisos quando se construssem
analogias e linhas de continuidade entre os anos de 1930 e a histria presente.
Nesse terreno, algumas obviedades: o reforo que estas obras e outras deram ao
papel dos tenentes na luta poltica de 1930 remetia imediatamente ao papel que os
militares desempenharam na histria republicana subsequente, sobretudo nos anos de
1950 e 1960. A resposta a esta participao militar na vida poltica pretensamente
democrtica exigia a compreenso de seus comeos. Outra: a crtica que formularam
acerca da participao das classes mdias nos anos de 1920 e 1930, acusando sua
inconsis