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Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente João Rosado Maldonado Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e Comunitário Jairo Jorge da Silva Pró-Reitora de Ensino a Distância Sirlei Dias Gomes Capelão Geral Pastor Gerhard Grasel Ouvidora Geral Eurilda Dias Roman ALETHEIA Revista de Psicologia da ULBRA Disponível on-line pelo portal PePSIC: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php ISSN 1981-1330 Arquivo em PDF disponível pelo site www.editoradaulbra.com.br Indexadores: Index-Psi Periódicos (CFP); LILACS (BIREME); IBSS; PsycINFO (APA); PePSIC; Latindex; CLASE Editora Profª. Dra. Mary Sandra Carlotto Editores Associados Prof. Dr. Mauro Magalhães Profª Dra. Sheila Gonçalves Câmara Apoio Editorial Profa. Dra. Tânia Rudnicki Profa. Dra. Lígia Braun Shermann Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero Conselho Editorial Dra. Ana Maria Benevides Pereira (UEM, Maringá/BR) Dra. Ana Maria Jacó-Vilela (UERJ, Rio de Janeiro/BR) Dra. Antonieta Pepe Nakamura (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Carlos Amaral Dias (ISMT/Lisboa/PT) Dra. Dóris Vasconcelos Salençon (Sorbone, Paris/FR) Dr. Eduardo A. Remor (UAM, Madrid/ES) Dr. Francisco Martins (UnB, Brasília/BR) Dr. Hugo Alberto Lupiañez (UDA, Mendoza/AR) Dra. Isabel Arend (UG, Bangor/UK) Dr. João Carlos Alchieri (UFRN, Natal/BR) Dr. Jorge Béria (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Jorge Castellá Sarriera (UFRGS, Porto Alegre/BR) Dr. José Carlos Zanelli (UFSC, Florianópolis/SC) Dra. Jussara Maria Körbes (ULBRA, Canoas/BR) Dra. Maria Lúcia Tiellet Nunes (PUCRS, Porto Alegre/BR) Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi (CEULM, Manaus, BR) Dra. Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS, São Leopoldo/RS) Dr. Mário Cesar Ferreira (UnB, Brasília/BR) Dr. Ramón Arce (USC, Santiago de Compostela/ES) Dr. Ricardo Gorayeb (FMRP-USP, Ribeirão Preto/BR) Dra. Rita de Cassia Petrarca Teixeira (ULBRA Gravataí/BR) Dr. Vicente Caballo (UG, Granada/ES) EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen Assinaturas Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 29 - Sala 202 Bairro São José - Canoas/RS - CEP: 92425-900 Fone: (51) 3477.9118 - Fax: (51) 3477.9115 [email protected] www.editoradaulbra.com.br Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta/exchange Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Biblioteca Martinho Lutero - Setor de Aquisição Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 5 CEP: 92425-900 - Canoas/RS Brasil Fone: (51) 3477.9276 [email protected] Endereço para envio de artigos Revista Aletheia Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 01 CEP: 92425-900 - Canoas/RS - Brasil Fone: (51) 3477.9215 [email protected] www.ulbra/psicologia/aletheia.htm - A372 Aletheia / Universidade Luterana do Brasil. - N. 1 (jan./jun. 1995)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 1995. v. ; 27cm. Semestral ISSN 1413-0394 1. Psicologia - periódicos. I. Universidade Luterana do Brasil CDU 159.9(05) ALETHEIA Revista de Psicologia o N 26 - Jul./Dez. 2007 ISSN 1413-0394 Matérias assinadas são de responsabilidade dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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PresidenteDelmar Stahnke

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ReitorRuben Eugen Becker

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Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e ComunitárioJairo Jorge da Silva

Pró-Reitora de Ensino a DistânciaSirlei Dias Gomes

Capelão GeralPastor Gerhard Grasel

Ouvidora GeralEurilda Dias Roman

ALETHEIARevista de Psicologia da ULBRA

Disponível on-line pelo portal PePSIC:http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php

ISSN 1981-1330

Arquivo em PDF disponível pelo site www.editoradaulbra.com.br

Indexadores: Index-Psi Periódicos (CFP); LILACS(BIREME); IBSS; PsycINFO (APA); PePSIC; Latindex; CLASE

EditoraProfª. Dra. Mary Sandra Carlotto

Editores AssociadosProf. Dr. Mauro Magalhães

Profª Dra. Sheila Gonçalves Câmara

Apoio EditorialProfa. Dra. Tânia Rudnicki

Profa. Dra. Lígia Braun Shermann

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero

Conselho EditorialDra. Ana Maria Benevides Pereira (UEM, Maringá/BR)Dra. Ana Maria Jacó-Vilela (UERJ, Rio de Janeiro/BR)Dra. Antonieta Pepe Nakamura (ULBRA, Canoas/BR)Dr. Carlos Amaral Dias (ISMT/Lisboa/PT)Dra. Dóris Vasconcelos Salençon (Sorbone, Paris/FR)Dr. Eduardo A. Remor (UAM, Madrid/ES)Dr. Francisco Martins (UnB, Brasília/BR)Dr. Hugo Alberto Lupiañez (UDA, Mendoza/AR)Dra. Isabel Arend (UG, Bangor/UK)Dr. João Carlos Alchieri (UFRN, Natal/BR)Dr. Jorge Béria (ULBRA, Canoas/BR)Dr. Jorge Castellá Sarriera (UFRGS, Porto Alegre/BR)Dr. José Carlos Zanelli (UFSC, Florianópolis/SC)Dra. Jussara Maria Körbes (ULBRA, Canoas/BR)Dra. Maria Lúcia Tiellet Nunes (PUCRS, Porto Alegre/BR)Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi (CEULM, Manaus, BR)Dra. Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS, São Leopoldo/RS)Dr. Mário Cesar Ferreira (UnB, Brasília/BR)Dr. Ramón Arce (USC, Santiago de Compostela/ES)Dr. Ricardo Gorayeb (FMRP-USP, Ribeirão Preto/BR)Dra. Rita de Cassia Petrarca Teixeira (ULBRA Gravataí/BR)Dr. Vicente Caballo (UG, Granada/ES)

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A372 Aletheia / Universidade Luterana do Brasil. - N. 1

(jan./jun. 1995)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 1995.v. ; 27cm.

SemestralISSN 1413-0394

1. Psicologia - periódicos. I. Universidade Luteranado Brasil

CDU 159.9(05)

ALETHEIARevista de Psicologia

oN 26 - Jul./Dez. 2007ISSN 1413-0394

Matérias assinadas são de responsabilidade dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Consultores 2007

Adelma do Socorro Gonçalves PimentelUniversidade Federal do Pará (UFPA)Adriana Leônidas de OliveiraUniversidade de Taubaté (UNITAU)Adriane VieiraCentro de Gestão Empresarial (FEAD)Adriano Furtado HolandaFaculdade Alvorada – BrasíliaInstituto de Educação Superior de Brasília (IESB)Alice MaggiUniversidade de Caxias do Sul (UCS)Ana Alayde Werba SaldanhaUniversidade Federal da Paraíba (UFPA)Ana Cristina LimongiUniversidade de São Paulo (USP)Ana Raquel Lucato CianfloneUniversidade de São Paulo (USP)Ana Raquel Rosas TorresUniversidade Católica de Goiás (UCG)Angela Maria Dias FernandesUniversidade Federal da Paraíba (UFPB)Angela Maria Pires CaniatoUniversidade Estadual de Maringá (UEM)Antonio de Pádua SerafimHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HCFMUSP)Universidade Camilo Castelo Branco (UNICASTELO)Antonio Augusto Pinto JuniorCentro Universitário Salesiano de São PauloArmando Ribeiro das Neves NettoPontifícia Universidade Católica de São Paulo/Campinas (PUC Campinas)Benilton Carlos Bezerra JuniorUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

AletheiaREVISTA DE PSICOLOGIA DA ULBRA

Cesar Augusto Piccinini Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Daniela Centenaro LevandowskiFaculdades de Taquara (FACCAT)Edson Luiz André de SousaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Esther Maria de Magalhães ArantesPontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ)Fani MalerbiPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)Gabriela Casellato Brown Ferreira SantosPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)Giselle DupasUniversidade Federal de São Carlos (UFSCAR)Hilda Clotilde Penteado MoranaInstituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (FMUSP)Isabel Cristina de Moura CarvalhoUniversidade Luterana do Brasil (ULBRA Canoas)Isabel Cristina GomesUniversidade de São Paulo (USP)João Carlos AlchieriUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)José Augusto Evangelho HernandezFaculdades São Judas Tadeu (FSJT)Jorge Castellá SarrieraUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Jorge Umberto BériaUniversidade Luterana do Brasil (ULBRA Canoas)Junia de VilhenaPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ)Leila Maria Amaral RibeiroUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UERJ)Liana Fortunato CostaUniversidade de Brasília (UnB)Lisiane Bizarro AraujoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Luciana Petrucci GiganteUniversidade Luterana do Brasil (ULBRA Canoas)

Luciane Maria SchlindweinUniversidade Vale do Itajaí (UNIVALI)Lygia Santa Maria AyresUniversidade Federal Fluminense (UFF)Marcela Casacio Ferreira-TeixeiraFaculdade de Jaguariúna (FAJ)Márcia StengelPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)Marcos Alencar Abaide BalbinottiUniversite de Sherbrooke – Quebec/CanadáMarcos MaestriUniversidade Estadual de Maringá (UEM)Maria Alice LustosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Maria Aparecida CrepaldiUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC)Maria Cristina PoliUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Maria Elizabeth Barros de Barros Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)Maria de Lourdes Merighi TabaquimUniversidade do Sagrado Coração (USC)Maria Leonor Espinosa EnéasUniversidade Presbiteriana MackenzieMaria Lucia Tiellet Nunes Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)Maria Lucia Toledo Moraes AmiralianUniversidade de São Paulo (USP)Maria Piedad Rangel MenesesUniversidade Luterana do Brasil (ULBRA Canoas)Maria Salete Lopes Legname de PauloUniversidade de São Paulo (USP)Marília VeroneseUniversidade Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)Marilza Bertassoni AlvesFaculdade Evangélica do Paraná – FEPARMakilim Nunes BaptistaUniversidade São Francisco (USF/Itatiba)

Miguel Roberto JorgeUniversidade Federal de São Paulo (UNIFESP)Nilson Gomes Vieira FilhoUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE)Nilton Cesar BarbosaCentro Universitário do Triângulo (UNITRI/MG)Pericles Saremba Vieira Universidade de Passo Fundo (UPF)Rosane Mantilla de SouzaPontifica Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)Rute Grossi MilaniCentro de Ensino Superior de Maringá (CESUMAR)Sheila Regina de Camargo MartinsUniversidade Estadual de Maringá (UEM)Stella Maria Poletti Simionato TozoPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMG)Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de AraújoUniversidade de Brasília (UnB)Terezinha Moreira LimaUniversidade Estadual do Maranhão (UEMA)Valquiria Aparecida Cintra TricoliUniversidade Católica Dom Bosco (UCDB)

Sumário7 Editorial

Artigos de atualização11 Armadilhas do multiculturalismo: análise psicossocial da integração à francesa

dos estrangeirosTraps of multiculturalism: Sociopsychological analysis on the french way offoreigners integrationToshiaki Kozakai, Rafael Pecly Wolter

27 Avaliação de desempenho como um instrumento de poder na gestão de pessoasPerformance evaluation systems as power instrument in the humanresources managementPatrícia Bento Gonçalves Philadelpho, Kátia Barbosa Macêdo

41 Emergência e conexionismo como hipóteses suplementares ao Entwurf einerPsychologie de FreudEmergency and connectionism like supplementary hypothesis in FreudEntwurf einer PsychologyAndré Sathler Guimarães

50 A identidade como grupo, o grupo como identidadeThe identity as group, the group as identityClaudio Garcia Capitão, José Roberto Heloani

62 Estados de identidade: uma análise da nomenclaturaIdentity states: Analyzes of the termsMaria Aznar-Farias, Teresa Helena Schoen-Ferreira

67 Teoria do apego: elementos para uma concepção sistêmica da vinculação humanaAttachment Theory: Elements for a systematic conception of human bondingFernando Augusto Ramos Pontes, Simone Souza da Costa Silva, MariliceGarotti, Celina Maria Colino Magalhães

80 Psicologia social da saúde: tornamo-nos eternamente responsáveis poraqueles que cativamosSocial health psychology: We become responsible, forever, for those we have tamedAdriane Roso

Artigos de pesquisa95 Vínculo parental e rede de apoio social: relação com a sintomatologia

depressiva na adolescênciaParental bonding and social support: Relation with depressives symptomson adolescenceAna Cláudia Nuhlmann Schneider, Vera Regina Röhnelt Ramires

Aletheia, Revista semestral editada pelo Curso de Psicologia da Universidade Luterana doBrasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias:artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de respon-

sabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente opensamento dos Editores ou Conselho Editorial

109 Famílias com casais de dupla carreira e filhos em idade escolar: estudo de casosDual-Career marriage in families with scool-age children: Study casesNadir Helena Sanchotene de Souza, Adriana Wagner, Bianca de MoraesBranco, Claudete Bonatto Reichert

122 Perspectivas no estudo do brincar: um levantamento bibliográficoPerspectives in the study of play: a bibliographical surveyScheila Tatiana Duarte Cordazzo, Gabriela Dal Forno Martins, Samira MafiolettiMacarini, Mauro Luis Vieira

137 A utilização do Consentimento Informado em psicoterapia: o que pensampsicoterapeutas psicanalíticosThe use of the informed consent in psychoanalytic psychotherapyRita Petrarca Teixeira, Maria Lucia Tiellet Nunes

146 Aprendizagem na ação revisitada e seu papel no desenvolvimento decompetênciasLearning in action revisited and its role in the competences developmentClaudia Simone Antonello

168 Experiência migratória: encontro consigo mesmo?Percepções de brasileiros sobre sua cultura e mudanças pessoaisMigratory experience: Is it a meeting with itself? Brazilians´s perceptionsabout their culture and personal changesRoberta de Alencar-Rodrigues, Marlene Neves Strey, Janice Pereira

181 Avaliação psicológica, neuropsicológica e recursos em neuroimagem: novasperspectivas em saúde mentalPsychological assessment, neuropsychological assessment and neuroimageresources: New perspectives in mental healthCarolina Vieira, Eliane da Silva Moreira Fay, Lucas Neiva-Silva

Relato de experiência196 O trabalho do psicólogo na mediação de conflitos familiares: reflexões com

base na experiência do serviço de mediação familiar em Santa CatarinaThe psychologist’s work in family conflict mediation: Reflections based onthe experience of the family mediation service in Santa CatarinaFernanda Graudenz Müller, Adriano Beiras, Roberto Moraes Cruz

Resenha210 O banqueiro dos pobres

Banker to the poorAdriana Weber

214 Instruções aos autores

219 Instructions for the authors

Editorial

A complexidade que se revela na atualidade nos convoca a pensar sobre o papelda ciência na vida cotidiana. Possivelmente, a complexidade que vivemos seja umanova maneira de compreender o mundo que se inventa e reinventa de acordo com a corda lente com a qual o vemos. A lente da complexidade, da busca pela compreensão dosfenômenos que vivemos, possivelmente, é uma lente que nós, pesquisadores,produtores de conhecimento científico, utilizamos.

Não é a mesma das vivências cotidianas, em que o mundo se torna mais real a partirde uma série de regularidades, percebidas pelas pessoas como realidade. No campo davida cotidiana, importa o preço do pão, a duração do período de chuvas, o atraso doônibus, a falta de professores na escola e profissionais no posto de saúde, etc.

O cotidiano, portanto, com sua irrefutável realidade, propõe aos pesquisadoresum grande desafio. O desafio de fazer de nossa lente algo que contribua efetivamentepara a vida cotidiana.

Os artigos presentes nesta edição da revista Aletheia formam um mosaico deformas de pensar, de compreender e avaliar distintos fenômenos da realidade. É o casodas reflexões sobre a identidade, como nos artigos Estados de identidade: uma análiseda nomenclatura, de Maria Aznar-Farias e Teresa Helena Schoen-Ferreira e A identidadecomo grupo, o grupo como identidade, de Claudio Capitão e Roberto Heloani. Ambosabordam a construção de um “si mesmo” no grupo e no mundo em que vivemos.

Nesse mundo de identidades provisórias, os artigos Experiência migratória:encontro consigo mesmo? Percepções de brasileiros sobre sua cultura e mudançaspessoais, de Roberta de Alencar-Rodrigues, Marlene Neves Strey e Janice Pereira, eArmadilhas do multiculturalismo: análise psicossocial da integração à francesa dosestrangeiros, de Toshiaki Kozakai e Rafael Pecly Wolter, abordam as dificuldades reaisexperimentadas por aqueles que, em um mundo globalizado, enfrentam em terraestrangeira o confronto de identidades.

O artigo Psicologia social da saúde: tornamo-nos eternamente responsáveis poraqueles que cativamos, de Adriane Roso, chama-nos ao compromisso social comoprofissionais da saúde e seres políticos. Isso se reflete também no artigo Avaliaçãopsicológica, neuropsicológica e recursos em neuroimagem: novas perspectivas emsaúde mental, de Carolina Vieira, Eliane da Silva Moreira Fay e Lucas Neiva-Silva, queabordam as possibilidades tecnológicas atuais como um recurso real e possível nocampo da saúde mental.

Nesse mesmo sentido, o artigo A utilização do TCLE em psicoterapia: o quepensam psicoterapeutas psicanalíticos, de Rita Petrarca Teixeira e Maria Lucia TielletNunes, reflete sobre a prática do psicólogo clínico e os procedimentos éticos.

A preocupação pela infância também se manifesta como um compromisso daPsicologia, revelando uma série de abordagens direcionadas à qualidade de vida nesseperíodo crucial do desenvolvimento humano: Teoria do Apego: elementos para umaconcepção sistêmica da vinculação humana, de Fernando Augusto Ramos Pontes,Simone Souza da Costa Silva, Marilice Garotti e Celina Maria Colino Magalhães;

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Perspectivas no estudo do brincar: um levantamento bibliográfico, de Scheila TatianaDuarte Cordazzo, Gabriela Dal Forno Martins, Samira Mafioletti Macarini e Mauro LuisVieir; Famílias com casais de dupla carreira e filhos em idade escolar: estudo decasos, de Nadir Helena Sanchotene de Souza, Adriana Wagner, Bianca de MoraesBranco e Claudete Bonatto Reichert, e Vínculo parental e rede de apoio e social:relação com a sintomatologia depressiva na adolescência, de Ana Cláudia NuhlmannSchneider e Vera Regina Röhnelt Ramires.

O campo do desenvolvimento humano é também o foco dos artigos Aprendizagemna ação revisitada e seu papel no desenvolvimento de competências, de Claudia SimoneAntonello, e Avaliação de desempenho como um instrumento de poder na gestão depessoas, de Patrícia Bento Gonçalves Philadelpho e Kátia Barbosa Macedo.

O artigo Emergência e conexionismo como hipóteses suplementares ao Entwurfeiner Psychologie de Freud, de André Sathler Guimarães, traz novos elementos para acompreensão das mudanças no pensamento freudiano em termos de um Projeto dePsicologia.

Por fim, o relato de experiência O trabalho do psicólogo na mediação de conflitosfamiliares: reflexões com base na experiência do serviço de mediação familiar emSanta Catarina, de Fernanda Graudenz Müller, Adriano Beiras e Roberto Moraes Cruz,mostra a importância da atuação da Psicologia na vida cotidiana.

O presente número termina com a resenha do livro O banqueiro dos pobres,realizada por Adriana Weber. Esta resenha aponta as múltiplas possibilidades do serhumano e a possibilidade de mudança social quando alguém coloca sobre o outro umolhar de esperança e dignidade.

Diante dessa diversidade de temas, olhares e lentes, nossa tarefa agora é propiciarque os artigos aqui publicados ganhem, maravilhosamente, asas e saiam do papel,indo pousar nos recônditos mais indecifráveis da vida cotidiana, onde o psicólogoseja mais um agente fundamental no processo de mudança.

Terminamos esse editorial com um escrito de Jorge Debravo, poeta porto-riquenho, meses antes de sua morte em 1967, aos 29 anos. Naquele momento, o poetajá nos convocava a nossa responsabilidade enquanto produtores de saber.

“Nos tocou viver uma época maravilhosa em uma terra maravilhosa. Uma épocade transformação em um continente em transformação. Em nossas mãos temoso destino do mundo (...).Somos os donos do futuro. Mas carregamos sobre nossas consciências umaresponsabilidade terrível. A honestidade e a honradez não devem ser em nósuma virtude: devem ser nossa própria essência. Temos que escolher um caminho.De nós depende o destino do homem.Todos os povos do mundo carregam sobre si responsabilidades terríveis. Mas ado nosso é maior, por ser um povo jovem, Que bate, agora, precisamente àsportas do futuro.Não podemos seguir sendo toda a vida um povo de mendigos. Não devemos ser.Não temos porquê ser.Todo o homem é responsável pelo destino do mundo. Da mesma forma ointelectual e o obreiro. Mas nós, escritores, carregamos uma responsabilidade

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maior. Nós podemos inclinar o peso da história para nossa salvação ou nossaderrota.Temos a obrigação de lutar por um melhor destino para o homem. Por umdestino maravilhoso. Não nos é permitido sermos observadores ou apenastestemunhas da luta de nossos povos. Em uma época como esta, ser neutro étrair o destino do homem.Não se pode calar agora, nem por conveniência nem por cortesia. Quando sedecide, a cada instante, a sorte do homem futuro, calar por conveniência oucortesia é um crime”.

Mary Sandra CarlottoEditora

Mauro MagalhãesSheila Gonçalves Câmara

Editores associados

Armadilhas do multiculturalismo: análise psicossocialda integração à francesa dos estrangeiros

Toshiaki KozakaiRafael Pecly Wolter

Resumo: Este artigo propõe um exame crítico do multiculturalismo. Este último está baseadodentro de uma visão errônea da identidade cultural, pois ela é uma caixa vazia onde podemos, emteoria, pôr qualquer conteúdo. A cultura não deve ser vista como uma substância, mas como umconceito relacional. Contudo, o universalismo não está isento de problemas. A própria noção deidentidade implica o processo de diferenciação. A forma de integração francesa que não toleratraços das origens cria uma dificuldade estrutural tanto para os estrangeiros que devem abando-nar suas culturas quanto para os autóctones que podem ressentir a assimilação dos estrangeiroscomo uma intrusão dentro da esfera identitária. Tentaremos ultrapassar os debates atuais emtorno do multiculturalismo através do deslocamento da lógica da identidade para a lógica daidentificação.Palavras-chave: aculturação, identidade cultural, multiculturalismo, universalismo, França.

Traps of multiculturalism: Sociopsychological analysis on the frenchway of foreigners integration

Abstract: This article proposes a critical analysis on multiculturalism. The latter is founded onan erroneous vision of cultural identity, which is in fact an empty box susceptible to receive, intheory, any content. Culture should not be considered as a substance but a relational concept.However, universalism has also its own shortcomings. The notion of identity implies in itselfa movement of differentiation. The French way of integration that does not allow the trace oforigin has a structural difficulty as well for the immigrants who should abandon their culture asfor the natives who risk to feel the assimilation of foreigners as an intrusion into their properidentity. We propose to substitute a logic of identification to the logic of identity in order tosurpass the current debate on multiculturalism.Key words: Acculturation, cultural identity, multiculturalism, universalism, France.

Introdução

Os fluxos migratórios dos países em desenvolvimento em direção aos paísesindustrializados parecem impossíveis de cessar entre outros por causa da imigraçãoclandestina, dificilmente controlável, mas também devido a crescente necessidade demão de obra. Entre 1995 e 1998 o número de imigrantes que entrou na França foi de39000 por ano. A diminuição da taxa de natalidade e o prolongamento da esperança devida estão transformando a distribuição entre ativos e inativos nas regiões maisdesenvolvidas do planeta. Para manter a mesma relação entre ativos e inativos donível do ano de 1995, será necessário ter um fluxo migratório 60 vezes mais intenso. Naausência de imigração os franceses terão que trabalhar ate 74 anos se desejarem manter

Aletheia, n.26, p.11-26 jul./dez. 2007

Aletheia 26, jul./dez. 200712

a mesma relação entre ativos e inativos. Um relatório da ONU (United NationsPopulation Division, 2000) estima que a França necessite acolher 32,1 milhões deimigrantes entre os anos 2000 e 2025, ou seja, uma média de 1,3 milhões por ano, e 60,9milhões entre 2025-2050 numa média de 2,4 milhões por ano, para não acrescentar maisencargos aos ativos e manter o mesmo nível de vida. Em 2050, a população francesaserá de 187 milhões sendo que 128 milhões, o que corresponde a 68%, serão imigrantese descendestes de imigrantes que entraram no território francês depois de 1995.

Este cenário catastrófico da evolução demográfica é similar em toda Europa. 15membros da União Européia analisados nesse relatório deverão acolher 701 milhõesde imigrantes não comunitários entre 1995 e 2050, totalizando 12,7 milhões por ano. Seeste cenário se confirmar, a população da União Européia ultrapassará 1,2 bilhões dehabitantes, sendo que 918 milhões seriam imigrantes e descendestes de imigrantesque se instalaram na Europa depois de 1995. Ademais, os europeus estariam condenadosa trabalhar até 76 anos de idade para preservar a mesma relação entre ativos e inativosde 1995. Este cenário é um tanto simplista, pois diferentes soluções conjugadas sãoprevistas. O número real de trabalhadores estrangeiros que se instalarão na Europacertamente será inferior a estes prognósticos alarmantes. Mesmo assim esta não deixade ser preocupante.

Segundo um censo realizado pela SOFRES em maio de 2000 (Le monde, 30 demaio de 2000), 59% das pessoas estimavam que “a França tem imigrantes demais”, 47%“não se sentem em casa na França” e 73% consideram que “os valores tradicionais nãosão suficientemente defendidos na França”. O mal-estar das identidades se expressoude forma clara, e a mesma tendência à crispação das identidades se confirma na pesquisade opinião pública do CSA feita em 2005 para a Commission nationale consultativedes droits de l’homme sur la xénophobie: um em cada três franceses se declara racista;este número sobe para 48% nas regiões rurais; 56% dos pesquisados estimam que osestrangeiros são numerosos demais (Relatório da Comissão Nacional consultativados Direitos Humanos, 2005).

Este clima de ansiedade interpela os dirigentes políticos, intelectuais e cidadãossobre a necessidade de revisar a concepção universalista da nação. Frente à percepçãode heterogeneidade cada vez mais forte da população francesa, com a constatação dainadequação da máquina republicana para integrar os estrangeiros, sérias interrogaçõessobre que escolha política adotar estão emergindo. Já faz tempo que se instalou nomundo político e intelectual um enérgico debate. Este debate opõe, de um lado, os queclamam por um multiculturalismo onde se reconhecem publicamente as diferenças deidentidade em termos de língua, religião ou cultura, e do outro lado, se encontram osque recusam esta orientação que poderia levar a uma deriva comunitária comparável àdos Estados Unidos, com a imagem dos guetos étnicos isolados uns dos outros. Seránecessário, na linhagem herdada da Revolução francesa, construir a nação assimilandoos estrangeiros no princípio universalista para transformá-los nos cidadãos de amanhã?Ou será necessário, como nos Estados Unidos e no Canadá, abrir o caminho para omulticulturalismo assumindo publicamente e oficialmente uma variedade de identidadesculturais numa mesma nação?

Aletheia 26, jul./dez. 2007 13

Vários pesquisadores já propuseram reflexões sobre o tema: alguns sublinham aseparação entre vida pública e vida privada, reservando assim as particularidadesidentitárias à esfera privada (Schnapper, 1991); os outros são à favor de ummulticulturalismo refletido que aceita diferenças e particularidades, não somente na esferaprivada mas também em certos espaços públicos e semi-públicos, ao mesmo tempo quepreserva a unidade dos cidadão em torno de valores universais, recusando desta formaa segregação comunitária que ocorre no Estados Unidos (Wieviorka, 1997).

Este artigo tem como objetivo acrescentar alguns elementos de resposta a estaproblemática da identidade cultural ou nacional e da integração de estrangeiros, soboutro ângulo a partir do exame crítico do postulado de base do multiculturalismo. Emvez de buscar um possível caminho para fazer coabitar diferença e unidade, estes doismomentos aparentemente inconciliáveis, é necessário questionar se realmente existeuma contradição básica. Não se trata de chegar a uma solução que seja um meio termo.Como o problema está mal formulado, a solução não pode vir de uma dosagem sutil eequilibrada dos fatores contraditórios, nem da distribuição refletida destes fatores nasdistintas esferas.

Necessidade de uma “fechadura identitária”Três conceitos de nacionalidade são conhecidos, pelo menos no que é relativo às

suas formas ideais ou ideológicas. Elas se baseiam de forma esquemática: 1) No sanguecomo na Alemanha; 2) No local de nascimento como nos países americanos; 3) Na vontadede pertencer ao Estado como no caso da França (Dumont, 1991; Schnapper, 1991).

Na medida em que os países americanos se concebem como uma comunidadepolítica constituída por diferentes etnias – essencialmente nos Estados Unidos e Canadá–, cada etnia recebe um verdadeiro estatuto como na Alemanha. Ao contrário a Françaevitou, ao menos no discurso ideológico, tal hipóstase das etnias desde a Revolução.Por esta razão, a expressão melting pot parece mais adaptada à França que apaga asmarcas exteriores que aos Estados Unidos onde as origens exógenas de seuscomponentes são aceitas no seio da comunidade nacional.

Como a comunidade humana compõe um sistema organizado, ela possui certosmecanismos de fechadura, estruturais e funcionais, para manter sua identidade. Anoção de identidade implica um movimento de diferenciação que cria o “exterior”.Do ponto de vista conceitual, o fechamento identitário como na Alemanha constituia forma mais clara e simples, mesmo se a aplicação completa destes princípios écomplicada: na época da mobilidade das populações e das trocas econômicasintensas, com casamentos internacionais freqüentes, um conceito restrito denacionalidade tende a criar problemas jurídicos e sociais. Com relação ao conceitomultiétnico e multicultural dos Estados-Unidos, os recém chegados são integradosa uma comunidade “federal” que é como um sistema supra-ordenado. Assim osimigrantes se integram guardando sua identidade de origem: de certo modo, eles seencontram juridicamente e socialmente no interior da comunidade ao mesmo tempoem que se mantêm fora da comunidade pela identidade. Este método de integraçãoque evita a assimilação brutal parece ser cada vez mais enfatizado por pesquisadorese associações humanitárias. Contudo, não se deve esquecer o perigo de segregação

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comunitária como a que ocorre nos guetos nova-iorquinos, pois este fenômeno estáintimamente ligado a uma hipótese, ou seja, uma ficção considerada como real pelosgrupos étnicos.

Quanto à França, adepta do universalismo, que apaga os vestígios da origemestrangeira dos imigrados, sob que condições a proteção do sistema comunitário e asegurança identitária são garantidas? Como veremos a seguir, o mecanismo identitárioé inseparável do movimento de diferenciação. O modelo francês de integração que nãotolera a marca de origem deve resguardar uma grande dificuldade no plano identitáriotanto para os imigrantes que devem abandonar suas culturas, ao menos parcialmente,quanto para os autóctones que correm o risco de ver a assimilação dos estrangeiroscomo uma intrusão no interior de sua própria esfera identitária.

Faz tempo que a França acolhe imigrantes, muitos cidadãos franceses de hoje emdia são descendentes de imigrantes do século XIX e da primeira metade do século XX.Dezoito milhões de franceses nascidos entre 1880 e 1980, o que representa mais de umterço da população, são descendentes de imigrantes de primeira, segunda ou terceirageração (Frémy & Frémy, 1999). Logo algumas gerações bastam para que estrangeirosse integrem na sociedade francesa e virem integralmente franceses.

Mesmo que sob formas diferentes, a França é um país de imigração comparávelaos Estados-Unidos. Como será que evolui a identidade dos estrangeiros? Econsequentemente, para os autóctones, como se sustenta a identidade nacional coma penetração permanente de elementos exógenos no seio de sua comunidade? Quemecanismo permite simultaneamente uma mudança e uma preservação da identidadecoletiva? Tais são as questões tratadas por este artigo. A luz do mecanismo de“fechadura identitária”, escondido na concepção aberta de nacionalidade francesa,nós buscaremos expor uma nova faceta da integração dos estrangeiros à francesa.

As concepções alemã e francesa da nacionalidadeNos anos 80, dos 40000 turcos nascidos todo ano na Alemanha, em torno de

apenas 1000 adquiriram a nacionalidade alemã. No mesmo período na França, dos30.000 recém-nascidos de origem estrangeira apenas 2000 não obtiveram a nacionalidadefrancesa (Schnapper, 1991).

Geralmente opomos a concepção organicista da nação: Volk, nascida doromantismo alemão tendo em Herder um representante eminente, à concepçãocontratualista da nação vinda do Iluminismo e da Revolução francesa. Da mesmaforma, comparamos o “Discurso à nação alemã” (1807-1808) de Fichte ao “O que é umanação” (1882) de Renan. Convém ressaltar que a diferença entre estas duas concepçõesnão é somente a conseqüência de idéias políticas e filosóficas divergentes, mas resultatambém de circunstancias históricas concretas. Não poderíamos esquecer que foi soba ocupação napoleônica que Fichte pronunciou uma serie de conferências para defendera cultura e o povo alemão. E foi em reação à Momsen e Strauss que justificavam oanexado da Alsácia-Lorena que Renan enfatizou o princípio de autonomia dos povos(Roman, 1992).

Através da longa história de diferentes regimes centralizadores, Absolutismo,revolução, Império e República, a França desenvolveu uma concepção racional,

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contratualista, e artificialista da nação, representada acima de tudo como umacomunidade política baseada na vontade de pertença. Inversamente, na Alemanhavisto que a centralização do poder demorou, a idéia de nação se constituiu fora dascircunstâncias políticas como uma noção essencialmente cultural e étnica.

A concepção particularmente aberta de nacionalidade na França não pode sercompreendida sem a consideração das condições demográficas. A população alemãfoi multiplicada por quatro entre as guerras napoleônicas e a Segunda Guerra, enquantono mesmo período a população francesa cresceu a metade disto por causa da limitaçãodos nascimentos que começou um século antes dos outros países europeus. Esteestado demográfico dificultou a resposta à demanda crescente de mão-de-obra feitapelas indústrias que estavam em plena expansão, pois estávamos em plena revoluçãoindustrial. A França já estava atrasada em termos de proletarização comparativamenteà Grã-Bretanha, país industrialmente mais avançado, e a penúria se agravou devido àsmedidas protecionistas da Terceira República que tentava proteger o meio camponês.A democracia parlamentar se instalou antes das grandes transformações industriais,embora a necessidade de mão-de-obra para as indústrias fosse grande, os eleitosrepublicanos, que queriam enraizar o novo regime, se viram obrigados a multiplicar asconcessões para erradicar o êxodo rural (Noiriel, 1988).

Foi por estas razões que da metade do século XIX até a Segunda Guerra a Françadiferentemente dos outros países europeus, que enviavam suas populações para oexterior, acolheu imigrantes da Bélgica, Itália, Espanha, Portugal, Polônia, Armênia eÁfrica do Norte. O povo alemão ao contrário viveu no temor de um povoamentoexcessivo. O Estado nunca tentou juntar toda população dispersada nos paísesvizinhos, Polônia, Tchecoslováquia, Império austro-húngaro. A Alemanha só virou umpaís de imigração a partir de 1960. Ou seja, a França foi o único país europeu a importarpessoas entre 1850 e 1940. A concepção étnica e culturalista da Alemanha e aconcepção assimiladora e universal da França se desenvolveram assim através decondições socioeconômicas distintas (Schnapper, 1991).

Dilema entre multiculturalismo e universalismoNa medida em que o universalismo é baseado na referência a valores

individualistas e igualitários, invoca os direitos humanos e preconiza a mistura daspessoas além das fronteiras nacionais e étnicas, ele corre o risco de legitimar a imposiçãodos valores dominantes às minorias culturais. O colonialismo em nome da missãocivilizadora justificou a assimilação dos povos indígenas. Daí vem a reação identitáriadas populações de origem estrangeira contra uma inclusão desfavorável na hierarquiasocial da sociedade acolhedora. Nos anos 80, os militantes anti-racismo francesesdefenderam o “direito à diferença” como resposta à tendência assimiladora. Mas esterespeito das minorias é uma faca de dois gumes. Ao ver a cultura de forma essencialista,se deixa uma margem à ideologia segregacionista do Front National: pois se osestrangeiros são diferentes dos autóctones, eles não podem ser assimilados pelasociedade que os acolhe; então seria lógico e necessário de enviar os estrangeirosinassimiláveis de volta a seus países de origem (Schnapper, 1991; Taguieff, 1987, 1995).

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Desta forma, a vontade de defender a identidade minoritária não pôde evitar umbeco sem saída lógico. Contrariamente aos países anglo-saxões, o termo “raça” tem umamá reputação na França e quase ninguém ousa usar esta palavra em público, à exceçãode algumas esporádicas provocações da extrema-direita. Contudo, a “cultura”, expressãopositivamente conotada, tem uma função similar por ser usada como fronteira identitáriainamovível (Poutignat & Streif-Fenard, 1995). As expressões como “multicultural”,“multiétnico” ou “crioulidade” tornam as culturas e populações essencialistas.Reconhecer a mistura e diversidade de todas as culturas como fato histórico ou objetivoda sociedade a ser construída não constitui uma crítica radical contra a concepçãosubstancialista da cultura e do povo. Falar de mistura já implica a existência de raças,etnias e culturas puras. Não basta insistir na evolução usando formas dinâmicas como“diversificação” ou “crioulização”, pois a própria noção de mistura não pode existir semsupor conceitualmente a existência de estados originais puros, sem mistura.

Será realmente um dilema inerente e inevitável e teríamos que buscar uma formade meio termo, como a adoção do “relativismo relativo” (Schnapper, 1991), para nãocair na dupla armadilha do segregacionismo e do assimilacionismo? Wieviorka (1997,p.43), defensor de um multiculturalismo moderado, parece indicar uma via equilibradaentre o universalismo assimilador e o segregacionismo comunitário:

É necessário acabar com as perspectivas maniqueístas que opõem simplesmentedois registros, o universal e o particular, a República e o multiculturalismo,desenvolvendo uma imagem cada vez mais abstrata e irrealista do primeiro, ecaricaturando o outro para usá-lo como repelente. [...] Redizendo isto, o problemanão está na escolha entre dois termos, entre duas exigências opostas, e sim nofato de aprender ou reaprender a combiná-los [...]

Se fizermos um rodeio e nos interessarmos ao pensamento de Renan (1992) paratentar encontrar uma pista susceptível de resolver o dilema sob um ângulo diferente,veremos a co-presença destes dois ideais da nação em formas contraditórias. Renangeralmente é visto erroneamente como um adepto da concepção contratualista danação por causa da freqüente citação da formula: “A existência de uma nação é [...] umplebiscito diário” (Renan, 1992, p.55). Na realidade ele não defende totalmente estaconcepção política da nação, mas dá muita importância à continuidade com o passado:

Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, para dizer averdade, são uma coisa, constituem essa alma, este princípio espiritual. Umaestá no passado, a outra no presente. Uma é possessão em comum de um ricolegado de lembranças; o outro é o consentimento atual, o desejo de viver juntos,a vontade de continuar a fazer prevalecer a herança recebida. O homem, Senhores,não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o término de um longo passadode esforços, sacrifícios e devotamentos. O culto dos ancestrais é entre todos omais legítimo; os ancestrais fizeram de nos o que somos. (Reman, 1992, p. 54)

Ao basear a nação na tradição, Renan se orienta para a direção da concepçãoétnica que reconhece a particularidade de cada cultura, correndo assim o risco de se

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aproximar, nolens volens, do pólo segregacionista ao questionar a fusão das diferentespopulações. Ao mesmo tempo, ao conceber a nacionalidade pela vontade, ele reconhecea universalidade de todos os homens, e tende a flertar com o assimilacionismo,negligenciando as diferenças culturais. Desta forma encontramos o mesmo dilemaentre universal e multicultural, assimilação e segregação. A posição de Renan apresentauma contradição interna, na medida em que ela ressalta a necessidade da determinaçãopermanente do presente e simultaneamente a preservação da continuidade com opassado. Se os homens de hoje em dia escolhem conscientemente e se a decisãoartificial do “plebiscito diário” intervém no estado da nação, então a continuidade como passado deve ser revista. Inversamente, se o presente se produz do passado, taldecisão consciente já não é necessária.

Como Roman (1992), poderíamos explicar esta contradição lógica do texto deRenan, pela aplicação parcial de cada princípio, étnico ou eletivo, multicultural ouuniversal, em circunstâncias diferentes. Renan invoca a necessidade do consentimento,quando a nação está em debate, para resolver os conflitos e litígios entre Estados,como no exemplo da anexação da Alsácia. Este princípio tem um único valor negativo,pois ele exclui o fato de pertencer sem consentir, não prescrevendo uma determinadapertença: “se houver dúvidas sobre fronteiras, consultem as populações disputadas”(Renan, 1992, p.56). Ao contrário, Renan se apóia no passado, quando pensa a naçãona sua dimensão positiva, como princípio de legitimidade interior. Esta interpretaçãodo texto parece ser correta e sabe-se também que o pensamento de Renan evoluiuconsideravelmente da posição crítica contra a imagem moderna do Homem de Rousseaue da Revolução francesa. Parece-nos justo situar seu pensamento como um produtotransitório, entre as concepções tradicionais e modernas.

Contudo, propomos outra hipótese, fora do texto propriamente dito, em relação àproblemática do mecanismo de “fechadura identitária”, para resolver a contradição entreesses dois princípios. De fato, o “passado” de Renan é sensivelmente diferente da concepçãosubstancialista da nação, como atesta sem ambigüidade a célebre frase: “o esquecimento,e até mesmo o erro histórico, são um fator essencial na formação de uma nação, e é assimque o progresso dos estudos históricos geralmente representa um perigo para uma nação”.Aí se encontra a chave do epílogo e a contradição entre os dois princípios de Renan seráresolvida no deslocamento da lógica de identidade para a lógica de identificação.

A fundação imaginária da nação A nação geralmente mantém a crença da filiação, mas essa crença faz parte do

registro da ficção social e não da realidade tangível. Quando se forma um sentimentode estar ligado por afiliação, a comunidade política se constitui, e o fato de viver juntosleva ao desenvolvimento progressivo de uma língua, de uma religião e de uma culturacomum. Mas o oposto também é verdadeiro: quando os indivíduos compõem umacomunidade política e se dotam de um destino comum, este corpo político artificialmenteconstruído tem tendência a fabricar à posteriori um mito de filiação através da vida emcomum durante gerações. A continuidade étnica é um produto de sucessivasfalsificações ideológicas (Weber, 1995).

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A nação também não pode ser definida pela continuidade cultural. Oshistoriadores mostram com exemplos variados que a “tradição ancestral” é na realidadeum produto bastante recente (Hobsbawn & Ranger, 1983). O cristianismo certamenteconstitui o núcleo central das culturas européias atuais. Embora, nas suas origens sejauma religião nascida nos desertos do Oriente Médio. O cristianismo está atualmentequase extinto em sua região de origem onde floresce o Islã, outra religião monoteísta.A cultura evolui sem parar. Desvincular o que é próprio a uma cultura como conteúdo,purificado de influências estrangeira, é um esforço vão: é como descascar uma cebola,ao tirar todas as peles não sobra nada.

Notamos assim que não há contradição, do ponto de vista psicossocial entre osdois pontos de vista de Renan: a introdução da noção de rompimento pelas decisõesconscientes e artificiais de um lado e a impressão de continuidade com o passado dooutro. Mas se a identidade étnica, nacional e cultural não tem um conteúdo próprio, deonde vem essa impressão de continuidade de uma entidade coletiva mesmo com asconstantes mudanças de seus aspetos?

Os etnólogos se esforçaram em vão para definir a etnia com vários critérios:língua, religião, costume, autonomia econômica, estrutura política, proximidadegeográfica, nome da etnia, etc. Mas sempre que se tenta classificar os indivíduos apartir de certos critérios, se cai em contradições entre classificações usando critériosdiferentes: dois indivíduos podem ser próximos do ponto de vista lingüístico e nãopertencer à mesma religião ou fazer parte de organizações econômicas ou políticasdistintas (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995). Já que existe um número infinito de critériosde classificação, é impossível categorizar os indivíduos de forma estritamente objetiva.Se quisermos compreender um fenômeno étnico, devemos levar em conta a maneirasubjetiva como os indivíduos se distinguem uns dos outros. Ou seja, a etnia não é umataxonomia objetiva, mas um produto da construção social.

É necessária uma mudança de perspectiva: a identidade étnica não pode sercompreendida a partir do conteúdo cultural, mas é um fenômeno ligado a construçãoda fronteira entre os diferentes grupos étnicos (Barth, 1969). É a relação que produz ostermos, e não o contrário. À maneira de Saussure em lingüística, Barth propõe umaperspectiva relacional: o grupo étnico não se define pelo conteúdo cultural próprio,mas pela fronteira que os membros e não membros do grupo percebem entre o grupo eo outro grupo. Não é a presença de populações distintas e culturalmente homogêneasque conduz naturalmente ao estabelecimento da fronteira étnica. É, ao contrário, omovimento de diferenciação arbitrário – no sentido em que ele não leva em contadados culturais internos mesmo se ele é historicamente determinado – que provoca apercepção da fronteira. Somente em seguida, os indivíduos enclausurados no interiordesta fronteira simbólica, construída de maneira contingente e até mesmo artificial, sãoprogressivamente notados e se vêem como uma etnia. Isto ocorre simultaneamente àprogressão da homogeneização cultural através do estabelecimento da comunicaçãolingüística e a participação nas mesmas atividades econômicas e políticas.

Um grupo étnico pode adotar certos traços culturais de outro grupo como alíngua e a religião e continuar sendo visto, e se vendo, como distinto do outro grupo.Já que os atores sociais atraídos pelas diferenças emblemáticas não dão importância

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às similaridades, é possível que a diversidade cultural entre grupos diminua ao mesmotempo em que a distinção étnica se reforça (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995). Aliás,observamos nos Estados-Unidos, uma intensificação recente da identificação étnicaem função da origem, apesar da redução objetiva das diferenças culturais, devido àperda da língua de origem, da conversão religiosa e dos casamentos entre etnias(Nagel, 1994). Uma tendência similar pode ser observada em Israel: enquanto asdiferenças culturais diminuem entre judeus asquenaze e sefardi, eles ressaltam cadavez mais suas respectivas diferenças originárias (Weingrod, 1979).

Dozon (1994) esclarece esse ponto graças à sua análise minuciosa da identidadeétnica dos Bété da Costa do Marfim. Eles habitam o sul deste país e formam o grupoétnico mais importante, somando 20% da população. Contrariamente à versão oficialda administração colonial francesa, que afirma que os Bété seriam originários da Libéria,este grupo étnico é na verdade um produto recente, devido a circunstâncias particulares,de populações oriundas de diferentes regiões. Antes do período colonial a região dosBété não possuía uma população homogênea. A região não era unificada do ponto devista comercial e econômico. Vários sistemas de parentesco coexistiam, os recorteslingüísticos não correspondiam às fronteiras étnicas tais quais elas são concebidasatualmente. Além disto, uma parte da população vivia da caça coletiva com uma granderede – esta última agia como um marcador identitário e era assimilado a um ser vivoque encarnava o coletivo da linhagem –, enquanto outros habitantes não tinhammuitas ligações com a caça. Ou seja, vários fatores diferenciavam os Bétés em diferentesgrupos, alguns sendo até mais próximos das populações vizinhas não Bété. Destemodo as populações que compunham o país Bété não notavam uma identidade comum.

A administração colonial introduziu algumas medidas para transformarsocioeconomicamente a região: obrigação de pagar impostos, de cultivar e venderprodutos para que sejam taxados e trabalho forçado para melhorar as infra-estruturas.As populações africanas ficaram um pouco reticentes contra o dispositivo colonial. Otrabalho forçado e o recrutamento nas forças armadas para a guerra na Europaprovocaram inúmeras fugas. Essa resistência foi fundamental para o nascimento daidentidade Bété, pois ela criou uma relação entre estes habitantes e as cidadeseconomicamente mais desenvolvidas. Estes emigrantes se encontraram em baixo daescala social destas cidades e foram tratados e estigmatizados como mão-de-obrabarata pelos franceses e pelas populações locais.

Fora esses primórdios de consciência identitária constituído no exterior do paísBété, a situação interior começou a oferecer um campo propício à consolidação daidentidade Bété. As plantações precisavam de mão de obra; consequentemente, váriosemigrantes africanos entraram no país. A relação complementar entre autóctones eemigrantes progressivamente se transformou em concorrência mútua. Este contextoantagonista naturalmente intensificou a consciência identitária dos Bété, e acarretouna reivindicação política das terras pegas pelos emigrantes. Ao mesmo tempo, brotouao nível ideológico o mito fundador da etnia: os ancestrais Bété seriam os verdadeirosautóctones originários da Costa do Marfim.

Deste modo a ficção identitária Bété foi fabricada em apenas uma década, emconseqüência a uma política artificialmente imposta pelo colonialismo francês. A

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concepção ingênua define o grupo étnico ou nacional a partir de suas propriedadesinternas que seriam específicas. O grupo repousa em si. Opostamente, a concepçãorelacional propõe considerar que um grupo étnico nos aparece e se produz por causada categorização arbitrária que praticamos. Em outras palavras, esta posição, relacionale construtivista, afirma que as propriedades que nos parecem ser específicas adeterminado grupo são produzidas pela reificação da relação. Ou seja, é uma ficçãocoletivamente elaborada. Não é por que existem grandes diferenças objetivas entredois grupos que os consideramos como distintos, mas pelo contrário, pelo fato deserem categorizados como grupos diferentes, cada grupo adquire sua “essência”homogênea e uma diferença “objetiva” brota. O que é geneticamente inicial, não é aidentidade própria, mas a dinâmica de identificação. A identidade está simplesmenteno que nos identificamos e no que nos identificam.

O mecanismo de fabricação identitáriaDe onde vem nossa impressão da continuidade identitária? Para responder a

esta pergunta, imaginemos um pequeno barco de madeira. Todo dia usamos este barcopara pescar. Com os anos o barco começa a ficar usado. Às vezes o barco se avaria naspedras. Devemos então trocar algumas peças de vez em quando. Cedo ou tarde, todasas peças são trocadas. Não sobra nada do barco original. Então vem a questão crucial:Será que é o mesmo barco? Com certeza temos a impressão que é o mesmo barco porusá-lo todos os dias.

Mas não é por que o barco manteve a mesma forma que sua identidade foiconservada. O que ocorreria se, ao invés de concertar o barco sucessivamente, elefosse destruído e depois reconstruído com novas peças? Desta vez, certamente teríamosa impressão de que é uma cópia, outro barco, mesmo conservando a mesma forma erespeitando totalmente o plano de construção. Entretanto, substituir todos os elementosem um instante ou progressivamente durante um século, não altera nada ao nívellógico pelo fato que todos os elementos do barco foram renovados. Contudo, doponto de vista psicológico, as duas situações são radicalmente diferentes. A impressãode conservação da identidade provém do fato da modificação ser progressiva eimperceptível. Ou seja, é uma ilusão de ótica.

Imaginemos com Hobbes uma situação um pouco mais complexa para insistir nanatureza psicológica da identidade (Ferret, 1998, p. 113-114). Os componentes do barcosão substituídos, como no exemplo anterior, na medida em que ele se deteriora. Mas aoinvés de jogar fora os elementos avariados, eles são guardados em local seguro, e que,no momento em que a totalidade das peças forem substituídas por peças novas, obarco seja reconstruído com as antigas peças respeitando o plano de construçãooriginal. Teremos então três barcos conceptualmente distintos: o barco inicial (A); obarco reparado com peças novas (B); o barco reconstruído com os componentesantigos (C). Se logo após cada concerto, jogarmos fora todas as peças deterioradas enão tivermos a possibilidade de ver o barco C acreditaremos que existe umacontinuidade natural entre o barco A e o barco C. Contudo, quando o barco C aparecera nossa frente nossa convicção sobre a continuidade entre o barco A e o barco B irá

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por água abaixo. A simples percepção do barco C, velho e avariado, basta pararelegarmos o barco C ao status de simples cópia não autêntica.

O respeito, mesmo que rigoroso, da planilha de construção não garante apreservação do sentimento de identidade. É necessário algo mais. Ora, este elementoessencial não está no barco, na sua forma ou na sua matéria, ele é externo. Seimaginarmos, como Hume (1969), que uma massa de matéria possuindo partes contíguase conectadas, apareça na nossa frente. Se todas as partes permanecer iguais de maneiraininterrupta e invariável, naturalmente atribuiremos uma identidade a esta massa. E sesupormos agora que uma pequena parte, ínfima, seja acrescentada ou subtraída. Aidentidade do conjunto da matéria em questão foi destruída de um ponto de vistaestrito. Mas raramente raciocinamos com tanto rigor, pois continuamos a crer queestamos frente à mesma massa. Se a mudança ocorre progressivamente einsensivelmente, não notamos a cessação da identidade. Com outras palavras, aidentidade que um objeto mantém no tempo, tal qual ela nos é dada, não é imanente aoobjeto, mas é uma representação produzida por uma série de identificações sucessivasdos aspetos deste “objeto” feitas pelo sujeito exterior que o observa. Não é apreservação de um substrato qualquer possuidor da essência do objeto que garante aidentidade através do tempo, mas a crença do observador exterior na imutabilidadedeste objeto, sendo verdadeiro ou não. A identidade temporal não é um estado intrínsecodo objeto, mas um fenômeno psicossociológico que produz um movimento deidentificação subjetiva.

Como no exemplo da identidade do barco onde os materiais eram renovadosconstantemente, as gerações da comunidade étnica ou nacional devem ser renovadasparte por parte para que a comunidade mantenha aos nossos olhos a sua identidade. Agrande maioria das pessoas que vivem juntas num preciso momento continuam a existirno instante seguinte, somente uma ínfima porção de pessoas é substituída pelos recém-nascidos. A passagem de um estado a outro ocorre assim sem solução de continuidade.É importante que entre dois instantes a proporção de indivíduos ficando na comunidadeseja bem superior à proporção de indivíduos mudando. Em menos de cem anos, a quase-totalidade da população francesa é renovada e, alguns anos depois este ciclo desubstituição termina completamente. Como a substituição ocorre lentamente eprogressivamente é possível ter um sentimento de continuidade identitária. A França temum pouco menos que cinqüenta e nove milhões de habitantes, 780 000 nascem e 540 000morrem todo ano, o que equivale a uma taxa de substituição de 0,003% por dia. Alémdisso, a ausência de período reprodutivo na espécie humana facilita o esquecimentodestas incontáveis rupturas da comunidade que ocorrem inevitavelmente; jamais podemosfixar o determinado momento onde uma nova geração começa.

Dos artifícios úteis para a preservação da identidade de um objeto, Hume (1969)cita a existência, ou melhor, a percepção subjetiva de um fim comum. Se um barcocontinua a aparecer sob a mesma identidade embora tenha sofrido importantesmodificações devido a freqüentes reparos, é porque as partes estão em estado deinterdependência e que o fim comum para qual tendem as partes é idêntico, mesmoapós as variações. E ela (a identidade) facilita a transição da imaginação de um estadodo corpo a outro. Este autor usa também o exemplo de uma igreja para mostrar que a

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continuidade identitária é garantida graças à percepção de um objetivo ou de umdestino que une os elementos, mesmo que a matéria mude totalmente. Imaginemosagora que uma igreja de tijolos esteja em ruínas e que ela seja reconstruída em pedra,seguindo os moldes da arquitetura moderna. Ele salienta que neste caso, nem osmateriais nem a forma são idênticas e não há nada em comum entre estes dois objetosalém de suas relações com os membros da comunidade. A identidade das relações queos habitantes atribuem à estas duas igrejas basta para que a continuidade da igrejaseja mantida. Além disso, é interessante observar neste exemplo que a percepção daidentidade é facilitada pelo fato que o antigo objeto já desapareceu quando o novoaparece na consciência do sujeito, ou seja, os dois objetos nunca aparecemsimultaneamente aos olhos do observador, como no exemplo dos três barcosconceptuais.

O papel do desconhecimentoO esquecer da diversidade e das reais mudanças é a preciosa fonte do

estabelecimento de algumas formas de defesa identitária. O modelo republicano euniversalista francês deveria integrar cada estrangeiro individualmente, contrariamenteaos Estados-Unidos onde a comunidade estrangeira como um todo se integra. Narealidade, até na França, a integração dos imigrantes é realizada com o auxílio dasmicrocomunidades. É o caso, por exemplo, dos italianos, poloneses, portugueses ouainda dos asiáticos do Sudeste da Ásia. A presença da estrutura comunitária forneceaos recém-chegados uma segurança identitária e não os deixa jogados frente a umambiente totalmente desconhecido (Milza, 1998). Opostamente, se certos jovensmagrebinos se integram com dificuldade na sociedade francesa, em parte isso se deveporque eles geralmente estão desorganizados e nus do ponto de vista identitário.Contráriamente à imagem estereotipada que associa estes jovens ao Islã, na realidadeeles estão fortemente atomizados por causa da insuficiente segurança identitária desuas comunidades culturais e da exclusão que sofrem por parte da sociedade francesa(Khosrokhavar, 1997; Tribalat, 1996). Memmi (1966, p.260, mês italiques) descreve omesmo mecanismo identitário nos judeus:

Paradoxalmente, até mesmo a assimilação, como eu disse, será enfim possível.Na opressão não era possível; não somente por causa da recusa dos outros, mastambém, por causa do insuportável mal estar que ela suscitava no própriojudeu: como abandonar os seus numa tal tristeza? Não se abandona, sem umador insuportável, o lado dos perdedores. De agora em diante, a possível referênciado seu povo ao solo, a um Estado, a uma cultura, absolve o assimilado. Sendoum homem livre, o judeu ganha ao mesmo tempo a liberdade de não mais serjudeu [...].[...] a assimilação deve poder ser legítima para todo judeu que a deseja. Estaliberdade de escolher seu destino deve igualmente ser restituída ao judeu. Aconfirmação de sua pertença ou a escolha de outra comunidade deve virarfinalmente, uma simples questão de temperamento ou interesse. Por que deixá-lo sem um direito reconhecido a todos os homens? Em quê é diferente deitalianos que se assimilam aos franceses ou de alemãs que se assimilam aos

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americanos? Mas deve ser visto, aqui também, que é a existência de uma naçãojudia que permitirá finalmente o esvaecimento indolor da judeidade.

Deve ser visto uma complementaridade entre o trancamento identitário e a aberturacultural: não é apesar, mas graças a uma dose de trancamento identitário que aceitamosos valores alheios. A identidade é uma ficção social. Para integrar estrangeiros, asociedade deve dispor de um mecanismo de defesa coletivo eficaz. A identidade éconstantemente quebrada pela introdução de elementos exógenos. O sucesso daintegração dos estrangeiros depende da eficácia deste dispositivo coletivo que permiteo desconhecimento das rupturas identitárias reais e permanentes.

A realidade do modelo francês de assimilaçãoNeste quadro parece possível interpretar uma passagem paradoxal de Todd (1994)

sobre a homogeneidade cultural mais avançada nos Estados-Unidos multiculturalistasdo que na França universalista em termos de estrutura familial, de religião e de hábitosalimentares. Porque a ideologia assimilacionista francesa preserva uma diversidadecultural mais importante que a ideologia comunitarista americana que demonstradeliberadamente a coabitação das diferenças?

Para desvendar este enigma, devemos relembrar que uma mudança (reforço oudesaparição) que ocorre no nível das fronteiras de um lado, e do outro lado umamudança de conteúdo cultural de um grupo étnico, constituem dois fenômenos deregistros psicossociológicos distintos. Então parece possível que um sentimentoidentitário aumente embora haja uma homogeneização cultural importante. A identidadeé um estado psicológico produzido pela categorização (Barth, 1969; Tajfel, 1972, 1978).De modo geral, quando os indivíduos ou objetos são categorizados em dois conjuntos1 e B, ocorre uma ilusão que exagera as diferenças entre as categorias e minimiza adiversidade dos membros no interior de cada categoria. A diferença notada entre osmembros da categoria A e da categoria B é maior que a diferença real; e a similaridadenotada entre os membros no interior de cada categoria também é maior que a similaridadereal (Doise, Deschamps & Meyer, 1979; Tajfel & Wilkes, 1953). Este processopsicossocial pode ser aplicado a uma comparação franco-americana.

Dentro de um sistema multicultural ou multiétnico, os cidadãos se vêem atravésde categorias culturais ou étnicas. Eles tendem então a se dar a ilusão de uma diversidadegrande, maior que a diversidade real. Além disto, como a identidade se baseia no duploprocesso de identificação intracategorial e de diferenciação intercategorial, omulticulturalismo contribui a alimentar o sentimento identitário, o que por sua vezfacilita a aceitação dos valores das outras categorias culturais e étnicas. Com a segurançaou ilusão psicológica que o núcleo central de suas identidades não se altera, os membrosde tal sistema aceitam com mais facilidade uma metamorfose.

Ao contrário, dentro do sistema universalista onde todos os seres humanosdevem ser essencialmente similares, a divergência real tende a ser subestimada ouignorada, pois é secundária ou acidental. Por outro lado, o duplo processo deidentificação-diferenciação não se compromete de maneira tão acentuada quanto no

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ambiente multiculturalista, a incorporação de valores de outros cidadãos apresenta orisco de comprometer o sentimento identitário. A ameaça sobre a identidade é aindamais grave quando os termos de comparação são próximos. Esta citação de SergeMoscovici é bem pertinente sobre este assunto:

[...] adquirimos a convicção que o racismo é ao contrário um problema desimilaridade. Sim, geralmente, é naquele que tem algo em comum comigo, quedeveria estar de acordo e compartilhar suas crenças, que os mínimos desvios memagoam. Eles me parecem mais graves do que são na realidade, pois eu osexagero e dou demasiada importância. Sinto-me traído. Daí uma reação bemmais violenta. Enquanto que, na pessoa realmente diferente que não tem nada aver comigo, mal notaria desvios bem mais acentuados. [...] Resumindo, não sãonossas diferenças que temos dificuldades a suportar, mas nossas semelhanças eligações. (Moscovici, 1985, p.185)

Paradoxalmente o universalismo dificulta mais a aculturação que omulticulturalismo. O primeiro tolera o conteúdo heterogêneo do objeto introduzidoenquanto apara os vestígios originais, enquanto o segundo homogeneíza o objetoincorporado ao mesmo tempo em que impede a fusão entre interior e exterior. O segredodeste paradoxo se esconde no próprio coração do mecanismo de fundação identitária(Kozakaï, 2000, 2005).

Conclusão

A identidade cultural é um fenômeno social em movimento e o limite – sempreprovisório – de sua evolução é colocado unicamente pelo contexto social e o peso dahistória. A integração dos estrangeiros tradicionalmente é conceitualizada dentro deuma perspectiva normativa e funcionalista. Nesta corrente de pensamento só existemduas possibilidades na integração: se a integração ocorreu, o estrangeiro se assimila àsociedade acolhedora; ou em caso de não integração o indivíduo que não aceita anorma dominante da sociedade é marginalizado e excluído (para uma síntese da correntefuncionalista, Manco, 1999). Este modelo é lacunar. Em vez de haver uma absorção deuma cultura pela outra, a aculturação é um processo de evolução mútua para osautóctones e estrangeiros.

O comunitarismo baseia seu fundamento numa visão errônea da identidadecultural, pois ela é vista como uma caixa vazia na qual podemos pôr, em teoria, qualquerconteúdo. O universalismo não comete erros na sua análise da identidade cultural, masse alça sobre um menosprezo da natureza humana. É verdade que a concepção eletivada nação francesa não é um simples voto humanitário e idealista; de um ponto de vistaantropológico, ela é dotada de um verdadeiro fundamento. Mas, os mecanismos dafabricação social de uma identidade graças ao processo de identificação devem serocultados e desconhecidos dos atores cidadãos (Kozakaï, 2000, 2005; Renan, 1992;Weber, 1995). O mundo humano se constrói a todos os níveis sobre uma infinidade deficções sociais. Sem estes auto-enganos coletivos a fundação de uma comunidade

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seria impossível. Ou seja, não é apesar, mas graças às ficções sociais que a realidade sefaz possível. A realidade e a ficção são consubstanciais.

Estamos dentro de uma evolução permanente. O importante não é de saber se éou não é necessário mudar, se é preciso manter a tradição ou evoluir aceitando osvalores da sociedade acolhedora. O verdadeiro problema está no fato de ser obrigadoa ser o que não se deseja ser, e que não é possível tornar-se o que se deseja tornar. Aidentidade não possui um conteúdo próprio, mas é o resultado do movimento deidentificação.

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Recebido em maio de 2007 Aceito em agosto de 2007

Toshiaki Kozakai: doutor em Psicologia Social (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales); professor naUniversidade Paris 8; pesquisador associado de Paris-Descartes no Laboratoire de Psychologie Environnementale.Rafael Pecly Wolter: mestre em Psicologia Social (Paris-Descartes); doutorando em Psicologia Social (Paris-Descartes); pesquisador no Laboratoire de Psychologie Environnementale.

Endereço para correspondência: [email protected]

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Avaliação de desempenho como um instrumentode poder na gestão de pessoas

Patrícia Bento Gonçalves PhiladelphoKátia Barbosa Macêdo

Resumo: O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa que enfocou a avaliação dedesempenho (AD) como um instrumento de poder utilizado na gestão de pessoas. Realizou-seum estudo de caso que utilizou entrevistas individuais com 14 participantes, sendo 4 diretorese gerentes e 10 trabalhadores da área administrativa e operacional. Para análise dos dados,utilizou-se a análise gráfica do discurso de Lane (1985). A análise dos dados indicou que osparticipantes (diretoria) percebiam as políticas de gestão de pessoas permeadas pela ideologiadominante como uma forma de garantir a competitividade da empresa no mercado. Já os traba-lhadores a percebiam como a possibilidade para o desenvolvimento profissional e a promoção.Os dados sugerem que os resultados da AD eram utilizados na gestão de pessoas apenas quandosustentavam/confirmavam as práticas e decisões da diretoria relacionadas às políticas de pesso-al. Assim, a AD pode ser considerada um instrumento de poder na gestão de pessoas, porémtendo seu uso limitado a fatores externos à técnica quando subsidia as ações dos diretores.Palavras-chave: avaliação de desempenho, gestão de pessoas, poder.

Performance evaluation systems as power instrument in the humanresources management

Abstract: The research focused on the system of evaluation of performance (PE) as a methodfor human resources (HR) management in a family business. It is a case study that used semi-structured interviews as instrument for collecting data. The interviews were carried outindividually with fourteen people; four of the group being managers and directors and tenoperational administrative workers. The technique for data analyses was the speech graphicanalysis by Lane (1985). The data indicated that the participants (directors) perceived thehuman resources policies permeated by the dominant ideology, as a way of guaranteeing thecompetitiveness of the organization in the market. The PE were perceived by workers as apossibility for professional development and promotion. The results suggest that the PE wasonly used as an instrument of HR management while their results confirmed the directors’practices and decisions concerning HR policies. The PE could be a management instrument,used limited by policies and interests outside the technique.Key words: family business, evaluation of performance, administration of people.

Introdução

O modo de gerenciamento das pessoas nas organizações depende do modelo degestão adotado e do paradigma industrial predominante em determinado período.Heloani (2003) afirma que, a partir deste ponto de vista, as organizações passam a servistas como produto da realidade socioeconômica, por reproduzirem os princípios de

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organização do trabalho vigentes e influenciarem o ambiente num movimento de mútuatransformação.

Tornou-se necessária alguma forma de coordenação destas partes para a sinergiase desenvolver, e assim levar o sistema a funcionar harmonicamente. “... a teoria dossistemas nos ensina que as partes e interações de um sistema, não existem por simesmas. Na verdade, elas existem para atingir as metas maiores do sistema, as quaissão estabilidade, crescimento e adaptabilidade” (Muchinsky, 2004, p. 238).

Fica clara a necessidade de a organização planejar e coordenar seus processosde trabalho, para que atinja seu objetivo. Fato este que independe do paradigma quepredomina.

Segundo Gil (2001), o enfoque sistêmico na gestão dos recursos humanospressupunha a existência de subsistemas interdependentes (seleção, treinamento,cargos e salários, avaliação de desempenho, e outros). Estes se comunicavam entre si,e criavam uma dinâmica interna própria ao sistema, o que implicava na concepção daorganização como um sistema maior que tem na administração de recursos humanosum subsistema.

O autor refere que transformações socioeconômicas mundiais de globalizaçãoda economia, desenvolvimento tecnológico, evolução das comunicações ecompetitividade, dentre outras, fizeram com que as organizações passassem a enfocaro trabalhador, não mais como uma força produtiva, mas sim como uma pessoa na suatotalidade. Assim sendo, as pessoas tornaram-se, para as organizações, parceiras emseu desenvolvimento e crescimento, para garantir sua sobrevivência e competitividadefrente ao novo cenário socioeconômico mundial.

Assim, as pessoas são tratadas pelas organizações como partes que contribuemcom seus conhecimentos, habilidades e aptidões para manter a harmonia efuncionamento integrado dos subsistemas que compõem o sistema organizacional.Surge então a concepção de gestão de pessoas como um modelo de gestão queconduz as pessoas ao alcance dos objetivos organizacionais, denominado inicialmentede administração de recursos humanos e posteriormente de gestão de pessoas.

Segundo Ribeiro (2005), a área de Recursos Humanos (RH) tem como objetivoprincipal administrar as relações interpessoais existentes na organização e desta comas pessoas. O autor menciona que as políticas de RH contribuem para melhoria dasrelações entre empregador e empregados, a partir do entendimento das pessoas comoparceiras de negócios, e não mais como recursos empresariais. Esta nova visão dopapel do trabalhador e contribuição ao desenvolvimento organizacional exigiu que asorganizações adequassem seu modelo de gestão à otimização de seus processosadministrativos. Ribeiro assinala:

Em uma época em que a globalização, a competição, o forte impacto da tecnologiae as célebres mudanças se tornaram os maiores desafios externos, “a vantagemcompetitiva das empresas está na maneira de utilizar o conhecimento das pessoas,colocando-o em ação de modo rápido e eficaz, na busca de soluções satisfatórias e denovos produtos e serviços inovadores” (Ribeiro, 2005, p.1).

O autor citado refere-se à globalização como um processo que promove forteimpacto de mudança e grande movimento por qualidade e produtividade nas

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organizações. Neste cenário as principais vantagens competitivas das organizaçõessão as pessoas, responsáveis pela manutenção e conservação do status quo.

Bohlander, Sherman e Snell (2003) consideram que a expressão ‘recursos humanos’implica que as pessoas têm capacidades para impulsionar o desempenho organizacional,de maneira conjunta aos demais recursos organizacionais, tais como: financeiros,materiais, informações, entre outros.

Para Dutra (2001) e Fischer (2001), o conceito de gestão de pessoas é uma novaterminologia utilizada pelos que estudam e praticam a gestão de RH nas organizações.Percebe-se uma busca por explicar o motivo das pessoas serem vistas como vantagemcompetitiva para as organizações e convencê-las disto, como forma de obter delas oque de fato interessa às organizações; dedicação e desempenho para garantir lucro.Sob esta perspectiva, a terminologia recursos humanos foi substituída pela expressão‘gestão de pessoas’, com o argumento de que as pessoas não são recursos, o quelegitima a noção das pessoas ser vista como participantes do desenvolvimento daorganização como um todo.

Compreende-se, então, que o conceito de gestão de pessoas, aplicado àsorganizações, revela em seu sentido semântico da palavra gestão, a direção,coordenação de pessoas ao alcance dos objetivos organizacionais. Para Andrade, “Aorganização que pretende alcançar a excelência deve estabelecer estratégias da gestãode pessoas visando à obtenção de um clima de trabalho propício ao alto desempenhoempresarial” (Andrade, 2004, p.12).

Assim, pode-se afirmar que existe uma produção teórica relacionada à gestãode pessoas que desenvolve um discurso ideológico e legitimador de algumas práticasde gestão. Estas demonstram ter como objetivo maior, conceber a exploração ealienação do trabalhador do que realmente promover sua participação edesenvolvimento.

Fischer (2001) compreende o modelo de gestão de pessoas como um conjuntoconstituído por políticas, práticas, padrões de ações e instrumentos, utilizados pelasorganizações para produzir e direcionar comportamentos no ambiente de trabalho.Comentou que pesquisas realizadas demonstraram que nove entre 10% das empresaspesquisadas afirmaram ter no modelo de gestão de pessoas preocupação em alinhar aspolíticas de RH à estratégia do negócio.

Para Staat (1994), a ênfase no relacionamento entre as pessoas faz voltar a atençãopara o processo de organização do trabalho, o qual é contínuo e dinâmico, pois retratarealmente a forma na qual as pessoas fazem sentido em seu ambiente de trabalho porcomparação, discussão e transformação das visões individuais e compreensão daorganização. Para ele, o ingresso das pessoas numa organização implica noestabelecimento de um contrato psicológico, onde uma série de expectativas, as quaisum membro e a organização têm de cada um, e cada membro estabelece então, com aorganização, um contrato diferente.

O fato do trabalhador não alcançar o desempenho esperado pela organizaçãopode ser considerado como uma quebra do contrato psicológico estabelecido entreele e a organização. A grande dificuldade na manutenção do contrato psicológico,segundo Staat (1994), é que usualmente este reflete uma disparidade no poder.

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Como conseqüência, as diretrizes para formulação e implantação de programasde Avaliação de Desempenho são inspiradas na percepção e no reconhecimento dodesempenho humano como fator impulsionador do sucesso da organização. “Aspessoas ao desenvolverem sua capacidade individual, transferem para a organizaçãoseu aprendizado, capacitando a organização para enfrentar novos desafios” (Dutra,2002, p. 126).

Conclui-se, então, que as organizações, para se manterem competitivas eadaptadas ao contexto socioeconômico, buscaram adotar ferramentas de gestão depessoas, que contribuíssem ao contínuo aprimoramento do desempenhoorganizacional.

A seguir, será discutida a avaliação de desempenho sob a perspectiva de ser uminstrumento de poder na gestão de pessoas utilizada para controle do desempenhoindividual e organizacional.

Avaliação de desempenho, um instrumento de poder na gestão de pessoasPontes (1991) definiu avaliação de desempenho (AD) como uma estratégia

organizacional utilizada pelas organizações para acompanhar o trabalho, os objetivospropostos para os profissionais e fornecer feedback para as pessoas.

No entanto, observa-se que, há diferenças entre as percepções dos trabalhadorese dos dirigentes de uma organização sobre a AD. Para os primeiros, a AD é uminstrumento de pressão ao seu empenho no trabalho, enquanto que para os outros,esta serve (ou deveria servir) de base orientadora ao desenvolvimento pessoal eprofissional dos trabalhadores. Na verdade, estas percepções guardam entre si o pontocomum de controle da produção, permeado pela ideologia dominante do período fordistae taylorista, como forma de garantir a existência das organizações no mercado detrabalho.

Segundo Souza (2003), a partir da década de 1980, o contexto de negócios e osdesafios da competitividade obrigaram as organizações a considerarem a necessidadede implantar sistemas de desempenho alinhados aos novos paradigmas de gestão. Noentanto, o autor fez referência à década de 1990, como período em que foramdesenvolvidas pesquisas voltadas a transformar a AD num instrumento de gestão,para promover a efetividade organizacional. Souza (2003) relatou, ainda, que a ADpassou a fazer parte de um modelo de gestão dos trabalhadores centrado em resultados,sendo utilizado para verificar a contribuição do trabalhador, a partir da aplicação deseu conhecimento, capacidades e habilidades no resultado organizacional.

Lucena (1992) expôs que o contexto social relacionava-se ao ambiente externo dasorganizações e influenciava diretamente na forma destas se estruturarem internamente.A autora afirmou serem as pessoas responsáveis por manter as organizações em ritmoprodutivo. Comentou que desenvolver a qualificação e o potencial das pessoas, comfoco no alto desempenho e comprometimento com os resultados desejados, era o grandedesafio organizacional neste contexto. Definiu desempenho como a atuação de umtrabalhador diante do cargo que ocupa na organização, e ainda afirmou que os cargostêm, especificados em seu conteúdo, as responsabilidades, tarefas e desafios que lhes

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são atribuídos. “O desempenho pode ser reconhecido como a manifestação concreta,objetiva do que o empregado é capaz de fazer. É algo que pode ser definido, acompanhadoe mensurado” (Lucena, 1992, p.29).

Muchinsky (2004) concluiu que os sistemas de AD formais proporcionam umabase racional às decisões em RH, e que seus resultados podem ser aplicados às diversasáreas de gerenciamento.

Todo trabalhador espera que seu gerente faça periodicamente uma análise deseu desempenho. Esta seria uma forma do trabalhador saber como sua atuação naorganização está sendo visualizada. “A avaliação de desempenho é o momento esperadopelo funcionário para que alguém fale de seu desempenho” (Ribeiro, 2005, p. 295).

Sob esta perspectiva, Freitas (2005) comenta que a concepção da organizaçãosobre desempenho influencia diretamente na elaboração do instrumento de AD, coletade dados e objetivos da avaliação. Menciona, ainda, que os problemas inerentes a essesinstrumentos estão relacionados à definição de desempenho adotada pela organização.

Para atingir o propósito de promover a comunicação das expectativas dedesempenho, as organizações adotam sistemas de AD. Estes, ao serem implantados nadinâmica organizacional, permitem que por meio do diálogo entre gerência etrabalhadores, os indicadores de desempenho da organização tornem-se conhecidospor todos. A definição dos indicadores de desempenho é determinada pelos dirigentes,o que deixa implícita a vigência da ideologia organizacional.

Para Bonetti, Descendre, Gaulejac e Pagés (1993), a ideologia organizacional se referea um sistema de representação do qual se servem os detentores do poder para mascarar eocultar a realidade. Deste modo, os autores afirmam que a ideologia organizacional não seencontra explícita nos discursos produzidos pela direção da organização.

A ideologia tem como função essencial reforçar a dominação e não apenas mascararas relações de produção. O trabalho implica na adesão dos trabalhadores ao sistemaorganizacional, que traduz o sistema de valores e filosofia de trabalho da organização.É a existência de um sistema estruturado e de uma filosofia global que leva à adesão.

Sob esta perspectiva, os autores citados afirmam que o poder está enraizado naprática cotidiana das organizações, e que as políticas de RH são práticas ideológicasdo poder. Consideram que os dispositivos operacionais das políticas de RH e a ideologiada organização funcionam como maneiras de interiorizar comportamentos e princípiosque os legitimam.

Alguns teóricos vêem o poder como um recurso, outros como uma relação socialcaracterizada por algum tipo de dependência. A maior parte deles assume como pontode partida a definição de Dahl, citado por Clegg (1989), onde o poder envolve habilidadepara conseguir que outra pessoa faça alguma coisa que, de outra forma, não seria feita.Pode-se compreender, então, o poder como meio de solucionar conflitos de interesses,influenciando quem consegue o quê, quando e como.

Segundo Foucault (1979), o poder existe em suas práticas ou relação de poder.“... o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona... Não é objeto, uma coisa,mas sim uma relação...” (p.14). Desta forma, o poder produz; produz o real, produzdomínios de objetos e rituais de verdade. O poder possui uma eficácia produtiva, umariqueza estratégica, uma positividade.

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O que interessa ao poder é gerir a vida dos homens, controlá-los em suas açõespara que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidadese utilizando um sistema de aperfeiçoamento econômico e político. Tem um objetivo aomesmo tempo econômico e político, tornar os homens dóceis politicamente e aumentarsua força de trabalho. Foucault chamou este tipo específico de poder de disciplinar...É uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder, ou métodosque permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeiçãoconstante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade (Foucault,1967/79).

Para Friedberg (1997): “Em todo o campo de ação, o poder pode definir-se comoa troca desequilibrada de possibilidades de ação, ou seja, de comportamentos entreum conjunto de atores individuais ou coletivos” (p.115). Essa definição acentua anatureza relacional e não transitiva do poder. O poder não é um atributo e não pode serpossuído. Não é um bem que se possa levar. Tal como o amor e a confiança, o poder éinseparável da relação pela qual ele se exerce, e que liga entre si pessoas concretas àvolta de objetivos específicos. Entra-se numa relação de poder porque se deve obter acooperação de outras pessoas para a realização de um projeto, seja ele qual for. Opoder é inerente à autoridade e é legitimado pelas regras.

E as funções positivas pelas quais se explica a emergência das convenções, dasnormas e das regras não devem nunca levar a esquecer a natureza estratégica e,portanto fundamentalmente política da interação humana que conduz à corrosão dessasconvenções, normas e regras logo que foram criadas, reorganizando o contexto erecriando espaços de oportunismo. “Uma regra sem a relação de força que suportatorna-se sempre, a prazo, uma forma vazia” (Foucault, 1986, p. 150).

O sistema de regras da organização codifica a realidade e a atividade dosindivíduos. Este sistema de regras se legitima pelas práticas no plano organizacional,isto é, pelo sistema de valores que corresponde ao quadro de referências que orientamas ações dos trabalhadores. Os fundamentos para elaboração e definição dos critériose/ou indicadores de desempenho escapam a quem estes se aplicam, e os procedimentossão legitimados por princípios e práticas ideológicas da organização: “Paralelamente,ao reforço do investimento do indivíduo dentro da organização sobre o indivíduo seacentua” (Pagés & cols., 1993, p. 105).

Para eles, a entrevista de desempenho é um dispositivo comum nas empresas.Para eles, a avaliação traduz-se por uma nota atribuída pelo gerente ao seu subordinadoda qual dependerá seu salário, acrescentando que a entrevista de avaliação é apresentadacomo um diálogo franco e aberto, no qual é oportunizada a troca de feedback.

Assim, a entrevista de avaliação leva o trabalhador mais a um exame de consciênciado que a uma análise de seus resultados. Nela, o que é considerado são os esforços dotrabalhador em ser um bom empregado. Este dispositivo operacional de RH favoreciao domínio da organização sobre o aparelho psíquico dos trabalhadores.

Pode-se, então, considerar que a entrevista de desempenho entendida comouma regra da organização para obter a cooperação do trabalhador para alcançar osobjetivos estratégicos, é um instrumento de poder inerente à autoridade e legitimadopelas regras.

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Conclui-se, que as organizações utilizam sistemas de AD para mensurar a formacomo o trabalho é realizado em determinado período, e tem neste sistema um métodode controle do desempenho das pessoas. Percebe-se nesta posição estar implícita autilização da AD como um instrumento de poder que controla e direciona ocomportamento dos trabalhadores, como forma de apresentar o discurso ideológicodas organizações voltado ao desenvolvimento das pessoas.

Sendo assim tem-se a AD como um instrumento de poder na gestão de pessoasutilizada para controlar e direcionar o comportamento e conhecimento dos trabalhadores,em prol dos objetivos organizacionais, permeados pela ideologia dominante dasorganizações.

Método

Sendo um estudo de caráter descritivo e exploratório que caracteriza o estudode caso, é possível, adotando esta forma de pesquisa qualitativa, que o pesquisadoraprofunde seus estudos numa realidade específica (Triviños, 1987). É importanteressaltar, entretanto, que não se pode objetivar generalizações com este tipo deestudo e sim descrever e analisar as informações coletadas no contexto da empresapesquisada.

A presente pesquisa refere-se a um estudo de caso realizado numa empresada área de construção civil, há 23 anos no mercado de Goiás, abrangendo tambémos mercados de São Paulo (capital e interior) e Brasília. Em seu histórico daadministração de RH, há registros de um programa de AD que foi modificado pormais de três vezes.

Para levantamento de informações foram realizadas entrevistas semi-estruturadasvisando identificar qual a percepção dos trabalhadores da empresa a respeito doprograma de AD utilizado. Esta técnica de coleta de dados permitiu orientar os tópicospropostos pela pesquisa, pois seguiu uma estrutura prévia definida pelo pesquisadorsem impossibilitar que surgissem novos questionamentos em seu desenvolvimento.

A população investigada abrangeu todos os trabalhadores da empresa, na épocada coleta de dados, considerando os níveis hierárquicos da direção, gerência etrabalhadores do nível administrativo e técnico operacional.

Os participantes foram escolhidos intencionalmente, e considerou ostrabalhadores que atendessem aos requisitos de: antiguidade mínima de 2 anos (fatoque possibilitaria que estes tivessem participado de pelo menos dois processos deavaliação na empresa); atuantes na matriz em Goiânia (pela facilidade de acesso) e quefossem ocupantes de cargos administrativos e operacionais.

Com base nestes critérios, os participantes da pesquisa foram 14, sendo 4ocupantes de cargos de diretoria e gerências e 10 trabalhadores da área administrativae operacional, por atenderam aos requisitos acima mencionados.

Dos participantes, em relação à faixa etária, 10 tinham entre 31 a 40 anos,dado que indica uma composição de trabalhadores jovens. Em relação ao tempo deserviço, dos quatorze participantes: quatro tinham mais de 10 anos na empresa,admitidos entre 1990 e 1994; seis foram admitidos no período que corresponde ao

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intervalo de 1995 a 2000, e três foram admitidos posteriormente. No que se refere àescolaridade, dos quatorze participantes, onze eram profissionais com nível superiorcompleto, um com nível superior incompleto e dois com ensino fundamentalcompleto.

As entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado, elaborado com base nasseguintes categorias: políticas e práticas de RH; significado de AD; o programa de ADna empresa e seu desenvolvimento; os resultados das avaliações realizadas.

Os participantes foram convidados a participar da pesquisa, e assinaram o termode consentimento, sendo que todas as recomendações éticas do comitê de ética foramrigorosamente seguidas. Após o consentimento, as entrevistas foram realizadasindividualmente, na organização e no horário de trabalho, previamente acordado.

As informações coletadas foram analisadas pela técnica de análise gráfica dodiscurso, desenvolvida por Lane (1985). Na análise gráfica do discurso, o discurso éreproduzido graficamente, mantendo-se as setas e os números que indicavam a relaçãoe a seqüência de forma a se poder ler a entrevista tal qual fora produzida. Assim, épossível detectar os núcleos de pensamento, referente à relação entre pensamento elinguagem. A técnica de análise do discurso torna a análise simples, pois através dadescrição dos núcleos encontrados e das unidades significativas relacionadas a eles,podem-se levantar dados relacionados à percepção que a pessoa ou o grupo de pessoaselaborou, com suas contradições, com suas rupturas o que permite detectar elementosideológicos que permeiam seu discurso.

Os resultados da análise do discurso serão apresentados considerando asseguintes categorias norteadoras: as políticas e práticas de RH; a percepção do sistemade AD; a implantação do sistema na empresa e os motivos e alterações e, finalmente, autilização dos resultados da AD nas decisões administrativas da empresa.

Resultados

No que se refere às políticas e práticas de RH, diretores e gerentes afirmaram queelas estavam em processo de reestruturação, pois as consideravam falhas e buscavammelhorias. No discurso pôde-se observar que para os diretores da empresa as políticase práticas de RH eram constantemente revisadas para poder melhorar a forma decondução dos trabalhadores em suas atividades. Ao serem questionados quanto apolíticas e práticas específicas da área de RH relacionaram-nas com as promoções,treinamento e desenvolvimento, benefícios, cargos e salários e demissões.

• Considerando a promoção: os participantes que ocupavam cargos gerenciaisrelataram ser esta lenta e desmotivadora, enquanto que os que ocupavam cargosdiretivos a consideravam gradual, pois buscavam quantificar o desempenho parahabilitá-los a uma promoção.

• Considerando o treinamento e desenvolvimento, afirmaram que estava excelente;• Considerando os benefícios e incentivos, afirmaram que se baseavam no

mercado, apesar de não haver registro de pesquisas de mercado;• Considerando cargos e salários, afirmaram que também se baseavam no mercado,

sem considerar os resultados da AD;

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• Ao abordarem as demissões, apenas afirmaram que elas eram definidasconsiderando os interesses da diretoria, ou seja, aspectos relacionados pelo poder.Alguns trechos de seus discursos esclarecem:

... estamos passando por uma reformulação nesta área... estamos terceirizandoo departamento de RH, A política de RH sempre existiu... estava falha, muito aquémdo que a empresa precisava, ver se melhora (discurso de um diretor).

Hoje, não... tá meio confuso pra mim ... Mas hoje falar assim,... Exatamentecomo funciona eu não sei. Não, várias vezes questionei sobre isso, mas nunca obtiveuma resposta satisfatória (discurso de um trabalhador administrativo operacional).

Por outro lado, o discurso dos trabalhadores administrativos e operacionais emrelação às políticas e práticas de RH da empresa foi de que estas eram confusas, semuma definição clara, pouco divulgada e que desenvolviam ações com programasespecíficos. Revelaram ainda que, no momento da pesquisa, estavam em reestruturação,e que a área de RH estava sendo terceirizada.

No que se refere ao sistema de AD, o discurso dos trabalhadores indicou certodescompasso entre as percepções dos diretores e gerentes e dos trabalhadores daárea administrativa e operacional.

Para diretores e gerentes, este era um mecanismo de aperfeiçoamento, que permitiaadequar às necessidades de RH da empresa. Representava também uma forma decontrole e alinhamento dos trabalhadores aos objetivos organizacionais, rápido, objetivoe utilizando pontuação. Relataram que o sistema apresentava como vantagens ebenefícios o alinhamento da empresa, a possibilidade de alcançar os objetivosorganizacionais e justificar concessão de aumento e promoção salarial. Alguns trechosde seus discursos esclarecem:

... querer aumento. É para a gente dar aumento... ter uma correspondência demelhoria de desempenho desta pessoa... dá ou não dá aumento ... justificar pra essapessoa o porquê, o motivo, que foi para ajudar as pessoas na sua formação ... érealizado através de formulário superior / funcionário. Até hoje ela é realizada damesma forma, ... formulário com os itens ...o que a gente espera que os funcionários,os pontos ... deficiências ... virtudes ..analisa os pontos ... (diretor).

Para os trabalhadores da área administrativa e operacional, esta era uma práticaformal, que era percebida como uma ordem a ser cumprida, e que sabiam querepresentaria uma forma de pressão para aumentar o desempenho, burocrática, semhistórica, sem padrão de indicadores, que não gerava resultados, mas poderiaoportunizar o crescimento profissional. Como vantagens e benefícios mencionaram apossibilidade de promoção, aperfeiçoamento das virtudes, diminuição das deficiências,permitir a abertura a críticas e motivá-los ao crescimento profissional. Alguns trechosde seus discursos esclarecem:

Eu gosto.. é um momento que você senta com seu coordenador para avaliar oque você fez ...cresceu, melhorou... Eu acho isso excelente, você pode medir o esforçoque você tá fazendo aqui no dia a dia, você é avaliado por seu superior imediato,acho que contribui... fiquei meio constrangido, levei pro lado pessoal... pensei que... se não fosse bem avaliado, seria demitido, dispensado.... no papel lindomaravilhoso, se fosse bem usado funcionaria, porém da forma que é feito não

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funciona...às vezes eu acho que ela fica assim muito na teoria, fica difícil de realizar,não se envolve com o negócio...(trabalhador administrativo operacional).

Quanto aos motivos para implantação do programa, diretores e gerentes afirmaramque a implantação ocorreu para incentivar o diálogo entre chefias e subordinados, umaforma sistemática de pontuar o desempenho e justificar o aumento e promoção salarial.Para os trabalhadores administrativos e operacionais, os motivos para implantação dosistema visavam oportunizar o crescimento, permitir a troca de feedback com o superiore conhecer a opinião do avaliador em relação ao desempenho do avaliado.

No que se refere às diversas alterações ocorridas no programa de AD daorganização estudada, diretores e gerentes relataram que estas foram realizadas visandoadequação e minimização das dificuldades encontradas em sua operacionalização,uma forma de simplificar, tornar ágil e adequar os objetivos do sistema ao contextoglobal. Os trabalhadores administrativos e operacionais relataram que as alteraçõesforam feitas em virtude da dinâmica de RH da empresa. Modificou-se o teor dasperguntas, a abordagem passou de individual para grupal e os formulários foramsimplificados e mais específicos.

Quanto aos resultados da AD, diretores e gerentes afirmaram que possibilitavammelhoria do clima organizacional, avaliava o coordenador, reconhecia a melhoria dodesempenho e incentivava o diálogo. No entanto, os trabalhadores administrativos eoperacionais relataram que os resultados nem sempre ajudavam, estes não eramacompanhados, mas poderiam possibilitar melhorias do próprio empenho, promoção ealteração de atitudes e comportamentos, se fossem efetivamente utilizados.

Trata-se de um discurso até certo ponto ideologicamente comprometido, tendoem vista que representa os interesses da organização, e também pelo fato de ter sidoelaborado pelos participantes da cúpula. Estes relataram que os resultados da ADdirecionavam o reajuste salarial; promoções; plano de ações para melhoria comoindicação para treinamentos e estágios e para a demissão. Os dados levantadosindicaram que os resultados da AD direcionaram totalmente o reajuste salarial;parcialmente as promoções e as demissões (havendo outros critérios não claramentedefinidos presentes no processo decisório); não indicaram planos de ações paramelhoria e que indicaram totalmente as demissões. O principal motivo alegado refere-se ao aumento de custo com pessoal (não visto como investimento), o que implicariaem não disponibilizar mais verbas para ações de melhoria. Seguem alguns trechos dodiscurso dos participantes:

... contribui pras pessoas que querem crescer... o processo na empresa nãofunciona como deveria ... o resultado da AD tinha que ser mostrado, o reconhecimentode sua avaliação. Contribui sem dúvida, precisa é a empresa valorizar mais astécnicas de RH, a avaliação eu vejo como ferramenta pra ser usada para promovereste crescimento profissional (trabalhador administrativo operacional).

No entanto, os trabalhadores relataram que os resultados da AD nem sempreeram considerados, mas poderiam possibilitar melhorias do desempenho; relataramque não haviam recebido nenhuma informação mais detalhada da descrição e análisede seu cargo e dos cargos que deveriam avaliar, e que as informações sobre osformulários haviam sido transmitidas apenas oralmente.

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Também relataram que as entrevistas de AD eram realizadas apressadamente,que os chefes preenchiam depressa os formulários, e que os resultados das avaliaçõesnem sempre eram considerados para promoções, não existiam critérios de promoçãoclaramente definidos. Seguem trechos de relatos dos trabalhadores:

Resultados... Conheço, é na hora que a gente vai fazendo, já vai falando... Resultadoda minha avaliação?... informalmente no momento da conversa. Se já aconteceu algumamudança? ... Não (trabalhador administrativo operacional)

No discurso dos trabalhadores, os participantes declararam que não se sentiamseguros na organização, ao dizer que nunca sabiam quando iam ser dispensados.Afirmaram que não existiam critérios formais de avaliação de desempenho, parapromoção ou um plano de cargos e salários na organização, ficando na responsabilidadedo departamento de recursos humanos e das chefias a elaboração informal destasatividades.

Discussão

Observam-se, nos relatos apresentados, indícios da utilização da AD como umaprática ideológica de poder por meio das políticas de RH, de acordo com a abordagemde Pagés e cols. (1993) ao estudarem o poder nas organizações. Em seus estudos, osautores consideraram que os dispositivos operacionais das políticas de RH e a ideologiada organização funcionam como maneiras de interiorizar comportamentos e princípiosque os legitimam. Comentaram, também, ser a entrevista de avaliação apresentadacomo um diálogo franco e aberto, onde se oportuniza a troca de feedback, porém naprática observa-se que a consideração do gerente para com o não atendimento àexpectativa do desempenho por parte do trabalhador pode levar à demissão.

No que se refere às críticas e alteração às quais o programa de AD da empresapesquisada foi submetido, cabe uma análise mais dinâmica. É importante salientar queas pessoas são levadas a entrar em uma relação de poder para que possam obter acooperação de outras na realização de um projeto. Assim, nas empresas, tanto os seussócios, representados por seus diretores, quanto os seus trabalhadores possuem umarelação de interdependência, onde estão intrincados objetivos individuais eorganizacionais nem sempre congruentes.

Várias críticas foram direcionadas aos programas de AD da empresa pesquisada.Diante das críticas, a atitude dos diretores foi solicitar mudanças e alterações nosformulários, modo de aplicação, sem alterar a concepção ou mesmo o grande problemado programa: o uso não adequado ou parcial dos resultados da AD, o que geroufrustração nos trabalhadores e comprometimento dos resultados esperados peladiretoria.

Percebe-se que uma das expectativas explícitas da diretoria em relação aostrabalhadores era obter obediência, entendida como a resposta automática e pronta,de forma estereotipada. “Pensar como a diretoria” apareceu como uma proposta dadiretoria para os trabalhadores. Os gerentes obedeciam visando obter recompensas epromoções, pois havia estrutura autocrática, e as decisões consideravam o bomcomportamento, muito mais que bons resultados na AD ou eficácia.

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Após várias alterações do processo de AD na empresa estudada, sem que fossemalcançados os resultados esperados, os diretores da empresa resolveram terceirizartodo o processo, desativando a área de RH, o que remete ao questionamento sobre onível de envolvimento e comprometimento real da cúpula com a área de RH, bem comotambém em relação aos limites e contribuições possíveis dos programas de AD.

Desse modo, os dados levantados reafirmam os posicionamentos de Ribeiro,Pagès (1993), Foucault (1996), Freitas (2005), Gramignia (2002) e Pontes (1991), indicandoque as práticas organizacionais relacionadas ao uso dos resultados da AD representampráticas de poder e que são resultado também de aspectos relativos à culturaorganizacional. No caso da empresa pesquisada, aspectos das relações de poder.

Conclusão

Pode-se afirmar que o objetivo foi alcançado na medida em que permitiu elucidaro papel das relações de poder frente à gestão de RH enfocando a AD, como fatorlimitador do processo.

O discurso oficial (da diretoria) defende a importância da AD, mas algumas desuas ações e práticas demonstram seu caráter limitador das ações de diretores e gerentesem relação à gestão de pessoas, causando assim certo incômodo ou dissonância entreas políticas de RH e as práticas gerenciais.

De outro lado, o discurso dos trabalhadores envolvidos no processo apontoufalhas e lacunas, inicialmente nos formulários, treinamentos, e posteriormente criticandoabertamente o (mau) uso dos resultados da AD pela diretoria e gestores de RH, o quegerou insatisfação e descrédito em relação ao programa.

Os dados do presente estudo corroboram com os de Ribeiro (2005), no que serefere a AD, sendo as relações de poder componente organizacional que impacta nodesempenho humano das organizações, pois refere-se a variáveis do ambiente internocapazes de afetar o desempenho de forma positiva ou negativa, tanto no desempenhoreal quanto ao uso (ou não uso) adequado que o gestor de pessoas faz dos resultadosdo processo de AD.

No estudo realizado foi constatado que as críticas e constantes alterações nosprogramas de AD da empresa pesquisada se referiam muito mais ao fato dos resultadosda AD se constituírem como obstáculo para as ações da diretoria, que, de formaautoritária e centralizadora, decidia (desconsiderando resultados da AD) em detrimentode aspectos pessoais, o que gerava resultados dissonantes das políticas de RH.

Vale aqui retomar o posicionamento de Pagés e cols. (1993), que consideraramque os dispositivos operacionais das políticas de RH e a ideologia da organizaçãofuncionam como maneiras de interiorizar comportamentos e princípios que os legitimam.

Conclui-se, portanto, que a AD na empresa era utilizada como recurso ideológico,geradora de um discurso legitimador de práticas de gestão de pessoas tecnicamentecorretas, porém que camuflam ações autoritárias, centralizadoras e excludentes exercidaspela diretoria que considera seus interesses particulares.

Como motivos para críticas e constantes alterações no processo de AD, surgiam,de um lado, a complexidade e extensão dos formulários (manifesto), e, de outro, o fato

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de os resultados da AD se constituírem como obstáculos às ações desviantes dosprincípios ideológicos da empresa em relação à política e prática de gestão de pessoaspraticadas pela diretoria.

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Recebido em outubro de 2006 Aceito em abril de 2007

Patrícia Bento Gonçalves Philadelpho: psicóloga; especialista em Gestão de Empresas pela UniversidadeCatólica de Goiás; Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás; professora da Faculdade Ávila,da UNIP e Faculdades Objetivo.Kátia Barbosa Macedo: psicóloga; especialista em Dinâmica de Grupos pela Universidad de Comillas-Espanha. Master em Psicologia Aplicada a las Organizaciones pela EAE-Barcelona; Mestre em Educação pelaUniversidade Federal de Goiás; Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo; professora da Universidade Católica de Goiás.

Endereço para contato: [email protected]

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Emergência e conexionismo como hipóteses suplementaresao Entwurf einer Psychologie de Freud

André Sathler Guimarães

Resumo: O artigo aborda a arquitetura do aparelho nervoso, apresentada por Freud no Entwurfeiner Psychologie, notadamente sua proposição de três sistemas neuronais distintos – ϕ, ψ e ω.Demonstra como Freud ficou insatisfeito com suas próprias explicações ontológicas para aestrutura apresentada e propõe que existe uma compatibilidade entre as abordagens da emer-gência e do conexionismo e a postulação freudiana.Palavras-chave: Freud, cérebro, aparelho nervoso, emergência, conexionismo.

Emergency and connectionism like supplementary hypothesis inFreud Entwurf einer Psychology

Abstract: The paper work with Freud’s proposal for an architecture of the nervous system, inhis book Entwurf einer Psychologie, giving emphasis to his distinction among three systems ofneurons – ϕ, ψ e ω. It seeks to show how Freud was not completely sure about his ownontological explanations for the proposed structure and try to show that there is compatibilitybetween Freud’s work and the emergence and connectionism perspectives.Key words: Freud, Brain, Nervous System, Emergence, Connectionism.

Introdução

Na primeira etapa de sua carreira, Freud era um médico neurologista e estavamais preocupado, notoriamente, com as questões fisiológicas do aparelho nervoso doque com o inconsciente e a metapsicologia. O ápice dessa etapa é o Entwurf einerPsychologie (“Projeto de uma Psicologia”, daqui para frente referido simplesmentecomo Entwurf) uma obra na verdade apenas rascunhada, em manuscrito.

Muitos autores defendem que o Entwurf pertence à primeira fase da carreira deFreud e é incompatível com o desenvolvimento posterior da metapsicologia. Abordagensmais recentes, entretanto, têm mostrado o papel fundamental do Entwurf na obrafreudiana e, como não há na realidade, uma ruptura do pensamento do autor, mas simuma continuidade.

Um dos pontos interessantes do Entwurf é a formulação de Freud (1895/1995),ao tratar da arquitetura do aparelho nervoso, de três sistemas neuronais distintos – ϕ,ψ e ω. O próprio Freud, contudo, revelou sua inquietação diante da necessidade dejustificar ontologicamente esses sistemas.

O presente artigo pretende analisar a proposta freudiana e cotejá-la com asabordagens da emergência e do conexionismo, buscando identificar uma possívelcompatibilidade entre essas vertentes explicativas.

Aletheia, n.26, p.41-49, jul./dez. 2007

Aletheia 26, jul./dez. 200742

O Entwurf e a arquitetura do aparelho nervosoO Entwurf, publicado postumamente e inacabado, representa um momento especial

na obra freudiana, quando o autor tenta “deduzir uma psicologia científica e naturalista,segundo um mínimo de pressupostos”, segundo Gabbi Junior (2003, p. 8). Freud (1895)adota uma perspectiva definida por três características: se referenciar no modelo daFísica; supor a inexistência de diferenças essenciais entre fatos físicos e fatospsicológicos; e buscar a explicação dos processos pela sua origem. Para Gabbi Junior(2003, p. 19), o “Entwurf é a tentativa de descrever empiricamente o funcionamento damente humana, de acordo com causas naturais”.

O Entwurf se articula em torno de dois postulados: neurônio e quantidade. Oneurônio é apresentado como expressão da unidade material na qual ocorre umadiferença entre repouso e movimento. Sobre o neurônio, Freud (1895/1995) argumenta:“O conteúdo principal do novo conhecimento (histológico) é que o sistema nervosoconsiste em neurônios distintos, de mesma arquitetura, em contato por mediação demassa alheia, acabando uns nos outros como partes de tecido diverso, onde estãoprefiguradas certas direções de condução, na medida em que recebem pelosprolongamentos celulares e entregam por meio dos cilindros do eixo” (p. 177).

A quantidade é uma soma de excitação ou montante afetivo, que diferenciaatividade de repouso. Em “As neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1995, p. 74)qualifica a quantidade – Q como “algo capaz de aumento, diminuição, deslocamento eeliminação e que se propaga sobre os traços de memória das idéias, algo como umacarga elétrica sobre a superfície de um corpo”. Já estavam lançadas as bases para aposterior concepção freudiana da excitação nervosa como Q em fluxo, feita no Entwurf.Na formulação do princípio da Q estão embutidos três pontos de vista dametapsicologia: a) a variação entre polaridades positivas e negativas; b) a possibilidadede Q ir de um lugar para o outro; c) a capacidade de Q se compor e interagir.

O aparelho nervoso1 tem como princípio fundante a busca da eliminação de Q.Freud chama de processos primários aqueles voltados diretamente para a eliminaçãode Q e processos secundários aqueles que buscam evitar o ingresso de Q no aparelho.No Entwurf, Freud (1895/1995) assume que a função do aparelho é eliminar a Q, enquantoque a arquitetura do aparelho busca afastar a Q.

Tratando da arquitetura do aparelho, Freud (1895/1995) concebeu a noção detrês sistemas distintos de neurônios: ϕ, ψ e ω. Os neurônios do sistema ϕ sãocaracterizados por deixarem passar a Q livremente, como se não tivessem barreiras decontato. Por não oporem resistência, bem como não reterem Q são então, chamadospor Freud de permeáveis. A adoção do símbolo ϕ – physis (ϕυσισ) – tem a ver com ofato de que esses neurônios processam Q exógenas, que vêm da natureza (mundoexterno). Em ϕ, não há ‘percepção’ em seu sentido estrito, apenas ‘sensação’, ourecepção do estímulo externo.

1 Opta-se por manter a nomenclatura utilizada por Freud, “aparelho nervoso”, em virtude da posterior qualifica-ção que o autor faz dos “sistemas” neuronais.

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O sistema ϕ fraciona a Q, comprimindo-a ao nível intercelular. Um aumento da Qem ϕ vai se traduzir em maior complexidade no sistema ψ, ou seja, não há um aumentoda intensidade na passagem entre os sistemas neuronais, mas sim uma ocupação maisvasta de ψ. Como um primeiro filtro, o sistema ϕ evita que uma Q muito grande possatrazer efeitos disruptivos ao aparelho, como uma dor insuportável, por exemplo.

Já os neurônios do sistema ψ – de ψυχη (sopro de vida, alma) – são propostospor Freud (1895/1995, p. 179) como aqueles que restringem a passagem de Q, sendoimpermeáveis, ou “dotados de resistência e embargantes de Q”. Ao passo que oneurônio ϕ é pensado como algo voltado para fora, o neurônio ø é concebido comovoltado para dentro2.

Para Freud (1895/1995, p. 181), com a suposição de “dois sistemas neurônicos ϕe ψ, dos quais ϕ consiste em elementos permeáveis e ψ em impermeáveis, parece dadaa explicação de uma propriedade do sistema nervoso: reter e, no entanto, permanecerreceptivo”. Toda aquisição psíquica consistiria, então, na articulação do sistema ψmediante um cancelamento parcial e topicamente determinado da resistência dasbarreiras de contato, diferenciando ϕ de ψ. Com o progresso dessa articulação, ofrescor receptivo do sistema teria encontrado, com efeito, uma barreira.

É mais fácil para a Q entrar do que sair no sistema ψ, o que causa uma ocupaçãopermanente do núcleo de ψ – a base material e condição de eficácia para o “eu”. Essaconcepção do sistema ψ abriu caminho para que Freud, em 1895 pudesse substituir oprincípio da inércia no aparelho pelo princípio da constância.

Posteriormente, no Entwurf (seção 7), Freud (1895/1995) se preocupa com aquestão da qualidade, que, da forma como colocada pelo autor, aproxima-se muito doconceito de qualia. Haveria elementos da experiência humana que seriam inescrutáveise incomunicáveis, mesmo entre seres humanos, os chamados qualia. A noção dequalia está muito vinculada a uma concepção dualista da relação mente e corpo, naqual, segundo Teixeira (2003, p. 96) “as experiências subjetivas são algo mais do queum conjunto de condições físicas que as proporcionam. Essas experiências subjetivasse sobrepõem a qualquer tipo de descrição física que possamos ter do nossofuncionamento cerebral, são sempre algo mais do que uma descrição completa domodo como as cores são processadas pelo cérebro”.3

O que Freud (1895) desejava era uma “explicação razoável para aquilo queconhecemos de forma mais enigmática por intermédio de nossa “consciência” (1995, p.186). Após conjecturar sobre as impossibilidades teóricas de que a qualidade fosseproduzida pelos ou nos sistemas ϕ ou ψ, Freud (1895/1995) postula a existência de umterceiro sistema neuronal, o sistema ω – do W gótico da palavra Warhnemung(aproximadamente traduzida do alemão como “percepção consciente”).

2 Apesar dessa concepção, o neurônio ψ pode também transformar o interno em externo, como nos processosalucinatórios.3 Interessante o fato de que o conceito de qualidade de Freud se aproxime do conceito de qualia, maiscomumente associado a correntes dualistas, uma vez que a perspectiva naturalista do Entwurf o aproximamais de correntes materialistas no tocante à discussão do problema mente–cérebro.

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A postulação que Freud, em 1895, faz de ω segue um encadeamento com ossistemas anteriores. “Os aparelhos de terminações nervosas eram uma proteção paraque se efetivassem apenas frações de quant[idade] externa em ϕ, enquanto que ϕ aomesmo tempo cuidaria de eliminar o grosso da quant[idade]. O sistema ψ, que já estavaprotegido contra ordens maiores de quant[idade], teve de lidar apenas com grandezasintercelulares. Cabe conjecturar em continuação que o sistema ω seja movido porquant[idades] ainda menores (1995, p. 188).

A seqüência ϕ, ψ, ω só faz sentido em relação à Q exógena e envolve as condiçõesde funcionamento de ω, ou seja, operar com o mínimo de Q. Os aspectos físicos dapercepção ocorrem em ϕ e os aspectos cognitivos em ω. Na sua intenção de adotar oponto de vista biológico e naturalista, Freud (1895/1995) propôs essa estrutura doaparelho, restando-lhe encontrar explicações ontológicas para a mesma. Para tanto, emalguns casos ele vai recorrer a uma perspectiva evolucionista, e, em outros, vaisimplesmente deixar a questão em aberto, como no tocante ao sistema ω.

Após propor os sistemas ϕ e ψ, no Entwurf, Freud começa a se colocar uma sériede interrogações e esboça algumas tentativas de respostas. “De onde mais se deveretirar um fundamento para essa divisão em classes?”. Recorrendo à hipóteseevolucionista, Freud (1895/1995, p. 182) argumenta que o aparelho tinha inicialmentesuas duas funções primordiais: receber estímulos exteriores e eliminar excitaçõesinternas; por conseguinte, os sistemas ϕ e ø seriam “aqueles que teriam tomado parasi cada um desses compromissos primários” (1995, p. 182).

“Por meio de que caminho ψ chegou à propriedade de impermeabilidade?” Aindaseguindo uma linha darwiniana de pensamento, isso se daria pela “indispensabilidadedos neurônios impermeáveis e, com isso, à sua sobrevivência” (Freud 1895/1995, p. 183).

Entretanto, em seguida, Freud apresenta uma proposta alternativa, no seuentender mais frutífera e modesta: a diferença não estaria nos neurônios, mas na Q comque eles têm de lidar – “no curso excitativo, quanto maior a Qη, maior a facilitação, ouseja, maior a proximidade, por outro lado, com as características dos neurônios ϕ”.4

Assumindo-se essa hipótese, necessariamente admite-se que um neurônio ϕ poderiase tornar um neurônio ψ, e vice-versa, caso fosse possível se alterar sua tópica eligações. Portanto, para Freud “a diferença de essência é substituída por uma dedestino e de localização” (1995, p. 183).

Contudo, ao tratar dos neurônios ω, Freud (1895/1995, p. 183) deixa a questão emaberto e assume que “não se consegue indicar qual teria sido o valor biológico origináriodos neurônios ω”. Ou seja, Freud se sentiu incapaz de apresentar o sistema ω comoresultante de uma evolução desde ψ.

Emergência e conexionismo como respostas às inquietações freudianasPostulamos que Freud poderia ter assumido a mesma linha de argumentação

para o sistema ω, quer seja, tratar seu surgimento em uma perspectiva evolucionista e

4 Em determinados momentos do Entwurf, Freud usa o símbolo Qç, presumidamente para realçar os casos emque trata especificamente de quantidades endógenas.

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como questão de destino e localização. Para tanto, recorremos aos conceitos deemergência e conexionismo.

Alan Turing, considerado um dos inventores do computador digital, estudou achamada morfogênese, ou a capacidade de todas as formas de vida de desenvolveremprogressivamente corpos mais elaborados a partir de estágios iniciais simples. Dotrabalho de Turing sobre morfogênese, segundo Johnson (2003, p. 12), foi “delineadoum modelo matemático em que agentes simples, seguindo regras simples, eramcapazes de gerar estruturas surpreendentemente complexas”. Na verdade, Turingestava tratando de comportamentos emergentes e da ciência da auto-organização.Os sistemas auto-organizados definem a forma mais elementar de comportamentocomplexo:

“Um sistema com múltiplos agentes interagindo dinamicamente de diversasformas, segundo regras locais e não percebendo qualquer instrução de nível mais alto.Contudo, o sistema só seria considerado verdadeiramente emergente quando todas asinterações locais resultassem em algum tipo de macrocomportamento observável”(Johnson, 2003, p. 15).

Teóricos da emergência e da auto-organização, como Humberto Maturana eFrancisco Varela, definem os seres vivos como redes e interações moleculares queproduzem a si mesmas e especificam seus próprios limites, portanto emergentes eauto-organizados. Para Maturana e Varela (2001, p. 52), “os seres vivos se caracterizampor – literalmente – produzirem de modo contínuo a si próprios, o que indicamosquando chamamos a organização que os define de organização autopoiética”. Aolongo desse processo, ainda segundo esses autores, “foi necessário contar commoléculas capazes de formar membranas suficientemente estáveis e plásticas paraserem, por sua vez, barreiras eficazes e de propriedades mutantes que permitissem adifusão de moléculas e íons por longos períodos, em relação às velocidadesmoleculares” (Maturana & Varela, 2001, p. 57).

Seguindo essa linha de argumentação, pode-se transplantar o princípio auto-organizador e emergente para o cérebro [aparelho nervoso] humano. Marvin Minsky(1985) foi um dos que enxergaram emergência e auto-organização nas redesdistribuídas [sistemas neuronais] do cérebro, entendendo-o como uma maciça redede neurônios, conectados por axônios e dendritos. Como componentes unitáriosde uma unidade autopoiética orgânica, os neurônios estão dinamicamenterelacionados, em uma rede contínua de interações. O comportamento cerebral éfrancamente emergente. Um estímulo [ou uma Q, na terminologia freudiana] disparauma sucessão de circuitos neuronais: cada nova Q é o gatilho para um novo arranjoda rede.

O comportamento de sistemas emergentes depende fortemente de suas partescomponentes (no caso do cérebro, seus neurônios) e como elas se juntam (ϕψω?). Atipificação neuronal em ϕψω seria resultante do local que esses neurônios ocupavame passaram a ocupar ao longo do processo evolucionário, sendo que os neurôniosmais externos ficaram sujeitos a Q maiores, tendo se tornado permeáveis. Essapermeabilidade seria menor em ψ, e ainda menor em ω, por serem sistemas mais

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“internos”.5 Considerando-se que as atividades do cérebro são constituídas pelodeslocar de Q entre os neurônios, que não dispõem individualmente das qualidadesglobais do cérebro, afirmamos que a tipificação em ϕ, ψ ou ω se deu a partir dessesbilhões de transações interneuronais, que originaram a dimensão organizacional doaparelho, em uma perspectiva emergente.

Raízes para esse tipo de argumentação freudiana podem ser encontradas emJohn Stuart Mill (Gianotti, 1964, p. 32): “Em vez de descrever os fatos mentais à procurados mais primitivos, deve-se proceder ao exame de seus modos de formação, a fim deque não se corra o perigo de tomar por simples o fato composto cujos trâmites deprodução foram perdidos. Portanto, todo fenômeno redutível a elementos mais simples,por estes modos de produção já estabelecidos, não será tomado como simples, aindaque a intuição assim no-lo apresente”.6

A “busca da explicação dos processos pela sua origem”, característica daperspectiva naturalista freudiana aproxima-se do “exame dos modos de formação” deMill. Ao sinalizar que a mera redução de um fenômeno de múltiplas dimensões a seuselementos mais simples poderia ser insuficiente para sua explicação, caso seus “trâmitesde produção” estivessem perdidos, Mill se colocou em sintonia com o ‘pensamentoemergente, que advoga a possibilidade de produção de fenômenos complexos a partirde interações de elementos simples’.

Maturana e Varela (2001, p. 57), afirmam que “o ser e o fazer de uma unidade autopoiéticasão inseparáveis e isso constitui seu modo específico de organização”. Assumindo essaperspectiva, pode-se dizer que a organização do aparelho nervoso do ser humano, emgeral, foi determinada pelo local [ser] e o fazer [intensidade de Q] dos neurônios. Essaperspectiva está em consonância com o pensamento de Morin (1999), quando esse tratado surgimento do aparelho nervoso: “Nosso tecido nervoso, como nossa pele, diferencia-se a partir de uma região da membrana externa do embrião ou do ectoderma. Significa quese formou, filogeneticamente, a partir das interações com o mundo exterior” (Morin, 1999,p. 63). No ser humano específico, a organização individual do aparelho vai determinar osestados de atividade neuronal deflagrados por diferentes estímulos – Q.7

Morin (1999, p.63) prossegue afirmando que “é nessas condições que um circuitoauto-eco-organizador, indo do sensorium ao motorium, ou seja, dos neurôniossensoriais aos neurônios motores, gerou o cerebrum. Este se constitui pelodesenvolvimento das redes intermediárias entre neurônios sensoriais (percepção) eneurônios motores (ação)”. Fica clara a correlação entre o sistema ϕ freudiano e osensorium de Morin, e entre o sistema ψ e o motorium. Curiosamente, em seu texto,

5 O fato de dizer que alguns neurônios são mais internos não tem a ver com teorias localizacionistas, mas simcom diferenças causadas pela posição anatômica dos neurônios, considerando-se a hipótese de que houveuma alteração progressiva em certas partes do aparelho nervoso decorrente tanto da interação com o ambientequanto de sua função básica de manter a constância no aparelho.6 Para uma instigante relação entre o Entwurf e a filosofia de John Stuart Mill, recomenda-se a obra “Notas aprojeto de uma psicologia – as origens utilitaristas da psicanálise”, de Gabbi Junior, 2003.7 Essa possibilidade tem como conseqüência uma impossibilidade material para a transponibilidade da experi-ência subjetiva, aproximando-se, também, de uma perspectiva dualista, similar à abordagem de ThomasNagel.

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Morin (1999) só fala desses dois sistemas, porém, ao apresentá-los em uma figura, ofaz no formato de um triângulo, cujo vértice faltante – caspita! é o próprio sistema ω.

Figura 1 – Aparelho nervoso no pensamento emergente (Morin, 1999, p.64)

Observa-se que no vértice superior do triângulo foram colocadas as dimensõesdo conhecimento, da inteligência, afetividade e estratégia, todos elementos típicos dosistema ω freudiano, pos se constituírem estados mentais subjetivos, qualidades ou,em última instância, processos conscientes.

Para Teixeira (1998, p.83), o conexionismo ou, funcionalismo neurocomputacionalou, ainda, processamento paralelo distribuído, entende o cérebro humano como “umdispositivo computacional em paralelo que opera com milhões de unidadescomputacionais chamadas neurônios”. Essa perspectiva está em evidente sintoniacom o ponto de vista emergente, conforme expresso por Morin (1999, p. 64): “Oconhecimento cebrebral constitui, globalmente, uma megacomputação demicrocomputações (neuroniais), de mesocomputações (regionais) e deintercomputações (entre neurônios e entre regiões)”.

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Os neurônios se conectam em uma intrincada rede, com camadas hierarquicamenteorganizadas. O estado de um neurônio, em um dado momento, dependerá do estado detodos os outros neurônios com os quais estiver associado. A produção de umdeterminado estado mental depende, portanto, de um processo interativo de ajustamentomútuo entre neurônios (inibições e excitações). Segundo Teixeira (1998, p. 85), “este‘processo de ajustamento’ é também denominado de ‘processo de relaxamento’, numciclo que guarda muita semelhança com o modelo de prazer/desprazer e o princípio deconstância que norteou o modelo hidráulico da mente proposto por Freud”.8

Em suma, o paradigma conexionista associa a cognição à emergência de estadosglobais em uma rede de componentes simples. Essa rede, por sua vez, é governada porregras locais, que determinam as operações dos neurônios individuais, e regras demudança, que vão definir a conexão entre os elementos da rede. Portanto, o paradigmaconexionista assume a premissa de um modelo auto-organizado e emergente de cérebro,o qual, por sua vez, é compatível com a postulação freudiana dos três sistemas neuronais.

Considerações finais

Ao propor os sistemas ϕ, ψ e ω, Freud antecipou conhecimentos que só viriam aser possíveis com a evolução dos recursos tecnológicos, sobretudo as técnicas deneuro-imagem. Contudo, embora se mostrasse satisfeito com sua proposição em termosde sua justificativa funcional, Freud inquietava-se por não conseguir, ao seu juízo,uma hipótese ontológica adequada, tendo que recorrer a uma perspectiva evolucionista,em alguns momentos, ou simplesmente deixar a questão em aberto, em outros.

O presente artigo buscou demonstrar que Freud poderia ter se contentado coma hipótese evolucionista, porém com o ponto de vista da emergência e do conexionismo.Essas abordagens, mais contemporâneas, são claramente compatíveis com a propostafreudiana, podendo ser consideradas hipótese suplementares ao Entwurf econfirmadoras do caráter visionário e atual dessa obra seminal de Freud.

Referências

Freud, S. (1987) Die Abwher-neuropsychosen. Em Gesammelte Werke, Band I. Frankfurt:S. Fischer (Original publicado em 1894).

Freud, S. (1895/1995). Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago.Gabbi Junior, O. F. (2003). Notas a projeto de uma psicologia: As origens utilitaristas

da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.Giannotti, J. A. (1964). John Stuart Mill: o psicologismo e a fundamentação da lógica.

Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 269, 15-18.

8 O modelo freudiano no Entwurf é por vezes considerado uma concepção hidráulica da mente, em virtude,sobretudo, da forma adotada por Freud para explanar sobre os deslocamentos de Q. Segundo MAZLISH (1993),Freud “tended to regard the psyche as a closed energy system, na in his ‘Project for a Scientific Psychology, of1895, treated it more like a steam engine, subject to the Second Law of Thermodynamics (the conservation ofenergy), than like a mental construct” (Mazlish, 1993, 92).

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Johnson, S. (2003). Emergência: A vida integrada de formigas, cérebros, cidades esoftwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Maturana, H. R., & Varela, F. J. (2001) A árvore do conhecimento: As bases biológicasda compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.

Mazlish, B. (1993). The fourth discontinuity – The co-evolution of human and machines.New York: Yale University Press.

Minsky, M. (1985). The society of mind. New York: Touchstone Book.Morin, E. (1999). O método 3 – O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina.Teixeira, J. F. (2003). Mente, cérebro e cognição. Petrópolis, RJ: Vozes.Teixeira, J. F. (1998). Mentes e máquinas: Uma introdução à ciência cognitiva. Porto

Alegre: Artes Médicas.

Recebido em janeiro de 2006 Aceito em março de 2007

André Sathler Guimarães: economista; mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo;mestre em Gerenciamento de Sistemas de Informação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas;doutorando em Filosofia da Mente pela Universidade Federal de São Carlos.

Endereço para correspondência: [email protected]

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A identidade como grupo, o grupo como identidade

Claudio Garcia CapitãoJosé Roberto Heloani

Resumo: O propósito desse artigo é apresentar alguns aspectos das leituras realizadas sobre oindivíduo, as organizações e os grupos. Por meio de alguns autores, como Freud, Bleger, Ciampae Dejours, enfoca-se o fenômeno grupal, a sua formação e seu funcionamento, como também asua relação com o trabalho. Entende-se que o homem não só se vincula às organizações por laçosmateriais e/ou morais, mas especialmente por fatores inconscientes. A organização é o ideal deego a ser alcançado e que é, ao mesmo tempo, inatingível. Assim, estados depressivos ousentimentos de vazio, angústia e até mesmo a morte planejada são decorrências presentes. Asquestões relacionadas ao trabalho pertencem à qualidade do que é considerado essencialmentehumano. Por esta condição, chegamos à conclusão da existência de certa dualidade em que otrabalho pode ser transformado em sofrimento e pura angústia ou ser objeto de investimentoamoroso, representante das forças que atuam em favor da continuidade da vida.Palavras-chave: grupos, identidade, sofrimento.

The identity as group, the group as identityAbstract: The purpose of this article is to present some aspects of the subjects of the readingswe did concerning to the person, the organizations and the groups. Some authors as Freud,Bleger, Ciampa and Dejours helped us to focalize the group phenomenon, considering itsformation and performance as well as its relationship with the work. We understand that theindividual besides attaching himself by material and/or moral ties also does it by unconsciousfactors. The organization is the ideal of ego that must be reached and which is, at the same time,unrealizable. Therefore, depressive states or feelings of emptiness, anguish and even the planneddeath (suicide) are present consequences of all these factors. The questions associated to thework belong to the quality of what is considered essentially human. By this condition webrought to the conclusion about the existence of a certain duality by which the work can bechanged into suffering and complete anguish or, on the other hand, be the object of lovinginvestment, a representation of the forces that act to the advantage of the continuity of life.Key words: Groups, identity, suffering.

Introdução

Quando fazemos um exercício retrospectivo na literatura psicológica que abordaos grupos, logo notamos que os ensaios sobre psicologia, os quais tinham comoobjeto de estudo os pequenos grupos e que levavam em consideração o comportamentoindividual dos membros neles contidos, não passavam, em média, de apenas um aoano, atingindo, porém, a partir de 1950, um ritmo de aproximadamente três artigos porsemana. Esse fato fez emergir na psicologia como ciência um novo campo de pesquisae, em especial, para a Psicologia Social, que tem e teve a partir dessa época, um de seusobjetos privilegiados de estudo, um de seus capítulos mais importantes (Penna, 1980).

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Qualquer abordagem psicológica pode detalhadamente nos mostrar que, quandoresolvemos encarar um indivíduo isoladamente, acompanhar seus passos ao longoda vida, logo vamos nos dar conta de que esse indivíduo tem uma trajetóriaabrangente e que não se limita a si mesmo. Existem formas de se frustrar, de sesatisfazer, de conduzir-se que se relacionam, ou, até mesmo, dependem diretamentede outras pessoas. Assim, praticamente não existe quem encontre uma pessoa isoladade outros seres humanos, pois em algum nível ocorre alguma inter-relação comalguém à sua volta (Freud, 1921/1996).

Quando observamos uma classe de alunos, por exemplo, olhando para o professor,um campo não aparente estrutura e mantém atitudes e seqüências de comportamentos,inclusive a postura física dos alunos, que não depende só e exclusivamente de cadaum, mas das relações estabelecidas intragrupo, intra-sala. Enfim, mesmo se um dosalunos do nosso exemplo estivesse sozinho, apartado um tanto dos outros, sentadoem uma cadeira em silêncio, esse aluno estaria em algum nível se relacionando comoutros e teria sua ação “controlada” por um campo invisível. Os grupos exercem umainfluência preponderante no comportamento das pessoas. Não é nada estranho, quandomudamos de uma certa categoria grupal, apresentarmos paralelamente uma mudançaconsiderável de mentalidade, enfim de atitude (Rattner, 1977).

Estudos que tentam “decifrar” a formação e o funcionamento dos gruposcontinuam sendo de urgente importância, especialmente quando nos defrontamoscom uma nova ordem social, com problemas emergentes que passam, sem dúvidaalguma, pela compreensão da mente grupal.

Algumas contribuições para o entendimento do fenômeno grupalA relação com outros seres humanos, pela própria condição humana, é imposta

desde o nascimento. Klein (1969) aponta que no desenvolvimento psíquico da criança,de sua personalidade, da sua identidade, os objetos que vão fazer parte constituintede seu psiquismo serão objetos de relação.

De fato, a própria mente do ser humano vai se constituindo e se povoando apartir de outros humanos. Primeiro e possivelmente por “pedaços de gente”, “cheirode gente”, “coisinhas de gente”, “cocô de gente”, e depois, evoluindo para pessoasinteiras, não mais em partes, mas grupos e funções organizadas em uma única pessoa,e por conseqüência, grupos de coisas e outras pessoas. Então, eis que a separaçãoentre a identidade individual e a identidade de grupo, de uma certa maneira, não deixade ser superficial, apenas representando, talvez, uma tática para melhor observar ouestudar fenômenos aparentemente isolados (Mezan, 1982).

A distância teórica entre a identidade individual e a identidade de grupo fica assimreduzida. Porém, ao mesmo tempo e na medida em que de fato uma pessoa é inserida emum determinado grupo, por essa condição, pode sofrer uma profunda alteração em seufuncionamento mental, como também, da sua identidade (Freud, 1921/1996).

Como vimos, o ser humano é formado por outros, por objetos que rodeiam suavida, o seu grupo familiar, a escolinha que freqüenta os coleguinhas do bairro, etc.Enfim, a alteridade é uma condição de humanidade e é através dessa condição que umoutro humano nos humaniza (Silva, 1988).

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Responsável pela construção da identidade, o grupo é a célula-base por meio daqual o indivíduo adquire valores, introjeta normas, condutas, adquire necessidades.Estabelece-se assim um movimento dialético contínuo, que se desenvolve por todavida da pessoa, só expirando com sua morte. Através de um processamento contínuode intersubjetividades que passam a transformar-se em elementos socioculturais, osujeito constrói sua identidade individual e grupal (Zimerman, 1993).

Dentro dessa estrutura sociocultural e histórica, os grupos reproduzem ideologias.Dependendo do grau de sua inclusão social, determinado grupo manterá sua identidadeou sofrerá transformação e, esta, por sinal, poderá determinar a manutenção ou não deseu status quo (Rouanet, 1983).

Se fôssemos pesquisar cada grupo humano em sua especificidade, passaríamos,com certeza, a vida toda, e não chegaríamos a finalizar o artigo proposto. São numerososos grupos existentes na nossa sociedade, todos produzindo efeitos e situaçõespsíquicas distintas e com características próprias, especiais, pertencentes, imanentesà identidade de cada um.

Uma pessoa se relaciona com seu inimigo, com sua irmã, com seu irmão, pai, mãe,médico e, com isso, podemos dizer que ela já não mais está sozinha, pois interage emalgum nível com outros. Irmãos de uma mesma família, de um mesmo grupo, formamsubgrupos que atacam e se defendem do pai, da mãe ou do irmão mais novo. Ummembro da família pode aproximar-se da mãe e tentar isolar o pai. Formam-se assimpequenos grupos dentro de um grupo maior que, por isso, têm determinadas suaspossibilidades pelo campo em que se dá sua organização e forma. A todas estassituações e tantas outras correlatas, poderíamos chamar de fenômenos inerentes àpsicologia grupal (Bleger, 1992).

Um grupo tem uma identidade e um psiquismo próprios, uma mente grupal, umamente que exerce uma influência sobre outros grupos, além de influenciar os seuspróprios membros. Dessa maneira, uma pessoa pode sofrer uma profunda alteraçãoidentitária quando contagiada pela mente grupal, abandonar todas as suascaracterísticas e assumir a identidade do grupo que exerce a influência (Bion, 1969).

Freud (1921/1996), em sua tentativa para entender o fenômeno grupal, afirma queas relações libidinais determinam os fenômenos grupais, e também, são e estão na basedo enigmático processo sugestivo existente nos grupos. Não se trata de relaçõessexuais estabelecidas entre os membros do grupo. Muito pelo contrário, se houvesse,no sentido comum da palavra, relações sexuais, o grupo não funcionaria enquanto tal.A libido, por ser energia sexual, pode, contudo, sofrer inibição, desvio das suasfinalidades, permitindo amizades dessexuadas, garantindo a existência do grupo. Assim,as relações amorosas são aquelas que tendem a fazer com que as pessoas se aproximem,vinculando-se por meio de laços emocionais, amorosos, por que não dizer. Então, estáneste fator, para Freud (1921/1996), a essência da mente grupal e da maneira em que ogrupo se forma.

É por meio do investimento, ou melhor dizendo, do desinvestimento libidinal quepoderemos compreender melhor a formação da identidade de uma pessoa. Aidentificação pode ser considerada como o resultado do processo psicológico peloqual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se

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transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidadeconstitui-se e diferencia-se por uma série de identificações (Laplanche & Pontalis,1983).

Desde que a criança nasce, ela se identifica com os objetos, já que ela nãoconsegue estabelecer a diferenciação dela própria, de seu ego e dos objetos que estãoa sua volta. Em resumo, o bebê é o leite que engole e o mundo é, por assim dizer,comido pelo bebê. Neste exemplo bastante concreto da alimentação, o objeto ingeridopassa a ser parte, a ser idêntico a quem o devora. É o primeiro laço que a criançaestabelece e, na medida em que ela se vai desenvolvendo, outros objetos servirão parao processo de identificação. Porém, dialeticamente, na medida em que o objeto passaa fazer parte da criança, torna-se idêntico ao seu ego, o mesmo é destruído enquantoalgo independente da sua existência. Identificar-se é tornar-se igual, e isto implicacerta destruição do objeto identificado (Petot, 1988).

Com essas hipóteses teóricas expostas acima, conclui-se que quando existe umacorrente sexual explícita ela se torna contrária à formação de grupos. Pensamos que omesmo ocorre com a existência do narcisismo, já que para que um grupo exista, torna-se necessário ocorrerem investimentos libidinais, sexuais, com a inibição em suafinalidade.

Caso contrário, sem essas condições, não teríamos como tecer a delicada tramada formação grupal. Pensamos que para existirem laços afetivos, deve, comoobservamos, existir um afrouxamento da dinâmica narcísica, além da redução daambivalência. Um outro fenômeno interessante e que podemos observar, ocorre apartir da identificação entre as pessoas, possibilitada por um certo ideal comum existenteentre elas. Diríamos ser essa uma das condições, necessária e suficiente para a formaçãogrupal.

Resumindo às idéias de Freud, Laplanche e Pontalis (1983) assinalam que o idealdo ego pode ser compreendido como a existência da personalidade resultante daconvergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, comos seus substitutos e com os ideais culturais. Enquanto instância diferenciada, o idealdo ego constitui um modelo a que o indivíduo procura adequar-se.

Nosso ideal de ego é muito variável. Algumas pessoas o têm muito próximo dasua realidade, das suas condições, o que não exige quase nada delas mesmas. Umestado pouco crítico, no qual quase nada pode ser exigido. Já em outros indivíduos,esse ideal é muito elevado, exigente, crítico em relação às conquistas, às coisas dassuas vidas. Nesse último caso, podemos dizer que, se as exigências não foremparalisantes, teremos a possibilidade das buscas ininterruptas de crescimento e deconquista. Aplicando tais formulações à formação de grupos, perceberemos que umapessoa inserida num grupo sente-se forte, resolve todas as coisas, pode enfrentar omundo. De certa forma, substitui o seu ideal de ego por um outro objeto, o líder, porexemplo, e identifica-se com os outros membros, por terem eles também substituído oseu ideal de ego pelo mesmo objeto. Assim, os ideais do grupo passam a ser os ideaisdo sujeito e o sujeito não mede esforços para cumprir com as exigências do grupo, quepassaram, também, a ser suas.

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Desta feita, num grupo a pessoa do líder não diz “olha eu sou a sua parte idealizada,vocês passarão a admirar-me, como a um Deus, como alguém que vocês gostariam deser”. Nesses casos, tudo acontece de uma maneira sub-reptícia, quase queimperceptível, baseada no fenômeno da identificação. No caso dos grupos, o líder,normalmente, é aquele que foi eleito e tem uma certa autonomia de ação que o restantenão possui; mas, por ser a figura que substitui o ideal de todos, faz com que todos seidentifiquem, a partir de seu ideal, uns com os outros.

Não é sem razão que as organizações hipermodernas incentivam as inúmerasformas de liderança e o trabalho grupal, este, por sinal, execrado pelo taylorismo porser tido como inadequado e potencialmente subversivo, ou melhor, a lógica afetivados grupos nem sempre se identifica com a da organização. Aliás, Barnard (1956) eMayo (1968) já haviam intuído isso nas décadas de 1930 e 1940, ao privilegiarem oestudo das organizações informais.

Uma das conseqüências dessa atitude, especialmente no que se refere ao trabalhoe a aquele que exerce uma atividade laboral, está no processo de alienação,especialmente quando ocorre a fragmentação entre mente e corpo, fragmentação estaque tem por finalidade uma despersonalização do indivíduo no trabalho. Dessa forma,conseqüentemente, a pessoa aliena-se, também, em amplos aspectos da sua vida.

Ora, com o trabalho parcelado e repetitivo, não existe um espaço para aintercomunicação entre os trabalhadores, e, menos ainda, para os relacionamentosinterpessoais, boicotando assim, as interações humanas e a formação grupal. Comisso, a resultante é a impossibilidade de uma elaboração de uma ideologia defensiva,pois essa ideologia defensiva, afinal, também depende do grupo para ser elaborada,assim como de inúmeras variações individuais (Dejours, 1992).

Nos grupos, em geral, a identificação através do desejo por um mesmo objetotambém parece ser um fator comum, mesmo naqueles que não apresentam nenhumaorganização ou estrutura. É o caso dos fãs, por exemplo, do U2, Oásis, etc., que formamum grupo cujo desejo é dirigido para um mesmo alvo, e com isso, passam a identificar-se, a se aglutinar por terem um mesmo objeto alvo. Neste caso, o que se observa entreseus integrantes é a existência de uma forte identificação em torno de uma característica,um desejo comum. A partir da presença dessa condição, a formação de laços poderáter, como produto final, a formação de um grupo.

Para Bleger (1989), o ser humano, antes de ser indivíduo, é sempre um grupo,mas não no sentido de que pertence a um grupo e sim no de que a personalidade éum grupo. De uma certa forma, concorda com Freud (1927/1996) quando divide apersonalidade em Id, Ego e Superego, além do fato de que o Ego, como instânciapsíquica, pelo processo de identificação, vai ser “povoado” pelos objetos ou peloshumanos que estão mais próximos. O mais interessante nesse modelo é a sua formaantropomórfica. É um modelo que fornece aos estudos do homem, da sua mente, ametaforização das relações humanas existentes fora da mente. Achamos, porconseqüência, que só poderíamos encontrar fora, como produção da subjetividadehumana, aquilo que foi constituído “do lado” de dentro. Por correlato, se apersonalidade em si já é um grupo, conseguimos compreender também que os grupos

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e as alterações que eles propiciam na identidade de uma pessoa, por mais estranhasque possam parecer à primeira vista, poderão ser partes inerentes e correspondentes,pois, em nossa opinião, o grupo possui uma identidade e a identidade, por seu lado,já é um grupo.

Então, por ser a personalidade um grupo, o indivíduo, antes mesmo de nascertem que corresponder a priori às expectativas de um grupo social e/ou familiar. Comonos aponta Ciampa (1997), a identidade pressuposta é aquela que é de fato esperadaantes do nascimento do indivíduo para que ele a cumpra posteriormente. Freqüentementeos pais têm expectativas e outorgam atribuições sociais para que o filho, que estávindo ao mundo, as realize. Quanto ao seu meio social, valores morais, regras, etc., jáestão prontos, esperando apenas que esse novo indivíduo venha a fazer parte dogrupo que as criou e que ao mesmo tempo foi criado com bases nessas mesmas regrase valores; assim, cada posição que a pessoa ocupa a determina enquanto ser no seioda família e da comunidade, possibilitando que a existência material desta pessoa sejacaracterizada pela multiplicidade, mais precisamente, diante dos vários papéis que vaidesempenhar durante a sua vida como ator social.

Grupo de trabalho: sofrimento, identidade e alienaçãoPara a Psicopatologia do Trabalho não existe uma interação do sujeito com o

trabalho que se constitua de modo estritamente técnico, físico ou cognitivo. Naabordagem psicopatológica, as relações com as pressões técnicas emergem comosujeitas a um contexto intersubjetivo no qual “a relação com a técnica é sempresecundária e mediatizada pelas relações hierárquicas, relações de solidariedade, relaçõesde subordinação, relações de formação, relações de reconhecimento, relações de lutae relações conflituais” (Dejours, 1994, p.138).

As condições de trabalho podem produzir sofrimento mental, caso interfiram nasaúde do corpo. Este sofrimento ocorre quando a relação homem-trabalho é bloqueada,isto é, quando alguém não consegue realizar sua tarefa consoante suas necessidadese desejos psicológicos. O sofrimento daí resultante é produto da articulação entrehistória individual e organização do trabalho, em que o grupo, principalmente na lógicatoyotista, ou modelo japonês, constitui-se como elemento central.

Mas, em contrapartida, o trabalho pode possibilitar uma satisfação sublimatória,contanto que seja livremente organizado ou escolhido, desembocando, assim, emprazer e saúde mental. É o que Dejours (1994) denomina de sofrimento criativo. Naausência dessas condições é que ocorre o sofrimento patogênico, segundo o autor,que consiste em uma desestruturação psíquica.

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Sabe-se que a sintomatologia desses dois tipos de sofrimento, o criativo e opatogênico, manifesta-se consoante a estrutura da personalidade. Todavia, a organizaçãodo trabalho provoca e mantém os estados psicopatológicos, às vezes, por um longoperíodo de tempo. O papel do grupo é de primordial importância nessa relação, comotambém a relação dialética entre indivíduo e sociedade, como já abordado anteriormente.

Como elemento coletivo intermediário na relação indivíduo-sociedade, o grupoabsorve as redes de significados que ele introjeta, constrói e ressignifica em suaspráticas sociais.

Mesmo Freud (1921/1996), podemos colocar, não admite haver uma forte oposiçãoentre psicologia social e psicologia individual. Assim sendo, como pensar emorganização do trabalho sem nos questionarmos a respeito da situação da saúdemental individual e coletiva, no seu sentido grupal? Podemos pensar então, que asconseqüências da organização da produção sobre o grupo de trabalho criam defesaspsíquicas que têm por meta disfarçar, manobrar e esconder uma intensa ansiedadediante de perigos absolutamente reais, objetivos, perfeitamente identificáveis porterceiros, o que não ocorre com o sofrimento. Este, logicamente, mais difícil de serobservado. Vale a pena lembrar que a ideologia ocupacional defensiva, enquantofantasia criada por um grupo ocupacional específico, possui uma cultura própria, rituaisgeralmente funcionais e, portanto, uma particularidade situacional, que não derivasimplesmente de conflitos intrapsíquicos de natureza subjetiva.

(O esforço despendido nas tarefas)

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Para Dejours (1994), não é possível eliminar totalmente o sofrimento no trabalho,porém é possível termos ações capazes de alterar os destinos do sofrimento e favorecera sua transformação. Se o sofrimento for metamorfoseado em criatividade, ele beneficiaa identidade, pois amplia a resistência da pessoa ao risco de desestabilização psíquicae somática. O trabalho se transforma então em um mediador para a saúde. Ao contrário,teremos uma situação inversa, o trabalho funcionando como mediador dadesestabilização e fragilização da saúde, se as escolhas gerenciais, as relações deprodução e a situação geral de trabalho empregarem o sofrimento no sentido desofrimento patogênico. Dependendo de como um sistema laboral é articulado, estepode propiciar tanto a saúde como a patologia. Serão as peculiaridades do sistema queirão definir o futuro do sofrimento.

Assim sendo, torna-se impensável conceber qualquer tipo de culturaorganizacional sem considerar os afetos dos indivíduos que as constituem, pois atensão é constante. Ao vincular-se com um grupo, o sujeito está ao mesmo tempoafastando-se de outro, num contínuo movimento relacional de “ganhos” e “perdas”identitárias. Daí Dejours (1988) advogar um “espaço de palavra”, no sentido de espaçode discussão e, portanto, próximo à noção de “racionalidade comunicacional” concebidapor Habermas (1991) que carrega em seu bojo um ideal de mútua compreensãoargumentativa, o que objetiva um conviver pacífico.

Esse espaço público talvez mitigasse situações patogênicas amplamentecorroboradas pela lógica estabelecida pelo pós-fordismo, lógica esta, por sua vez,fundamentada na ideologia neoliberal, que nos procura inculcar uma aparentenormalidade, ou melhor, pela dissociação entre sintoma e trabalho, atribui distúrbios acausas exclusivamente pessoais.

Como vimos, tal proposição não se sustenta, já que um indivíduo não deixa deser também um grupo e, portanto, causas individuais não podem descolar-se de umcontexto grupal maior.

EDIFÍCIO HIERARQUIZADO

APARELHO PSÍQUICOOU

VIDA MENTAL

PENSAMENTOOU ATIVIDADEINTELECTUAL

CORPO

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Ora, se a lógica taylorista-fordista caracterizou-se pela ampla cisão entrepensamento e atividade física, subjugando o corpo às regras da produção,“paralisando” suas pulsões espontâneas, aumentando o ritmo de trabalho de modo aocupar todo o seu campo de consciência com atividades senso-motoras, as novasformas de produção privilegiam o grupo como elemento “integrador” daquilo que otaylorismo separou. Ou seja, o modelo pós-fordista de produção almeja um trabalhadorcriativo, pró-ativo, capaz de tomar decisões etc., enfim, um indivíduo física e mentalmenteintegrado à ideologia organizacional. E o grupo, paradoxalmente, propicia isto.

Aliás, Bion (1969) já havia formulado a hipótese de que inconscientemente ogrupo funciona como função maternal, perpetuando o superego e o ideal de ego. Ketze Vries (1992) tentam demonstrar como a busca da excelência, no que toca aossentimentos de rivalidade e de competitividade, e, posteriormente, ao sentimento dereparação movido pela culpa, podem ser formas construtivas à inveja que, no nossoentender, propiciam condições para uma melhor motivação. Conseqüentemente, paraum aumento significativo da produtividade.

Ademais, no nosso entender, o homem não só se liga às organizações por laçosmateriais (decorrência natural do pressuposto do homo economicus da abordagemclássica e científica organizacional) e/ou morais (presunção do homo social da escolade relações humanas), mas também e, quiçá, primordialmente por laços inconscientes.

Suas defesas e mesmo seus impulsos não estão presentes na organização pelosimples fato ontológico de ele, sujeito, estar lá. Dialeticamente falando, são por elamodelados e adornados, em um movimento em que a origem do poder está sobremaneirana relação sofrimento – prazer (Rouanet, 2001).

A teoria psicanalítica nos ensina que, a partir da primeira relação objetal, queenvolve obrigatoriamente identificação, projeção e introjeção, outras formas de relaçõesse desenvolveriam e seriam sempre uma tentativa de reapropriação do objeto primário.Ademais, segundo a psicanálise, não há resolução do complexo edípico sem a devidainternalização de leis e normas, o que nos autoriza a concluir que tal interiorização“nasce imperfeita” (Bonetti, Descendre, Gaulejac & Pagès, 1990) e, por este motivo,será fonte de uma ameaça constante, formando, de tal modo, o superego.

Faz-se mister realçar que não há ideação do ego sem que haja um rompimento narelação com a mãe. Em outras palavras, a ideação depende da perda, daí serinfatigavelmente procurada.

Como herdeiro do narcisismo primário, estado este que se dá no início da vida,logo após o nascimento, quando o bebê investe em si mesmo toda sua libido, o ideal deego é ilimitado em desejos de perfeição e poder. Tais situações psíquicas,intrinsecamente vinculadas, acabam sendo reproduzidas e mesmo reforçadas nasinúmeras relações sociais, tal como Proteu, ambicioso e extremamente versátil (Laplanche& Pontalis, 1983).

Talvez isto explique ou pelo menos esclareça em parte a relação do trabalhadorcom a organização em que está inserido, como exemplo da relação sujeito-objeto emque, em “tempos modernos”, o primeiro é transformado em objeto, mediante a fusãodestes dois elementos, fusão esta impulsionada pelo sentimento de culpa e insufladapela “fraqueza do seu ego”, além da influência das condições propiciadas pelo grupo.

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A organização é o ideal de ego a ser alcançado e que, paradoxalmente é, aomesmo tempo, inatingível. Chegar até ela, fundir-se a ela, corresponde a engrandecer-se, a crescer e obter o seu amor, coisa característica de uma dinâmica infantil, por issomesmo, inalcançável. O preço a ser pago para essa finalidade é a dedicação e aobediência exaustiva, irracional, mas bem-vinda, pela inigualável sensação de poderque disso resulta (Freud, 1921/1996).

Esta relação não deixa de ser caracterizada pela ambivalência e pela contradição,pois a mesma organização que ora é sentida como “mãe afetuosa”, às vezes apresenta-se como uma substituta perversa. Traços, por exemplo, parecidos com os desadomasoquismo fazem-se presentes nas organizações, mormente na competitividadeadmitida e legitimada ideologicamente.

Para Pagès e cols. (1990), o sujeito tende a identificar-se com o poder conferidoà organização ou a destruir-se por esse poder, quando a sensação de poder torna-seesvaziada.

Nesta dinâmica extremamente útil à lógica da produção, há uma tentativa dedominar os outros e a si próprio, em uma relação amorosa em que a organizaçãofunciona como um espelho, possibilitando condições para um estado, vamos assimdizer, narcísico, um estado ilusório, imaginário. Perder o emprego, ou melhor, desvincular-se da organização, equivale às vezes a perda de um objeto hipervalorizado e que nãoencontra substituto (Dejours, 1994).

Por conseqüência, temos os estados depressivos, ou seja, o sentimento de vazio,angústia, que chega até mesmo ao limite da morte planejada.

Desta maneira, Freud (1921/1996) com razão aponta que nenhuma outra técnicapara a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfaseconcedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parteda realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece dedeslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam narcísicos,agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentoshumanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está emsegundo plano quanto ao de que este indivíduo goza como algo indispensável àpreservação e à justificação de sua existência em sociedade.

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Conclusão

A organização do trabalho provoca e mantém os estados psicopatológicos, combastante freqüência, por longos períodos de tempo. O papel do grupo é de essencialimportância nessa relação, como também a relação dialética entre a pessoa e a sociedade.O resultado da organização da produção sobre o grupo de trabalho, permite a criaçãode defesas psíquicas, as quais têm por função controlar ou dissimular a ansiedadefrente a perigos de fatos reais ou fantasiados. Com estas formulações, seria impossívelconceber qualquer forma de cultura organizacional sem levar em consideração osafetos das pessoas que da organização fazem parte.

O mundo do trabalho pertence exclusivamente à qualidade do que éverdadeiramente humano, porém, por esta condição, transformá-lo em sofrimento epura angústia, parece ser uma estratégia comparável à morte, às pulsões que jogamcontra a continuação da vida. Trabalho também poder ser alvo de investimentoamoroso, qualidade verdadeira de vida, cuidado e amor.

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Aletheia 26, jul./dez. 2007 61

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Recebido em maio de 2006 Aceito em junho de 2007

Claudio Garcia Capitão: psicólogo; doutor em Educação (UNICAMP); professor da Universidade São Fran-cisco.José Roberto Heloani: psicólogo; doutor em Psicologia Social (PUC/SP); professor da Universidade Estadualde Campinas.

Endereço para contato: [email protected]

Aletheia 26, jul./dez. 200762

Estados de identidade: uma análise da nomenclatura

Maria Aznar-FariasTeresa Helena Schoen-Ferreira

Resumo: O presente trabalho analisa os termos utilizados para traduzir os estados de identi-dade propostos por Marcia em consonância com a teoria psicossocial de Erikson. Discute osignificado dos termos e propõe uma nomenclatura para uso em Língua Portuguesa no Brasil.Palavras-chaves: adolescência, desenvolvimento de identidade.

Identity states: Analyzes of the termsAbstract: The present work analyzes the terms used to translate the identity states proposed byMarcia, according to Erickson’s psychosocial theory. It discusses the meaning of the terms andproposes names for their use in Brazilian Portuguese.Key words: Adolescence, identity development.

Introdução

A formação da identidade está intimamente associada ao estudo da adolescência.Muitos são os autores que estabelecem a aquisição da identidade como a principaltarefa desse período. Por englobar tarefas específicas dos diversos segmentos daformação total do indivíduo, podemos centrá-la com a tarefa principal.

Na realidade deveríamos falar em evolução para indicar o verdadeiro transcurso deum processo que, segundo Erickson (1968/1972), dura toda a vida, chamado por ele deciclo vital. A cada etapa temos características típicas e distintivas que vão sucessivamentesendo transformadas pela ação das vivências da interação indivíduo/meio.

Essa é uma cadeia evolutiva na qual o presente é o elo entre o passado e o futuro.Cada ocorrência funciona ao mesmo tempo como causa e como efeito.

O primeiro autor a falar em desenvolvimento da identidade foi Erikson (1968/1972). Ele propôs dois pólos opostos no desenvolvimento da identidade, que seriam aconstrução da identidade (identity achievement) e uma identidade difusa (identitydiffusion) ou confusão de papéis. A construção da identidade seria o resultado positivodas explorações ocorridas na adolescência e seu conseqüente comprometimento, nofinal deste período, com alguma ocupação ou ideologia.

A Teoria Psicossocial de Erikson, de elaboração bastante complexa, deteve-seno terreno terminológico e estudos de caso. O progresso da teoria Psicossocialdependeu do trabalho preliminar, porém necessário, de desenvolvimento de medidasespecíficas dos conceitos abordados. Marcia, em 1966, publicou um artigooperacionalizando o conceito de identidade e sistematizando, de forma bastante simples,as duas dimensões essenciais na formação da identidade pelo adolescente: exploraçãoe compromisso.

Aletheia, n.26, p.62-66, jul./dez. 2007

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Por exploração, Márcia (1966) entendia o período de tomada de decisão, quandoantigos e novos valores e escolhas são examinados. Época em que o indivíduoativamente se envolve na exploração de alternativas ocupacionais ou ideológicas. Oresultado desejado da exploração é o compromisso com alguma idéia ou papelespecífico.

Por compromisso ou comprometimento, Márcia (1966) supõe que o indivíduotenha realizado uma escolha relativamente firme, servindo como base ou guia para suaação. O comprometimento é medido pelo grau de investimento pessoal que o indivíduoexpressa. Corresponde às questões que mais valoriza e com as quais mais se preocupa,refletindo o sentimento de identidade pessoal.

Para estudar como é o desenvolvimento da identidade, Márcia (1966) utilizoumedidas e critérios congruentes com as postulações da Teoria Psicossocial. Elaborouuma entrevista semi-estruturada, formulando perguntas destinadas a revelar em quemedida os adolescentes estão explorando ou se comprometendo com os temas.Medindo as duas dimensões – exploração e compromisso –, propôs quatro estados deidentidade: foreclosure, moratorium, diffusion e achievement.

No estado de foreclosure, o adolescente persegue metas ideológicas eprofissionais eleitas por outros (pais, figuras de autoridade). O adolescente não explora,porque aceita os valores e expectativas dos outros. Compromete-se com o que foidefinido pelos pais ou pela cultura. Pode ser o estado inicial do processo de formaçãoda identidade adulta, partindo dos valores infantis (Stephen, Fraser & Marcia, 1992).

No estado de moratorium, os compromissos são postergados e o adolescentedebate-se com temas profissionais ou ideológicos. Está explorando as alternativas eainda não escolheu nenhuma.

No estado de achievement, o jovem fez suas escolhas e persegue metasprofissionais ou ideológicas. Explorou e chegou a algum compromisso.

No estado de diffusion, o adolescente não está explorando, embora possa tê-lofeito no passado, e não chegou a nenhum compromisso. Pode ter tentado tratar algumtema ou ignorado, mas não tomou decisões e não está preocupado em fazê-lo. O jovemnão se sente pressionado neste sentido. Pode representar um estágio inicial no processode aquisição de identidade, no período da adolescência inicial, ou representar o fracassoem estabelecer compromissos.

Após esta primeira pesquisa de Marcia, muitos autores continuaram estudandoo desenvolvimento da identidade, inclusive desenvolvendo novos instrumentos.

A tradução dos termos utilizados originalmente por Marcia varia entre os diversosseguidores de língua não inglesa. Matos, Barbosa e Costa (2000) optaram por nãotraduzir, utilizando os termos em inglês.

O presente trabalho tem por objetivo analisar os termos propostos por Márcia(1966) nas diversas traduções dos trabalhos que utilizam a Teoria Psicossocial,procurando propor palavras, em português, que mais se aproximem do significadooriginal. Para tanto, inicialmente foi feita uma busca em livros de desenvolvimento –originais ou traduzidos –, que estão em português ou espanhol, para verificar quais aspalavras escolhidas para traduzir cada um dos estados de identidade. Também foi feitauma busca em artigos sobre identidade escritos em espanhol ou em português, para

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saber quais as palavras que os autores escolheram. Os livros sobre desenvolvimentoque eram de língua inglesa foram traduzidos sob a supervisão de renomadospsicólogos, ligados a importantes instituições de ensino.

Observamos que no estado diffusion não há problemas quanto à escolha dotermo. Os autores usam a tradução exata da palavra ou alguma variante próxima. Apalavra difusão transmite claramente a noção de que o indivíduo não se comprometeucom nenhuma idéia ou papel. Na tradução espanhola de Kimmel e Weiner (1998) tambémé utilizado o termo identidade não estabelecida, bem próximo ao que Erikson colocacomo fracasso na tarefa de construir uma identidade pessoal. Os termos difusão deidentidade ou identidade difusa transmitem a idéia de uma identidade amorfa, nebulosa,sem contorno definido, típico de um estado de indefinição e apatia em relação a idéiasou projetos.

Outro termo que não apresentou dificuldades de tradução foi moratorium. Apalavra moratória transmite a idéia de postergação, de dilatação de prazo para ocumprimento dos compromissos. A adolescência é um período no qual o indivíduopode explorar as diversas opções propostas pela sociedade. Dessa forma, ele vai seconhecendo antes de comprometer-se com alguma ideologia ou papel. É um períodopara integração dos elementos da identidade.

Os termos utilizados para traduzir o estado de foreclosure foram, em espanhol,identidad prematura (Berger & Thompson, 1997; Zacarés, 1997), compromiso(Hoffman, Paris & Hall, 1997), identidad de compromiso (Berk, 2001), cerrazón (Zacarés,1997), hipoteca (Fierro, 2000), identidad hipotecada (Zacarés, 1997) e identidadprestada (Kimmel & Weiner, 1998), e, em português, execução (Schoen-Ferreira, Aznar-Farias & Silvares, 2003), pré-fechamento (Atkinson, Atkinson, Smith, Bem & Nolen-Hoeksema, 2002; Papalia, Olds & Feldman 2006), hipoteca (Atkinson & cols., 2002;Fierro, 1995), cobrança de identidade (Santrock, 2003), insolvência identitária (Sprinthall& Collins, 1999) e exclusão (Cole & Cole, 2004). Entendemos a idéia do tradutor de Colee Cole (2004) ao utilizar a palavra exclusão como a retirada de toda a possibilidade deexplorar opções que não sejam aquelas transmitidas por seu grupo social mais influente.Os tradutores que escolheram a palavra execução fazem quase que uma analogia comos operários, que executam as ordens dos chefes sem terem a possibilidade dequestioná-las. O termo identidade hipotecada transmite a noção de que a casa não lhepertence, você mora numa casa que é de outro. Do mesmo modo, identidad prestada,dá a idéia de que os valores e ideologias são tomados temporária ou permanentementede outrem. Estes dois últimos termos, porém, parecem que a qualquer momento temosque devolver o que pedimos emprestado, ou a casa será tomada. Achamos, no entanto,que a palavra em português, que melhor traduz o termo, é pré-fechamento. O indivíduoem pré-fechamento compromete-se com idéias e valores antes de explorar o campo.Assume compromissos prematuramente, sem ter tido a oportunidade de verificar quaisas idéias ou opções que mais está de acordo com seu modo de ser. Ele pode estar empré-fechamento pelas mais diversas razões: 1) cognitiva, onde o indivíduo não alcançouo desenvolvimento do pensamento abstrato e do raciocínio hipotético-dedutivonecessário para avaliar os campos ideológicos, ocupacionais e interpessoais; 2) social,onde simplesmente o grupo social em que o indivíduo se encontra inserido não oferece

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opções a serem exploradas; ou 3) familiar, onde pais autocráticos não desenvolvem emseus filhos a habilidade de explorar e nem aceitam que estes discutam seus valores ouopções de vida. O termo pré-fechamento transmite esta idéia de fechar compromissosprecocemente, sem que o indivíduo tenha analisado as opções possíveis. O processofoi encerrado antes de ser concluído.

O termo identity achievment, como o anterior, tem diversas traduções. Em espanholencontramos consecución (Berger & Thompson, 1997), construcción de la identidad(Hoffman e cols., 1997), logro de identidad (Berk, 2001; Zacarés, 1997), logro ou estadode logro (Kimmel & Weiner, 1998), realización de la identidad (Fierro, 1998). Emportuguês: obtenção da identidade (Bee, 1996), realização da identidade (Atkinson &cols., 2002; Fierro, 1995; Santrock, 2003; Sprinthall & Collins, 1999), conquista da identidade(Cole & Cole, 2004; Papalia & cols., 2006), construção da identidade (Schoen-Ferreira ecols, 2003), identidade integrada (Hockenbury & Hockenbury, 2003) e aquisição ouconquista da identidade (Cole & Cole, 2004; Papalia & Olds, 2000).

Pensamos que talvez devamos traduzir para a nossa língua o sentido do termooriginal, um que não cause confusão, encerrando nele uma idéia de processo. Ostermos construção e aquisição dão a idéia de processo em andamento, quando osentido de Márcia (1966) é o de identidade estabelecida por intermédio doscompromissos assumidos. Assim propomos o termo identidade estabelecida. O verboestabelecer embute a ação de obter dados para a decisão. Como por exemplo, quandouma mãe fala que quer estabelecer as regras de casa, significa que muitoscomportamentos existem, mas somente alguns serão os escolhidos. No caso da TeoriaPsicossocial, implica em explorar ideologias, papéis e ações para assunção docompromisso.

Concluindo, a nossa proposta é de utilizar para diffusion, difusão de identidade,para o termo foreclosure, pré-fechamento, para o termo moratorium, moratória, e paraidentity achievement utilizar o termo identidade estabelecida.

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Aletheia 26, jul./dez. 200766

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Recebido em setembro de 2006 Aceito em abril de 2007

Maria Aznar-Farias: psicóloga; doutora do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos – Unisantos;coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia “Carolina Bori” da Unisantos.Teresa Helena Schoen-Ferreira: psicóloga; mestre em Ciências Aplicadas à Pediatria pela UniversidadeFederal de São Paulo – UNIFESP.

Endereço para correspondência: [email protected]

Aletheia 26, jul./dez. 2007 67

Teoria do apego: elementos para uma concepção sistêmicada vinculação humana

Fernando Augusto Ramos PontesSimone Souza da Costa Silva

Marilice GarottiCelina Maria Colino Magalhães

Resumo: A importância da teoria do apego para a psicologia do desenvolvimento se deveao fato de esta oferecer elementos conceituais básicos que permitem pensar os vínculosafetivos do sujeito humano ao longo do ciclo de vida. Os postulados de Bowby e Ainsworthtêm se mostrado passiveis dos ajustes demandados pela psicologia contemporânea que temconsiderado o desenvolvimento como um fenômeno multideterminado que sofre a ação dasvariáveis que constitui o contexto no qual o sujeito se encontra inserido. Na perspectivasistêmica, a noção de contexto envolve não apenas sua natureza física, mas também oselementos simbólicos e sociais. Entre estes se destacam os vínculos primordiais estabele-cidos pelo indivíduo. As pesquisas recentes em apego destacam que não apenas os elemen-tos individuais, isto é, as características dos sujeitos envolvidos na relação, mas também osfatores contextuais influenciam na formação dos vínculos afetivos. Assim, a dinâmica doapego está sujeita à ação de fatores de natureza individual, relacional e contextual. Oobjetivo deste artigo é discutir as mudanças em torno do conceito de apego e refletir sobrea necessidade de uma perspectiva integradora dos postulados iniciais com as novas verten-tes sistêmicas e culturais presentes na literatura.Palavras-chave: teoria do apego, relação, sistemas, família.

Attachment Theory: Elements for a systematic conception of humanbonding

Abstract: The importance of attachment theory for developmental psychology refers to thefact that it includes the basic conceptual elements for examining the nature of affectivebonding in humans across the life span. Bowlby’s and Ainsworth’s postulates have not beenamenable to adjustments demanded by contemporary psychology that conceives ofdevelopment as a multidetermined phenomenon affected by variables within the individual’ssocial context. According to the systemic perspective, the notion of “context” goes beyondphysical properties and includes symbolic and social elements of primary inter-individualbonding. Recent research in attachment emphasizes not only individual relationships, butalso considers the contextual factors that influence affective bonding. Thus, the dynamics ofattachment is subject to individual, relational and contextual factors. This article seeks todescribe changes in the concept of attachment and stresses the necessity of an integrativeperspective, incorporating earlier postulates with more contemporary theoreticalreformulations that focus on cultural and systemic constraints.Key words: Attachment theory, relationships, systems, family.

Aletheia, n.26, p.67-79, jul./dez. 2007

Aletheia 26, jul./dez. 200768

Introdução

Desde sua formulação, os postulados da teoria do apego têm fomentado inúmerasinvestigações sobre o desenvolvimento humano e, atualmente, pode-se dizer, é umadas temáticas mais provocantes da Psicologia do Desenvolvimento. A dinâmica destaárea revela-se tanto pela intensa produção teórica, na qual se pode identificar aconvergência de perspectivas de bases biológicas e culturalistas, quanto pelacontribuição prática que tem fundamentado a postura clínica (Bowlby, 1988; Byng-Hall, 1991; Johnson & Whiffen, 2003), educacional (Geddes, 2006) e vários programasde intervenção preventiva (Moore, Moretti & Holland, 1998; Moretti, Holland, Moore& McKay, 2004).

Pode-se dizer que as investigações giram em torno de aspectos clássicos econtemporâneos da teoria do apego. Por aspectos clássicos, entendem-se aquelesque fundamentaram a formulação de Bowlby (1969/1990), como por exemplo, a relevânciada sensibilidade materna para o desenvolvimento dos padrões de apego e a naturezatransgeracional do vínculo mãe-criança. Nesta área situam-se, dentre outros, ostrabalhos de Benoit e Parker (1994), Graves (1976) e de Robson e Moss (1979).

Os aspectos contemporâneos, apesar de sinalizados, de algum modo, por Bowlby(1969/1990), remetem a temas derivados da teoria ou inspirados por esta, convergindocom outras áreas da psicologia, como por exemplo, as relações maritais e apego, apegoe competência social, apego e relações entre irmãos, apego e contexto dedesenvolvimento e apego e cultura (Braungart-Rieker, Courtney & Garwood, 1999;Erdman & Caffery, 2003; Harwood, Miller & Irizarry, 1995; Rosen & Burke, 1999; VanBakel & Riksen-Walraven, 2002; Van Izendoorn & cols., 2000).

Além da tendência contemporânea em investigar temáticas geradas pelo modode vida moderno, nota-se que as mudanças internas na área de apego acompanham asmudanças paradigmáticas da produção de conhecimento científico. Os herdeiros deBowlby e Ainsworth têm se debruçado sobre questões epistemológicas centrais parao futuro da teoria, como por exemplo, as implicações da natureza conceitual de apegoadotada nas diferentes pesquisas. A Edição Especial de 2002 do importante periódicoFamily Process tornou-se um marco importante na área. Seu conteúdo buscavaexpressar, com base em resultados consistentemente obtidos por meio de diferentesmetodologias, os elementos que se mantiveram e os que foram adicionados à teoriadesde sua formulação original.

Inspirado na edição especial de Family Process, o objetivo do presente artigo é,a partir de uma reflexão sobre como o conceito de apego tem sido tratado na literatura,discutir as perspectivas colocadas pelas demandas de outras disciplinas, pelo própriomovimento interno da área e pelas mudanças relacionais em curso na modernidade.Entende-se que tal reflexão seja útil para repensar, de modo mais amplo, as variáveisenvolvidas no fenômeno da vinculação humana, possibilitando, deste modo, propostasteórico-metodológicas compatíveis com tal complexidade.

A partir de um breve histórico da teoria do apego, será discutida a tendênciacontemporânea dos estudos desta área, destacando as mudanças internas à teoria,

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principalmente no que se refere à definição do conceito de apego. Neste sentido, serádestacada a contribuição de estudos envolvendo a família para a análise dos vínculosmãe-criança.

Breve histórico da teoria do apegoInfluenciado pela etologia, Bowlby (1969/1990) postulou que pressões evolutivas

levaram os filhotes, particularmente os mamíferos, a desenvolverem estratégiascomportamentais peculiares em sua relação com o cuidador, tal como manter-se próximoda figura de intenso cuidado (figura de apego). Assim, a função básica do apego nasdiferentes espécies e, com destaque para a relação mãe-bebê primata, seria a proteçãocontra os predadores.

Adicionalmente, Ainsworth, Blehar, Waters e de Wall (1978) sugeriram que afigura de apego funcionaria, também, como uma base-segura que permitiria à criançaexplorar o ambiente. O apego pode, deste modo, ser compreendido como o conjuntode comportamentos do bebê que se caracteriza não somente pela busca de proximidadefísica da mãe, mas também pela exploração do ambiente. As relações estabelecidasnestes contextos darão base à organização de modelos de funcionamento psicológico(working models) e a estilos de regulação de emoções, os quais, posteriormente,poderão ser generalizados para situações similares. Bowlby (1969/1990) conceitua osmodelos de funcionamento como regras aprendidas que governam os processosexternos e internos de informação sobre as relações.

Segundo a teoria do apego, a busca de proximidade física da mãe e a exploraçãodo ambiente surgem no decorrer do primeiro ano de vida e permanecem intensasdurante a primeira infância. Aos três ou quatro anos, esses comportamentos vãodiminuindo e sua forma de expressão se modifica (Ainsworth & cols., 1978). Em umprimeiro momento, as crianças são predispostas a formar vínculos afetivos com umpequeno número de cuidadores, procurando-os como uma fonte de conforto quandoas condições são ótimas, e como fonte de segurança em momentos estressantes.Posteriormente, os modelos internos de funcionamento e os estilos de regulação deemoções, desenvolvidos com as relações iniciais, darão base para o estabelecimentode relações com outras pessoas, inclusive com parceiros de brincadeiras (Ainsworth& Bowlby, 1991).

De acordo com Countreras, Kerns, Weimer, Gentzler e Tomich (2000), a teoria doapego entende os estilos de regulação de emoções como processos intrínsecos eextrínsecos responsáveis pelo monitoramento, avaliação e modificação das reaçõesemocionais. Nesse sentido, para Bowlby (1969/1990) as relações de apego segurocolaboram com o desenvolvimento de modelos internos caracterizados por valorizaçãoe apoio. Nessas relações, as crianças aprendem expectativas sociais positivas e umentendimento rudimentar de trocas recíprocas. Por outro lado, nas relações de apegoinseguro não há predomínio de sentimento de segurança e valorização. Em função deinterações aversivas, a criança pode desenvolver expectativas negativas,especialmente, em torno da disponibilidade dos outros em momentos de necessidadee estresse, evidenciando, posteriormente, insensibilidade, raiva, agressão e falta deempatia nas relações subseqüentes.

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A definição do conceito de apego possibilitou a Bowlby e colaboradoresexplorar mais detalhadamente os fatores que o determinam. Uma das noções maisbem aceitas foi a formulada por Ainsworth (1969), que considera estar o padrão deapego diretamente ligado à qualidade da relação estabelecida entre a mãe e a criança.Para verificar tal relação, a autora construiu um instrumento para coleta de aspectosmais qualitativos do padrão de apego infantil, a “Situação do Estrangeiro”. Combase nos dados obtidos, Ainsworth classificou as crianças em seguramenteapegadas e inseguramente apegadas. Bebês seguramente apegados constroemum modelo de mãe disponível mesmo quando não podem vê-la, e é por isso queprotestam menos na separação e são mais receptivos no reencontro. Por outrolado, bebês inseguramente apegados choram muito na ausência e mesmo napresença da mãe.

Para Ainsworth (1969), o choro é indicativo da ansiedade que está por trás detoda insegurança. Assim, classifica os bebês inseguros em ansiosos/esquivos eansiosos/ambivalentes (ou resistentes). Os ansiosos/esquivos comportam-se de modosemelhante na presença da mãe e do estranho. Na separação são indiferentes à suasmães e no reencontro não buscam conforto nestas, colocando-se em posição contráriaa elas ou movendo-se na direção oposta. São também mais propensos acomportamentos de raiva. Os ansiosos/ambivalentes, ou resistentes, mostram limitadocomportamento exploratório, sempre demonstram aflição e choro diante da separação,e no reencontro, exibem uma mistura de raiva e busca de proximidade, além do fato desuas mães não conseguirem confortá-los ou acalmá-los.

Embora haja uma grande concordância no que diz respeito à classificaçãodesenvolvida por Ainshorth (Belsky, Campbel, Cohn & Moore, 1996; Benoit & Parker,1994; Main & Solomon 1990), o mesmo não pode ser afirmado com relação ao constructodo apego. Se por um lado as formulações de Bowlby e Ainsworth não impediam apossibilidade de analisar o apego a partir de outras perspectivas, seus enfoquespriorizavam os aspectos individuais do processo de vinculação, os modelos internosde funcionamento que estruturam o modo como o sujeito se relacionará em outroscontextos. Atualmente, nota-se a busca de perspectivas que ofereçam uma visão maisrelacional e contextual.

A natureza relacional e contextual do apegoA partir da década de 80 um conjunto de trabalhos apresenta novas proposições

quanto à dinâmica do apego. Partindo da noção tradicional de que os padrões derelação mãe-criança decorrem, em grande parte, das características maternas,principalmente da sensibilidade da mãe, Claussen e Crittenden (2000) sugerem que,embora tenha sido freqüentemente tratada como uma variável intra-pessoal, a leituracuidadosa da definição de sensibilidade materna apresentada por Ainsworth (1969) é,de fato, um constructo diádico. Nesta perspectiva, Oppenheim, Koren-Karie e Sagi(2001) consideram que a sensibilidade materna, e conseqüentemente, os padrões deapego, só podem ser compreendidos quando imersos no contexto relacional doencontro do cuidador com criança específica.

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Assim, a sensibilidade materna deixa de ser considerada como influenciada apenaspela história dos vínculos afetivos da mãe (Bowlby, 1969), para ser compreendidacomo resultante das características dos pares que compõem as interações cuidador-criança. Ou seja, a sensibilidade dos pais é influenciada não apenas por sua históriaindividual, mas também pela capacidade infantil de sinalizar aos cuidadores suasnecessidades (Claussen & Critteden, 2000).

Seguindo a noção de que as características infantis influenciam o desenvolvimentodos padrões de apego, inúmeras pesquisas foram conduzidas com o objetivo de identificara relevância de fatores intrínsecos à criança, como por exemplo, gênero, temperamento,idade e ordem de nascimento (Belsky & Rovine, 1987; Fagot & Kavanagh, 1993; Krepnner,1988; Kreppner, Paulsen, & Schuetze, 1982; Lavelli & Fogel, 2002; Mangerlsdorf, Gunnar,Kestenbaum, Lang & Andréas, 1990). No geral, os resultados indicam que algumascaracterísticas infantis, tais como temperamento, irritabilidade, falta de atenção eimpulsividade, interferem nas relações entre pais e filhos.

Além das preocupações com papel infantil no desenvolvimento do apego, aqualidade dos vínculos conjugais também vem sendo bastante investigada. Estesestudos relacionam o processo de apego com a qualidade dos vínculos conjugais,associando dois níveis de relação, isto é, o vínculo marital e o vínculo parental. SegundoFrosch, Mangelsdorf e McHale (2000), casais que partilham emoções positivas emseus casamentos e se engajam em trocas afetivas satisfatórias têm criançasemocionalmente seguras, capazes de expressar sentimentos adequados e de regularsuas emoções negativas no contexto das relações.

Para além da inter-relação entre a qualidade da relação conjugal e padrões deapego, Dunn, Deater-Deckard, Pickering e Golding (1999) tentaram relacionar osubsistema marital com o subsistema fraterno, avaliando a interdependência entrevariações nas relações entre os irmãos, características iniciais das relações maritaise relações atuais da mãe e do pai com a criança. A qualidade das relações maritaisestava associada às diferenças individuais do comportamento das crianças: baixaafeição e altos níveis de hostilidade entre os pais se correlacionavam com oscomportamentos negativos do irmão mais velho dirigidos ao mais novo. Por outrolado, a amizade do mais velho com o mais novo estava associada às característicaspositivas da relação marital.

De forma similar, conflito e a hostilidade entre os irmãos podem conduzir a conflitosentre a criança com a mãe ou com o pai, e vice-versa e, por sua vez, relações positivase amistosas entre irmãos podem contribuir para e que os pais sejam menos irritados epunitivos nas interações com suas crianças (Dunn & cols., 1999).

A perspectiva relacional permite que o pesquisador vá além da díade mãe-criançaou cuidador-criança. Mais do que pensar o apego enquanto um fenômeno relacional,essa visão analisa o processo em seu contexto. Embora as pesquisas indiquem asrelações maritais como constituintes do núcleo relacional da vida familiar, a análisecontextual permite pensar o apego associado a fatores que extrapolam o contextofamiliar. Kreppner (2000) e Tudge e colaboradores (2000) indicam que além das figurasparentais, contextos como a escola, o trabalho, a família estendida, entre outros, exerceminfluência sobre o desenvolvimento infantil.

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Braungart-Rieker e colaboradores (1999) investigaram o papel desempenhadopelos arranjos familiares para o desenvolvimento da relação mãe-criança. Os resultadosindicaram que em famílias cujas mães de meninos trabalhavam o dia todo, medidassobre sensibilidade materna não prevêem o apego seguro. Por outro lado, para meninasou crianças em famílias cujas mães trabalhavam somente um horário, a sensibilidadefoi associada ao apego seguro. Neste sentido, os efeitos da sensibilidade maternadependem dos arranjos familiares dos grupos investigados. No entanto, os autoressugerem que a forte relação entre apego e sensibilidade materna, encontrada no modelooriginal da teoria do apego, talvez seja decorrência da grande quantidade de estudosbaseados no contexto de família tradicional.

A discussão sobre o impacto do tempo ocupado com atividades de trabalhosobre a relação mãe-criança aponta a influência do estresse no processo de apego.Resultados obtidos por Vaughn, Egeland, Sroufe e Waters (1979) indicam quecuidadores estressados apresentavam mais dificuldade em responder sensivelmenteàs demandas infantis. Porém, o estresse parental pode atuar de modo menos intensoquando os cuidadores dispõem de uma rede social que lhes ofereça apoio(Crockenberg, 1981).

Apesar das tentativas de olhar o fenômeno do apego de modo contextualizado,Donley (1993) privilegia o espaço da família e ressalta a escassez dos estudos quese propõem investigar o apego nesse micro-contexto. Embora a perspectivacontextual esteja apoiada no modelo sistêmico, que considera o apego como umconstructo embutido numa rede dinâmica de relações, para Donley (1993), oconhecimento disponível ainda não expressa a compreensão de todos oscomponentes da rede na qual o apego está inserido. Assim, entender ofuncionamento do sistema familiar em sua totalidade seria um requisitoindispensável para a discussão dos padrões de apego.

A natureza sistêmica do apego: um olhar sobre a famíliaA visão da família como um “nicho ecológico primário” que ocupa papel de

destaque na história de vida do sujeito não é recente. Contudo, foi somente quando aetologia humana enfatizou a importância dos cuidadores primários para odesenvolvimento infantil, que a família foi descoberta pelos pesquisadores e passou aser considerada como um contexto diretamente associado ao desenvolvimento humano(Kreppner, 2000).

Enfatizar o estudo da família como o contexto no qual o apego se desenvolve,demanda mudanças teórico-metodológicas nem sempre assimiladas pelospesquisadores. Segundo Donley (1993), os estudos de apego no contexto familiar têmfocalizado apenas uma ou duas relações. Mesmo as pesquisas que associam vínculoparental e relação conjugal, que constituem uma forte área de investigação, descrevem,na maioria das vezes, o fenômeno em um dado momento pontual, ou seja, nãoconseguem identificar como as relações são afetadas por fatores externos no decorrerdo tempo.

Um segundo problema apontado por Donley (1993) nas pesquisas que investigamos padrões de apego na família, refere-se à natureza conceitual subjacente ao

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delineamento metodológico adotado. Em sua maioria, estes estudos fundamentam-seno modelo sistêmico e reconhecem a família como um todo integrado, masmetodologicamente, continuam a tratar as relações como diádicas. Muitos autores(Cowan, 1997; Donley, 1993; Marvin & Stewart, 1990; Minuchin, 1985) apontam queobservações em contextos diádicos geram informações diferentes daquelas obtidasem relações triádicas e em contexto familiar mais amplo, o qual permite um entendimentomais integrado dos padrões de apego. Por exemplo, analisar a relação pai-criançadissociada da relação mãe-criança não permite identificar os elos sistêmicos existentesentre elas, impedindo a compreensão destas relações como parte uma das outras. Alémdisto, todas as relações dentro desta configuração não são igualmente influenciadas.

Os achados recentes apontam para uma perspectiva sistêmica coerente com omodelo bioecológico de análise proposto por Bronfenbrenner (1996), que permite aopesquisador visualizar os diferentes níveis contextuais que atuam sobre o processo deapego. O modelo é formulado com base em quatro aspectos que consideradosfundamentais: pessoa, processo, contexto e tempo.

Os níveis variam desde os mais imediatos, denominados por Bronfenbrenner demicrossistemas, onde se estabelecem, por exemplo, as relações face-a-face, até aquelesníveis mais distais, denominados macrossistemas. Neste nível, as relações sãoinfluenciadas por elementos simbólicos, tais como as crenças e valores, ou seja, pelacultura.

Entre o microssistema e o macrossistema, Bronfenbrenner (1996) propõe outrosdois níveis, o mesossistema e o exossistema, sendo o primeiro constituído pelas trocasentre dois microssistemas, e o segundo, por contextos onde o sujeito dodesenvolvimento não se encontra diretamente envolvido, mas é influenciado pelasrelações que aí se estabelecem.

Afora estes quatro níveis contextuais, Bronfenbrenner (1996) ainda destaca ocronossistema, caracterizado pela passagem do tempo que pode se dar em dois níveis:o tempo histórico-social e o tempo do indivíduo, sua ontogênese.

A proximidade entre teoria do apego e teoria dos sistemas tem gerado uma dasvertentes mais efervescentes na psicologia do desenvolvimento. O modelobioecológico, dada sua perspectiva sistêmica, contribui com as pesquisas sobre apegoao oferecer uma estrutura organizacional para os fatores que podem explicar o processode formação dos vínculos humanos. Recentemente Kozlowska e Hanney (2002)sugeriram que a análise da relação entre apego e teoria dos sistemas pode ocorrer demodo mais apropriado a partir de uma avaliação em rede.

O modelo de rede proposto por Kozlowska e Hanney (2002) parte de umacaracterística fundamental dos sistemas vivos: tendência a formar estruturasconstituídas por diferentes níveis de sistemas dentro de sistemas (Capra, 1997). Aindaque cada sistema permaneça distinto, ele é também, parte de um todo mais complexo, oqual vai torná-lo diferente de si mesmo. Neste sentido, os níveis de complexidadeestão inter-relacionados e interconectados, isto é, um não pode existir sem o outro.Como cada estrutura sistêmica conecta-se a outras estruturas de diferentes modos, oconhecimento acerca de um fenômeno será sempre aproximado e nunca absoluto.

Compreender a díade e os sistemas familiares como distintos e, ao mesmo tempo,

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interconectados, além de permitir a integração da teoria dos sistemas com a teoria doapego, implica a habilidade de reconhecer cada nível como distinto e interconectadocom outros níveis. As relações diádicas, triádicas e familiares representam estruturassistêmicas distintas que possuem propriedades e leis únicas. Cada um destes níveisconstitui uma parte do todo e, simultaneamente, constituem um todo. Deste modo, umconstruto que descreva os padrões de interação de uma díade provê informações úteise únicas para a compreensão do todo, mas, por outro lado, não permite capturar ospadrões de interação na família. Portanto, é necessário compreender não apenas aspropriedades únicas da díade e da família, mas também as relações entre estes doisníveis de complexidade.

Hill, Fonagy, Safier e Sargent (2003), ressaltando a carência de uma teoria queajude a pensar a interdependência entre os processos familiares e individuais, sugeremque a teoria do apego seria uma ferramenta teórica adequada a tal propósito, uma vezque os processos de apego podem ser descritos nos níveis individual, diádico e familiar.Para esses autores, as experiências partilhadas sistemicamente e aquelas vividasindividualmente são complementares. Ainda segundo os autores, esta perspectivacomplementar pode ser compreendida como uma visão ecológica do apego. O termoecologia é usado para fazer referência à combinação dos aspectos interacionais erelacionais de um fenômeno, no caso, do apego, que se movimenta dentro do contextofamiliar. A perspectiva ecológica do apego pode ser identificada em inúmeras pesquisascujos objetivos vão além do contexto imediato no qual o padrão de apego se processa,ou seja, vão além da família. Tais estudos estendem-se para espaços em que o grupofamiliar se encontra inserido, isto é, na cultura.

Ecologia do apego: família e culturaSegundo Tudge e cols. (2000), cultura consiste em um grupo de pessoas que são

vistas por outros, ou por si mesmas, como pertencentes a um agrupamento porpartilharem valores, crenças, práticas e recursos, os quais, por sua vez, são transmitidosaos mais jovens do grupo. Os elementos constitutivos dos grupos permeiam as relaçõesentre cuidador e criança e estabelecem modos peculiares de construção e manutençãodos padrões de apego. Estes modos, também denominados de práticas, assim como asrepresentações em torno dos vínculos, constituem o que pode ser chamado de culturade apego.

Com base na noção de cultura de apego, Sagi e cols. (1997) identificaram aspráticas noturnas de cuidados dispensados aos bebês nos kibutzs israelenses. Nestes,as crianças, no período da noite, são separadas de suas mães e colocadas para dormirem espaços coletivos sob os cuidados de uma única pessoa que muda semanalmente.Embora sejam membros regulares do kibutz, essas pessoas não são os familiares e,dado o grande número de crianças, torna-se impossível responder prontamente àsnecessidades infantis. As conclusões indicaram que este modo de organizar a rotinanoturna dos bebês configura um hábito compatível com representações mais geraisem torno do papel dos pais no desenvolvimento infantil, assim como no que se refereàs necessidades reais da criança.

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As peculiaridades culturais relativas às práticas de cuidados também foramdescritas por Vereijen, Riksen-Walraven e Kondo-Ikemura (1997), que investigaram osníveis de proximidade e distanciamento de mãe americanas e japonesas. Os resultadosindicaram que os padrões de interação de mães americanas com seus bebês envolvemmenos contato físico, enquanto as mães japonesas desenvolvem modos mais proximaisde interação, com intenso contato físico.

Diante de padrões relacionais distintos, parece óbvio supor que os padrões deapego sejam revelados em comportamentos infantis peculiares, compatíveis com aspráticas adotadas por seus cuidadores nos diferentes contextos culturais. Nestesentido, Vereijen e cols. (1997) apontam para a necessidade de as pesquisas sobreapego utilizarem métodos de investigação adaptados às característicascomportamentais de cada cultura, sem, no entanto, perder de vista as crenças e osvalores de cada contexto, pois os indicadores de sensibilidade materna ou de apegopodem diferir em função da cultura.

Considerações finais

Partindo da ênfase nos aspectos individuais do construto de apego, os quaiscaracterizavam o sujeito em termos de modelos de funcionamento mental, passandopelo enfoque em termos relacionais essencialmente diádicos (relação mãe-criança) echegando, finalmente, a uma abordagem sistêmica que considera diferentes níveis deinfluência sobre as relações, os construtos básicos da teoria do apego passaram porvárias re-estruturações.

No entanto, tal re-estruturação, em nosso entender, não reflete descrédito ouinvalidação de seus pressupostos básicos. Toda sua fundamentação, ancorada emtermos evolutivos e funcionais, demarca um fenômeno de relevância inquestionávelpara a compreensão da constituição de nossa espécie e, por esse motivo, apresentaimplicações práticas indiscutíveis.

Esse processo de transição que a teoria do apego atravessa, pode estar refletindoas mudanças mais gerais pelas quais passa a Psicologia do Desenvolvimento. Nasúltimas décadas, impulsionado por novas descobertas científicas, o conceito dedesenvolvimento adquiriu uma versão mais complexa, passando a ser visto como umfenômeno multideterminado (Bronfenbrenner & Evans, 2000), sujeito à ação de fatoresde natureza distinta e que variam no decorrer do tempo. Esta perspectiva rompe com astendências unilaterais que marcaram a Psicologia ao longo de sua história, caracterizadaora pela ênfase nos aspectos biológicos e inatos, ora pela ênfase sobre fatoresambientais e culturais.

A ampliação simultânea do conceito de desenvolvimento e de apego faz sentidona medida em que se pensa neste último como um processo básico que permitecompreender as mudanças cognitivas, emocionais e sociais do sujeito emdesenvolvimento.

Por sua vez, a sofisticação teórico-conceitual acarretou um aprimoramentometodológico que possibilitou enfrentar essa empreitada. Entende-se que o modelo

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bioecológico de Bronfrenbrenner (Bronfenbrenner, 1979/1996; Bronfenbrenner &Ceci, 1994) permitiu a sistematização dos diferentes níveis contextuais envolvidosna formação dos padrões de apego. Olhar para a vinculação humana em multiníveisecologicamente situados e embutidos em um sistema dinâmico de rede de relações,ocasionou maior compreensão da complexidade do fenômeno do apego.

A compreensão do apego humano, apesar da recente introdução de variáveismais complexas no modelo teórico, não pode, de modo algum, prescindir dascontribuições originais da teoria, principalmente de seus fundamentos etológicos(biológicos), que possibilitam a própria existência desse fenômeno. No entanto, Belsky(1995) considera que o conceito de contexto adotado por Bronfenbrenner não exploraseu aspecto evolutivo. Neste sentido, além da estrutura apresentada no modelobioecológico, Belsky (1995) enfatiza a contribuição da teoria evolucionista para acompreensão e discussão do fenômeno. Portanto, a tarefa posta para a teoria do apegoconsiste em integrá-la ao modelo sistêmico sem abandonar os fundamentosevolucionistas que lhe dão sentido.

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Recebido em novembro de 2006 Aceito em abril de 2007

Fernando Augusto Ramos Pontes: doutor em Psicologia Experimental (USP); professor da UniversidadeFederal do Pará; orientador do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento.Simone Souza da Costa Silva: doutora em Psicologia (UNB); professora da Universidade Federal do Pará;Marilice Garotti: doutora em Psicologia Experimental (USP); professora da Universidade Federal do Pará eorientadora do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento.Celina Maria Colino Magalhães: doutora em Psicologia Experimental (USP); professora da UniversidadeFederal do Pará; orientadora do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento.

Endereço para correspondência: [email protected]

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Psicologia social da saúde: tornamo-nos eternamenteresponsáveis por aqueles que cativamos

Adriane Roso

Resumo: Esse é um artigo de cunho teórico no qual foram exploradas algumas questões relaci-onadas à ética dos psicólogos, bem como suas responsabilidades frente à saúde coletiva.Contextualizou-se o mundo em que vivemos, sua filosofia e seus modos predominantes depensamento. Desenvolveram-se algumas idéias sobre moral, ética e consciência, chamando aatenção para o fato de que esses conceitos estão relacionados à uma cosmovisão específica – acosmovisão individualista-liberal. Foi demonstrado que a psicologia social da saúde não cons-truiu mudanças radicais no seu percurso, pois muitos psicólogos sociais da saúde ainda mantêmsuas práticas focadas principalmente na mudança do comportamento dos indivíduos. Por fim,sugeriu-se um modelo de psicologia social da saúde crítica.Palavras-chave: psicologia social, psicologia da saúde, saúde coletiva, ética.

Social health psychology: We become responsible, forever, for thosewe have tamed

Abstract: This is a theoretical article in which it was explored some queries related to the ethicsof psychologists, as well as their responsibilities towards public health. It was contextualizedthe world we live in, its philosophy and its predominant ways of thinking. It was developed adiscussion on moral, ethics and conscience, calling attention to the fact that these concepts arerelated to a specific cosmovision – the liberal-individualistic cosmovision. It was demonstratedthat the Social Health Psychology didn’t constructed radical changes in its stream, becausemany social health psychologists kept focusing their practices mainly on changing individualbehaviors. In the end, It was suggested a critical model of Social Health Psychology.Key words: Social psychology, health psychology, public health, ethic.

Introdução

Cada vez mais, a atuação de psicólogos na área da psicologia da saúde vemsendo questionada nos últimos anos (Spink, 1992), e um número crescente depsicólogos tem se interessado em atuar nesse campo. De fato, essa especialidade vemse mostrando como uma das principais áreas de inserção do psicólogo no cenáriolatino-americano, sendo a especialidade que mais tem crescido neste subcontinentenos últimos 20 anos (Conselho Federal de Psicologia, 2005).

Felizmente, juntamente com a prática dessa especialidade cresce também a críticaa essa prática. Nos últimos tempos, tem-se refletido sobre a prática de psicólogos nocampo da saúde (Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública, 2006 e I OficinaNacional da ABEP, 2006). Podemos perceber que, embora todos demonstrem vontadede que a psicologia da saúde seja uma prática verdadeiramente emancipadora, ainda

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continuamos presos em modelos que priorizam a modificação de comportamentos,mesmo quando trabalhamos sob o prisma da prevenção.

É objetivo deste artigo ampliar a discussão sobre os modos de atuação dopsicólogo da saúde. Pretende-se aprofundar algumas questões relacionadas à éticados profissionais da saúde, mais em específico, dos psicólogos, e questionar sobrequal a responsabilidade dos psicólogos frente à saúde coletiva. A pergunta que vainortear a discussão é: O que nos pode dizer a psicologia quanto à responsabilidadefrente à saúde coletiva?

Entende-se que ter responsabilidade por alguém significa responder publicamentea isso; significa que não se está sozinho no mundo e que cada pessoa tem que prestarcontas de seus atos; tem que cumprir seus compromissos assumidos frente à sociedade.Quando alguém recebe o título de psicólogo, assume a responsabilidade pública decuidar do Outro. Então, parte-se do pressuposto de que os psicólogos e as psicólogastêm algo a dizer sobre isso.

Por primeiro, tentar-se-á mostrar que no mundo em que vivemos prepondera umavisão individualista-liberal, a qual estimula a produção de indivíduos sujeitados a umaética liberal e desumanizadora. Será ressaltada a relação entre consciência, moral/éticae responsabilidade, e será pontuado que a psicologia e a psicologia social nãoconseguiram estabelecer práticas que se libertassem dessa cosmovisão. Ao final, seráapresentada uma proposta de ação para a psicologia social da saúde, a qual se sustentanuma cosmovisão comunitária-solidária. Esta se apóia especialmente numaepistemologia crítica, propositiva e utópica, na análise das relações de poder e na éticado cuidado.

O mundo em que vivemosTodas as pessoas elaboram, ao longo de suas vidas, uma visão de mundo.

Entende-se que uma visão de mundo é como alguém enxerga, percebe, e interpreta aspessoas e as coisas que o rodeiam, ou seja, é como alguém dá sentido e significadoàquilo que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, essa visão de mundo é construída a partirde uma prática, de um “se colocar” no mundo; é uma construção dialética entre enxergar,perceber e agir.

O ser humano, ao buscar um sentido ao seu mundo vivido, constrói modos deconceber e de interagir com o Outro; constrói uma filosofia de vida que sustenta ejustifica a concepção adotada. Vai adquirindo convicções no seu modo de agir edefendendo-as, consciente ou inconscientemente. Assim, o modo como alguémcompreende o mundo vai delineando o modo como ele vai tratar as pessoas, como vaise comportar, como serão suas atitudes. O seu “eu” (as suas decisões, o seuposicionamento a outros ethos) vai ter como colchão o social, isto é, ele está sempreinserido em um contexto que é construído histórico-culturalmente. É algo que estácolado ao social.

A visão de mundo é algo pessoal, intransferível e subjetiva, mas ela passa, aomesmo tempo, pela subjetividade social. Isso significa que uma pessoa não é apenaso resultado de uma série de elementos biológicos, genéticos; ela é, também, o resultado

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de milhares de relações que ela estabelece com o mundo que a rodeia. Justamente porisso, no cotidiano das pessoas, surge, continuamente, uma série de desafios e problemasque precisam ser enfrentados ou resolvidos, que se expressam em perguntas dessetipo: Como devo agir em dada situação? Devo falar sempre a verdade? Preciso respeitaraquelas pessoas que não me respeitam? No caso da psicologia, por exemplo, posso meperguntar: É certo negar atendimento àquelas pessoas que não podem pagar? É certosugerir o aborto? É certo uma análise interminável?

Todas essas perguntas têm a ver com o devo-ou-não-devo, com o certo e com oerrado, têm a ver com o sentido prático da vida e temos que resolvê-las, de uma formaou de outra. Aí, as pessoas se defrontam com a necessidade de pautar o seucomportamento por normas e regras que julgam serem mais apropriadas de seremcumpridas. No fundo, há uma busca constante de tentar encontrar a melhor maneira dese viver em sociedade, a melhor maneira de ser feliz. Nessa busca, as pessoas recorremàs normas, formulam juízos, criam argumentos para justificar o caminho seguido.

Essas normas e juízos de valores propiciam que as pessoas compreendam quetêm o dever de agir desta ou daquela maneira e são aceitas no nível da subjetividadeindividual e também social. Quando isso acontece, dizemos que o ser humano estáagindo moralmente.

A moral se caracteriza por sua dimensão social, isto é, parte de um conjuntocomplexo de princípios, valores e regras. Ela nos leva a considerar os usos e os costumesatravés dos quais procuramos codificar nossos comportamentos. Assim, de acordocom Da Silva (1996), a moral define-se por uma situação de bondade e de maldade,enquanto praticados por um ser humano como agente consciente: é uma situação dobem e do mal em si e na sua qualidade de tornar responsável quem a escolhe e a realizavoluntariamente.

Quando os seres humanos se vêem na condição de ter que refletir sobre essaprática moral, eles entram na esfera dos problemas éticos (Vázquez, 1999). A palavraética vem do grego ethos, que significa “modo de ser”, “costume” ou “caráter”. Tantoa moral como a ética não são aquisições “naturais”, mas são adquiridas pelo hábito,costume. Uma pessoa não nasce com uma moral ou com uma ética; ambas sãoconstruídas. Então, uma pessoa não nasce preconceituosa, não nasce virtuosa, poispreconceitos e virtudes originam-se do conviver em sociedade.

A ética não se define pelo individual, pelo meu agir; ela é muito mais geral, maisampla, o que é muito bem explicado por Vázquez (1999): Os problemas éticoscaracterizam-se pela sua generalidade e os problemas morais são os que se apresentamnas situações concretas, no cotidiano. A função fundamental da ética é explicar,esclarecer ou investigar determinada realidade.

Na maioria das vezes, as pessoas não param para pensar sobre as implicaçõesmorais, sobre o tipo de postura ética que vigora no nosso mundo e sobre todo esseethos que nos envolve. Nem sequer param para pensar e refletir criticamente sobrecomo vêem o mundo, como a moral interfere na sua vida e sobre qual o tipo de éticaque respalda seu discurso/ação. Dizemos que algumas pessoas têm consciência dissotudo, outras parecem não ter.

A consciência tem sido bastante estudada no campo da psicologia e merece

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alguma atenção, para que se possa insistir e chamar a atenção para a responsabilidadeda psicologia no campo da saúde coletiva. O tipo de consciência desenvolvido permiteo florescimento de determinado tipo de ética, e tudo o que uma pessoa faz passa pelaconsciência (que está em constante construção), e essa não é descolada do ethos: aconsciência e o ethos ocorrem simultaneamente; assim, por essência, o mundo é relativoà consciência.

Se o mundo é relativo à consciência, podemos assumir que todas as pessoas sãoresponsáveis por suas ações, quer dizer, todas as pessoas têm que responder às suasações. Só que as respostas não são todas iguais, já que a consciência tem níveisdiversos, o que foi muito bem explorado por Freire (1983).

Como a consciência é uma construção e não é algo dado e único, ela pode sertransformada e manipulada de acordo com os interesses de algumas pessoas, ougrupo de pessoas, que são aquelas que se apropriaram de determinados capitais e ostêm dominado sistematicamente no tempo e no espaço. Isto quer dizer que certos tiposde consciência – que vão gerar posturas éticas – são mais estimulados e reforçados doque outros e estão relacionados a uma determinada visão de mundo.

Se quisermos defender a responsabilidade das pessoas frente a alguma situação,precisamos conhecer a visão de mundo que tem preponderado na nossa sociedade, ever que existe uma relação muito forte entre consciência, moral/ética e responsabilidade.Como a consciência, a moral e a ética estão sempre relacionadas a ações humanas, elasestão, também, ligadas aos costumes, ao habitus e ao modo como as pessoasexperimentam seu “mundo da vida” (no sentido Habermasiano). No mundo da vida,encontraremos diferentes experiências, diversos saberes, divergentes pontos de vistaem uma mesma sociedade. Agora, quando encontramos a instituição de práticas comunse o incentivo de padrões de massa, precisamos perguntar quais são os fundamentosque estão por trás disso, quais são os fundamentos que constroem o mundo dessa oudaquela maneira.

Em algumas sociedades, por exemplo, há maior ênfase em relações comunitárias.O ser humano é entendido como alguém singular, único e sua subjetividade é solidária.No oposto disso, encontramos sociedades que enfatizam as relações de competição,resultando em subjetividades capitalistas.

De um modo classificatório, poderíamos denominar algumas dessas cosmovisõesde cosmovisão individualista-liberal, cosmovisão coletivista-totalitária e cosmovisãocomunitário-solidária. Nesse momento, será aprofundada a discussão sobre acosmovisão individualista-liberal e a comunitário-solidária. Entende-se que a primeiratem predominado na nossa sociedade e nas práticas dos psicólogos da saúde; asegunda será apontada como uma alternativa às práticas na psicologia social da saúde.

Cosmovisão individualista-liberal: implicações à saúdeQuais são as características mais marcantes do mundo moderno calcado na

filosofia individualista-liberal? Ao contrário do pensado pelos idealizadores do projetoda modernidade, a política do neoliberalismo prega que a liberdade do indivíduo estáacima da liberdade da comunidade, o que justifica uma série de desigualdades sociais.

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A conseqüência deste desequilíbrio, infelizmente, foi que o Lebenswelt [Habermas]deixou de ter força e importância, e as subjetividades características de cada comunidadeforam engolidas por uma teoria política liberal e transformadas em uma subjetividadeindividual e individualizante.

Com a soberania de uma política neoliberal, floresce um social híbrido, que é umsocial repleto de anomalias, onde tudo é permitido em nome da liberdade. Esta é adefinição de democracia nesses tempos. Ela vira sinal de salvação para qualquer caosou problema. Ser democrático é entendido como ser justo, imparcial e neutro, o queconfere o direito de um grupo de pessoas decidir por outras. Só que a democraciaassume uma forma interessante, pois ela se realiza, segundo Habermas (1997),exclusivamente na forma de compromissos de interesses e as regras de formação docompromisso são fundamentadas nos direitos fundamentais liberais. O nervo do modeloliberal consiste na normatização constitucional e democrática de uma sociedadeeconômica, a qual deve garantir um bem comum apolítico, através da satisfação dasexpectativas de felicidade de pessoas privadas em condições de produzir.

Os valores da liberdade, igualdade e fraternidade passaram a ser supremacianesse modelo e tudo o que não se enquadrasse nisso podia, com direito, ser julgado.A alteridade é anulada para que, em seu lugar surja uma massa social na buscadesesperada da cidadania social. Como alerta Santos (1996), este tipo de cidadania trazsérios conflitos e contradições no seu âmago, pois, se por um lado a cidadania enriquecea subjetividade e abre-lhe novos horizontes de auto-realização, por outro, ao fazê-lopor via de direitos e deveres gerais e abstratos que reduzem a individualidade ao quenela há de universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e intercambiáveis nointerior de administrações burocráticas públicas e privadas, receptáculos passivos deestratégias de consumo, enquanto consumidores, e de estratégias de dominação,enquanto cidadãos da democracia de massas.

Se todas as pessoas precisam ser vistas como iguais, as diferenças precisam sermascaradas. As cidadãs e os cidadãos sociais têm que agir de forma solidária, mas, domesmo modo que nasce uma nova cidadania, brota um novo tipo de solidariedade, quese baseia no silêncio. E o que acontece com a ética, quando temos uma solidariedadedesse tipo? Germina-se um novo tipo de ética: uma ética liberal. A filosofia liberalengendrou práticas sociais liberais: solidariedade liberal, mascaramento nas relaçõesao invés de compreensão e autocompreensão das diferenças, e legalização ao invés departicipação. Isto impediu a verdadeira emancipação das pessoas e, no lugar dela,emergiu uma cidadania liberal, reguladora, atomizante e estatizante.

A ética, ao invés de libertar, fica limitada à natureza do individual e o modo deviver foi construindo uma moral repleta de discriminações e moldando um mundo cadavez mais injusto. A democracia virou sinônimo de delegação de poderes: o Outro se vêno direito de decidir por mim, e quando alguém se vê no direito de decidir por outrapessoa, a questão da normatização, da necessidade de leis que garantam a vida emsociedade, propicia um terreno fértil para o florescimento de uma ordem socialdemocrática baseada na burocratização. A democracia burocrática precisa ser valorizadajá que o povo não consegue ter participação nas decisões.

As práticas na psicologia também terminaram por se enquadrar nesse processo

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de burocratização, e uma das conseqüências em tratar a saúde como um “objetoburocrático” é que a saúde das pessoas, em geral, na modernidade, vem se deteriorandoem um galopar progressivo e, a cada dia que passa, parece mais difícil para as pessoasse manterem saudáveis no mundo moderno.

Acontece que o direito à saúde tem sido um direito garantido para aquelas pessoasque têm condições de pagar pela saúde, ou seja, garantem seus direitos aquelas quepodem pagar (e muito caro) por um plano privado de saúde. Direito à saúde e capital sãointerdependentes. Aqueles que não têm condições de pagar por um plano privado desaúde, enfrentam inúmeras dificuldades para receberem atendimento digno e, por quenão dizer, humano. Aquelas pessoas que possuem certo capital econômico têm que abrirmão de muitas outras coisas para poderem financiar um plano privado de saúde.

Violações à saúde como a tortura física ou psicológica, assassinatos, estupros,fome e doenças fatais são mais fáceis de serem percebidas e colocadas à distância porquem não as sente na pele. Agora, violações como o hábito de esperar horas na filapara o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), ter uma consulta médica decinco minutos, ter vergonha de sorrir por causa dos dentes cariados, ser proibida desair de casa pelo parceiro, e fazer aborto em condições perigosas são alguns dosmuitos exemplos de violações que as pessoas excluídas suportam todos os dias. Nessas“pequenas misérias” a saúde coletiva também se enliou e as responsabilidades dospsicólogos também.

Trajetórias da psicologia da saúde: psicologia social psicológica ou psicologiasocial sociológica?

Nesse momento, tentar-se-á mostrar que, a psicologia, como um todo, se constituiuseguindo a mesma linha de pensamento de uma sociedade excludente e apoiada emuma ética liberal.

De acordo com Fonseca (1995), a psicologia instalou-se dentro dos limites damodernidade, construindo concepções capazes de dizer que espécies o universocontém como as que não contém. Ela tem se revelado como prática discursivasintonizada com as ideologias de dominação, com a ânsia de padronização ehomogeneização, como fonte legítima para instaurar o desvio e o desviante.

O curso do desenvolvimento da psicologia social não foi muito diferente. Sabemosque a psicologia social foi influenciada por eventos como o Facismo e a SegundaGuerra Mundial (Farr, 1996; Moscovici, 1972), e que as pesquisas na psicologia socialforam estimuladas pelas necessidades do mercado, nas quais o centro da discussão éa motivação, o indivíduo, e os aspectos interacionais são postos de lado. De fato, aquestão toda tem a ver com a resolução de conflitos. O que se quer da psicologiasocial é que ela dê conta disso e, dessa maneira, possa servir aos interesses da sociedadecapitalista.

Mas será que essa é a única forma de psicologia que encontramos? Não teriahavido resistências ao enquadramento dessa disciplina na cosmovisão liberal?Segundo Farr (2000), desde que Durkheim fez a distinção entre representaçõesindividuais e representações coletivas, ele separou a sociologia da psicologia, criando,

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como conseqüência, uma crise de identidade para os psicólogos sociais, levando àcoexistência de duas formas de psicologia, na atualidade: a forma psicológica dapsicologia social e a forma sociológica da psicologia social.

Em resumo, a psicologia social psicológica está marcada por explicações centradasno indivíduo, em sua conduta e comportamento. Ao lado oposto disso, temos apsicologia social sociológica, que se desvincula da perspectiva cartesiana e sugere aconstrução de um espaço de intersecção onde o indivíduo e a sociedade são vistoscomo relacionais e interdependentes (Farr, 1996, 2000). Baseados nessa forma,encontramos o construcionismo social, os estudos culturais e a teoria crítica.

A forma psicológica tem sido evidente nos últimos tempos na psicologia dasaúde. Por muitos anos, o que se referia à questão da saúde era tratado dentro docorpus maior da psicologia. Não havia uma subárea que tratasse especificamente dasaúde. O surgimento da subárea da psicologia denominada psicologia da saúde foi, decerto modo, uma tentativa de modificar ou corrigir as carências nesse campo de ação(Evans, Sexton & Cadwallader, 1992).

Uma breve revisão de conceitos sobre psicologia da saúde pode trazer indicadoresda forma de psicologia da saúde praticada e, também, que fundamentos éticos permeiamas ações da mesma.

Talvez um dos primeiros registros escritos de uma conceituação de psicologia dasaúde foi na revista científica American Psychologist (Oregon), em 1980: “Psicologiada saúde é um agregado das específicas contribuições educacionais, científicas eprofissionais da disciplina da psicologia à promoção e manutenção da saúde, àprevenção e ao tratamento das doenças, e à identificação dos correlatos etiológicos ediagnósticos da saúde, da doença e disfunções relacionadas” (Matarazzo, 1980, p.815).Alguns anos mais tarde, foram adicionados ao final da conceituação, o seguinte: “e àanálise e melhoramento do sistema de saúde e à formação de políticas de saúde”(Matarazzo, 1982, p.4).

Tentando conhecer melhor o que é entendido por psicologia da saúde,Rodríguez-Marín (1995), fez uma extensa revisão sobre as diversas definições daárea, resumindo a postura atual sobre psicologia da saúde como aquela que estudaos fatores emocionais, cognitivos e comportamentais associados à saúde e àsdoenças físicas dos indivíduos. A psicologia da saúde integra conceitos dediferentes disciplinas psicológicas, colaborando com o delineamento e aplicaçãode programas de intervenções individuais, grupais e comunitários para a promoçãoe prevenção da saúde, para o tratamento e reabilitação da doença e para a qualidadede vida do doente.

Para Rodríguez-Marín (1995) e para Rodríguez e Garcia (1996), na psicologiasocial da saúde interessa o estudo da conduta da saúde/doença em interação comoutras pessoas ou, igualmente, com produtos da conduta humana, técnicas diagnósticase de intervenção, organizações de cuidado de saúde, etc. Todas as atividades queimplicam as atividades no conceito de psicologia da saúde são resultado das interaçõesentre os profissionais e os usuários do sistema de saúde e se desenvolvem em talinteração.

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Remor (1999) também apresentou uma interessante revisão sobre as origens, objetivose perspectivas em psicologia da saúde, descrevendo que ela é “a disciplina que explica oporquê de determinados hábitos de comportamento que favorecem ou prejudicam a saúde.É a encarregada de estabelecer estratégias de modificação do comportamento; a que podeajudar ao doente a conviver com a doença ou com a dor; a que ensina o tipo de interaçõesque devem dar-se entre o profissional da saúde e o paciente etc.” (p.216).

Observem que a palavra-chave nas definições de psicologia da saúde,apresentadas até aqui, é comportamento. Está relacionada diretamente à mudança dehábitos, atitudes, condutas e sintomas. O objeto é bem concreto e também é concretoseu objetivo: modificar o comportamento dos indivíduos de modo que os mesmospermaneçam, ou se tornem, saudáveis, com qualidade de vida.

Enfim, a psicologia social da saúde, como produto da modernidade, adota umaconcepção de saúde pessimista (baseada na doença), limitada (visa mudarcomportamento/atitude), individualizante e discriminatória (atende diferenciadamenteas pessoas). Como conseqüência, infelizmente, ela não tem conseguido dar conta deproduzir significantes mudanças na área da saúde já que, no geral, as psicólogas e ospsicólogos não têm mais tempo de parar e refletir sobre que tipo de psicologia estãofazendo, sobre seus valores e postura ética, pois a primazia está na produção.

Por uma ciência utópica e críticaCom sustento nas reflexões acima, será sugerido uma alternativa à psicologia

social da saúde que tem preponderado nos dias de hoje e que ainda não tem dadoconta de responder à demanda social. Serão delineados dois pressupostos básicospara que se possa pensar em alternativas para a psicologia social da saúde, e serásugerido um modelo de psicologia social crítica da saúde, que se sustenta na formasociológica apresentada anteriormente. O primeiro pressuposto refere-se à noção deutopia e o segundo ao tipo de ciência que queremos e precisamos fazer.

O conceito de utopia deve ser reconstruído para melhor servir às realidades atuais.A noção de utopia que Santos (2000) desenvolveu parece bem apropriada, pois ela serefere à exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novasformas de vontade, e a exposição da imaginação à necessidade do que existe, em nomede algo radicalmente melhor por que vale a pena lutar e a que a humanidade tem direito.

Trabalhar com o conceito de utopia significa acreditar que o ser humano tem umlado “bom”, “positivo”, muito forte, capaz de vencer aquele lado “ruim”, “negativo”.O próprio viver exige a utopia, demanda pelo sonhar e pela esperança em milagres. Seassim não fosse, o que seria da humanidade? Para que rumos escuros nosencaminharíamos? Pensar desse modo é rejeitar a existência de uma “essência depoder” ou “poderes inatos”. O poder não é palpável; o poder não existe; o que existesão práticas ou relações de poder. O poder é responsável por grande parte dasassimetrias, mas ele não é, de modo algum, unilateral; ele age de cima para baixo,irradiando-se de baixo para cima. Se houvesse uma essência de poder não haveriacampo para argumentações e negociações. Nem haveria possibilidade para a utopia.

O segundo pressuposto defendido é de que a visão de ciência, e a própria

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postura dos cientistas frente a ela, deve mudar com urgência. Deve haver um câmbiono nível de consciência, ou seja, a consciência crítica é o elemento fundamental parafazermos uma psicologia da saúde transformadora. Essa mudança é paradigmática; elaexige que se critique constantemente a ciência per se e alguns conceitos estanquesque estão concatenados e amalgamados no tempo.

Isso exige uma postura de humildade frente às pessoas. Afinal, o que é averdade senão a compreensão humilde de que não somos nada nesse universoinfinito sem o Outro? A humildade exige que os psicólogos da saúde pensem e façampolítica via abertura de espaço para a discussão de uma nova ética, que é a éticacrítica e propositiva. Ora, para pensar sobre saúde do ponto de vista dos processosde exclusão é necessário uma mudança de perspectiva principalmente daquelaspessoas que fazem ciência. Ser cientista dentro desta nova perspectiva pressupõe,ao invés de um especialista, um ser humano igual, mas plural, um ser humano racional(argumentativo), mas empático.

Conscientizar, na psicologia social crítica da saúde, deve ser, seguindo a propostade Freire (1983), uma proposta dialógica no qual o psicólogo refaz, constantemente,seus atos cognoscentes, na cognoscibilidade da pessoa excluída. As pessoas, aoinvés de serem recipiente dócil, devem ser investigadoras críticas, em diálogo com opsicólogo, investigador crítica também. Através da proposta dialógica, argumentaGuareschi (1973), tenta-se capturar sua Weltanschauung, sua visão de mundo. É ummodo de ajudar as pessoas a preencherem sua vocação ontológica, engajar naconstrução da sociedade e ser orientadas para a mudança social, e substituir aconsciência mágica por uma consciência mais crítica.

Isto é, humildemente pode-se problematizar, compreender e mediatizar a reflexãocrítica do Outro e a nossa mostrando as contradições existentes nas falas, no cotidiano,no mundo como um todo. E para que esse processo se efetive dentro da psicologiasocial da saúde, precisamos abrir um canal por onde as pessoas oprimidas possam tervoz, possam falar. É através da fala das pessoas com menor capital social que pode-seassumir uma atitude de humildade e perceber que somos “todos os mesmos, isto é,humanos” e não deuses.

Ser visto e ouvido por outros, é importante pelo fato de que todos vêem e ouvemde ângulos diferentes. Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas,numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão a suavolta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade domundo manifestar-se de maneira real e fidedigna (Arendt, 1999).

Assim, buscando respaldo em uma psicologia mais esperançosa e humilde,encontramos, em um lado oposto à cosmovisão individualista-liberal, o outro modo deentender saúde, que parte de uma cosmovisão comunitário-solidária, que vemconstituindo-se em uma psicologia social crítica da saúde. Nesse modelo, entende-sesaúde como uma construção social, que está intrinsecamente relacionada à ideologiadominante e à cultura de cada comunidade. Neste sentido, o corpo - como nosmovimentamos, o que comemos, os medicamentos que ingerimos, os rituais deautocuidado cotidianos – é visto como um agente da cultura.

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A saúde pessoal (pessoa) precisa da saúde pública (sociedade) para se manter. Apessoa e a sociedade estão imbricados um no outro, não se pode entender a saúde apartir de dualismos. As conseqüências das epidemias e “pestes”, ao longo da história,mostram que sem uma ação (pública) efetiva, tanto o privado como o público podemadoecer. A doença, por sua vez, não é somente um evento isolado, nem uma infelizcolisão com a natureza; é uma forma de comunicação através da qual a natureza, asociedade, e a cultura falam simultaneamente (Scheper-Hughes & Lock, 1987).

Também, a atenção primária (promoção da saúde) é fundamental numa psicologiasocial crítica da saúde. Fazer prevenção neste modelo não significa simplesmenteobjetivar a diminuição e erradicação da doença, mas facilitar o desenvolvimento daação política das pessoas, de modo que o espaço público pertença efetivamente,também, às pessoas excluídas. Aqui se prioriza o trabalho em comunidade, a relaçãodialética entre as pessoas que trabalham diretamente com saúde e aquelas que nãotrabalham, e ação política das pessoas que vivem na comunidade. Busca-se conscientizar(no sentido Freiriano) as pessoas que vivem na comunidade para que elas batalhempela sua dignidade. O investimento é intracomunitário e inter-comunitário, já que paradesenvolver a reflexão crítica é necessário entender o contexto maior, que é históricoe culturalmente construído.

As psicólogas e os psicólogos sociais que buscam sustentação neste modelodevem basear suas ações em uma ética solidária, a qual assume o autocuidadojuntamente com o cuidado do Outro, e a compreensão do Outro ou invés da simplestolerância. Procuram apresentar formas de eliminar a categoria excluído, ou seja maneirasde romper as relações assimétricas de dominação que perpassam a relação médico/paciente. Não há aquele que ensina e aquele que aprende, pois como lembra Freire(1983), ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa sozinho; os sereshumanos se educam em comunhão, através da mediação do mundo.

Enfim, o modo como se dá a prática está calcado em uma perspectiva histórico-crítica, onde se entende saúde, e conseqüentemente a sociedade e as comunidades, apartir do conceito de “relação”. Neste sentido, a prática do psicólogo precisa ser feitanão na solidão de um consultório, ou da instituição, mas em conjunto com outras pessoas.

Uma proposta de ação em psicologia social crítica da saúdeComo a categoria psicólogo e outras categorias que trabalham com saúde podem

dar conta, ao mesmo tempo, do real e da utopia, particularmente em um mundo ondevigora a (in)tolerância, a falta de consciência crítica e a liberdade calcada em umafilosofia liberal?

Dois caminhos podem ser iluminadores para o desenvolvimento da ação depsicólogos sociais: (a) Analisar as relações de poder imbricadas no campo da saúde; e(b) estimular a ética do cuidado.

A análise das relações de poder não se refere unicamente à análise do cientista,mas à análise do participante da pesquisa. O participante não apenas deve servir defonte para enxergarmos as desigualdades, mas deve ser o “analisador” de seu processo,já que ele é possuidor de um saber vital. Entretanto, aqui há um movimento duplo por

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parte do pesquisador: ao mesmo tempo em que se deve respeitar o senso comum,como alerta Moscovici (1972), ele tem que desconfiar da sabedoria popular. Certamente,isso pode levar algum tempo, mas não devemos esquecer que ninguém é um receptorpassivo de formas simbólicas; há sempre uma interação com o que é dito e produzidoe não podemos desvalorizar o saber popular.

Dois podem ser os movimentos para realizar uma análise das relações dedominação: (a) preocupação com os macropoderes e (b) preocupação com osmicropoderes. O primeiro movimento consiste em analisar o nível macro, das estruturas,ou seja, mostrar a ideologia que está atuando por trás das instituições que trabalhamcom a saúde, desvelando as relações de poder que são obscuras. A psicologia que seinteressa por saúde de forma crítica precisa estar atenta à ideologia que reforça e criaos processos de exclusão de modo a compreender as premissas de “verdadeiro” e/ou“falso” e procurar desocultar as relações de dominação.

Para desvelar a ideologia, pode-se, por exemplo, sugerir que determinado grupode moradores traga reportagens de jornais que versem sobre problemas na área dasaúde relevantes àquela comunidade e discutam criticamente sobre elas. Pode-secomeçar por investigar “Quem fala o que para quem?” (lugar de onde se fala), “Comoas coisas acontecem?” (modus operandi) e “Como os operadores de dominaçãoconstituem sua fala?” (modo de discurso). O psicólogo poderá estimular o debatefazendo perguntas do tipo “Quem escreveu?”, “Por quê?”, “Entrevistaram moradores?”;“Concordam ou não com a reportagem?”, “Em que momento histórico aquilo foiescrito?”, etc.

Ao analisar os diferentes discursos embutidos nas relações de dominação e aoquestionar os métodos de subjugação ou de estratégias ideológicas apresentados nasdiferentes culturas, as pessoas poderão encontrar alternativas às relações dedominação.

Thompson (1995) tem sido um dos autores que melhor tem desenvolvido umaproposta metodológica, denominada Hermenêutica de Profundidade (HP), que dá contada interpretação desses métodos e estratégias. A partir desse enfoque, podemosinterpretar as opiniões, crenças e compreensões, no que se refere à saúde e à doença,que são sustentadas e partilhadas pelas pessoas que constituem o mundo social.Também, devemos fazer uma análise das condições e contextos sócio-históricos deprodução, circulação e recepção das formas simbólicas, examinar as regras econvenções, as relações sociais e instituições, e a distribuição de poder, de recursose de oportunidades.

O segundo movimento para a análise das relações de poder relaciona-se aoestudo dos micropoderes. Aqui se pode buscar apoio na obra de Foucault (1999). Oautor propõe um método que possibilita mostrar como são as relações de sujeiçãoefetivas que fabricam sujeitos.

Vale lembrar que adotar uma metodologia preocupada com o “micro” significaque se podem encontrar forças e somar esforços naquilo que, aparentemente, parecede menor força que são as técnicas e táticas de dominação. Para acabar com a dominaçãoque massacra a saúde das pessoas não basta apenas descrever o aparelho “saúde”(macropoderes), como os hospitais, as clínicas, o Sistema Único de saúde, privilegiando

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a análise da ideologia subjacente a eles. É preciso estudar o corpo e os efeitos sobreele; dissecar as relações de poder e a produção de saberes sobre a doença e a saúde(micropoderes). É fazer um estudo dos poderes-saberes que se apoiam em umacosmovisão individualista-liberal.

Ao lado da análise das relações de poder, encontra-se a necessidade de se firmara ética crítica e propositiva, ou seja, ao mesmo tempo em que se procura criticar o queestá aí, buscam-se alternativas para transformar as relações injustas. Segundo Guareschi(1998), a ética crítica e propositiva significa que ela está sempre por se fazer, e à medidaem que ela se atualiza, ela passa a sofrer suas contradições, e por isso deve serquestionada, criticada e deve propor algo novo. A ética é uma busca infinita,interminável, uma consciência nítida de nossa incomplitude, um impulso permanenteem busca de crescimento e transformação.

É quando o Outro entra em cena que nasce a ética, pois é o outro, é seu olhar, quenos define e nos forma (Eco, 2000), e nos transforma. Propor uma ética baseada narelação e não no individualismo, pressupõe o diálogo, a argumentação; pressupõe quetodas as pessoas tenham voz e sejam ouvidas. Sustenta-se através da racionalidade,ou seja, a partir de um filtro discursivo e do agir comunicativo, apontando para umaargumentação, na qual os participantes justificam suas pretensões de validade peranteum auditório ideal sem fronteiras. Os participantes de uma argumentação partem dasuposição idealizadora de que, no espaço social e no tempo histórico, existe umacomunidade comunicacional sem fronteiras e têm que pressupor a possibilidade deuma comunidade ideal “dentro” de sua situação social real.

A reflexão efetuada pelos participantes de uma comunidade deve culminarem um entendimento mútuo. Esta não é uma tarefa fácil, segundo Habermas (1998),pois, independentemente de seu background cultural, todos os participantes sabemmuito bem que o consenso baseado na convicção não pode acontecer enquantorelações injustas existirem entre os participantes – é preciso relações dereconhecimento mútuo, de perspectivas recíprocas, de se dispor a considerar astradições do Outro com o olhar de um estranho e aprender com o Outro. Com basenisso, nós poderemos criticar as leituras seletivas, as interpretações tendenciosas,as aplicações de mentalidades estreitas dos direitos humanos, a desavergonhadainstrumentalização dos direitos humanos que escondem interesses particularespor trás de uma máscara universalística.

Uma ética crítica na psicologia social da saúde, associada ao agir comunicativo,permitirá o desenvolvimento e o fortalecimento da virtude do cuidado, quer dizer, umaética do cuidado. Estamos tendo cuidado um para com o Outro na nossa sociedade?Estão os psicólogos sociais preocupados em realmente cuidar do Outro ou estamossimplesmente mais interessados nos lucros? É tempo de parar e se perguntar: Estamoscuidando da saúde?; Que tipo de cuidado dedicamos a nós e aos Outros?; Qual anossa responsabilidade enquanto psicólogos frente à saúde coletiva? O cuidado podeservir, como lembra Boff (1999, p.13), “de crítica à nossa civilização agonizante e tambémde princípio inspirador de um novo paradigma de conviviabilidade”.

Há aqui um aspecto importante a ser ressaltado. Uma ética baseada no cuidado,

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não consegue existir sem que venha acompanhada, ao mesmo tempo, do autocuidadoe da responsabilidade pelo Outro. Os termos autocuidado e responsabilidade aquirelacionam-se diretamente a um conceito um pouco perdido no tempo e no espaço, queé o conceito de amor. Amor no mesmo sentido em que professou Martin Luther King,em 1963: “Quando eu digo ‘amor’ nesse momento, eu não estou falando sobre emoçãoafetuosa. (...). Não faz sentido instigar as pessoas, as pessoas oprimidas, a amar seusopressores em um sentido afetuoso. Eu estou falando de algo muito mais profundo. Euestou falando sobre um tipo de entendimento, criativo, que resgata a benevolênciapara todos os seres humanos” .

Concluindo, através da análise das relações de poder e da adoção de uma éticado cuidado poderemos libertar a psicologia social (da saúde) da cosmovisãoindividualista-liberal e nos tornarmos verdadeiramente eternamente responsáveis poraquelas pessoas que cativamos.

Considerações finais

Existem diversos modos de compreender o mundo, que levam a diferentes práticas,as quais, por sua vez, são orientadas pela moral e pela ética. Por que a consciênciasobre essas práticas é uma construção, ao mesmo tempo, individual e social, pode sermanipulada de acordo com certos interesses.

A psicologia da saúde nasceu apoiando-se numa cosmovisão individualista-liberal. Como uma alternativa ao que está aí, a psicologia social crítica da saúde nascea partir de uma cosmovisão comunitário-solidária, baseando-se em uma formasociológica de psicologia social. Epistemologicamente, assume uma postura crítica epropositiva, frente aos processos de exclusão e opressão, e frente às políticas públicase aos documentos que pretendem garantir os direitos humanos.

Uma psicologia social crítica da saúde deve partir de uma visão crítica e utópicade ciência, na qual é fundamental que se construa uma ponte entre os direitos universaise os direitos de minorias sociais, se reelabore o conceito de saúde, se analisem asrelações de poder e se estimule a ética do cuidado.

Para finalizar, salienta-se que não foi alvo desse artigo detalhar um projetoalternativo à psicologia da saúde que está aí, e nem se objetivou responder a todos osproblemas da área da saúde. Também não foi propósito negar a importância da psicologiada saúde “tradicional”. A questão não é eliminar esse modelo que já conquistou muitasvitórias, mas questionar a hegemonia do mesmo, pois ele tem se mostrado incompatívelcom mudanças mais radicais nas estruturas sociais, já que não abala as estruturas quereforçam e promovem os processos de exclusão.

Em uma psicologia social da saúde crítica, ao lutarmos pelos direitos à saúde(através da análise das relações de poder, da ética do cuidado e da valorização dautopia), a esperança no milagre, ou no sonho, refloresce como pequenos brotos emuma terra aparentemente árida. O campo da saúde – pelo qual somos eternamenteresponsáveis – transforma-se em um jardim fértil repleto de botões de rosa, ávidospara serem cuidados, autocuidados, amados e respeitados por todas as pessoas.

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Recebido em abril de 2006 Aceito em dezembro de 2006

Adriane Roso: psicóloga; doutora em Psicologia pela PUCRS; especialista em Saúde Pública pela ESP/UFRGS/FIOCRUZ.

Endereço para correspondência: [email protected]

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Vínculo parental e rede de apoio social: relaçãocom a sintomatologia depressiva na adolescência

Ana Cláudia Nuhlmann SchneiderVera Regina Röhnelt Ramires

Resumo: O objetivo deste estudo foi investigar a sintomatologia depressiva, o estilo de vínculoparental e a presença de rede de apoio social em 11 adolescentes de ambos os sexos, com idadesentre 12 e 18 anos, que procuraram atendimento ou foram encaminhados ao Serviço de Psicolo-gia de uma universidade do sul do Brasil. Os dados foram coletados através de entrevistas e dasaplicações dos instrumentos Child Behavior Checklist (CBCL), Desenho da Figura Humana,Parental Bonding Instrument e Escala de Medidas de Rede e Apoio Social (MOS). Os resulta-dos apontam que adolescentes com sintomatologia depressiva apresentam um vínculo parentalinadequado e uma rede de apoio social insuficiente. A avaliação da amostra, ainda que limitada,ressalta para a importância do tema e a necessidade de intervenção no fortalecimento dos laçosparentais e sociais a fim de propiciar segurança e favorecer saúde biopsicossocial.Palavras chaves: depressão na adolescência, vínculo parental, rede de apoio social.

Parental bonding and social support: Relation with depressivessymptoms on adolescence

Abstract: The present study evaluated the depressive symptoms, parental influence and socialsupport in the behavior of 11 teenagers of both genders and with ages between 12 and 18 yearsold, which attended Psychological Service. The data was collected from interviews and throughthe application of Child Behavior Checklist (CBCL), human body drawings, Parental BondingInstrument tests and from the Social Support Measure Scale (MOS). The results indicate thatteenagers with depressive symptoms have inadequate parental bonding and insufficient socialsupport. Even though the evaluated sample was limited, the results highlight the relevance ofsuch matter and the need of enhancing social and parental bonding in order to provide safetyand biopsychosocial health.Key words: Adolescent Depression, Parental bonding, Social Support.

Introdução

Atualmente, apresenta-se na clínica psicológica um grande número deadolescentes com diagnóstico de depressão (Gorenstein, Andrade, Zanolo & Artes,2005; Levisky, 2002; Lima, 2004). Tal fato constitui-se como um tema de grandeimportância, visto que a sintomatologia depressiva na adolescência pode atingirdiversos aspectos da personalidade trazendo graves conseqüências.

A adolescência, como um período crucial no processo de desenvolvimento doindivíduo, que marca a transição do estado infantil para o adulto, caracteriza-se comouma etapa de contínuas mudanças. É na adolescência que culmina todo o processo

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maturativo biopsicosocial do indivíduo, dando fim à estruturação da personalidade(Blos, 1996; Outeiral, 2001; Urribari, 2004; Weinberg, 2001).

Durante o processo de subjetivação de um adolescente, há caminhos tortuososa percorrer na elaboração de questões cruciais e resolução de tarefas próprias dessemomento (Levisky, 1998; Outeiral, 2001; Urribari, 2004). Na adolescência, o indivíduoperde a segurança do amor que era garantido à criança e ao mesmo tempo não tem oreconhecimento como adulto, como constatou Calligaris (2000). Frente a essa fase deaquisição e transição de papéis, o adolescente busca consolidar uma identidade pessoalindependente, que se refletirá sobre a formação de novos hábitos de condutas emodelos de socialização.

Levisky (1998) constatou que o adolescente atravessa esse período da vida commuito sofrimento em conseqüência das perdas sucessivas e abrangentes que ocorremem seu corpo infantil, no seu mundo interno e na qualidade de suas relações consigomesmo, com as pessoas, com o tempo e com o espaço. Até então vivia dentro de umuniverso que estava relativamente organizado, o qual se transforma de modo irregular.Esse momento de grande vulnerabilidade para o adolescente pode contribuir para osurgimento de distúrbios psicológicos. De acordo com a Organização Mundial deSaúde (2003), os transtornos mentais e comportamentais são comuns durante a infânciae adolescência. No entanto, a atenção dada à saúde mental dessa população tem sidoinsuficiente. Em termos de prevalência, em torno de 20% de crianças e adolescentessofrem de algum distúrbio psicológico. Entre os casos mais freqüentes estão ostranstornos externalizantes que envolvem características de agressividade,hiperatividade, comportamento delinqüente, e os transtornos internalizantescaracterizados por depressão, isolamento social, ansiedade (Kernberg, Weiner, &Bardenstein, 2003).

O termo depressão, em seu contexto clínico, tem sido utilizado com referênciatanto a um sintoma, como a uma síndrome e a um transtorno nosológico. O sintomadepressão é um estado de ânimo caracterizado por irritabilidade, sentimentos de tristeza,desencanto, miséria, disforia ou desespero (Crowe, Ward, Dunnachie & Roberts, 2006;Lewis, 1995; Lima, 2004). Tipicamente, é um estado transitório, experimentado pelamaioria das pessoas em vários pontos de suas vidas, não sendo por si só patológico.Contudo, quando o sintoma de tristeza é intenso, persiste, e ocorre em combinaçãocom o complexo pleno de sintomas da síndrome de depressão, é um estado consideradoclinicamente significativo. Segundo os autores, outros sintomas que compreendem asíndrome depressiva são: transtorno do sono, perda do apetite, anedonia, dificuldadede concentração, baixa auto-estima, culpa, baixa energia, alterações psicomotoras eideação suicida.

Os transtornos depressivos constituem um grupo de patologias com alta ecrescente prevalência na população geral. Durante muitos anos, acreditou-se que adepressão era um fenômeno exclusivamente adulto, julgando-a rara ou até inexistenteem crianças e adolescentes. A idéia provinha da crença de que a depressão era umaresposta emocional à problemática existencial, e que adolescentes, assim como crianças,não tinham esse tipo de problemas (Lima, 2004).

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Foi somente a partir da década de 70, como relatou Bahls (2002), que foireconhecida a existência da depressão em crianças e adolescentes. A depressão naadolescência passou a ser considerada como uma situação freqüente e com sériasrepercussões ao longo do desenvolvimento, tendo efeitos na esfera familiar, acadêmicae social, podendo até levar ao suicídio. Esse autor concluiu que a depressão naadolescência possui um grande risco de recorrência que se estende até a idade adulta,implicando numa alta vulnerabilidade para uma evolução no sentido de um quadrograve de depressão.

Segundo Versiani, Reis e Figueira (2000), as manifestações clínicas do transtornodepressivo têm características próprias de acordo com a fase do desenvolvimento. Oquadro de depressão em adolescentes nem sempre se apresenta do ponto de vistasintomatológico, podendo estar mascarado por sintomas psicossomáticos oucomportamentais. Bahls e Bahls (2002) reforçaram que jovens deprimidos não estãosempre tristes, apresentando-se principalmente irritáveis e instáveis.

Adolescentes deprimidos, de acordo com Versiani e cols. (2000), podem seenvolver em atividades de risco e atividades anti-sociais. Podem se apresentar nãocooperativos e têm dificuldade de identificar e expressar seus sentimentos, comtendência ao isolamento e demonstração de ansiedade. Como resultado, jovensdeprimidos, freqüentemente, interagem menos com os outros, desenvolvem problemasde comportamento, fraco desempenho escolar e falta de interesse pelas atividadesrotineiras, como esportes, eventos sociais ou outras atividades extracurriculares. Alémdisso, como Bahls (2002) retratou, pode haver também abuso de substâncias (álcool edrogas), violência física, atividade sexual imprudente e fugas de casa.

Em adolescentes com depressão a queda no rendimento escolar pode refletir adiminuição da motivação assim como da atenção e a hipersensibilidade. Apresenta-setambém a sensação de infelicidade, mudanças de peso, alterações do sono e uma maiorfreqüência de ideação suicida.

Segundo Bahls (2002), o suicídio de adolescentes constitui-se em uma dasprincipais preocupações da saúde pública, sendo que a depressão na adolescênciaenvolve um alto grau de mortalidade. O autor afirmou ainda que, com o desenvolvimentodo pensamento abstrato, que se faz ao redor dos doze anos de idade, ocorre umacompreensão mais clara do fenômeno da morte. Nos adolescentes depressivos tantoas idéias de suicídio como as tentativas, que costumam apresentar alta letalidade,alcançam uma dimensão maior, pois os adolescentes são altamente vulneráveis àsmesmas.

Essau (2004) investigou a associação entre os fatores familiares e as desordensdepressivas na adolescência, destacando a presença significativa nesses casos demães depressivas. Essa autora também identificou em seu estudo que o apego emrelação aos pais era sensivelmente mais frágil nos adolescentes deprimidos do quenaqueles que não apresentavam desordens psiquiátricas. Constatou, ainda, que osadolescentes deprimidos com pais deprimidos relataram mais ideação suicida do queos outros.

Analisando a elevada importância deste assunto, pelo alto índice de casos clínicosde depressão e suas graves conseqüências, torna-se necessária a discussão dos

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diversos fatores que afetam o desenvolvimento psicológico do adolescente. Considera-se, a partir do modelo multidimensional de fatores, que os distúrbios psicológicos sãoresultantes da interação de componentes genéticos, biológicos, psicológicos eambientais (Cicchetti & Toth, 1998). Essa interação se dá na relação do indivíduo comoum organismo biológico em crescimento, com o seu meio social imediato, constituídopela família (microssistema), e a interação que diz respeito ao relacionamento dessesistema com o meio ambiente, no seu sentido mais amplo (exossistema oumacrossistema), no sentido de Bronfenbrenner (1996).

Shaw e Dallos (2005) corroboram essa discussão tentando articular ascontribuições da literatura sobre o apego, a depressão e aquela que diz respeito aosaspectos sociais. Esses autores propõem um modelo tripartite para compreender adepressão na adolescência, que integre os fatores individuais, os relacionamentosfamiliares e os fatores sócio-culturais.

Assim, não há dúvida de que a saúde mental resulta de relações complexas entreinúmeros fatores biológicos, psicológicos e sociais. Segundo Griep, Chor, Faerstein,Werneck e Lopes (2005), vários estudos indicaram que os laços sociais teriam influênciana manutenção da saúde, funcionando como fator de proteção em situações de estressee podendo diminuir seu impacto no bem-estar psicológico. Portanto, dispor de umarede de apoio social e receber ajuda dos indivíduos que pertencem a essa rede beneficiama saúde e o bem-estar. Por outro lado, a pobreza de relações sociais constitui fator derisco à saúde.

No estudo de Costa e Ludermir (2005) foi verificado que o apoio social habilita oindivíduo a lidar com os eventos e condições estressoras, funcionando como agenteprotetor contra transtornos mentais comuns como Depressão e Ansiedade. Destaforma, sentir-se amado e cuidado e ter amigos íntimos e confidentes está relacionadoa baixos níveis de ansiedade, depressão e somatizações, possibilitando uma melhoradaptação a circunstâncias particulares de estresse e menores efeitos dos eventosvitais produtores de estresse que, embora não possam ser evitados, passam a termenores conseqüências.

Apoio social diz respeito aos recursos disponibilizados por outras pessoas emsituações de necessidade. Constitui-se como objeto de estudo de várias disciplinascomo a Medicina, a Sociologia e a Psicologia. Porém, de acordo com Chor, Griep, Lopese Faerstein (2001), foi somente a partir da década de 70 que a relação entre laços sociaise saúde foi verificada.

São várias as pessoas que podem oferecer suporte social ao indivíduo, comofamiliares, amigos, vizinhos, na forma de afeto, companhia, assistência e informação,tudo que faz o indivíduo sentir-se amado, estimado, cuidado, valorizado e seguro(Dessen & Braz, 2000). As pessoas necessitam umas das outras e, por isso, quando oapoio social diminui há um comprometimento do sistema de defesa do corpo. A sensaçãode não poder controlar a própria vida, juntamente com a sensação de isolamento,podem ser relacionadas com o processo de saúde-doença, aumentando a suscetibilidadeindividual para as enfermidades (Costa & Ludermir, 2005).

Dessen e Braz (2000) definiram rede social como um sistema composto por váriosindivíduos, funções e situações, que oferece apoio instrumental e emocional à pessoa,

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em suas diferentes necessidades. Apoio instrumental é entendido como ajudafinanceira, ajuda na divisão de responsabilidades em geral e informação prestada aoindivíduo. Apoio emocional, por sua vez, refere-se à afeição, aprovação, simpatia epreocupação com o outro.

Enquanto uma rede de apoio mais próxima, a literatura tem apontado a importânciada família como um fator protetor, no que se refere ao ajustamento de crianças eadolescentes. Durante a infância a família representa o contexto de apoio maisimportante do indivíduo. No entanto, de acordo com Sanchez-Queija e Oliva (2003), àmedida que os adolescentes vão se desvinculando de seus pais, a relação com osiguais ganha ênfase.

Souza e Ramires (2006) compartilham a mesma idéia. Segundo tais autoras, há umacrescente importância na literatura dada às relações fraternas e de amizade de adolescentes.No processo de diferenciação e construção de uma nova identidade na adolescência, asrelações com os pares assumem maior valor, seus relacionamentos são recíprocos eigualitários. Como em geral os indivíduos são companheiros da mesma idade, eles têm omesmo poder social e o seu comportamento mútuo vem do mesmo repertório. Destaforma, as relações de amizade nessa fase se estreitam, e os amigos passam a ser pessoasque confiam, compartilham sentimentos e se ajudam com problemas psicológicos.

O grupo de iguais constitui um contexto de socialização e uma importante fontede apoio. Poder-se-ia levantar a hipótese de haver uma certa compensação entre asrelações com os pais e as relações com os iguais de forma que aqueles jovens queencontram um menor apoio emocional em sua família se vinculariam de forma maisestreita com seus companheiros. Entretanto, a maior parte dos estudos mostra ocontrário, aqueles adolescentes que haviam estabelecido melhores vínculos afetivoscom seus pais se mostram mais competentes para estabelecer relações mais íntimascom amigos (Liu, 2006; Sanchez-Queija & Oliva, 2003).

O vínculo com os pais já foi destacado na literatura como um fator estruturanteda personalidade. Bowlby (1997) defendeu a tese de que existe uma relação muitoestreita entre as experiências da criança com seus pais e sua capacidade posterior paraestabelecer vínculos afetivos, e que essa relação tem também repercussõessignificativas do ponto de vista da psicopatologia. Assim, a qualidade dos vínculosque puderam ser constituídos pelas crianças, bem como dos modelos representacionaisque lhes correspondem, pode se constituir como importante fator de resiliência noenfrentamento das crises do ciclo vital, incluindo a adolescência.

Com a teoria do apego, Bowlby (1990) ofereceu uma nova abordagem para acompreensão da natureza e origem dos vínculos afetivos. Ele assinalou que existe nosbebês uma tendência inata para o contato físico e psicológico com um ser humano, oque significa a existência da “necessidade” de um objeto independente do alimento,tão primária quanto a “necessidade” de alimento e conforto. Deste modo, Bowlby(1997, p.168) descreveu sua teoria como “um modo de conceituar a propensão dosseres humanos a estabelecerem fortes vínculos afetivos com alguns outros, e de explicaras múltiplas formas de consternação emocional e perturbação da personalidade,incluindo ansiedade, raiva, depressão e desligamento emocional, a que a separação eperda involuntária dão origem”.

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Ainsworth (1989) pontuou que já foram identificados os processos básicos dedesenvolvimento que são relevantes para compreensão do estabelecimento dosvínculos afetivos na infância, mas não conhecemos ainda quais são esses processosem fases posteriores desse desenvolvimento. Nem tampouco quais são as implicaçõesque as perturbações nesses vínculos têm para a saúde mental na adolescência e navida adulta. Torna-se evidente a importância e a necessidade de empreender esforçosno sentido da compreensão de tais processos nessas etapas da vida.

Desta forma, tendo em vista o que foi discutido até aqui, o presente estudo tevepor objetivo investigar, em adolescentes atendidos em um Serviço de Psicologia, osaspectos depressivos e sua possível relação com o vínculo desses adolescentes comseus pais e sua rede de apoio social.

Método

ParticipantesParticiparam deste estudo 11 adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade, com

idade média de 15,09 anos. Esse estudo fez parte de uma pesquisa sobre as condiçõesde saúde mental de 40 crianças e 40 adolescentes que procuraram atendimentopsicológico no Serviço de Psicologia em questão.

Os adolescentes avaliados foram de ambos os sexos, sendo 6 (54,54%) do sexofeminino e 5 (45,45%) do sexo masculino. Esses participantes tiveram acesso à Clínicaa partir de diversas fontes de encaminhamento: atendimento solicitado por familiaresdo adolescente, 4 (36,36%), busca espontânea, 4 (36,36%), Juizado da Infância e daJuventude, 1 (9,09%), Conselho Tutelar, 1 (9,09%) e encaminhamento médico, 1 (9,09%).

No que se refere ao nível de escolaridade, 10 (90,9%) adolescentes estavam estudando,sendo que 6 (54,54%) cursavam o Ensino Fundamental, 3 (27,27%) cursavam o EnsinoMédio e 1 (9,09%) estava em curso superior. O participante que não estava estudandointerrompeu por vontade própria o Ensino Fundamental havia mais de um ano.

Quanto à composição familiar dos participantes do estudo, 5 (45,45%) moravamcom pai e mãe, 3 (27,27%) moravam somente com a mãe, 2 (18,18%) moravam somentecom o pai e 1 (9,09%) morava com mãe e padrasto.

InstrumentosOs instrumentos utilizados para a realização do estudo foram os seguintes:• Entrevista semi-estruturada com os pais para levantamento da Anamnese do

adolescente;• Entrevista semi-estruturada com o adolescente para escuta do motivo da sua

consulta e levantamento da sua história de vida;• Child Behavior Checklist (CBCL): trata-se do Inventário de Comportamentos da

Infância e Adolescência (Achenbach, 1991),instrumento validado internacionalmentee utilizado para investigar manifestações clínicas nessas etapas. No Brasil, o CBCL foiadaptado por Bordin, Mari e Caeiro (1995). O inventário é dividido em duas partes que

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avaliam a Competência Social e os Problemas de Comportamento, incluindo oito escalasde síndromes (isolamento, queixas somáticas, ansiedade/depressão, problemas sociais,problemas do pensamento, problemas de atenção, problemas sexuais, comportamentode quebrar regras e comportamento agressivo). Ele pode ser utilizado para a avaliaçãode indicadores de distúrbios que correspondam a qualquer uma dessas oito escalas.

Para a realização dessa pesquisa foi utilizada a versão Y.R.F. (Questionário deauto-avaliação para jovens – 11 a 18 anos) do CBCL. Nesta modalidade do instrumentoé o próprio adolescente quem responde o questionário. O Y.R.F. foi projetado para aobtenção de auto-relatos de adolescentes dos 11 aos 18 anos.

• Desenho da Figura Humana (DFH): o DFH é uma técnica projetiva não-verbal. Odesenho, sendo anterior à linguagem escrita, alcança níveis primitivos da personalidade.O DFH é um instrumento usado como fonte de informação na geração de hipótesesclínicas, pois permite um acesso ao mundo interno do indivíduo e se constitui numimportante aporte para compreensão da personalidade e de sua interação com o meioambiente. A perspectiva teórica utilizada para interpretação do material contém aportesda teoria psicanalítica (Retondo, 2000). Para a interpretação, foi realizada uma primeiraanálise global dos desenhos e em seguida uma avaliação das partes individuais. Tambémfoi feita uma investigação de constantes quanto ao conflito latente e à história pessoal.Essa avaliação levou em conta normas brasileiras propostas por Hutz e Antoniazzi (1995).

• Medical Outcomes Study (MOS): trata-se da Escala de Apoio Social que foielaborada, originalmente, para o Medical Outcomes Study (MOS), em um estudo queabrangeu usuários de serviços de saúde em Boston, Chicago e Los Angeles, queapresentavam uma ou mais doenças crônicas (Griep & colaboradores 2005). Os itensda Escala foram submetidos a um processo de tradução e adaptação para o portuguêspor investigadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, segundo Griep ecolaboradores (2003). O questionário compreende cinco dimensões funcionais de apoiosocial: material – provisão de recursos práticos e ajuda material; afetivo –demonstrações físicas de amor e afeto; emocional – expressões de afeto positivo,compreensão e sentimentos de confiança; interação social positiva- disponibilidadede pessoas para se divertirem ou relaxarem e informação – disponibilidade de pessoaspara a obtenção de conselhos ou orientações. Para cada item, o indivíduo deve indicarcom que freqüência considera disponível cada tipo de apoio, em caso de necessidade:nunca, raramente, às vezes, quase sempre, ou sempre.

• Parental Bonding Instrument (PBI): baseado na Teoria do Vínculo de JohnBowlby mencionada acima, o Parental Bonding Instrument (PBI) foi desenvolvido porParker, Tupling e Brown (1979) a fim de medir a percepção da conduta e atitude dospais em relação ao sujeito. O questionário é constituído por 25 afirmações que compõemas escalas que avaliam “Cuidado” (12 itens) e “Superproteção” (13 itens). O sujeitodeve eleger aquela alternativa que melhor descreva sua relação com cada um dos pais,separadamente. Cada item é pontuado através da escala Likert, variando de 0 a 3pontos, assim a pontuação máxima na escala de Cuidado é de 36 pontos e 39 pontos naescala de Superproteção. Altos escores na escala de Cuidado representam percepçõesde carinho, proximidade e cuidado. Altos escores na escala de Superproteçãorepresentam percepções de superproteção, controle e infantilização.

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A partir dessas duas escalas derivam quatro indicadores de vínculos entre paise filhos – a) Cuidado ótimo: são aqueles pais que obtém alta pontuação em cuidado ebaixa em superproteção; b) Controle Afetivo: alta pontuação em cuidado e emsuperproteção; c) Controle sem afeto: baixa pontuação em cuidado e alta emsuperproteção e d) Negligente: baixa pontuação em cuidado e em superproteção.

O Parental Bonding Instrument (PBI) foi adaptado para o português brasileiropor Hauck e colaboradores (2006), tendo sido considerado satisfatório quanto aosaspectos de equivalência conceitual, equivalência de itens e equivalência semântica.O PBI foi utilizado neste estudo com o objetivo de identificar características do vínculodos adolescentes com seus pais e em que medida eles se sentem cuidados e protegidos.

O Medical Outcomes Study (MOS) visava analisar a rede de apoio social com aqual os participantes do estudo pudessem contar ou não. O Desenho da Figura Humanae o CBCL serviram para detectar os adolescentes que apresentavam indicadores dedepressão, hipótese diagnóstica confirmada ou não através das entrevistas com ospais e com os próprios adolescentes.

ProcedimentosQuanto aos procedimentos, os adolescentes e seus responsáveis foram

informados da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deacordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo sereshumanos (CNS 196/1996) e com a resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 016/200. Uma vez de acordo com a realização da pesquisa, as entrevistas foram iniciadas.

Foram realizadas inicialmente entrevistas de Anamnese com os pais ouresponsáveis para levantamento da história de vida e história clínica dos adolescentes.A seguir, foram realizadas as entrevistas individuais com os adolescentes, com oobjetivo de investigar a trajetória de vida do adolescente e seu estado atual. Na segundaentrevista com o adolescente era proposta a realização do DFH e o preenchimento doMOS, e na terceira entrevista o preenchimento do CBCL e do PBI. Foi oferecida apossibilidade de realização de entrevista de devolução para todos os adolescentes eseus pais, indicando-se acompanhamento psicoterápico quando necessário e desejadopelos participantes.

Resultados

Segundo os resultados obtidos no Inventário Comportamental da Infância eAdolescência, o CBCL, 6 participantes apresentaram indicador clínico de depressão(54,54%), de acordo com o escore obtido.

A avaliação projetiva do Desenho da Figura Humana confirmou a possibilidadede diagnóstico de Transtorno Depressivo em 5 (83,33%) dos 6 casos que já indicavamdepressão através do CBCL. Apenas 1 (20%) participante sem indicador de depressãopelo CBCL apresentou características depressivas significativas no DFH. Cabe ressaltarque outros indicadores de conflitos foram também encontrados com grande freqüênciano DFH, como agressividade em todos os adolescentes avaliados, com exceção de 1caso, o qual apresentou indicadores depressivos (16,66%). A insegurança foi uma

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característica constante nas avaliações, aparecendo em 5 (83,33%) dos casos comindicadores de depressão e em 4 (80%) dos casos considerados sem indicador clínicode depressão. E o Transtorno de Somatização foi constatado nos desenhos de 3 (50%)dos adolescentes com indicadores de depressão e em 3 (60%) participantes que nãoapresentavam indicadores depressivos no CBCL.

A avaliação do apoio social global disponível aos adolescentes deste estudoindicou uma média geral de 3,59, com os valores da escala de apoio variando de 1 a 5. Nosjovens que apresentaram características clínicas de depressão, a média global ficou em3,38 e a média dos participantes sem indicadores depressivos foi de 3,8. As redes deapoio social dos adolescentes foram percebidas como não provendo o apoio necessário,considerando que nenhum dos avaliados percebe um apoio superior à média. Dosparticipantes do estudo com sintomatologia depressiva, 3 (50%) apresentaram apoiosocial regular e 3 (50%) na média. Dos jovens sem indicadores de diagnóstico dedepressão, 4 (80%) apresentaram resultados na média e 1 (20%) como apoio regular.

Os resultados obtidos através do PBI demonstraram que nenhum dos jovenscom indicadores de depressão têm a percepção de “cuidado ótimo” em relação à figuramaterna. Desses jovens, em relação ao vínculo materno, 4 (66,66%) obtiveram apercepção do vínculo como de “controle sem afeto”, 1 (16,66%) caracteriza o vínculocomo de “controle afetivo” e 1 (16,66%) como “negligente”. Em relação ao vínculopaterno, 2 (33,33%) percebem o vínculo como “negligente”, 1 (16,66%) como de“controle sem afeto”, 1 (16,66%) como de “controle afetivo’. Apenas 1 (16,66%)adolescente tem a percepção de “cuidado ótimo” e 1 (16,66%) dos participantes nãorespondeu o questionário de vínculo paterno, pois alegou não ter tido pai ou alguémque o representasse.

No grupo de adolescentes sem indicadores para diagnóstico clínico de depressão,em relação ao vínculo materno, 2 (40%) têm a percepção de “controle afetivo”, 1 (20%)percebe um “cuidado ótimo”, 1 (20%) caracteriza o vínculo como de “controle semafeto” e 1 (20%) como “negligente”. Com relação ao vínculo paterno, 2 (40%) percebemo vínculo como de “controle sem afeto”, 2 (40%) como “negligente” e 1 (20%) caracterizacomo de “controle afetivo”.

Discussão

Através dos instrumentos utilizados, foi possível identificar algum indicador dedificuldades psicológicas em todos os adolescentes avaliados. De acordo com osindicadores obtidos através do DFH, por exemplo, 6 adolescentes apresentavam sinaisde depressão, 9 de insegurança, 6 apresentavam características de transtornos desomatização, e todos apresentavam indicadores de comportamento agressivo. Issonão é surpreendente, já que se trata de adolescentes que buscaram ou foramencaminhados para atendimento em um Serviço de Psicologia. Além disso, deve-sedestacar que a adolescência, por si só, é um período turbulento de reorganizaçãopsíquica e costuma vir acompanhada por diversas manifestações que não devem ser“patologizadas” a priori (Blos, 1996; Levisky, 1998; Outeiral, 2001; Urribari, 2004;Weinberg, 2001).

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Dos 6 adolescentes que apresentaram escore clínico na Escala de Depressão doCBCL, 5 apresentavam também sinais de depressão pelo DFH e em todos os 6 talhipótese foi reforçada nas entrevistas. Desses jovens, nenhum teve a percepção de“cuidado ótimo” em relação à figura materna, e apenas 1 teve essa percepção emrelação à figura paterna, de acordo com o PBI.

O PBI foi amplamente utilizado nas últimas décadas (Hauck e colaboradores,2006), e a falta de afeto e cuidado, especialmente quando associada a práticas educativasparentais controladoras, foi associada a patologias na vida adulta como depressão,ansiedade, suicídio, transtornos de personalidade, entre outras (Enns, Cox & Clara,2002; Patton & cols., 2001; Pedersen, 1994; Sato & cols., 1998).

Os dados obtidos confirmaram os de estudos anteriores que chegaram à conclusãode que quanto maior a sintomatologia depressiva no adolescente mais inadequada é apercepção do suporte familiar, estando o suporte familiar correlacionado negativamentecom a sintomatologia depressiva (Baptista & Oliveira, 2004; Essau, 2004; Patton ecolaboradores, 2001; Pedersen, 1994; Shaw & Dallos, 2005).

Dos 6 adolescentes com indicadores de depressão que participaram desse estudo,4 perceberam seu vínculo com a mãe como de “Controle sem afeto”, resultado semelhanteao encontrado por Patton e colaboradores (2001). De modo semelhante, em relação aospais, em 2 desses adolescentes o vínculo foi percebido como “Negligente”, em 1 comode “Controle sem afeto”, em 1 como de “Controle afetivo” e em apenas 1 como de“Cuidado ótimo”. Pedersen (1994) revisou estudos que concluíram que pessoasdeprimidas experimentaram relacionamentos com seus cuidadores primárioscaracterizados por cuidado pobre e sem afeto e superproteção na infância. Em seuestudo, este autor identificou uma relação entre o cuidado percebido como pobre porparte da mãe a características de delinqüência no adolescente, e o cuidado percebidocomo pobre por parte do pai às características depressivas. No grupo de adolescentesavaliado em nosso estudo, não foram identificados indicadores de comportamentodelinqüente mais evidentes.

Os dados encontrados oferecem suporte à relação entre a fragilidade dos vínculosde apego estabelecidos no grupo familiar e modelos patológicos de funcionamentodescrita na literatura, ressaltando-se a importância das relações familiares para a saúdemental. Tal relação vem ao encontro dos resultados obtidos neste estudo, visto quepredominou a percepção de “Controle sem afeto” dos pais por parte dos adolescentesinvestigados. Observa-se, portanto, que talvez o grupo familiar não tenha seconfigurado suficientemente como facilitador e promotor da saúde mental dos jovensavaliados, o que pode ter contribuído para os indicadores do transtorno depressivoencontrados.

Levantou-se a hipótese, diante dos resultados obtidos, de que os jovens queapresentam indicadores clínicos de depressão têm um vínculo com os pais inadequadoem alguma medida, visto que predominaram percepções de cuidado insuficiente pelasfiguras paterna e materna. O que testemunha em favor da existência de aspectossignificativos na relação entre vínculo parental e depressão.

Por outro lado, devemos estar alertas para o cuidado especial que deve sertomado em relação às correlações encontradas nos estudos sobre vínculo parental e

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depressão, como enfatizam Baptista e Oliveira (2004). Esses autores lembram que gruposde indivíduos que possuem algum tipo de patologia tendem a perceber o seu suportefamiliar como mais supercontrolador e fornecedor de menores taxas de carinho, sendoque o contrário também é verdadeiro; portanto, esta relação não deve ser consideradacomo linear.

As relações familiares e a sintomatologia depressiva possuem relaçõesbidirecionais, sendo que a família pode ser considerada como um modelo potente parao desenvolvimento de vínculos nos adolescentes, bem como a sintomatologiadepressiva no adolescente pode modificar a percepção e os vínculos com a família.

Os resultados da avaliação de apoio social disponível aos adolescentes apontarampara uma rede de apoio social percebida como não provendo o apoio necessário,considerando que nenhum dos participantes possui um apoio social superior à média.Esse dado se torna mais saliente quando lembramos que se trata de jovens para quema relação com os pares, as relações de amizade, assumem um caráter extremamenteimportante e central no processo de construção da identidade (Sanchez-Queija &Oliva, 2003; Souza & Ramires, 2006).

Analisando que no momento evolutivo dos jovens a tarefa de independização eaquisição da identidade é fundamental, para melhor auxiliá-la se faz necessário umapoio familiar e social. Entretanto, verifica-se que justamente estes dois contextos degrande relevância para o desenvolvimento dos adolescentes podem se constituir comofonte de estresse, tendo em vista que os resultados deste estudo apontaram para umapoio social não suficiente, além das limitações já citadas nos vínculos com os pais.Podemos considerar, assim, que os adolescentes avaliados apresentaram umafragilidade nas relações familiares e uma dificuldade de relacionamentos com os pares.

Foi possível identificar semelhanças entre nossos resultados acerca da rede deapoio social, e suas implicações para a saúde mental, com investigações realizadas poroutros pesquisadores. Liu (2006) evidenciou em seu estudo que adolescentesseguramente apegados aos seus pais relatavam mais suporte social por parte dos seuspares e menos sintomas depressivos. Lopes, Faerstein e Chor (2003) constataram queos participantes de seu estudo com melhor percepção do seu estado de saúde eclassificados como negativos para transtornos mentais comuns tiveram chances maiselevadas de perceberem alto apoio social.

O estudo de Costa e Ludermir (2005) concluiu também que pessoas que têmbaixo apoio social apresentam duas vezes mais chances de ter depressão. Segundo asautoras, o apoio social que pode ser oferecido tanto por amigos como pela famíliaajuda o indivíduo a lidar com situações estressoras e protege contra transtornos comoa depressão.

Cabe ressaltar a preocupação de Griep e cols. (2005), no sentido de que tanto apercepção de pouca disponibilidade de apoio pode influenciar na pior avaliação doestado de saúde física e /ou mental, como diversos graus de doença ou mal-estarpodem desencadear isolamento, e, portanto, menor nível de apoio social. SegundoAzevedo, Nascimento, Moraes e Souza (2003), na maioria das manifestações dosdistúrbios depressivos, a principal preocupação do paciente é o sentimento dedesamparo quanto à sua capacidade de estabelecer e manter relações afetivas.

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Sendo o período da adolescência caracterizado por grandes mudanças e conflitose levando em conta o aumento constante de casos clínicos de depressão nessa fase dodesenvolvimento humano, bem como suas graves repercussões, é de grandeimportância compreender as relações do adolescente e a multiplicidade de fatores queenvolvem esse processo.

A depressão atualmente pode ser considerada um dos problemas mais comunsencontrados pelos profissionais da saúde mental ao diagnosticar e tratar seus pacientes.A partir da adolescência, os sintomas depressivos são responsáveis por cerca de 75%das internações psiquiátricas. Além disso, calcula-se que a depressão seja responsávelpela maioria dos suicídios entre os jovens (Bahls, 2002), como foi visto acima. Portanto,tornam-se de grande necessidade programas de prevenção e intervenção precoce nasintomatologia do transtorno depressivo.

Este estudo confirmou a hipótese de que adolescentes que não apresentaram umapercepção de cuidados adequados por parte das figuras parentais e não dispõem de umarede de apoio social suficiente têm maior probabilidade de desenvolver sintomasdepressivos. Os resultados, ainda que limitados uma vez que foram restritos a um pequenonúmero de adolescentes avaliados, apontam para a importância de trabalhos de prevençãoe fortalecimento do vínculo com os pais, assim como das redes de apoio social.

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Recebido em agosto de 2006 Aceito em julho de 2007

Ana Cláudia Nuhlmann Schneider: psicóloga formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –UNISINOS.Vera Regina Röhnelt Ramires: psicóloga, doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP, mestre em Psicologiapela PUCRS; especialista em Psicoterapia Psicanalítica de Crianças e Adolescentes.

Endereço para contato: [email protected]

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Famílias com casais de dupla carreira e filhos em idadeescolar: estudo de casos

Nadir Helena Sanchotene de SouzaAdriana Wagner

Bianca de Moraes BrancoClaudete Bonatto Reichert

Resumo: Este estudo tem por objetivo conhecer a estrutura e a dinâmica de funcionamento defamílias de nível sociocultural médio-alto, com casais de dupla carreira e filhos em idade escolar.Para tanto, realizou-se um Estudo de Casos Múltiplos (Yin, 1993) com quatro famílias. Para acoleta de dados, foi utilizada a Entrevista Familiar Estruturada (Féres-Carneiro, 1996), e umquestionário que investigou dados biodemográficos e aspectos do funcionamento e da estruturadessas famílias. Os resultados apontaram a tendência das mulheres serem responsabilizadaspelo bem-estar dessas famílias, principalmente pelo trabalho doméstico. A contribuição doshomens apareceu de forma mais intensa nos cuidados dos filhos e em algumas atividades delazer, nos finais de semana. De modo geral, um dos cônjuges apareceu como sendo o chefe decarreira, o que lhe conferia maiores poderes. Dentre as dimensões avaliadas nessas famílias, ainteração conjugal foi a que demonstrou um decréscimo de investimento.Palavras-chave: famílias contemporâneas, casais de dupla carreira, gênero, estrutura familiar.

Dual-Career marriage in families with scool-age children: Study casesAbstract: This study aims to understand the functioning structure and dynamics of middleclass and high class sociolcultural families with dual-career marriage and school-age children.We studied four families in a Multiple Case Study design (YIN, 1993), whose data was obtainedby using the Family Structured Interview (EFE) (Féres-Carneiro, 1996), and a questionnaire,which investigated aspects of the functioning and structure of these families, to biodemographicaldata. Results suggest a tendency for women to be held responsible for the family well-being,especially domestic work. Men’s contribution appeared more intensely related to children careand some weekend leisure activities. In general, there was a tendency for one of the parents toplace career above all and become granting him or her more power. Among all dimensionsevaluated, husband and wife interaction was the dimension that showed unanimous decrease ininvestment.Key words: Contemporaries families, dual-career marriage, couples, gender, family structure.

Introdução

Frente às novas exigências econômicas e sociais, muitas mulheres saíram de seulugar de cuidadoras e educadoras da prole para se expandirem na sociedade. Nos diasde hoje, elas desenvolvem importante papel não só no gerenciamento do lar, comotambém no sustento dos filhos, enfrentando o mercado de trabalho, competindo comos homens por funções de liderança, poder e remuneração.

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Esse caminho, ainda que tenha trazido gratificações, não foi e não é fácil para asmulheres, haja vista as inúmeras exigências sociais, as expectativas individuaissomadas as demandas dos papéis de mãe, esposa e profissional. A família e o trabalhotêm se mostrado mutuamente apoiadores para o homem, porém, para as mulheres,constituem-se, geralmente, exigências conflitantes (Carter & McGoldrick, 1995; Rocha-Coutinho, 2005; Zordan, Falcke & Wagner, 2005). Na década de 90, as mulheresmostravam sentirem os homens como mais necessários do que desejáveis em suasvidas (Goodrich, 1990).

Mesmo frente a evidente inserção feminina no mundo do trabalho, em meadosdos anos 90, os jovens casais acreditavam no mundo do trabalho como pertencentemais aos homens e que as mulheres pertenceriam mais ao lar e à tarefa de educar osfilhos. A mulher de então se mostrava convicta da sobrecarga da maternidade e da nãorecompensa social. Provavelmente essa percepção tenha se refletido no fato dasmulheres passarem a se casar mais tarde, a ter menos filhos e a se divorciar mais (Carter& McGoldrick, 1995). Esta tendência também foi demonstrada em estudos mais recentes,em que houve uma queda no número de casamentos que passaram de oito por grupode mil habitantes em 1990, para 5,7 por mil em 2001 (IBGE, 2003).

Além disso, a idade média dos homens ao se casarem aumentou de 26,9 anos em1990 para 29,3 anos em 2000, e das mulheres, de 23,5 anos para 25,7 anos (Feres-Carneiro, 2005).

Dentre outros fatores, os principais motivos para a “crise do casamentocontemporâneo” seriam o movimento de modernização da sociedade, o processo desecularização, a expansão do individualismo, o aumento da longevidade e a formacomo a cultura valoriza o amor e a sexualidade nos dias de hoje, idealizada, perfeita epassional como nas novelas e filmes (Jablonski, 2003).

Paralelo a “essa crise do casamento”, tem havido um esforço social e legal paragarantir a igualdade entre homens e mulheres, como, por exemplo, no Chile, que acabade eleger Michelle Bachelet a sua primeira presidente mulher. Neste país, as normassobre jornada de trabalho ou sobre proteção da maternidade estão sendo impetradascom o objetivo de avançar na distribuição mais eqüitativa de papéis entre mães e paistrabalhadores, de forma a contribuir para uma verdadeira mudança no mercado detrabalho e para um reconhecimento efetivo da igualdade de oportunidades entre homense mulheres (Caamano, 2004).

Porém, como se sentem tais mães/mulheres na atualidade? Ilustrando acomplexidade do tema, um estudo realizado na Holanda mostrou que a combinação dotrabalho remunerado com o cuidado dos filhos não prejudica a saúde das mães e que,pelo contrário, esta associação de trabalhos está vinculada a maiores níveis de saúdedas mães, independente de ela estar casada ou divorciada (Fokkema, 2002). No entanto,há muitas diferenças socioeconômico-culturais entre a Holanda e o Brasil. Este tematem sido pesquisado, recentemente, no contexto brasileiro (Fleck, Falcke & Hackner,2005; Rocha-Coutinho, 2005) e há evidências de que o estresse das mães (com trabalhoremunerado) está associado, principalmente, à escassez de recursos financeiros, aalguns fatores familiares (como ter filhos pequenos ou com deficiência), bem como àscaracterísticas do trabalho – longa jornada. Considerando-se estes dados, pode-se

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supor que os níveis de satisfação e de saúde das mães brasileiras (que trabalham fora)são menores do que os das mães holandesas e que o problema não está na associaçãodas tarefas em si, mas nesses fatores circundantes e contextuais.

O momento atual é o da diversidade. Muitas não trabalham e, por opção ou não,mantêm o papel tradicional. Outras, por sua vez, limitam sua dedicação profissional aoturno em que seus filhos estão na escola, a fim de não privá-los de seus cuidados.Porém, há mulheres que vêm investindo em turno integral em seu trabalho. Portanto,um segmento das famílias contemporâneas vem caracterizando-se pela dedicação deambos os pais às suas carreiras, com o conseqüente enfrentamento da competição edas dificuldades impostas pelo mercado de trabalho. Esse segmento depara-se cominúmeras exigências e dificuldades no cuidado e na educação dos filhos, gerando anecessidade de uma ampla rede de apoio social. Surge a discussão sobre as relaçõesde poder e as questões de gênero na família, propondo o questionamento do que émasculino e o que é feminino nas esferas doméstica e familiar. Mesmo para casaismodernos, estudos recentes têm confirmado que tanto os homens quanto as mulheres,em diferentes níveis de consciência, parecem ainda acreditar que a casa e os filhos sãoresponsabilidade da mulher, enquanto o provimento financeiro da família éresponsabilidade do homem (Rocha-Coutinho, 2005).

No desenvolvimento do ciclo evolutivo familiar, o cuidado dos filhos em idadeescolar impõe suas especificidades, e por isso foi escolhido como foco deste estudo.A dependência física e afetiva dos filhos com relação aos pais ainda é grande,sobrecarregando-os e colocando-os à prova frente a questões de gênero na esferafamiliar. Além disso, Andrade (2005) ressalta a importância da qualidade do estímulodoméstico para o desenvolvimento cognitivo infantil e do relevante papel das condiçõesmateriais e da dinâmica familiar. Aspectos estes que vem, muitas vezes, a reforçar asexpectativas culturais vigentes em nosso contexto a respeito da divisão dos papeismasculinos e femininos, especialmente no que se refere ao desempenho de funções nosubsistema conjugal e parental (Wagner, Predebon, Mosmann, & Verza, 2005).

Da mesma maneira, a escolha da família de nível sociocultural médio-alto deve-seao fato de que as mesmas representam um substrato da sociedade cujo grau de exigênciaquanto à escolaridade, à cultura e aos recursos são maiores, estando estes casaissubmersos nas demandas trabalho e família (Wagner & Feres-Carneiro, 1998). Frente aesse fenômeno, o presente estudo objetiva conhecer a estrutura e a dinâmica defuncionamento de famílias com casais de dupla carreira e filhos em idade escolar.

Método

Optou-se pela utilização do método de Estudo de Casos Múltiplos (Stake, 2000;Yin, 1993), considerando que esta é uma metodologia que se propõe a investigar acomplexidade das inter-relações dos sujeitos em seu contexto.

ParticipantesParticiparam da pesquisa quatro famílias, residentes na cidade de Porto Alegre,

com casais de dupla carreira e com filhos em idade escolar. Essas famílias possuem

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uma configuração nuclear original, composta por marido, esposa e filhos. O nívelsociocultural delas é médio-alto, possuindo ambos os pais instrução superior.

ProcedimentosAs famílias que fazem parte desta investigação foram selecionadas a partir do

critério de conveniência. Foi realizado um encontro com cada família, quando todos osmembros estavam presentes. Primeiramente, solicitou-se que o casal respondesse deforma individual um questionário com dados biodemográficos e de estrutura familiarcom o objetivo de conhecer aspectos tais como a proporção de contribuição de cadacônjuge na renda familiar, recursos de rede de apoio social da família, atividades delazer, entre outros.Este instrumento resgatou informações para a caracterização dasfamílias estudadas. Feito isso, realizou-se com toda a família a Entrevista FamiliarEstruturada (EFE) (Féres-Carneiro, 1979) como o objetivo de avaliar as seguintesdimensões: comunicação, papéis, liderança, manifestação da agressividade, afeiçãofísica, interação conjugal, individualização, integração familiar e auto-estima, segundoos critérios estabelecidos pelo instrumento.

A filmagem foi o recurso utilizado para possibilitar a transcrição fiel dascomunicações verbais e não verbais. Todos os membros da família assinaram um termode consentimento livre e esclarecido que informava os termos da pesquisa, o uso dosdados e garantia o anonimato. Nesse caso, por questões éticas os nomes dos membrosda família foram alterados, assim como os dados referentes às profissões foram omitidosem todas as famílias aqui apresentadas.

Resultados

A apresentação e discussão dos resultados ocorreram em duas etapas:Inicialmente através da análise vertical em profundidade de cada família eposteriormente através de uma análise horizontal e integradora dos quatro casosestudados conforme sugere Stake (2000).

Estudo de caso 1: O casal Duarte é composto por Tiago, 43 anos, e Vânia 42 anos.Ambos são profissionais liberais e possuem o terceiro grau completo e contribuem deforma igualitária para a renda familiar. Amanda, a filha mais velha, tem 13 anos; Eduardatem 10 anos e Filipe, 7 anos de idade. Todos os filhos estudam em escola particular.

Na estrutura e dinâmica de funcionamento dessa família, podemos observar quea comunicação entre a maioria dos membros se processa de forma clara, congruente eempática, sendo, constantemente, estimulados pela mãe. Os papéis são definidos ediferenciados. A liderança é exercida pelo subsistema parental, sendo que maisespecificamente pela mãe, que tende a monopolizá-la. A manifestação da agressividadese expressa de forma construtiva e com direcionalidade adequada. A afeição física estápresente, mas se manifestou, preponderantemente, através de gestos e expressõesverbais no subsistema fraterno.

Entre todas as categorias avaliadas da EFE dessa família, a interação conjugal foia que se mostrou menos satisfatória. Esta se revela pouco gratificante e enfraquecida,

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possivelmente devido ao forte envolvimento do casal com suas carreiras e com ocuidado dos filhos, inexistindo uma rede de apoio que os alivie das demandas da etapado ciclo vital que atravessam.

O subsistema parental revela-se mais eficiente que o subsistema conjugal. Aindividualização e o desenvolvimento de cada membro são priorizados, bem como aintegração familiar. Há expressão de sentimentos de auto-estima por parte de todos osmembros da família.

O pai mostra maior disponibilidade, em comparação com a mãe, para atender aosfilhos nas atividades extracurriculares e no caso de doença, como um afastamento dospapéis de gênero tradicionalmente estabelecidos, sugerindo mudanças contemporâneas.

Estudo de caso 2: O casal Prates é composto por Roberto, 41 anos com titulaçãode doutorado em sua área de atuação e Helena 39 anos, mestranda. O pai contribuicom 60%, enquanto a mãe contribui com 40 % para a renda familiar. Ambos sãoprofissionais liberais. Possuem três filhos, Andréia, 15 anos; Bernardo, 09 anos eCarlos, 06 anos de idade.

Na estrutura e na dinâmica de funcionamento da Família Prates, observa-se quea comunicação se processa a partir da mãe e do filho Bernardo, os quais se expõem nogrupo e promovem o diálogo entre os membros. Roberto revela um estilo decomunicação claro, explícito e sucinto. Carlos e Andréia são os membros que menos secomunicam verbalmente, sendo que o primeiro tendeu a expressar-se mais com o corpo.Independentemente dos diversos estilos, este grupo revelou comunicação comdirecionalidade e carga emocional adequadas.

Os papéis de cada membro dessa família são definidos, e todos desenvolvemfunções específicas. O poder econômico e decisório fica ao encargo do pai, a mãeocupa-se com os filhos e o lar, revelando uma divisão tradicional de papéis.

A liderança é assumida pelo subsistema parental, mais especificamente pelo pai,que delega a operacionalização das demandas para a esposa, a qual corresponde. Essaliderança tende a ser democrática frente aos filhos, que são ouvidos em suasnecessidades, porém cabe aos pais a decisão final.

Há pouco espaço para a manifestação da agressividade nessa família, sendosomente expressa pelo subsistema fraterno. No entanto, a afeição física foi manifestadacom clareza e espontaneidade pela maioria dos membros. As trocas de carinhos nessafamília acontecem mais facilmente entre pais e filhos, não aparecendo entre o casalexpressões de afeição física na situação grupal.

A interação conjugal, por sua vez, revela-se como uma das dimensões de menorinvestimento, quando comparada ao cuidado dos filhos e ao investimento nas carreiras.Observamos também, que o subsistema conjugal se mostra permissivo às interferênciasdas demandas dos filhos, sugerindo fronteiras tênues com eles.

As individualidades foram preservadas nessa família, no subsistema conjugal enos demais. Revelam respeito pelas características e pelos interesses individuais, bemcomo valorizam a unidade grupal.

A integração familiar, por sua vez, está presente, sendo liderada pelo subsistemaparental, que organiza e prioriza a unidade familiar. Todos os membros da família têmuma alta auto-estima, o que reflete o papel diferenciado e valorizado de cada um.

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Estudo de caso 3: O casal Silva é composto por Marisa, 42 anos e Jorge com 49anos. Ela professora do ensino fundamental e ele professor universitário e profissionalliberal. O pai contribui com 70%, enquanto a mãe contribui com 30 % para a rendafamiliar Possuem dois filhos, Joana com 13 anos e Pedro com 11 anos de idade.

A comunicação da família Silva processa-se basicamente através dos pais, osquais, de forma prolixa e confusa, monopolizam a mesma. Nos conteúdos dasverbalizações da mãe, observam-se queixas dirigidas ao marido, com relação à desigualdivisão do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos. A comunicação não-verbalrevelada, principalmente por Pedro e Marisa, apresenta sinais de stress e emoçãocontida.

Quanto aos papéis, Jorge ocupa uma posição periférica e individualista nasdemandas da casa e no cuidado dos filhos. Ele concentra seus esforços nodesenvolvimento de sua carreira. Marisa, por sua vez, tende a tomar para si o encargocom os filhos e com o lar, que se soma às demandas profissionais. Já os filhos respondempositivamente às expectativas de bom desempenho escolar, porém mostram-sepassivos e pouco expressivos na dinâmica familiar.

A liderança neste núcleo famíliar é exercida pelo subsistema parental, o qualapresenta diferentes níveis de poder e autoridade em relação aos filhos. Esta liderançaparece ser autoritária, à medida que os pais tendem a definir rigidamente as prioridadesdo grupo, como um todo. Observam-se diferentes níveis de poder, evidenciadas nopapel monopolizador de Marisa frente às demandas familiares. Jorge é menos solicitado,porém, recebe de todos os membros da família (e se outorga) a autoridade máxima nadinâmica familiar.

Não há manifestação explícita da agressividade nesta família. A afeição física émais facilmente manifesta dos pais para com os filhos e vice-versa. Observou-se que osubsistema conjugal e fraterno raramente expressa afeto entre si.

A interação conjugal parece pouco integrada e gratificante, já que o casal nãoprioriza o convívio íntimo conjugal e até o evitam, com a constante promoção deencontros com amigos e com a família extensa.

A individualização no subsistema conjugal mostra-se presente nos aspectosrelativos à priorização do desenvolvimento da carreira do marido e as inúmerasatividades da esposa. Este aspecto pouco aparece no subsistema fraternal. Já aintegração familiar no sistema ampliado sobrepõe-se, sendo esta priorizada emdetrimento da individualização dos membros e da interação conjugal.

A auto-estima de todos os membros desta família é baixa, tendo sido difícil paraeles identificarem aspectos positivos de suas personalidades. As característicaspositivas ressaltadas por eles são a resignação e a tolerância à frustração de Marisa, aextroversão de Jorge e o bom desempenho escolar dos filhos.

Estudo de caso 4: O casal Souto é composto por José, 45 anos, estrangeiro quemora no Brasil há 15 anos e trabalha numa empresa, e por Rose, 46 anos, profissionalliberal. Eles têm dois filhos, Antônio, 14 anos e Fábio, 12 anos de idade.

A comunicação da Família Souto centra-se nas figuras de José e Fábio, os quaismonopolizam com verbalizações diretas e em tom de crítica. Os conteúdos dacomunicação familiar sugerem postura rígida e crítica dos membros, uns em relação

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aos outros. José e os filhos unem-se nas críticas e nas desqualificações dirigidas àmãe/esposa, que pouco se defende.

As constantes desqualificações da parte de José e dos filhos para Rose, sedevem em grande parte ao fato de ela não corresponder ao papel tradicional de mulher.O papel desta, na família, mostra-se depreciado por ela não demonstrar interesse eenvolvimento com as lidas domésticas, concentrando seus esforços e interesses emsua carreira. Rose ocupa um papel periférico na dinâmica familiar.

José, por sua vez, desenvolve um papel bem mais ativo, envolvendo-se com o dia adia da família, sendo freqüentemente requisitado pelos membros, aos quais ele tende aauxiliar. Ele envolve-se com as demandas da casa, com as lidas domésticas e com o cuidadodos filhos. Revela-se como a figura parental que detém o poder e assume a “liderança”.

Os filhos, frente a esta assimetria de função e papéis da dinâmica parental, tendema intrometer-se e desrespeitarem a autoridade dos pais. Observam-se limites difusosentre estes pais e seus filhos.

Os papéis dos filhos também revelam diferentes níveis de poder. O primogênitomostra-se mais reservado, tendendo a uma menor exposição e a um menor envolvimentona conflitiva dos pais. O caçula, por sua vez, aparenta estar mais triangulado com ospais, já que acompanha o pai nos constantes ataques à mãe, como também se aproximafisicamente desta, ao longo da coleta de dados.

Há clara manifestação da agressividade entre os membros desta família, dirigidasà Rose. No subsistema fraternal também é manifesta a agressividade, a qual nãoconsegue ser contida pelos pais, devido à sua liderança enfraquecida.

A afeição física também pode ser manifestada nesta família, porém de forma maiscontida que a agressividade. São mais facilmente dirigidas entre pais e filhos, nãohavendo manifestações de afeto entre o casal. A entrevista revelou que o cuidado comos filhos e a dedicação profissional de ambos os cônjuges são priorizados emdetrimento da interação conjugal.

Análise horizontal e integradora dos quatro casos

Partindo de uma visão conjunta dos casos, observamos que, geralmente, acomunicação processou-se a partir das mães/esposas, que se revelaram porta-vozesdo grupo, responsáveis pela clarificação de idéias, pela explicitação da dinâmica familiare organização dos membros frente à entrevista.

Os papéis das mulheres nessas famílias eram, excetuando-se o caso da famíliaSouto, de envolvimento mais direto com as demandas do lar e, principalmente, com ocuidado dos filhos. Comparativamente aos homens, sugere independentemente dasmudanças na contemporaneidade, são elas que orquestram e organizam a vidadoméstica, como também referem Silberstein (1992), Diniz e Coelho (2005) e Zordan,Falcke e Wagner (2005).

A família Souto não mostrou desenvolvimento de papéis tradicionais de gênero.Nessa família, é a figura masculina que tende a se envolver com as demandas do lar ecom o processo educativo dos filhos. Salientamos, entretanto, que há a expectativa depapéis tradicionais de gênero por parte dos membros do sexo masculino dessa família,

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expressada na não-aceitação da priorização da carreira da mãe/esposa. A intensidadedo sentimento de inconformidade com esse aspecto revelou-se como um dificultadorda promoção da saúde emocional nessa família. Na família Souto, o pai mostrou-serevoltado e descontente com o seu envolvimento com as demandas da casa e dosfilhos. Este fato corrobora a idéia de que os homens ainda consideram, na atualidade,o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos como encargos tipicamente femininos.Portanto, o exercício de tais funções, muitas vezes, pode ser sentido como ameaçadorda sua masculinidade (Arrighi & Maume, 2000).

Quanto à distribuição de papéis, em duas das quatro famílias analisadas,respectivamente, nas famílias Silva e Souto, os papéis desenvolvidos pelo casal nadinâmica familiar são divididos em tarefas específicas e excludentes, o que tende aafetar o desenvolvimento e a interação conjugal, como de fato foi aqui observado, bemcomo postulado por Minuchin (1982) e Wagner e Feres-Carneiro (1998).

Nas famílias Prates e Duarte, essa divisão excludente revelou maior moderação,possibilitando a melhor colaboração nas tarefas entre os cônjuges, principalmente noque diz respeito ao cuidado dos filhos. Identificamos esse aspecto como facilitadoresda saúde emocional da família e de ambas carreiras dos cônjuges (Diniz, 1999).

De forma geral, verificamos o quanto é difícil para esses casais flexibilizarem ouse libertarem dos papéis de gêneros contidos em sua história, a fim de melhor searticularem entre o trabalho e a família, como refere Silberstein (1992).

Na análise da dimensão liderança, observamos que, em todas as famílias, ela éexercida pelo subsistema parental, como esperado por famílias que promovem a saúdeemocional de seus membros (Carter & McGoldrick, 1995; Féres-Carneiro, 1992; Minuchin& Fishman, 1990). Acrescentamos que a liderança parental que promove a saúdeemocional da família é caracterizada por diferente nível de poder e autoridade comrelação aos filhos, o que não implica numa autoridade indiscutível, mas sim flexível eracional, adequada à idade dos filhos.

Quanto ao nível de poder, constatamos que somente na família Silva o exercíciodeste ocorre de forma rígida. Em resposta à característica estrutural dessa família, osfilhos revelam-se contidos e reprimidos em suas manifestações, o que pode serprejudicial para o seu desenvolvimento global. Nas demais famílias, a espontaneidadee a vivacidade dos filhos sugeriram flexibilidade da liderança parental.

Salientamos, no entanto, que, dentro do subsistema parental dessas famílias,geralmente, havia diferentes níveis de poder. Nas famílias Prates e Silva o podereconômico é assumido pelas figuras paternas e o domínio doméstico é de encargomaterno. Na família Souto, o envolvimento do pai com as demandas do lar e da famíliaoutorga-lhe um status especial, comparativamente à esposa.

Na família Duarte, por sua vez, observa-se que a liderança feminina se sobrepõe nosubsistema parental. Associamos esse diferencial à participação econômica igualitáriadesse casal para a renda familiar, o que não foi encontrado nos demais. Esse dadocorrobora os achados de pesquisas nacionais e internacionais (Cooper & Lewis 2000;Fleck & Wagner, 2003; Helms-Erikson, 2000; McFarlane, Beaujot & Haddad, 2000;Silberstein, 1992) de que as mulheres que se definem como co-provedoras, ao invés degeradoras de segunda renda, sentem-se em condições de negociar maior participação

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dos maridos nas demandas familiares, sofrem menos de depressão e têm menos conflitosconjugais e uma divisão mais igualitária do trabalho doméstico entre os cônjuges.

Nos casos das famílias Prates e Silva há um “chefe de carreira”, (Hardill, Green,Dudleston & Owen, 1997) aquele que coloca sua carreira acima de tudo. O pai/maridoassume este papel. Já na família Souto e Duarte, não foi possível detectar qual dos doisé o chefe de carreira. Entretanto, a dinâmica familiar aponta que, independentemente daproporção da contribuição de cada cônjuge para o orçamento doméstico, a mulher pareceser a chefe de carreira, devido à importância que ela confere a mesma. Por outro lado, apostura ressentida de José Souto e seu nítido descontentamento com relação ao empenhoprofissional da esposa corroboram os achados de Cooper e Lewis (2000) de que oshomens cujo poder e a masculinidade estão diretamente ligados ao papel de provedortendem a se sentirem ameaçados, quando as mulheres têm sucesso em suas carreiras.

Quanto à possibilidade ou não da manifestação de agressividade, observa-seque se expressa de várias formas, dependendo da flexibilidade ou não da estruturafamiliar. Na família Duarte, é permitida sua expressão de forma construtiva e comdirecionalidade adequada. Na família Prates, somente é permitida sua manifestação nosubsistema fraterno. Na família Silva, sua manifestação direta é estritamente proibida,o que provoca a repressão de sentimentos. Por sua vez, na família Souto, há claramanifestação de agressividade entre os membros, principalmente dirigida à mãe, emfunção da não-aceitação dos membros da sua prioridade à carreira. Nesse sentido, aliteratura descreve que o controle efetivo de sua manifestação é determinado pelaatitude dos pais, os quais servem como modelo (Ackerman, 1986).

Por sua vez, a manifestação da afeição física, através de gestos, esteve presenteem todas as famílias, principalmente dos pais para com os filhos e vice-versa. Destacamosa forte manifestação entre os membros do subsistema fraterno na família Duarte.

Para esses casais, o cultivo da sedução e do prazer se revela como um grandedesafio, na medida em que, ao abarcarem tantas demandas na conjunção trabalho efamília, geralmente o espaço conjugal fica pouco preservado. Assim, pôde-se observarque a interação conjugal foi a dimensão que revelou decréscimo de investimento eexpressão. Nas famílias Duarte e Prates constatou-se que o subsistema conjugal semostrou permeável às interferências dos filhos e dos cuidados com ambas carreiras.Porém, nessas duas famílias, os cônjuges ressaltaram que, quando possível, investemem viagens e jantares, cultivando, nessas situações, o espaço conjugal.

As famílias Silva e Souto, por sua vez, apresentaram uma interação conjugalmuito enfraquecida. Na primeira, há ausência de fronteiras com outros sistemas,principalmente com a família extensa, dificultando o convívio conjugal. A família Soutofoi a que revelou pior interação conjugal, surgindo acusações e ressentimentos entreo casal que impediam uma maior aproximação.

De modo geral, observamos nas quatro famílias investigadas um fraco ou ausenteinvestimento conjugal. Pode-se pensar que a vivência de casamento de dupla carreiraé estressante para os casais em decorrência da complexidade do estilo de vida e dapriorização do investimento nas carreiras e na criação dos filhos, em detrimento doinvestimento conjugal (Diniz, 1996).

Quanto à individualização, é preservada na maioria das famílias. Nas famílias

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Duarte, Prates e Souto, percebe-se sua priorização, principalmente no que diz respeitoaos filhos, que são respeitados por suas características e interesses pessoais.Especificamente nas famílias Duarte e Prates, observamos intenso investimento nodesenvolvimento cognitivo e social dos filhos, o que pode ser constatado nas inúmerasatividades extracurriculares dos mesmos.

A integração familiar, por sua vez, foi observada em três das quatro famílias: nafamília Duarte, na Prates e na Silva. Nas duas primeiras, observamos forte investimentodo subsistema parental na organização e na priorização da integração, sem, no entanto,menosprezar a individualização dos membros. Essa mesma dimensão mostrou-sesupervalorizada na família Silva, em detrimento da individualização dos membros, oque se revelou dificultador do desenvolvimento da individualização dos filhos e dainteração conjugal. Na família Souto, observamos escassa integração familiar,possivelmente decorrente dos conflitos parental e conjugal.

A auto-estima dos membros dessas famílias revelou-se como um reflexo dasdimensões anteriormente descritas e analisadas. Nas famílias com estruturas efuncionamento conjugal e parental mais funcional (como na Duarte e Prates), filhos e paisrevelaram importantes sentimentos de auto-estima. Nas famílias Silva e Souto, os conflitosconjugais e parentais afetam os sentimentos de valor positivo de seus membros. Nessecaso, pode-se observar que a família se constitui no ambiente social mais íntimo, o qualpode funcionar como fonte de estresse quando há disfuncionalidade, ou se converter noprincipal núcleo de apoio social, quando do contrário (Wagner & Féres-Carneiro, 1998).

Frente às exigências das duplas carreiras e das demandas do processo educativodos filhos nas etapas escolares e na adolescência, essas famílias revelaram diferentescaracterísticas em suas estruturas. No entanto, observamos que aquela com maiorflexibilidade para acionar padrões alternativos e que lança mão de mais recursos deredes de apoio se mostrou mais funcional.

Todas as quatro famílias investigadas possuem, em sua rede de apoio, algumaavó, porém, as mesmas só eram solicitadas a auxiliar em situações de emergência,sendo raramente acionadas. O recurso da empregada doméstica, no entanto, mostrou-se amplamente necessário e valioso para essas famílias.

Quanto à tarefa educativa que mais absorve esses casais de dupla carreira,destacam-se a dificuldade de orientar e dar limites aos filhos, bem como auxiliá-los nastarefas escolares.

Há sinais de modificação da estrutura e do funcionamento das famílias comcasais de dupla carreira. Nas famílias Duarte e Souto, são os homens que deixam detrabalhar para cuidar dos filhos, quando adoecem. Somado a isso, também informaramque são as figuras paternas que costumam passear com os filhos e preparar refeiçõeselaboradas nos fins de semana. No entanto, mesmo nessas famílias, a sobrecarga dotrabalho doméstico e do cuidado com os filhos fica ao encargo das mulheres.

Cabe lembrarmos que o único casal que apresentou uma divisão mais igualitáriadas demandas da casa e dos filhos foram os Duarte, sendo também os únicos que, comsuas carreiras, contribuem igualmente para o sustento da família. Pode-se hipotetizarque o poder de decisão e a divisão do trabalho familiar estão diretamente vinculadosao ganho financeiro de cada cônjuge.

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Considerações finais

Os resultados obtidos nesse estudo corroboram pesquisas atuais (Fleck, Falcke& Hackner, 2005; Jablonski, 2005; Rocha-Coutinho, 2005) quanto às evidências de quea entrada das mulheres no âmbito público provocou mudanças no casamento e nafamília. O investimento de muitas mulheres no aprimoramento profissional tem sidofundamental para que elas possam, gradativamente, ocupar posições de destaque nomercado de trabalho, antes domínio exclusivo dos homens. Esse caminho tem sido umdesafio tanto para eles, quanto para elas.

Nessa perspectiva, o surgimento dos casais de dupla carreira tem amplificado asdemandas do exercício parental devido à imposição de aprimoramento constante e aosdesafios profissionais que se somaram às atividades domésticas, ao cuidado dosfilhos e ao cultivo da relação conjugal. Nesses casais estudados, os resultados indicamque os conflitos conjugais são mais evidentes quando ambos os cônjuges dividem erealizam as tarefas de forma rígida e desigual, o que esta corroborado pelos estudos deWagner, Predebon, Mosmann e Verza (2005).

No entanto, pode-se pensar, inclusive, na situação inversa, em que passar o diainteiro em casa, em função das lidas domésticas, pode ser um fator de estresse para asmulheres, na medida em que concentraria todas as expectativas e frustrações em apenasuma atividade.

Portanto, não parece que o determinante para o bem estar das mulheres seja adedicação exclusiva em uma única tarefa, mas sim que as tarefas por elas realizadastenham sido por escolha, e que esses papéis tenham sido aceitos e compartilhadas porseus maridos. Isto é, um casamento satisfatório reduz a chance de estresse entrecasais de dupla carreira (Mosmann, 2007). Quando há complementaridade no casal,conseguindo dividir e realizar as tarefas de modo complementar, torna-se menosconflitante para eles articularem-se entre tantas demandas, resultando numa melhorfuncionalidade das relações familiares.

A divisão do trabalho doméstico revelou-se desigual, geralmente, havendo nessasfamílias uma tendência às mulheres serem responsabilizadas pelo bem-estar familiar,abarcando a maioria de tais demandas. A contribuição dos homens apareceu de formamais intensa no cuidado e no acompanhamento do desenvolvimento dos filhos e ematividades de lazer e de culinária nos finais de semana. No entanto, parece que nasfamílias Duarte e Prates, houve uma aceitação e satisfação das mulheres no exercíciodeste papel, o que parece ser o grande diferencial de bem estar.

Já na Silva, a mãe-esposa parece insatisfeita com este papel. Na Souto, a mãe-esposa se liberta do papel tradicional, e parece satisfeita com isso, tem o apoio do pai-esposo nas lidas domésticas, mas ambos sofrem com a não aceitação desta novaorganização. E é neste contexto da não aceitação que surgem o sofrimento e os sintomasnestas famílias.

É importante ressaltar que, mesmo nas famílias com conflitos evidentes, elasexaltavam o valor do trabalho de cada um dos cônjuges, consolidando a idéia doquanto este, além do retorno financeiro, oportuniza reconhecimento e valorização,revelando-se como fonte de gratificação e crescimento.

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Frente à complexidade desse fenômeno, a promoção da saúde emocional dosmembros dessas famílias é tarefa árdua e que depende, fundamentalmente, dacomplementaridade e flexibilidade conjugal a fim de criarem padrões alternativos quefavoreçam melhores níveis de bem-estar a todos os membros da família.

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Recebido em agosto de 2006 Aceito em maio 2007

Nadir Helena Sanchotene de Souza: psicóloga; mestre em Psicologia Clínica (PUCRS).Adriana Wagner: psicóloga; doutora em Psicologia (UAM/ES); professora da Faculdade de Psicologia daPUCRS.Bianca de Moraes Branco: psicóloga; mestranda em Psicologia Social (PUCRS).Claudete Bonatto Reichert: psicóloga; mestranda em Psicologia Social (PUCRS).

Endereço para contato: [email protected]

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Perspectivas no estudo do brincar: um levantamentobibliográfico

Scheila Tatiana Duarte CordazzoGabriela Dal Forno MartinsSamira Mafioletti Macarini

Mauro Luis Vieira

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo identificar as perspectivas no estudo do brincara partir de resumos de artigos; fornecendo, assim, um panorama do que vem sendo pesquisadosobre este tema. Para isso, foi realizada uma busca sistemática em uma base de dados bibliográfi-cos internacional (PsycInfo – APA) e em duas nacionais (Scielo e Index Psi). Foram encontradosresumos de artigos que datavam de 1980 até 2005 (n=181), os quais foram analisados e classifica-dos sistematicamente. As conclusões apontam para: a) necessidade de considerar outras faixasetárias no estudo do brincar; b) necessidade de um maior número de pesquisas empíricas nacio-nais; c) identificação de poucas pesquisas que relacionam o brincar com a aprendizagem e d)predomínio de pesquisas que relacionam o brincar ao desenvolvimento infantil.Palavras-chave: brincar, desenvolvimento e brincadeira.

Perspectives in the study of play: a bibliographical surveyAbstract: This work aimed to identify perspectives in the study of play by examining theabstracts from scientific papers on the subject and forming a synthesis of the research conductedbetween 1980 and 2005. To this end, one international bibliographic database (PsycInfo –APA) and two national bibliographic databases (Scielo and Index Psi) were consulted. Theabstracts obtained from the relevant works were systematically analyzed and classified.Conclusions reached were as follows: (a) Age-groups apart from those normally studied arerequired for a proper elucidation of the nature of play. (b) Further empirical research is neededon a national level. (c) The relationship between play and learning had been inadequatelyexplored. (d) It has been found a predominance of research relating play to infant development.Key words: Play, child development, play behavior.

Introdução

A brincadeira tem sido fonte de pesquisa na Psicologia não somente pelo fato deser encontrada nos filhotes de mamíferos e em especial nas crianças humanas, mastambém pela sua influência no desenvolvimento infantil e pela motivação interna para talatividade. Uma criança não precisa de motivos ou razões para brincar. Crianças brincampelo simples prazer de brincar (Stagnitti, 2004). É o brincar pelo brincar, sem a necessidadeda existência de um objetivo final a ser alcançado. Um dos itens que caracterizam abrincadeira é a ênfase no processo e não necessariamente no produto da atividade.

Apesar do crescimento de pesquisas sistemáticas na área nos últimos anos, ateorização sobre o brincar decorre, conforme Baptista da Silva (2003), desde Platão

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que tentava fazer uma relação entre o jogo e a educação. Entretanto, como objeto deestudos científicos na psicologia, a brincadeira passou a ser investigada, segundo amesma autora, a partir dos estudos de Spencer (1820/1903), Stanley Hall (1844/1924) eGross (1896/1978), com a teoria da recapitulação e do brincar como excesso de energia.Posteriormente, Vygotsky (1933/1989) e Piaget (1945/1978) realizaram estudos empíricosacerca do brincar e contribuíram tanto para o aperfeiçoamento dos métodos utilizadospara este fim, quanto para o entendimento da relação do brincar com o desenvolvimento.Berlyne (1963) acrescentou a idéia de que o brincar seria um comportamentointrinsicamente motivado e Bruner (1972, 1976) enfatizou que o brincar deveria ser umaatividade utilizada para facilitar a aprendizagem e a prática de comportamentosespecíficos.

A partir dos estudos que têm sido realizados sobre o brincar ao longo dos anos,pode-se afirmar que ele possui grande importância para o desenvolvimento global dacriança, estando relacionado aos aspectos do desenvolvimento cognitivo, social,afetivo e físico (Morais, 2004; Souza & Vieira, 2004). Entre outros aspectos, a brincadeirapode auxiliar a criança a exprimir a sua agressividade, dominar sua angústia, aumentaras suas experiências, treinar para situações imediatas e futuras e estabelecer contatossociais (Bomtempo, Hussein & Zamberlan, 1986; Pellegrini & Smith, 1998). Nessesentido, a brincadeira pode ser uma estratégia utilizada por pais e profissionais dasaúde e da educação para estimular o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças(Cordazzo, 2003; Dohme, 2002).

No entanto, nem sempre o brincar é valorizado devidamente nesses contextos.Algumas possíveis explicações para esse fato já foram apontadas por alguns autores,tais como: a cobrança da sociedade e especificadamente da escola pelo cumprimentodos currículos, em função de a criança ser vista, muitas vezes, como um ser que deveser apenas disciplinada para a aquisição de conhecimentos em instituições de ensinoacadêmico (Kishimoto, 1994); a ausência de uma formação profissional que utilize obrincar como ferramenta no trabalho com crianças (Cooney, 2004); a falta de tempo erecursos e, mais significativamente, o fato de o brincar não ser visto como o meioprimário para se aprender (Goldhaber, 1994).

Diante destas colocações acredita-se que um levantamento do que vêm sendoproduzido em relação ao brincar possa ajudar a compreender um pouco mais o lugarque hoje é delegado a ele. Este artigo, portanto, objetiva identificar as perspectivas noestudo do brincar a partir de resumos de artigos em bases de dados eletrônicas nacionaise internacionais; fornecendo, assim, um panorama do que vem sendo pesquisadosobre este tema. É importante ressaltar que esse estudo visa contribuir parcialmentepara a explicação dos tipos de pesquisas realizados na área, uma vez que se devereconhecer que os resumos oferecem uma história da produção acadêmica, que não éabsolutamente a mesma possível de ser narrada através da realidade constituída pelosartigos na íntegra (Ferreira, 2002).

Para caracterizar o conjunto de estudos é feita uma apresentação e discussão dealgumas categorias de análise, tais como as características dos sujeitos estudados, osmétodos utilizados e os aspectos investigados relacionados com a brincadeira.

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Método

Para a obtenção dos resumos dos artigos foi realizado um levantamentobibliográfico através de buscas em bases de dados nacionais e internacionais na áreade Psicologia. Foram selecionadas as seguintes bases: a) PsycInfo, a base de dadoson-line da American PsychologicalAssociation (APA); b) Index Psi do ConselhoFederal de Psicologia/PUC-Campinas; e c) Scielo Brasil, uma base de dados científicoseletrônica. As palavras-chave utilizadas para a busca nas bases de dados brasileirasforam: brincar, brinquedo e brincadeira. Neste caso, essas palavras poderiam estar emqualquer campo do registro, tais como título, resumo e palavras-chaves. Já na baseinternacional foram utilizadas as palavras play e toy, optando-se por buscá-las apenasno campo de key-words. Essa opção foi feita uma vez que quando se buscavam registroscom as palavras em todos os campos surgiam também estudos que não tinham relaçãocom o comportamento de brincar. Isso ocorreu, possivelmente, em função de que apalavra play poder significar, além de brincar, outros comportamentos, como jogar,representar, tocar instrumento, etc.

No total, foram encontrados 194 resumos de artigos que datavam de 1980 até2005, os quais foram lidos pelos pesquisadores. Posteriormente, cada um deles definiualgumas possíveis categorias de análise, sendo que as categorias finais foram definidasconjuntamente. Foram considerados 181 registros de artigos, sendo excluídos aquelesem que o brincar era utilizado estritamente como método e não como objeto de estudo,e quando as palavras-chave eram utilizadas com outro significado que não ocomportamento de brincar. Deve-se considerar que esse conjunto de resumos nãorepresenta a totalidade de estudos existentes sobre o brincar, mas sim uma amostradeles. Isso porque as bases de dados, conforme explicitado anteriormente, não abrangemo total de periódicos existentes, além de conterem, em função de serem eletrônicos,apenas os resumos mais recentes.

Os registros encontrados foram analisados e classificados de acordo com ascategorias estabelecidas pelos pesquisadores. Foram elas:

1. Periódico de publicação: titulo do periódico no qual o artigo fora publicado;2. Área da Psicologia a partir da qual se investigou o fenômeno do brincar:

Psicologia Educacional, Psicologia da Saúde, Psicologia Clínica e Psicologia doDesenvolvimento. Nesta última área foram incluídos os trabalhos que tinham comofoco de pesquisa ou revisão teórica o brincar independente de um contexto específico,como o hospital, a escola, a clínica.

3. Natureza da pesquisa: teórica ou empírica. A primeira envolve revisões deliteratura e discussões a respeito de diversos aspectos do brincar e as últimas pesquisasque utilizam algum método de coleta de dados específico.

4. Método: diferentes tipos de métodos utilizados nos trabalhos empíricos, taiscomo: observação direta, experimento, observação indireta (questionários, escalas einquéritos), estudos de casos e combinações de dois ou mais métodos.

5. População estudada: seres humanos ou animais;6. Faixa etária das crianças participantes das pesquisas: bebês (0 a 3 anos), pré-

escolares (3 a 6 anos) e escolares (6 a 10 anos).

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7. Tipo de brincadeira investigada: faz-de-conta, livre, turbulenta, física, jogosde regras, outras. Quando a pesquisa não especificava essa informação, considerou-se que não houve foco em relação a algum tipo de brincadeira.

8. Natureza da interação quando estava presente na pesquisa: relação criança-criança, mãe-criança, pai-criança, pais-criança, outros-criança (professores,psicoterapeutas,etc.).

9. Temas de investigação: objetos de estudo dos diferentes trabalhos, os quaisforam classificados de acordo com o(s) objeto(s) de investigação predominante(s).Dessa forma, um mesmo trabalho pode ter sido classificado em mais de um aspecto:

a) Desenvolvimento Infantil: relação do brincar com as diversas dimensões dodesenvolvimento – cognitivo, lingüístico, social, emocional, físico e com aaprendizagem.

b) Interação: trabalhos que tinham como objeto principal de investigação aspectosespecíficos da interação no brincar criança-criança e criança-adulto.

c) Gênero: diferenças de gênero no brincar relacionadas aos estilos de interação,aos tipos de brincadeira e brinquedos escolhidos, aos temas na brincadeira de faz-de-conta, entre outros.

d) Cultura: brincar e sua relação com a cultura, como um espaço de transmissãoe ressignificação da cultura do adulto, a microcultura do brincar.

e) Brincar na Educação: brincar investigado em contextos escolares, relacionadocom a aprendizagem de conteúdos específicos, relação professor-aluno no brincar epapel do professor nas situações de brincadeira no contexto educacional.

f) Brincar como instrumento terapêutico: brincar investigado em contextos clínicose hospitalares, sendo utilizado para fins específicos de intervenção, como instrumentode suma importância para a terapêutica com crianças.

g) Saúde-doença: investigações de aspectos do brincar de crianças compatologias diversas, sendo enfocado o benefício dessa atividade para a adesão aotratamento, manutenção do mesmo e elaboração e enfrentamento da doença por parteda criança.

Alguns dados que não constavam nos resumos e que seriam necessários para acategorização dos artigos, foram buscados na íntegra das publicações. Isso foi feitoapenas com alguns artigos, já que nem todos estavam disponíveis para consulta on-line. Quando não encontrou-se o artigo na íntegra para esclarecer algum dado, usou-se a expressão “não especificado”.

Resultados e discussão

Foram identificadas, no total, 181 publicações de artigos relacionados ao fenômenobrincar nas bases de dados selecionadas, sendo 44,7% delas em periódicos nacionaise 55,3% em periódicos internacionais. Cabe ressaltar que estes números apenas apontampara os dados encontrados nesta amostra e não refletem a realidade propriamente dita,uma vez que os critérios de busca das palavras-chave foram diferentes nas basesnacionais e internacionais.

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Verificou-se que 33% dos artigos identificados foram publicados em um únicoperiódico (Developmental Psychology). Outros 26% deles foram publicados em seteperiódicos (Journal of Comparative Psychology, Estudos de Psicologia, PsicologiaTeoria e Pesquisa, Behavioral Neuroscience, Psicologia Reflexão e Crítica, ProfessionalPsychology e Psicologia em Estudo), sendo que cada um desses periódicos apresentoude cinco a dez publicações relacionadas ao brincar. O restante dos artigos identificados(41%) foi publicado em 51 periódicos diversos. A Tabela 1 apresenta a distribuição deartigos nos periódicos.

Tabela 1 – Distribuição de artigos sobre o brincar considerando os periódicos com maioresporcentagens de publicação.

Periódicos Número de artigos (n) Porcentagem (%)

Developmental Psychology 60 33Journal of Comparative Psychology 10 5,5Estudos de Psicologia 8 4,4Psicologia Teoria e Pesquisa 7 3,9Behavioral Neuroscience 6 3,3Psicologia Reflexão e Crítica 6 3,3Professional Psychology 5 2,8Psicologia em Estudo 5 2,8Outros 74 41

Total 181 100

Áreas da Psicologia a partir das quais se investigou o fenômeno do brincarCom relação às áreas da Psicologia em que o brincar vem sendo fundamentalmente

estudado, pode-se afirmar que a maioria dos artigos encontrados (46,4%) situa-se nocampo da Psicologia do Desenvolvimento. No entanto, constatou-se que outras áreastambém vêm estudando o fenômeno do brincar, embora em menor proporção, como aPsicologia Clínica (12,7%), a Psicologia Educacional (8,3%), a Psicologia da Saúde(7,7%) e outras (13,8%). O restante dos artigos foram pesquisas com animais (11%),nas mais diversas áreas.

Sendo o brincar um comportamento importante para o desenvolvimento globalda criança, ou seja, para o desenvolvimento de habilidades sociais, cognitivas, afetivase físicas (Souza & Vieira, 2004), verifica-se como um fator positivo que este venhasendo bastante estudado e enfatizado no campo da Psicologia do Desenvolvimento.Com isso, é possível que se possa, cada vez mais, produzir conhecimento acerca daconfirmação de existência de relação entre a atividade de brincar com os mais diversosaspectos do desenvolvimento infantil.

Entretanto, verifica-se a necessidade de mais pesquisas nos campos da PsicologiaClínica, Educacional e da Saúde. Sendo estas áreas aplicadas da Psicologia, as pesquisaspodem favorecer a inserção da brincadeira nesses contextos. Um fato relevante a serenfatizado, segundo Cordazzo (2003), é a relação existente entre brincadeira eaprendizagem. A inserção do brincar tanto no contexto da Educação Infantil quanto na

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Escola é um tema que vem sendo bastante discutido e enfatizado, no entanto esta idéianem sempre é bem aceita por professores e pais. De um lado, os professores encontram-se divididos entre reproduzir a escola elementar com ênfase na alfabetização e números(escolarização) ou introduzir a brincadeira valorizando a socialização e a re-criação deexperiências (Kishimoto, 1994). De outro lado, estão os pais, que nem sempreconseguem enxergar os benefícios da brincadeira na educação para seus filhos. Dessaforma, considera-se de extrema necessidade e importância mais estudos na área dePsicologia Educacional que pudessem investigar a relação entre brincadeira eaprendizagem.

Na área da Saúde e da Clínica, enfatiza-se a importância de estudos que evidenciema relação entre a importância do brincar como uma atividade terapêutica, através daqual a criança possa expressar seus sentimentos enquanto hospitalizada ou em processoclínico. Conforme afirma Chiattone (1996), na atividade lúdica, a criança pode exprimirseus medos, falando sobre sua doença, seu tratamento, sobre o hospital, a saudade dafamília, sobre a morte, etc.

Natureza da pesquisa e método utilizadoConforme já explicitado no método, os estudos foram também classificados quanto

à natureza da pesquisa, podendo ser teóricos ou empíricos. Do total de registrosverificou-se que 24% deles são de natureza teórica, enquanto que 76% são de naturezaempírica. Realizou-se também uma comparação da natureza da pesquisa em artigosnacionais e internacionais. Para isso, utilizou-se o teste de associação Qui-quadrado,o qual demonstrou que há uma associação significativa entre o local de publicação e anatureza da pesquisa (c2=23,34; df=1; p<.001). Das pesquisas realizadas no Brasil, 59%delas eram empíricas e 41% teóricas; enquanto que no exterior, 91% eram empíricas e9% teóricas.

De um modo geral, os artigos empíricos (n=139) puderam ser classificados aindaquanto ao tipo de método utilizado: 44 deles utilizam a observação; 44 a experimentação;30 a combinações de dois ou mais métodos; 9 utilizam a entrevista; 8 o estudo de caso;1 utilizou o relato de experiência; e 3 não especificam o método utilizado.

Esses resultados sugerem que grande parte das publicações realizadas acercado estudo do brincar desde a década de 80 é de natureza empírica. Conforme visto noinício deste artigo, já existe um conhecimento teórico amplo e relevante acerca dobrincar; no entanto, os resultados acima sugerem que outros passos vêm sendo dadose novas descobertas têm ampliado as teorias clássicas.

O que se verifica, atualmente, nas pesquisas sobre o brincar é um predomíniodos métodos observacionais e experimentais, combinados a outros métodos, comoquestionários e entrevistas. A utilização desses métodos é perfeitamente adequada ànatureza do comportamento de brincar, o qual é caracterizado como sendo umcomportamento que possui um fim em si mesmo, que surge livre, sem noção deobrigatoriedade e exerce-se pelo simples prazer que a criança encontra ao colocá-lo emprática (Kishimoto, 1998). Dessa forma, a observação deste comportamento em ambientenatural ou controlado garante que essa espontaneidade da criança seja acessada,sendo possível caracterizar o contexto no qual ela brinca, bem como efetuar o controle

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de outras variáveis que possam interferir na natureza do brincar. A utilização dequestionários e entrevistas combinados á observação é também bastante interessante,uma vez que permitem acessar características da criança que brinca, bem como crençase expectativas dos adultos que com ela convivem.

Apesar de ter havido um predomínio dos métodos observacionais e experimentaisno total das pesquisas analisadas, esse quadro não se manteve quando se analisou osestudos nacionais e internacionais separadamente, conforme pode ser visualizado naFigura 1.

Através do teste Qui-Quadrado, as variáveis “local de publicação” e “tipo demétodo utilizado” foram relacionadas, podendo-se verificar uma relação estatisticamentesignificativa entre elas (c2 = 49,31; df= 7; p< .001). Através desse resultado é possívelafirmar que o local de publicação influencia no tipo de método utilizado nos estudosacerca do brincar. A principal diferença encontrada refere-se à diferença de números deartigos que utilizam experimentos nas pesquisas. No caso do Brasil, é possível que amenor incidência desse tipo de pesquisa ocorra em função da falta de ambientesadequados, como laboratórios que propiciem um controle mais rigoroso das variáveis.

População estudadaQuanto à população estudada, do total de artigos identificados, 11% (n=20)

envolveram pesquisas com animais, as quais relacionavam o comportamento de brincarcom aspectos referentes à motivação, aprendizagem, percepção social, cognição,exploração, descrição de comportamentos, aos níveis de hormônios, entre outros.

O restante dos artigos encontrados (89%, n=161) é de pesquisas ou revisõesteóricas sobre o brincar em seres humanos, cujos temas de investigação serão

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10152025303540

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Métodos

Freq

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ia d

e ar

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nacionalinternacional

Figura 1 – Freqüência de artigos empíricos nacionais e internacionais quanto aos métodos utilizados.

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explicitados posteriormente. Os resultados expostos a seguir serão todos referentes apesquisas com humanos. A relação desses com a faixa etária das crianças estudadas,quando estas eram os sujeitos da pesquisa ou o foco da revisão teórica demonstra queo estudo do brincar é realizado, principalmente, com crianças em idade pré-escolar(n=49). Do restante dos artigos com seres humanos, 29 deles estudavam bebês, 24crianças em idade escolar e 18 estudavam mais de uma faixa etária. Ainda, 24 artigosnão especificavam a idade das crianças no resumo e 17 falavam do brincar de um modomais geral sem relacioná-lo com a idade das crianças.

A partir desses dados, verifica-se uma necessidade de mais estudos sobre o brincarem crianças com mais de seis anos de idade. Como já mencionado, o brincar nem sempreencontra espaço no ambiente educacional do ensino fundamental. No entanto, muitosestudos têm constatado que as crianças em idade escolar ainda possuem grandemotivação para o brincar (Bomtempo, 1999; Cordazzo, 2003; Macarini & Vieira, 2006;Pellegrini, 1988). Dessa forma, seria interessante que mais pesquisas investigassem ascaracterísticas do brincar também nesta fase, como se estruturam em termos de interaçãosocial, preferência de brincadeiras, diferenças de gênero, entre outros aspectos.

Tipos de brincadeiras envolvidas nos estudosAlguns registros de estudos com humanos especificam o tipo de brincadeira

estudada (n=48), enquanto outros não focam ou não dão ênfase a essa informação(n=113). Daqueles que focalizam algum tipo de brincadeira, 23 estudam o faz-de-conta;14 o brincar livre; 3 o brincar turbulento, 3 estudam os jogos e 5 estudam outros tiposde brincadeiras.

O faz-de-conta é uma modalidade de brincadeira que, de acordo com Morais(1980) e Papalia e Olds (2000), está relacionado com o treino de atividades e dehabilidades futuras. Os mesmos autores ainda afirmam que o faz-de-conta proporcionapara a criança o desenvolvimento da adoção da perspectiva do outro e o treino nainversão de papéis sociais bem como a linguagem empregada nesses papéis. Winnicot(1975) ressalta que é pelo faz-de-conta que a criança expressa seus sentimentos eemoções e ainda desenvolve sua criatividade. Tais benefícios parecem ser osresponsáveis pelo maior número de pesquisas realizadas com esse tipo de brincadeira,uma vez que em comparação com outras modalidades, são mais facilmente acessados.

Uma outra possível explicação refere-se a uma aparente ênfase nos benefícios dofaz-de-conta. Como afirma Vygotsky (1991), o aspecto simbólico presente no faz-de-conta trata-se de uma habilidade bastante valorizada na sociedade, que prioriza odesenvolvimento do pensamento reflexivo desde as primeiras etapas dodesenvolvimento. Um exemplo desta tendência pode ser encontrado no ReferencialCurricular Nacional para a Educação Infantil (Brasil/Mec, 1998), no qual a brincadeiraaparece como um importante componente da educação infantil, mas principalmentecomo uma ferramenta para a aprendizagem. Além disso, segundo Lordelo e Carvalho(2003), o Referencial Curricular restringe-se à brincadeira de faz-de-conta, e a priorizainjustificadamente, ignorando as inúmeras modalidades de brincadeiras que precedemo jogo simbólico.

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Sem negar a importância do estudo do faz-de-conta, outras brincadeiras devemser investigadas, uma vez que, apesar da maior dificuldade de acesso, elas tambémestão diretamente relacionadas a outros aspectos do desenvolvimento. Com relação àbrincadeira turbulenta, Pellegrini e Smith (1998) destacam os benefícios que as mesmaspodem trazem para a criança, auxiliando-a a desenvolver o vigor físico e algumashabilidades necessárias para a vida adulta, e acrescentam que esse tipo de brincadeiratem início ao final do primeiro ano de vida, apresentando maior incidência entre 4 e 5anos, ou seja, em idade pré-escolar. Diante disso, é de extrema importância que acriança seja incentivada a brincar também em espaços abertos que permitam desenvolveresse tipo de brincadeira, como os playgrounds. Os diversos tipos de jogos de regrassão também importantes, visto que além de desenvolverem aspectos cognitivos,envolvendo estratégias e charadas, propiciam uma maior interação entre meninos emeninas (Macarini & Vieira, 2006).

Natureza das interações sociais no brincarCom relação à interação social no brincar, verificou-se que 132 artigos registrados

estudam o brincar nas interações, enquanto que 29 deles não as estudam. Dessaspesquisas, 50 envolvem díades criança-criança; 30 a interação de outros (terapeuta,professor) com a criança; 18 a díade mãe-criança; 10 a interação do pai e da mãe com acriança; 1 a díade pai-criança e 23 não especificam a natureza da interação estudada. Acriança é altamente motivada para brincar, não precisando de motivos ou razões parafazê-lo. Dessa forma, o maior número de estudos envolvendo a interação de criançasacaba se justificando, uma vez que o fenômeno é facilmente encontrado e seu estudoé extremamente relevante. É na interação com os pares durante o brincar que a criançatem as primeiras experiências com outros valores, como a responsabilidade; além deaprender a importância da negociação, da conquista, de conviver com regras e a resolverconflitos (Moraes, 2001).

Um resultado relevante refere-se à baixa porcentagem de estudos envolvendo arelação pai-criança. Esse resultado já era esperado, uma vez que o papel do pai pareceter ficado num plano secundário de interesse nos estudos e pesquisas sobredesenvolvimento humano (Dessen & Lewis, 1998). Enquanto o estudo docomportamento materno tem longa tradição na Psicologia, somente a partir de 1970houve um crescente interesse por estudos sobre o comportamento paterno (Bandeira,Goetz, Vieira & Pontes, 2005). Hoje, com as mudanças ocorridas nas configuraçõesfamiliares, o papel do pai estaria sendo redefinido, indo além do papel de provedor epassando a ser visto como importante no desenvolvimento infantil (Lamb, 1997). Dessaforma, verifica-se a necessidade de estudos que focalizem também a interação pai-criança no brincar, uma vez que tal comportamento trata-se de uma das principaisformas de interação da criança com os adultos em geral.

Temas de investigaçãoNos artigos que se referiam à pesquisa com seres humanos, foram detectados

alguns temas de investigação que estavam relacionados com a brincadeira. Alguns

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artigos abordavam mais de um tema, assim a freqüência foi calculada em função dototal de temas (n=186) e não de artigos. A Figura 2 mostra a freqüência do aparecimentodestes aspectos nos resumos analisados. O aspecto mais investigado foi odesenvolvimento infantil, com 60 artigos contemplando esta temática. Foramcaracterizados como desenvolvimento infantil aqueles resumos que investigavam arelação da brincadeira com a maturação de características psicomotoras, lingüísticas,cognitivas ou emocionais e com a aprendizagem.

O brincar é caracterizado como um comportamento que indica o desenvolvimento,ou seja, pela brincadeira pode-se perceber os processos de desenvolvimento. Vygotsky(1991) já afirmava que pela brincadeira é possível detectar e criar zonas de desenvolvimentoproximal e, conseqüentemente, proporcionar às crianças saltos qualitativos nodesenvolvimento e na aprendizagem. Outros autores, como Sluckin (1981), Friedmann(1996) e Bjorklund e Pellegrini (2000) também destacam a importância da brincadeira e asua funcionalidade nos diferentes aspectos do desenvolvimento infantil.

Tendo em vista a importância do brincar para a criança, percebe-se a necessidadede pesquisar e estudar as relações que permeiam a brincadeira e o desenvolvimento.Tais pesquisas e estudos contribuem para a valorização deste comportamento noscontextos em que o desenvolvimento necessita ser estimulado.

A interação social, tema abordado em 27 resumos, foi o segundo aspecto deinvestigação mais encontrado nos artigos. Foi considerado interação social aquiloque se referia a investigar as relações ocorridas nas brincadeiras com pares ou grupose seus desdobramentos tais como, os diferentes tipos de interação de acordo comidade, gênero e características dos grupos. Aspectos de agressividade e liderançatambém foram considerados como pertencentes a modos de interação, uma vez que oobjetivo destas pesquisas era de observar ou de relacionar as características dasinterações em diversificados tipos de grupos ou pares.

Figura 2 – Freqüência dos temas de investigação que estavam relacionados com a brincadeira.

Instrumento Terapêutico; 22

Gênero; 20

Brincar na Educação; 14

Saúde-doença; 12

Cultura; 7

Outros; 24

Desenvolvimento; 60

Interação; 27

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A interação social é essencial não apenas para o desenvolvimento, mas para asobrevivência humana. Ela é uma das responsáveis por uma série de aquisições dehabilidades que são necessárias para a sobrevivência e bem-estar social, como acomunicação, o desenvolvimento emocional e a cognição. Para Silva e Pontes (2005),a interação social também é uma das responsáveis pela sobrevivência da espécie, poisfoi aprendendo a viver em grupo que os homens conseguiram assegurar os aspectosde subsistência e de segurança.

A investigação das interações sociais em grupos de brincadeira é uma tarefacomplexa e que apresenta algumas dificuldades. Como afirmam Carvalho, Branco,Pedrosa e Gil (2002), questões metodológicas tornam-se um desafio no estudo dasinterações sociais, pois a redução à simples descrição e decomposição das seqüênciasinteracionais tem comprometido a compreensão do contexto e dos conteúdos expressospelos indivíduos pesquisados. Tal reducionismo pode trazer um viés no entendimentodas características das interações sociais.

A utilização da brincadeira como instrumento terapêutico ocupou o terceiro lugarem número de artigos que buscaram elucidar esta temática (n=22). A principal correnteteórica utilizada foi a psicanálise, incluindo autores como Freud, Winnicott, MelanieKlein e Ana Freud. Tais estudos discorrem a respeito do desenvolvimento emocionalinfantil e as aplicações da brincadeira na prática clínica.

As diferenças de gênero na brincadeira ocuparam a quarta posição (n=20) dentreos artigos analisados. Diferenças de gênero são percebidas na infância (Carvalho,Smith, Hunter & Costabile, 1990), quando meninos e meninas demonstram preferências,atitudes e comportamentos diferentes. Todas as correntes teóricas da psicologia afirmamque as diferenças existem, entretanto, cada qual as analisa sob um determinado aspecto.Tal estudo torna-se importante na medida em que as diferenças de gênero podempossibilitar que meninos e meninas desenvolvam-se de maneira diferenciada, porémigualmente adaptativas (Liss, 1983). Com isso, adquirem habilidades diversificadas edistinguem seu papel de gênero de acordo com a sociedade e a cultura nas quais estãoinseridas.

A educação foi outro aspecto detectado nos artigos analisados. Foi consideradobrincar na educação aqueles artigos que abordavam a brincadeira como um recursoque poderia auxiliar as escolas e instituições de ensino a desenvolverem a aprendizageme os processos cognitivos das crianças. Os artigos que abordavam esta temáticatraziam as inúmeras contribuições que o brincar pode oferecer para enriquecer o trabalhodos profissionais de educação e saúde e beneficiar as crianças. Entretanto, tendo emvista a relevância do assunto, foram encontrados poucos artigos tratando desse tema,apenas 14.

Outro tema que foi pouco explorado e que também tem grande importância é arelação da brincadeira com a saúde-doença. Apenas 12 artigos trabalharam com estatemática. Foi considerado saúde-doença como um aspecto de investigação aquelesartigos que traziam assuntos referentes à brincadeira em instituições de saúde, comohospitais e ambulatórios, e com sujeitos portadores de doenças ou distúrbiosrelacionados à saúde.

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O aspecto cultura teve 7 resumos de artigos encontrados. Este aspecto tambémteve pouca expressão quando comparado com os outros já citados. Os artigos quetratavam de aspectos culturais englobavam as diferenças e semelhanças encontradasnas brincadeiras de diferentes culturas e as influências destas sobre o brincar dascrianças. Vários estudos inter-culturais já foram realizados, os quais procuravaminvestigar como o brincar, sendo um comportamento universal, se estrutura e seespecifica nos mais diversos contextos culturais. Dentre eles, pode-se citar o de Gosso(2004), o qual foi realizado em uma aldeia indígena no Brasil e o de Morais (2004) o qualbuscou comparar as especificidades do brincar de crianças da zona urbana e ruraltambém em uma região brasileira. Acredita-se que os resultados destes e de outrosestudos similares sejam importantes na medida em que podem permitir a valorizaçãodos diferentes contextos de desenvolvimento, além da identificação de aspectos aserem aprimorados em tais contextos acerca da implementação da brincadeira.

Considerações finais

Concluindo este levantamento bibliográfico sobre o estudo do brincar pode-seperceber que existem algumas lacunas ainda a serem preenchidas com novos trabalhose pesquisas. A faixa etária alvo de investigação poderia ser ampliada. A maioria dosartigos manteve-se em estudar a brincadeira com bebês e crianças pré-escolares, talvezpela maior incidência do fenômeno brincadeira encontrado nessas idades. Entretanto,como afirmam Pellegrini (1988), Bomtempo (1999), Cordazzo (2003) e Cortegoso e Ramos(2004), o brincar também é freqüente em crianças em idade escolar. Tal fator poderia sermais investigado e fornecer assim mais detalhes sobre o desenvolvimento humano.

Outro ponto detectado foi o inexpressivo número de pesquisas nacionais decunho empírico. A maioria das pesquisas nacionais se restringiu a outros métodos deinvestigação. A ausência de experimentos pode estar demonstrando a fragilidade domeio a ser pesquisado e a dificuldade de se controlar as variáveis sem um suportetécnico e estrutural como laboratórios bem equipados e atualizados. As pesquisasempíricas podem enriquecer em muito o conhecimento a respeito da brincadeira e dodesenvolvimento infantil.

Uma questão evocada neste trabalho é a da necessidade de mais pesquisas eestudos nos aspectos de educação e saúde-doença. A identificação de poucaspesquisas que relacionam o brincar com a aprendizagem e com o aspecto saúde-doença detecta a necessidade de maiores investimentos nesta área. Tanto a educaçãoquanto a saúde são necessidades básicas para a formação e solidificação de um paísque busca o crescimento e bem-estar da sua população.

Um fator positivo encontrado foi o predomínio de pesquisas que relacionam obrincar com o desenvolvimento infantil. Independente da perspectiva teórica subjacentenos estudos, a contínua busca do conhecimento sobre o desenvolvimento infantil trazbenefícios para se compreender melhor as necessidades infantis e a importância dabrincadeira para o desenvolvimento.

Todavia, este trabalho apresenta algumas limitações. Como afirma Ferreira (2002)existem inúmeras maneiras de se fazer um estado da arte, uma vez que cada pesquisador

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tem um olhar diferente sobre os fenômenos estudados. As categorias aqui apresentadasnão são únicas, ou seja, outros olhares poderiam definir categorias diferentes daspropostas neste trabalho. Outro fator que se apresenta como uma limitação do estudoé o fato de serem contempladas apenas algumas bases de dados e não a totalidadeexistente. Com isto pode-se afirmar que não foram observadas todas as revistas decunho científico, uma vez que primeiro, existem periódicos que ainda não se encontramno formato on-line, e segundo, as bases selecionadas para o estudo, apesar de seremrepresentativas para o campo da psicologia, não abarcam todas as revistas disponíveiseletronicamente.

Outra limitação é o fato de que foram analisados somente os resumos dos artigos,salvo aqueles casos em que foram analisados os textos na íntegra por não seencontrarem todas as informações no resumo. Parafraseando Ferreira (2002), uma análisemais detalhada de todos os artigos na íntegra poderia oferecer dados mais apurados.

Entretanto, as limitações aqui encontradas não eliminam as contribuiçõesoferecidas pelo estudo. Estas limitações alertam que outros olhares e formas de seentender o mesmo fenômeno podem existir sobre o mesmo corpus. Isto reforça anecessidade de mais estudos envolvendo a brincadeira e as suas relações econtribuições para com o desenvolvimento humano.

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Recebido em novembro de 2006 Aceito em abril de 2007

Scheila Tatiana Duarte Cordazzo: psicóloga; doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação daUniversidade Federal de Santa Catarina.Gabriela Dal Forno Martins: bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.Samira Mafioletti Macarini: bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.Mauro Luis Vieira: psicólogo; doutor em Psicologia; professor do Departamento de Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Endereço para correspondência: [email protected]

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A utilização do Consentimento Informado em psicoterapia:o que pensam psicoterapeutas psicanalíticos

Rita Petrarca TeixeiraMaria Lucia Tiellet Nunes

Resumo: O uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a atenção aosprincípios da Bioética já são obrigatoriamente aplicados na pesquisa com seres humanos, maspouco utilizados na área de atendimentos psicoterápicos, mesmo sendo estes considerados aexpressão de uma atitude ética correta que deve estar presente nas relações entre psicoterapeutae paciente. Assim, através da análise de conteúdo de cinco entrevistas semi-estruturadas compsicanalistas e psicoterapeutas de orientação psicanalítica foi possível compreender que oTCLE é considerado apenas um documento formal, sendo sua utilização percebida como desne-cessária e até prejudicial para a relação psicoterapêutica, apesar de considerarem os princípiosbioéticos de Beneficência e Respeito fundamentais para a prática psicoterápica.Palavras-chave: Ética, Bioética, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, psicoterapiapsicanalítica.

The use of the informed consent in psychoanalytic psychotherapyAbstract: The use of the informed consent in psychoanalytic psychotherapy and the attentionto the bioethics’ principles are mandatory in the research with human beings, but they arerarely used area of psychological therapies and counseling, even thought these are considered acorrect ethical attitude expression that must be present in the relations between thepsychotherapist and the patient. Thus, through the content’s analysis of five semi-structuredinterviews performed with psychoanalysts and psychoanalytic psychotherapists, it was possibleto understand that the TCLE is considered only a formal document, and its use is seen as notonly unnecessary and but also even harmful to the psychotherapy relation, although theinterviewers consider bioethical principles of Beneficence and Respect essential to thepsychotherapist practice.Key words: Bioethics, informed consent, psychoanalytic psychotherapy.

Introdução

O processo de consentimento é uma condição indispensável da relaçãoprofissional-paciente e da pesquisa com seres humanos, sendo este a expressão deuma atitude eticamente correta como referem Clotet, Goldim e Francisconi (2000).

A literatura descreve o consentimento como um ato de decisão voluntária, realizadopor uma pessoa competente, embasada em adequada informação e que seja capaz dedeliberar tendo compreendido a informação revelada, aceitando ou recusando propostasde ação que lhe afetam ou poderão lhe afetar (Baú, 2003; Clotet & cols., 2000; Fortes, 1998;)

Como resultado do processo de consentimento, o uso do Termo de ConsentimentoLivre e Esclarecido (TCLE) já é obrigatoriamente aplicado na pesquisa e na

Aletheia, n.26, p.137-145, jul./dez. 2007

Aletheia 26, jul./dez. 2007138

experimentação com seres humanos. Na área assistencial, é menos utilizado e, porvezes, tem apenas a finalidade de registrar que o paciente recebeu informações sobreos procedimentos e as condutas que serão realizadas. Para muitos, como referido porClotet e cols. (2000) tem apenas o significado de gerar prova deste processo deinformação, na tentativa de eximir o profissional de futuras conseqüências. Contudo,existem profissionais que consideram o TCLE uma parte integrante e fundamental darelação profissional-paciente.

O TCLE é fundamentado pelo Princípio bioético do Respeito à pessoa nos seusvalores fundamentais. De acordo com Clotet (1995), o reconhecimento da autonomiado outro – seja este sujeito de pesquisa ou paciente – e a insistência para que isto sejarespeitado representam um aperfeiçoamento da prática médica e de outras profissõesda área de saúde que têm interesse pelo diálogo e pela relação com o paciente, tendopor linha mestra o princípio fundamental do respeito pelo outro.

Clotet (1993) refere ainda que o Princípio do Respeito às pessoas, exige que oprofissional aceite que o paciente se autogoverne, ou seja, que ele seja autônomo,quer nas suas escolhas, quer nos seus atos. Deve respeitar a vontade do paciente oude seu representante, assim como seus valores morais e crenças, reconhecendo odomínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade.

A autonomia é um conceito fundamental para o Princípio do Respeito às pessoas.Etimologicamente, o termo autonomia significa a condição de quem é autor de suaprópria lei; de um modo geral – independência, ausência de imposições ou condiçõesexternas. A partir desse significado, Cabral (1996) afirma que a autonomia prescreve orespeito pelas escolhas e decisões autônomas e livres. Na prática, implica promover,quanto possível, o comportamento autônomo por parte do paciente, informando-oconvenientemente, assegurando a correta compreensão da informação e a livre decisão.

Sendo assim, pode-se afirmar que é o paciente quem de forma ativa deve autorizaras propostas a ele apresentadas e não meramente assentir em um plano terapêutico,por meio de uma atitude submissa às ordens do profissional.

Outro princípio bioético que reforça a importância da utilização do TCLE é daBeneficência. Esse princípio afirma, de modo geral, que sejam atendidos os interesseslegítimos dos indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos. Ocupa-se, portanto, da procura do bem-estar e interesses do paciente, e está fundamentadona tradição hipocrática.

Fortes (1998) aponta que a corrente utilitarista considera que o Princípio daBeneficência justifica que, em certas circunstâncias, a informação possa sersonegada ao paciente ou, mesmo, que a ele seja ocultada a verdade. Legitima queo profissional de saúde maneje qualitativamente ou quantitativamente asinformações a serem fornecidas e, ao mesmo, esteja isento de revelá-las caso possamconduzir a uma deterioração do estado físico ou psíquico do paciente, afetando atomada das decisões.

Também para a ética das conseqüências (consequencialismo), há casos em quea mentira pode trazer benefícios ao paciente. Sua justificativa fundamenta-se na tesede que para reparar a desintegração produzida pela enfermidade, é preciso violar atécerto ponto a autonomia da pessoa, objetivando restaurá-la.

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As dificuldades existentes em assegurar a transmissão dos conhecimentostécnicos às pessoas leigas parecem justificar a impossibilidade da existência de umconsentimento totalmente esclarecido. Rebatendo essa tese, Fortes (1994) afirma quenão há eticamente necessidade de que as informações prestadas sejam tecnicamentedetalhadas. É suficiente que sejam leais, compreensíveis, aproximativas e inteligíveispara que a manifestação autônoma do indivíduo seja garantida.

Para Vieira (1998), a obtenção do TCLE é um processo de negociação que exigerespeito aos direitos e à dignidade do paciente. Exige ainda que o profissional estejaconvencido de que, embora tenha competência para tratar de seu paciente, não tem odireito de decidir por ele.

Dessa forma é possível afirmar que para que o paciente tenha liberdade paraconsentir, é preciso que a práxis dos profissionais de saúde esteja imbuída da noçãodo respeito ao princípio da autonomia individual, pois, em razão do domínio psicológico,conhecimento especializado e habilidades técnicas do profissional, é possível queinviabilizem a real manifestação da vontade do paciente.

As informações contidas no TCLE, contudo, devem ser adaptadas àscircunstâncias do caso e às condições sociais, psicológicas e culturais, utilizando-seum padrão orientado para cada paciente. O padrão subjetivo requer uma abordageminformativa apropriada a cada indivíduo. A discussão sobre cada situação deve serfeita adaptando-se aos valores e expectativas psicológicas e sociais de cada pessoa,sem ater-se a fórmulas padronizadas.

Os pacientes devem, segundo essa linha de raciocínio, ser considerados comoúnicos, não padronizáveis, e o consentimento, com adequada informação, deve sebasear, não na escolha de uma suposta alternativa científica ou tecnológica, mas simna melhor para aquela pessoa.

Esse padrão obriga o profissional de saúde a ser realmente respeitador daautonomia individual e requer que descubra, baseando-se nos conhecimentos e naarte de sua prática, o que efetivamente cada pessoa gostaria de conhecer e o quantogostaria de participar das decisões (Fortes, 1998).

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Cesarino (1998) aponta que em psicoterapiao paciente deve ser informado de maneira suficientemente clara sobre o tratamentoque se propõe de forma a poder tomar com independência e conhecimento a decisãode se submeter ou não a esse procedimento.

Mas a relação entre psicoterapia e TCLE é ainda incipiente em nossa cultura. Umestudo examinou a opinião e a prática do TCLE entre psicoterapeutas. Duzentos etrinta e um profissionais responderam a seis escalas evidenciando que os psiquiatrasnão usam e têm uma opinião negativa sobre o TCLE (p = 0,005). Entre os psicoterapeutasnão médicos, foram os de orientação psicodinâmica que obtiveram o menor escore (p=0,003), revelando também uma opinião negativa sobre a prática do consentimento(Croarkin, Berg & Spira, 2003).

Contudo, em função do crescente número de processos legais e éticos contrapsicoterapeutas vem crescendo no Brasil (Hanns, 2004), a exemplo do que já ocorre narealidade norte-americana, percepção da imprevisibilidade e vulnerabilidade a qual ospsicoterapeutas estão submetidos na atualidade (Hedges, 2001).

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No entanto, o TCLE não deve ser confundido com uma tentativa de proteçãolegal, tanto para o paciente quanto para o psicoterapeuta; ele é acima de tudo a evidênciade um comportamento eticamente correto.

Método

Como a metodologia escolhida é qualitativa, não se teve como objetivoestabelecer qualquer tipo de generalização estatística. Assim, a escolha dosparticipantes foi realizada de forma intencional, dirigida e por conveniência, em umtotal de cinco psicoterapeutas de orientação psicanalítica a partir dos seguintescritérios: Reconhecida representatividade e respeitabilidade na comunidade psi,evidenciáveis em suas titulações acadêmicas ou pela formação psicanalítica atravésde órgãos filiados a International Psychoanalytical Association (IPA); Produçãocientífica acerca da psicoterapia de orientação psicanalítica (livros, artigos emperiódicos ou resumos publicados em anais); Exercício de atividades didáticas emcursos de formação de psicoterapeutas ou de psicanalistas e por este motivo foramconsiderados formadores de opinião; Exercício de funções de coordenação deinstituições formadoras de psicoterapeutas ou de psicanalistas; Tempo mínimo de15 anos de experiência em psicoterapia de orientação psicanalítica como uma formade garantir uma trajetória e uma identidade profissional plenamente estabelecidas,sendo, portanto, capazes de refletir, questionar e avaliar a prática da psicoterapia deorientação psicanalítica.

O grupo de participantes foi então constituído de cinco profissionais, sendo quetrês tem com formação original a Psicologia e dois a Psiquiatria.

A coleta de dados realizou-se através das entrevistas individuais, de naturezasemi-estruturada, com o auxílio de um roteiro, constituído de cinco perguntas abertassobre o tema da utilização do TCLE em psicoterapia psicanalítica.

As entrevistas foram gravadas e os dados obtidos a partir das transcriçõesforam trabalhados com base no método de Análise de Conteúdo de Bardin (1988),como forma de organizar o material produzido nas entrevistas, transformando-o dematerial bruto em categorias temáticas, passíveis de serem analisadas e interpretadas.A utilização do método, portanto, foi direcionada pelos objetivos e pelo de tipo deinterpretação, visando à compreensão das categorias constituídas a partir do discursodos participantes.

Resultados e discussão

As verbalizações decorrentes das entrevistas realizadas foram agrupadas emtrês categorias finais: Termo de consentimento e clínica; Termo de consentimentoinócuo; e, Termo de consentimento, supervisão e publicação, sendo estas cotejadascom dados da literatura.

O TCLE é considerado desnecessário na psicoterapia de orientação psicanalítica,não tendo sido usado por nenhum dos psicoterapeutas entrevistados durante as suasvidas profissionais no consultório. O fato dos entrevistados não utilizarem o TCLE

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não significa que eles não informam o paciente sobre os procedimentos do tratamentopsicoterapêutico. Parece, no entanto, que o TCLE e o processo de consentimento nemsempre andam juntos.

Os psicoterapeutas não usam o TCLE e têm uma opinião negativa a respeito, oque vai ao encontro dos resultados obtidos por Croarkin e cols. (2003), em cujo estudotambém foi encontrada opinião negativa quanto ao uso do TCLE entre psicoterapeutas.Os entrevistados do presente estudo ainda referem, que não conhecem nenhumaexperiência nesse sentido e não sabem de profissionais que fazem uso do TCLE emconsultório.

A idéia de utilizar o TCLE no consultório privado causa desconforto e espanto.Pensar em apresentar para o paciente um documento que requer a assinatura de ambose no qual estão estabelecidos alguns direitos e deveres da dupla é percebido comoalgo descontextualizado da cultura da clínica privada. Também, de acordo com ospsicoterapeutas, a utilização do TCLE em consultório está vinculada a um contextoespecífico e a um tipo de sociedade, a saber, a norte-americana.

A obrigatoriedade na utilização do TCLE está ainda associada à regulação dosatendimentos psicoterapêuticos por Cooperativas de Saúde e Convênios. Dessa forma,os psicoterapeutas apresentam uma visão legalista do TCLE, descrevendo-o como umtermo de isenção de responsabilidades e não como uma atitude ética.

A atitude expressa pelos entrevistados pode ser atribuída ao desconhecimentoem relação às razões que levam à utilização do TCLE. Sabe-se, contudo, que o TCLE fazparte de um campo muito mais amplo: a Bioética.

A visão dos psicoterapeutas acerca da idéia de que usar o TCLE não faz parte dacultura psicoterapêutica evidencia que esta prática está atravessada não apenas pelacultura, mas principalmente pela moral da prática psicoterapêutica.

Entende-se, a partir das idéias de Goldim (1997) e Vàzquez (1999), que a Moralestá ligada a costumes e hábitos aceitos de forma generalizada e que regulam as açõesde um grupo de acordo, sendo assim não usar o TCLE é moralmente aceito e reforçadopela comunidade psi da qual fazem parte os entrevistados. Dessa forma, é possívelinferir que não usar é moralmente aceito, mas não eticamente adequado.

Foi grande, por parte dos psicoterapeutas, o número de razões que expressamfalta de necessidade do TCLE em psicoterapia. Um dos principais argumentos é a faltade benefícios que este documento traz para o paciente e para a relação psicoterapêutica,pois entendem o TCLE como apenas um documento e não como uma forma ética deconduzir as relações entre psicoterapeuta e paciente. Além de não oferecer benefícios,a utilização é percebida como algo que pode prejudicar a relação e o processopsicoterapêutico.

Sendo então, o TCLE um documento que não gera benefícios para o paciente epode provocar danos no relacionamento psicoterapeuta-paciente, a não utilizaçãoestaria seguindo o Princípio da Não-Maleficência como conceituado por Loch, Kippere Gauer (2003).

Além disso, o TCLE ainda é entendido como um obstáculo para a relaçãopsicoterapêutica, pois poderia gerar no paciente a fantasia de que o psicoterapeutaestaria buscando se proteger.

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O fato de considerar-se que existem aspectos do tratamento psicoterapêutico quenão devem ser partilhados com o paciente, pois isto pode gerar efeitos negativos para opaciente e para o progresso do tratamento, evidencia-se uma atitude paternalista, na qualo profissional acredita poder decidir pelo paciente, como foi referido por Vieira (1998).

Pode-se, contudo, pensar que a não utilização do TCLE encobre uma atitude baseadano que Hävry (1998) define como paternalismo autorizado, pois o paciente, ao estar emtratamento, estaria autorizando implicitamente a assimetria de papéis e de poder.

Além de não trazer benefícios, as informações, contidas num TCLE para uso emconsultório, já são fornecidas ao paciente, através do contrato terapêutico.

A partir dessas conceituações é possível inferir que o contrato e o TCLE podemser sinônimos no que diz respeito ao processo de informação. Entretanto, o TCLE nãoé a apresentação de regras técnicas que fundamentam a relação entre as partes, mas anegociação de aspectos que fazem parte da psicoterapia e não são explicitados em umcontrato terapêutico, como a supervisão, o uso de informações fornecidas pelo pacienteem situações de ensino e na produção científica. Tal negociação só é possível a partirdo encontro entre psicoterapeuta e paciente, tomando-se o conceito levinasiano deÉtica. Para Levinas a Ética começa quando entra em cena a dimensão da alteridade, istoé, da aceitação e do respeito pelo outro (Souza, 2000, 2004).

Logicamente não está definindo neste estudo que o TCLE deva substituir ocontrato terapêutico, até porque muitos dos termos de consentimento utilizados emsituações de atendimento psicoterapêutico tendem a atender apenas o que estabelecea lei, como refere Goldim (1998) e nem que o TCLE retire do psicoterapeuta a autoridadenecessária para o progresso do tratamento psicoterapêutico de seu paciente.

O fundamental é que o processo de consentimento livre e esclarecido possafazer parte da psicoterapia como uma manifestação da atitude ética adequada, sendoassim, formalizando-a com um documento – o TCLE.

A primeira idéia dos psicoterapeutas entrevistados é que o TCLE é um documentoutilizado em situações jurídicas frente a processos legais contra psicoterapeutas,podendo dessa maneira, constituir-se numa proteção para o profissional. A concepçãodo TCLE como uma prova legal para eximir o profissional de possíveis conseqüênciasé bastante presente na área da saúde, como referem Clotet e cols. (2000).

Mas mesmo considerando o TCLE como um documento possivelmente comforça legal, as opiniões são divergentes, pois, se por um lado o TCLE é um documentode proteção legal para o psicoterapeuta; por outro, ele pode fragilizar e coagir o pacientefrente ao aumento de poder que representa, o que acarreta em prejuízo para ao processopsicoterapêutico. Nesse sentido, o TCLE é considerado inócuo, ineficaz ou prejudicialpelos psicoterapeutas.

Cabe ressaltar que o TCLE, conforme Zanini (2004), não isenta o profissional deeventuais processos legais, sendo facilmente desconsiderado, em juízo, na defesa doprofissional, uma vez que o consentimento pode ser avaliado como uma arma deconstrangimento ao paciente.

Chama a atenção o fato dos profissionais apontarem que o consentimento servepara proteger o psicoterapeuta, invertendo toda a construção histórica dessedocumento que surgiu em benefício do paciente.

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Se o TCLE não é eficaz, do ponto de vista legal, para proteger o psicoterapeutatambém não é, do ponto vista ético, para proteger o paciente. Assim os psicoterapeutasrevelam a ineficácia do TCLE no que se refere ao caráter do profissional. Sabe-se que,se o psicoterapeuta quiser agir de forma inadequada com o paciente, não será o TCLEque irá impedi-lo, pelo contrário, ele pode servir para acobertar a má prática profissional.No entanto, tal limitação não justifica a ausência do TCLE.

É evidente que um grande número de situações pode ocorrer na práticapsicoterapêutica sem que o psicoterapeuta tenha como prever. Portanto, estas nãoestariam contidas no TCLE. Como mencionado pelos psicoterapeutas, as perversõesdo setting existem e nenhum documento pode evitá-las, assim como, situações queenvolvem atendimento de crianças e adolescentes, no qual o sigilo está sempreameaçado pelos pais.

Essa noção dos entrevistados reduz o TCLE a uma questão deontológica, isto é,pensam o documento como se fosse um conjunto de normas capazes de prevenircondutas profissionais inadequadas, como é conceituado o código deontológico porBadéia (1999).

Ainda argumentando acerca da ineficácia do TCLE, os entrevistados expressamque também, do ponto de vista da Ética, o documento não garante uma condutaadequada por parte do profissional. Salienta-se que é o processo de consentimentoque evidencia a conduta ética adequada, enquanto o TCLE apenas documenta estaatividade. Se existe portanto, o processo, por que não existe o documento?

Considerações finais

A não utilização do TCLE em clínica privada está, no entanto, muito maisrelacionada à técnica do que a qualquer outro fator. A técnica apoiada fortemente nabase teórica da Psicanálise adquire o papel de moral e passa a regular a práticapsicoterapêutica. Sendo assim, não existe o costume de usar o TCLE e não existe oconhecimento do que seja efetivamente este documento.

Os aspectos que deveriam estar contidos no TCLE, na visão dos entrevistados,são contemplados no contrato terapêutico, que é verbal e ainda hoje, segue muitas dasrecomendações técnicas de Freud.

De acordo com os entrevistados, existem somente aspectos negativos nautilização do TCLE em clínica privada e nesse sentido não utilizá-lo estaria baseado noPrincípio da Beneficência ou Não-Maleficência, mas que parece encobrir uma atitudepaternalista.

Também em decorrência do desconhecimento do TCLE como uma atitude derespeito ao paciente, os entrevistados o conceituam como um documento de dominação,tanto do ponto de vista legal, a fim de proteger o psicoterapeuta, quanto do ponto devista da relação psicoterapêutica, que por sua natureza, é assimétrica.

Ainda foi possível verificar que uma série de argumentos desqualifica o uso doTCLE em clínica privada. Ele é considerado um instrumento de poder do psicoterapeuta,um documento deontológico e por isso ineficaz em muitas situações, um obstáculo paraa relação psicoterapêutica que é centrada na confiança e na palavra, enfim, desnecessário.

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Num quadro de profundas modificações culturais não há como negar que também apsicoterapia exige de todos um esforço continuado de reflexão crítica. Tenho conhecimentoque esse é um assunto amplo, complexo e se encontra fora das discussões atuais dospsicoterapeutas. Assim, este estudo propõe-se muito mais a questionar do que a oferecerrespostas, apresentando-se como um convite para a reflexão acerca dos valores presentesno modelo teórico e na prática clínica da psicoterapia de orientação analítica.

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Recebido em março de 2007 Aceito em junho de 2007

Rita Petrarca Teixeira: psicóloga; doutora em Psicologia pela PUCRS; docente do Curso de Psicologia daULBRA Gravataí.Maria Lucia Tiellet Nunes: psicóloga; doutora em Psicologia pela Universidade Livre de Berlim; docente daFaculdade de Psicologia e do Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.

Endereço para contato: [email protected]

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Aprendizagem na ação revisitada e seu papelno desenvolvimento de competências

Claudia Simone Antonello

Resumo: O estudo teve por objetivo identificar e analisar os processos de aprendizagem quecontribuem para o desenvolvimento de competências requeridas ao administrador no atualambiente de negócios a partir da percepção de estudantes universitários que estavam trabalhan-do e cursando a etapa final do curso de administração. Os resultados revelaram: a importânciado contexto em que os indivíduos estão inseridos na construção de significados para o processode aprendizagem; como as situações que surgem no cotidiano podem tornar-se veículo nesteprocesso; e por fim, permitem dizer que, para instalar uma cultura de aprendizagem que possi-bilite o desenvolvimento de competências, é necessária compreensão clara das novas diretrizesde uma tarefa educativa voltada para aprendizagem.Palavras-chave: aprendizagem na ação, desenvolvimento de competências, aprendizagem in-formal.

Learning in action revisited and its role in the competencesdevelopment

Abstract: This study had as its objective to identify and to analyze the learning processes thatcontribute to the development of competences requested the management in the actual scenarioof businesses, through the perception, of university students that were working, and attendingtheir last year of a business administration program. The results revealed: the importance of thecontext in which individuals are inserted to the construction of meanings in the learning process;how situations that one encounters in everyday life can become a leverage in this process; andthat it’s possible to state that, in order, to install a learning culture that allows the developmentof competences, it is necessary to have a clear understanding of the new directives of aneducational method aimed at learning.Key words: Learning in action, competence development, informal learning.

Introdução

A compreensão do processo de aprendizagem e desenvolvimento gerencial envolvee exige a interlocução de diferentes áreas de conhecimento. Atualmente identificam-seduas problemáticas, ou melhor, duas lacunas entre as expectativas geradas pelas iniciativasde formação e o que efetivamente é desenvolvido em termos de competências: (a) osimpactos (restritos) dos programas de treinamento e formação convencionais sobre odesenvolvimento de competências; e (b) as dificuldades enfrentadas pelos participantesdestes cursos para compartilhar, no âmbito da organização, as competênciasdesenvolvidas com pares de trabalho ou grupos específicos.

A importância de se iniciar uma discussão com o objetivo de examinar estas duasproblemáticas é o que justifica o presente estudo. Para isto, partiu-se do seguinte

Aletheia, n.26, p.146-167, jul./dez. 2007

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pressuposto: as situações que surgem no cotidiano podem tornar-se veículo para odesenvolvimento de um processo de aprendizagem. Isto porque, propiciam odesenvolvimento da capacidade dos gerentes identificarem e responderem rapidamenteaos problemas emergentes em sua realidade de trabalho (Le Boterf, 1999). Também,levam o gestor ao desenvolvimento de novas competências e a geração de novasatitudes em relação ao seu trabalho.

Evidencia-se, então, a importância de clarificar algumas abordagens e processosrelacionados com a aprendizagem na ação. Assim, estabeleceu-se como objetivoprincipal deste estudo, identificar e analisar os processos de aprendizagem quecontribuem para o desenvolvimento de competências requeridas ao administrador noatual ambiente de negócios, a partir da percepção de estudantes universitários queestavam trabalhando e cursando a etapa final do curso de administração.

O presente artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente é apresentadauma revisão teórica que aborda aprendizagem experiencial, informal e situada; a noçãode competência adotada no estudo; e algumas pesquisas realizadas no Brasil sobre osprocessos de aprendizagem e o desenvolvimento de competências. Em seguida, aapresentação e discussão dos resultados e a teoria substantiva, considerando-se queo método utilizado para análise dos dados foi a grounded theory. Conclui-se propondoum quadro de referências relativamente integrado para a definição e o papel daaprendizagem na ação no desenvolvimento de competências.

Referencial teórico

Diante da diversidade de definições que podem ser identificadas na literaturaque trata dos temas aprendizagem e competências, nesta seção apresenta-se aspectosalguns tipos de aprendizagem (experiencial, informal, incidental e situada) e propõe-seuma definição para competências.

Aprendizagem experiencialOs modelos de aprendizado experiencial se baseiam, principalmente, nos

trabalhos de Dewey, Lewin e Piaget. Segundo estes autores, o aprendizado é, pornatureza, um processo de tensão e conflito, que ocorre por meio da interação entre oindivíduo e o ambiente, envolvendo experiências concretas, observação e reflexão,que geram uma permanente revisão dos conceitos aprendidos, ou seja, o aprendizadoé um processo e não um produto. A noção de ciclo de aprendizagem foi definida porvários pesquisadores, mas a origem do ciclo é atribuída freqüentemente a JohnDewey (1966). O conceito mais importante em seu estudo sobre aprendizagem é anoção de experiência. O autor define aprendizagem como uma contínua reorganizaçãoe reconstrução da experiência, que ocorre todo o tempo e em todas as situações emque as pessoas agem e interagem, refletem e pensam. Conforme Dewey, aaprendizagem nasce de uma situação que a pessoa está confusa ou em dúvida, ouseja, confrontada com um problema que a faz parar e pensar, estabelecendo-se umfluxo: situação-problema-indagação-reflexão-nova situação. Isto implica num

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entendimento não dualista do fazer e do conhecer, ação e pensamento. A separaçãodualista é substituída por uma continuidade de agir e conhecer. A aprendizagemenvolve tanto ações como cognição, pois ações sem cognição são de pouco valorem termos de aprendizagem. Refletir e pensar são esforços intencionais quepossibilitam o estabelecimento de conexões específicas entre nossas ações econseqüências resultantes, de modo que os dois elementos tornam-se contínuos epermitem a reorganização e reconstrução da experiência vivenciada. Isso conduz àdefinição de experiência e o que significa aprender com base na experiência:

A experiência não deriva da mera atividade, mero fazer, e não está baseada emqualquer mudança que implique reflexão sobre ações anteriores com o fim deantecipar conseqüências futuras. A simples participação na prática, na ação,não cria aprendizagem. Uma pessoa está aprendendo somente quando é capazde refletir sobre suas ações e reorganizar, assim como reconstruir a experiência,por meio de um processo contínuo de reflexão –– pensamento – como meio deatuação. A idéia de aprendizagem como reorganização e reconstrução daexperiência não é uma questão de argumentar a favor ou contra a cognição.(Elkjaer, 2000, p. 113)

Pode-se identificar na literatura várias definições para aprendizagem experiencial,que apresentam diferentes ênfases, entre elas: na resolução de conflitos; na avaliaçãopara desenvolvimento; no treinamento de habilidades; em modelos teóricos; nocrescimento pessoal; e no desenvolvimento e treinamento no local de trabalho. Tudotermina sendo apresentado e categorizado como fazendo parte da “família” daaprendizagem experiencial..

O que é então Aprendizagem Experiencial? Para alguns autores é tudo queenvolve a educação, para outros é restrita a uma prática específica ou um modelode currículo. A vasta ordem de atividades educacionais que utilizam o termoaprendizagem experiencial pode ser encontrada no trabalho de Henry (1989). Estapesquisadora apresenta uma classificação onde são vistos como métodos deaprendizagem experiencial: resolução de problemas; aprendizagem independente;desenvolvimento pessoal; mudança social; aprendizagem não-tradicional; baseadana atividade; projeto de trabalho; trabalho e colocação na sociedade; aprendizagemanterior. Além desta classificação, também existem na literatura outras definiçõesde aprendizagens consideradas experienciais e vinculadas à ação, sejam elas: (a)Aprendizagem Fortuita: por exemplo, reuniões; interações informais; em sala deaula no intercâmbio com colegas e professores; (b) Aprendizagem da Vida:atividades e papéis além do ambiente de trabalho que auxiliam na vida profissional:tais como, membro de um conselho escolar; cantor; iatista, voluntário de umprograma na comunidade; pintor; papel de pai na família,; (c) Aprendizagem comos Outros: por exemplo., em equipe; em fusões e alianças de empresas; (d)Aprendizagem na Ação: na resolução de problemas; nas atividades desenvolvidasno trabalho; desenvolvimento de projetos; (e) Aprendizagem Autodirigida/Autodesenvolvimento: o próprio indivíduo identifica, planeja e desenvolve suas

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necessidades de aprendizagem (formação e desenvolvimento); (f) AprendizagemFormal: embora geralmente recorra a atividades de aprendizagem intencionalmenteconstruídas e normalmente consideradas pertencentes ao domínio deDesenvolvimento de Recursos Humanos, apresenta em algumas situações umcaráter experiencial. Ações de desenvolvimento formal constituem-se em educaçãocontinuada, treinamento e educação básica, cursos de graduação, pós-graduação,seminários e workshops; (g) Aprendizagem Baseada no trabalho: baseia-se nasimples idéia que aprendizagem pode ser adquirida por meio da prática. Raelin(1997) propõe que sejam fundidas deliberadamente a teoria com prática e reconhecea interseção de formas explícitas e tácitas de saber, atribuindo importância ao nívelcoletivo na aprendizagem individual.

Também há uma categorização útil no campo da Aprendizagem Experiencialdesenvolvida pelos trabalhos da I Conferência Internacional em AprendizagemExperiencial em Londres (Henry, 1989, p. 17). “Aprendizagem experiencial refere-se aum espectro de significados, práticas e ideologias as quais emergem do mundo dotrabalho e de compromissos de políticos, pedagogos, treinadores, agentes demudança e das pessoas em geral.” A aprendizagem experiencial é entendida a partirde significados diferentes, tais como os referentes aos desafios que os indivíduosenfrentam: em suas vidas, na educação, nas instituições, organizações, emcomunidades e na sociedade como um todo. Porém, podem-se discernir quatroênfases para aprendizagem experiencial. Cada ênfase dá base para um agrupamentorelacionado a idéias e preocupações, sejam elas, aprendizagem experiencial: (a) Comoa base para provocar mudança nas estruturas, propósitos e currículos na educação,(b) Como base para elevação da consciência de grupo, ação de comunidade e mudançasocial; (c) A pessoa está particularmente preocupada em avaliar e credenciar aaprendizagem da vida e a experiência de trabalho como bases para criar novas rotasem sua educação, emprego, oportunidades de treinamento e organizaçõesprofissionais; e (d) Relacionada ao crescimento pessoal, desenvolvimento eampliação da autoconsciência e efetividade do grupo.

Baseando-se, então, nos modelos cognitivistas e experienciais é que sedesenvolvem alguns dos principais trabalhos relacionados ao aprendizado individualno contexto organizacional. Entre outros estudos, o mais difundido é o de Kolb (1984),inspirado nos modelos de aprendizagem experiencial e influenciado pelas idéias de Dewey.A aprendizagem é apresentada por Kolb (1984, p. 41) como “o processo por meio do qualo conhecimento é criado pela transformação da experiência”, a partir de seis suposições:1) aprendizagem é um processo, não um resultado; 2) deriva da experiência; 3) exige queum indivíduo solucione demandas dialeticamente opostas; 4) é sistêmico e integrativo;5) requer interação entre uma pessoa e o ambiente; e 6) resulta em criação de conhecimento.Kolb propõe o ciclo de aprendizagem vivencial, onde concebe a aprendizagem como umciclo quadrifásico que pode ser visualizado na figura 1.

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O modelo proposto por Kolb influenciou diversos estudos em administração.Entre eles a interação pessoa-trabalho (Sims, 1983), pesquisa e desenvolvimento deequipes (Carlsson, Keane & Martin, 1976), sistemas organizacionais (Dixon, 1994),desenvolvimento de estratégia (Van Der Heijden, 1996), desenho de educação emadministração (Lengnick-Hall & Sanders, 1997) e aconselhamento no trabalho (Hunt,1987). Miettinen (1998) sugere a razão para tal influência: este modelo combinaespontaneidade, sentimentos e insights profundos dos indivíduos com a possibilidadede pensamento racional e reflexão. Mantém a crença humanista na capacidade de todoindivíduo crescer e aprender, tão importante para o conceito de aprendizagem contínuae para educação de adultos. Em termos de aprendizagem, a experiencial pode ser descritacomo um processo pelo qual o indivíduo reflete sobre sua experiência e, disto, emergeminsights ou novas aprendizagens. Ela pode ser definida, então, como um processo queinicia com a experiência seguida pela reflexão, discussão, análise e avaliação daexperiência. A suposição é que raramente aprendemos da experiência, a menos queavaliemos a experiência, concebamos nosso próprio significado em termos de nossaspróprias metas, objetivos, ambições e expectativas. Destes processos surgem osinsights, as descobertas e o entendimento. As partes assumem seus lugares e aexperiência toma significado e forma, somando em relação a outras experiências. Issoé então conceituado, sintetizado e integrado ao sistema de construção do indivíduo,que lhe impõe o mundo pelo qual ele vê, percebe, categoriza, avalia e busca experiência.

Stacey (1993), por sua vez, reforça a importância da interação social. O autoracredita que os indivíduos, por meio de sua interação, criam e recriam continuamentea organização e esta, por sua vez, influencia os grupos e o seu contínuo processo derecriação. Desde que a aprendizagem passou a despertar crescente interesse dosestudiosos da teoria das organizações, evidencia-se a preocupação em não negligenciaro contexto social no qual o indivíduo está inserido. Esta preocupação visa romper atradição de separar o conhecimento da ação (Raelin,1997). Para Richter (1998, p. 301),esta tradição tem sido desafiada por uma “[...] visão construtivista de que a aprendizageme o conhecimento podem estar situados no íntimo da criação social e mútua das relaçõesentre os profissionais”.

Figura 1 – Ciclo da Aprendizagem Experiencial (Kolb, 1984).

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Aprendizagem situada, informal e incidentalO tipo de aprendizagem informal acontece naturalmente como parte do trabalho

diário. Usualmente os eventos de treinamento são considerados espaços típicos deaprendizagem e desenvolvimento profissional. No campo da aprendizagem na açãouma das abordagens mais ricas é a que trata da aprendizagem informal e dascomunidades de prática por meio aprendizagem situada. Os benefícios mais sustentáveisem termos de necessidades individuais e organizacionais tendem a ser o resultado da“ação” ou da “aprendizagem situada”, que é informal e resulta diretamente deatividades relacionadas com o trabalho (Lave & Wenger, 1991). Esta é a aprendizagemque se dá em espaços e interstícios de vida organizacional.

Lave e Wenger (1991) argumentam que o aprendizado sempre ocorre em funçãoda atividade, contexto e cultura no qual ocorre ou se situa. Para os autores estaproposição contrasta com a maioria das atividades em sala de aula, que envolvemconhecimentos abstratos, totalmente descontextualizados de situações concretas. Ainteração social é um componente crítico da aprendizagem situada; nela, os aprendizesficam envolvidos em “Comunidades de Prática”, que portam certas convicções e definemcomportamentos a serem adquiridos. Brown e Duguid (1992) descrevem este tipo delocal de trabalho como um processo de aprendizagem que acontece por “teias departicipação”. Wenger e Lave (1998), caracterizaram estas teias de aprendizageminformais como Comunidades de Prática e Boland e Tenkasi (1995) as denominamcomunidades de saber. Ao invés de representar aprendizagem como o que acontecedentro de sistemas formais, por exemplo, pelo treinamento em aula ou uso de banco dedados, esta abordagem volta-se a para aprendizagem que acontece pela participaçãono trabalho. O aprendizado ocorre de maneira não intencional, não deliberada. Atransferência de conhecimento e aprendizagem mais integrados é facilitada por meioda autêntica interação social. Aprendizagem situada coloca pensamento e ação numlugar e tempo específicos. Situar significa envolver indivíduos, o ambiente e asatividades para criar significado. Situar significa localizar num setting particular osprocessos de pensar e fazer utilizados pelos experts para criar conhecimento ehabilidades para as atividades.

Para Lankard (2000), aprende-se em contextos que refletem como o conhecimentoserá devidamente usado em situações da vida real. A estratégia está baseada napremissa de que conhecimento não é independente, mas fundamentalmente situado,sendo em parte um produto da atividade, contexto e cultura nos quais é desenvolvido(Brown & Duguid, 1992). Orey e Nelson (1994, p.623) elaboram uma explicação:“aprendizagem requer mais que só pensamento e ação, ou uma situação física ousocial particular, ou de receber um corpo de conhecimento; também requer participaçãonas atuais práticas da cultura”. Assim, a aprendizagem situada é o autêntico contextosocial no qual a aprendizagem acontece, fornecendo ao indivíduo o benefício doconhecimento ampliado e o potencial para aplicar este conhecimento de novas formasem novas situações. Na teoria da aprendizagem situada o “conhecimento é visto comoco-produzido pelas pessoas e a situação; compromisso e o engajamento do indivíduosão críticos na situação” (Damarin, 1993, p. 28).

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Quanto à aprendizagem informal, Livingstone (1999) sugere que seja algumaatividade que envolva a busca de entendimento, conhecimento ou habilidade queacontece fora dos currículos que constituem cursos e programas educacionais. Outradefinição é oferecida por Watkins e Marsick (1992) em que a aprendizagem informal e aincidental podem ocorrer a partir de uma experiência formalmente estruturada, com baseem atividades específicas para este fim. Estas autoras afirmam que aprendizagem informalpode se encontrar em processos formais de ensino, pode ser planejada ou não planejada,mas normalmente envolve algum grau de consciência que a pessoa está aprendendo.

Aprendizagem incidental é aprendizagem não intencional ou não planejada queresulta de outras atividades. Acontece freqüentemente no local de trabalho no processode realização das tarefas (Cahoon, 1995). Ocorre de muitas formas: por observação,repetição, interação social e resolução de problema (Rogers, 1997); provem designificados implícitos em sala de aula, políticas ou expectativas do local de trabalho(Leroux, & Lafleur, 1995); por “assistir” ou falar com colegas ou experts sobre tarefas(Rogers, 1997); provem de erros, suposições, convicções e atribuições (Cseh, Watkins& Marsick.,1999); ou de ser forçado aceitar ou adaptar-se a situações (English, 1999).Este modo “natural” de aprender (Rogers, 1997) tem características que o torna muitoefetivo em situações de aprendizagem formais: é situado, contextual e social. Ross-Gordon e Dowling (1995, p. 315) definem: “Aprendizagem incidental é uma ação outransação espontânea, a intenção na realização de uma tarefa, que na descoberta aoacaso aumenta conhecimento e habilidades específicas. Inclui como aprender comerros, aprender fazendo, aprender pela transmissão em rede, aprender de uma sérieexperiências interpessoais”.

A aprendizagem incidental pode resultar em competência melhorada, mudançade atitudes, incremento de habilidades interpessoais, autoconfiança e autoconsciência(Mcferrin, 1999; Ross-Gordon & Dowling, 1995). Porém, nem toda aprendizagem nãoplanejada é efetiva. Mealman (1993) explica como criar um clima que nutre aprendizagemincidental e auxiliar as pessoas a obterem bons resultados deste tipo de aprendizagem:a consciência da oportunidade e o valor de tal aprendizagem podem ser expostos àatenção dos aprendizes, enfatizando que eles podem antecipar resultados pelaaprendizagem incidental e, isto repercute no incremento da competência; em maiorautoconhecimento; habilidades aperfeiçoadas e desenvolvimento de autoconfiança.Outras sugestões incluem oportunidades para trocas sociais (Lawrence, 2000); arranjodo local de trabalho (Brown & Duguid, 2000); desenvolvimento de habilidades dereflexão crítica (Cseh, Watkins & Marsick, 1999).

A aprendizagem situada, como a aprendizagem experiencial, enfatiza que émais provável que a mudança de comportamento aconteça como resultado da reflexãoem experiência. Já a aprendizagem incidental difere porque envolve pouca ou nenhumareflexão. A dificuldade de validar a aprendizagem incidental como uma estratégia deaprendizagem efetiva é que se trata de uma aprendizagem que não é antecipada, tãopouco consciente, então, não é tão facilmente avaliada. A intenção primária da atividadeé realizar a tarefa e não aprender. Quando a aprendizagem incidental acontece, é umasurpresa – um subproduto de outra atividade. O indivíduo descobre algo durante oprocesso de fazer.

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Por outro lado, na abordagem das questões de identificação e avaliação daaprendizagem informal é crucial não esquecer a sua natureza contextual. Quandoadquiridas em ambientes sociais e concretos, as competências são em grande parte osresultados da participação em Comunidades de Prática. Esta perspectiva implica emvalorizar não apenas o lado relacional (o papel do indivíduo dentro de um gruposocial), mas também a qualidade da aprendizagem. Aprender, em termos individuais,significa adquirir competências de desempenho por envolvimento num processocontínuo de aprendizagem. Como tal, a aprendizagem não é apenas reprodução, mastambém reformulação e renovação do conhecimento ou das competências.

Conforme Elkjaer (2000, p.114), considerar a aprendizagem como uma parte inerenteda prática social, como algo interpretado, baseado no mundo em que vivemos, “[...]pode também ser chamado de uma abordagem construtivista social sobre aprendizagem– e organizações”. Esta abordagem tem desenvolvido conceitos, tais como, o deaprender enquanto se trabalha. As práticas de trabalho são vistas como construçõessociais. De acordo com Jacobson (1996, p. 23), “as relações sociais são centrais para aaprendizagem em determinado ambiente; aprender é significativo não somente pelascompetências e processos que são adquiridos, mas pelas mudanças das relaçõessociais a que isto leva”. De forma similar, Lave e Wanger (1991, p. 52) afirmam que “aaprendizagem implica não somente em relações com atividades específicas, mas emrelações com comunidades sociais”, as denominadas comunidades de prática, ou seja,a aprendizagem implica no indivíduo tornar-se apto para envolver-se em novasatividades e funções e para adquirir novos conhecimentos.

Por fim, a aprendizagem no ambiente de trabalho é distinguida, na literatura, emtermos de seu locus de controle. Atividades de aprendizagem formal são conceituadascomo organizacionalmente mediadas e envolvem muito menos autodireção quandocomparadas a atividades informais e incidentais que são consideradas altamenteautodirigidas, cujo controle está dentro da esfera da aprendizagem individual (Eraut,2000). Nesta estrutura social complexa de atores, cada indivíduo possui seus interessesespecíficos.

A noção de competênciaNeste estudo adotou-se a idéia de que a competência permite a ação e/ou resolver

problemas profissionais de maneira satisfatória dentro de um contexto particular aomobilizar diversas capacidades de maneira integrada. Esta proposta de definição foiconstruída a partir das idéias de Le Boterf (1999), Sandberg (2000) e Zarifian (2001).Está presente a questão processual e contextual em que a articulação e interação sãoaspectos fundamentais para o indivíduo, organização e sociedade. Trata-se de umaabordagem dinâmica que privilegia a análise de competências a partir da definição denoção e seleção de atributos1 de competência, desenvolvimento e formação que se

1 Le Boterf sugere uma classificação para recursos/atributos de competências: a) conhecimentos: gerais eteóricos, operacionais e do ambiente; b) habilidades: operacional, experiencial, relacional cognitivo; c) atitudes:atributos pessoais e relacionais d) recursos fisiológicos: energia, disposição; e) recursos do ambiente: siste-mas de informação, bancos de dados. Estes recursos podem ser desdobrados em outros.

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optou por denominar de “competência em processo”. Verificou-se que diferentesautores utilizam diferentes definições, com freqüentes contradições e superposiçõesconceituais. Para fins do estudo entende-se que mais do que definir o que constituicompetências é necessário também compreender como são desenvolvidas e, portanto,cabe considerar os seguintes aspectos elaborados a partir dos autores acimamencionados: (a) conexão existente entre a competência e a ação: a competência permiteo agir e é ela que adapta este agir. Ela não existe por si, independentemente da atividade,do problema a resolver, do uso que dela é feito; (b) contextualidade: a competênciaestá vinculada a uma dada situação profissional e corresponde conseqüentemente aum contexto; (c) as categorias constitutivas da competência: competência é constituídapela mobilização de recursos de competências: conhecimentos, habilidades e atitudes(Le Boterf, 1999); (d) a competência adiciona valor às atividades da organização evalor social ao indivíduo: à organização em termos de desempenho e ao indivíduo naforma de auto-realização, sentimento ou experiência pessoal de ser competente. Aquise insere a idéia de autodesenvolvimento e motivos no sentido de que o indivíduotambém é responsável pelo desenvolvimento, aprimoramento e consolidação de suascompetências; (e) interação e rede do trabalho: as competências se desenvolvem porinteração entre as pessoas, no ambiente de trabalho, formal ou informalmente. A noçãode construção de competência inclui a interação do indivíduo com seu grupoprofissional, grupos sociais do ambiente que vive. Considera-se também acesso abanco de dados livros, manuais, dentre outros; (f) as práticas de trabalho: a competênciapode ser compreendida com base nas práticas organizacionais focalizando sua análiseno enriquecimento de experiências e vivências. O desenvolvimento de competênciasenvolve mudança na estrutura e no significado das práticas do trabalho. Neste sentidoum aspecto fundamental refere-se à apropriação do saber em ações no trabalho (saberagir). O conhecimento é construído e, ao mesmo tempo, incorporado às atitudes,manifestando-se por meio de ações e práticas no trabalho.

Tais considerações convergem para construção da definição de competênciaadotada no estudo: é a que ocorre em função capacidade de mobilização deconhecimentos, habilidades e atitudes (recursos de competência) pelo indivíduo frentea uma situação, atividade, contexto e cultura no qual ocorre ou se situa. Trata-se dacapacidade do indivíduo pensar e agir dentro de um ambiente particular, supondo acapacidade de aprender e de se adaptar a diferentes situações, a partir da interaçãocom outras pessoas. O indivíduo também é responsável pela construção e consolidaçãode suas competências (autodesenvolvimento), tendo em vista o aperfeiçoamento desua capacitação, podendo, dessa forma, adicionar valor às atividades da organizaçãoe a si próprio (auto-realização).

Cabe ressaltar alguns estudos desenvolvidos no Brasil que abordam os processosde aprendizagem e o desenvolvimento de competências. Entre eles, o estudo de Leite,Godoy e Antonello (2006) cujo objetivo foi o de compreender como os gerentes debanco aprendem o exercício da função gerencial por meio de sua experiência. Comoprincipais resultados, as pesquisadoras identificaram que os gerentes desenvolvemcompetências gerenciais a partir das experiências que vivenciam, não somente aquelasque por algum motivo foram marcantes, mas também por meio de atividades corriqueiras.

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Neste processo de desenvolvimento de competências, várias formas de aprender pelaexperiência foram mencionadas, recebendo maior ênfase a observação e a aprendizagempor tentativa e erro.

Antonello (2004) identificou e analisou como ocorre o processo de intercâmbioentre as práticas informais e formais de aprendizagem no processo dedesenvolvimento de competências junto a gerentes que participam de programas deespecialização e mestrado profissional em administração. Os resultados deste estudoapontaram uma diversidade de modos a partir dos quais os indivíduos podemdesenvolver as suas competências, destacando a importância da aprendizageminformal neste processo. Além da construção de uma taxonomia de doze formas deaprendizagem2 que contribuem para o desenvolvimento de competências gerenciais,a autora ressalta a necessidade de se reconhecer a contribuição da aprendizageminformal pelas práticas de trabalho na aquisição e desenvolvimento de competênciasgerenciais, delineando algumas proposições para gestores e profissionais que atuamna área de desenvolvimento e formação gerencial. Em estudo posterior, Antonello(2005) analisa estratégias empregadas para o desenvolvimento de competênciasgerenciais no âmbito organizacional. Os resultados desta investigação indicam queo processo de aprendizagem gerencial associado ao desenvolvimento decompetências é complexo e dinâmico, transcendendo o domínio individual. Dentreoutros achados, destaca-se a importância da aprendizagem na ação e o compartilharde modelos mentais no desenvolvimento de competências gerenciais. ConformeAntonello (2005), a aprendizagem gerencial no desenvolvimento de competênciaspode ser compreendida como um processo contínuo de responder as diversasdemandas pessoais e ambientais, organizacionais e sociais, que surgem da interaçãoentre experiência, conceituação, reflexão e ação. A autora ressalta que a alternativade atividades acadêmicas conjuntas às organizações pode ser uma excelenteoportunidade, um espaço para experimentação de novas idéias, modelos e práticasvoltadas para a realidade das empresas brasileiras.

Por fim, salienta-se que se uma competência é um saber-mobilizar, ela não setrata de uma técnica ou de mais um saber, mas de uma capacidade de mobilizar umconjunto de recursos – conhecimentos, know-how, esquemas de avaliação e de ação,ferramentas, atitudes – a fim de enfrentar com eficácia situações complexas e inéditas.Não basta, portanto, [...] enriquecer a gama de recursos do gestor para que ascompetências se vejam automaticamente ampliadas, pois seu desenvolvimento passapela integração e pela aplicação sinérgica desses recursos nas situações, e isso precisaser aprendido” (Antonello, 2005, p. 36). Desta forma, evidencia-se a necessidade de secompreender quais processos de aprendizagem estão presentes no desenvolvimentode competências.

2 As doze formas de aprendizagem identificadas foram: experiência anterior e transferência extraprofissional;experienciar; reflexão; auto-análise (autoconhecimento); observação (modelos); feedback; mudança de pers-pectiva; mentoria e tutoria (ser assistido por ou exercer o papel de mentor ou tutor); interação e colaboração(em grupo); treinamentos; aprendizagem informal (no trabalho – baseada na prática e/ou durante cursosformais); aprendizagem pela articulação entre teoria e prática.

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Método

ParticipantesEsta pesquisa envolveu 75 alunos cursando o último semestre do curso noturno

em administração de duas universidades privadas. Justifica-se a escolha pelo cursonoturno por ampliar a possibilidade de pesquisar alunos que estivessem trabalhando.A limitação do estudo pode estar no fato de não terem sido investigados alunos deuniversidade pública e do turno diurno para o estabelecimento de estudo comparativo.Embora não fosse este o objetivo da presente pesquisa, já fica a sugestão para estudosfuturos. Os sujeitos pesquisados foram selecionados a partir de critérios quegarantissem uma maior compreensão e proveito do fenômeno em questão. Assim, sedefiniu como atributos essenciais que guiaram a escolha da unidade de análise: (a)alunos cursando último semestre do curso de administração (b) alunos que estivessemtrabalhando.

Instrumentos e procedimentosA estratégia empregada para coleta de dados foi a de entrevista em profundidade.

O roteiro semi-estruturado para realização da entrevista foi formulado de acordo coma teoria apresentada nas seções anteriores, de modo a garantir a característica indutivada pesquisa qualitativa. O conjunto de perguntas realizadas aos alunos pesquisadosderivou do que é tecnicamente conhecido como estrutura teórica do estudo (Merriam,1998). De acordo com Richter (1998), pesquisas interessadas em compreender oprocesso de aprendizagem devem preocupar-se em compreender o processo deconstrução de significados que o sujeito realiza. Isto porque, as perguntas sobreaprendizagem tendem a ser respondidas conforme aquilo que os sujeitos assumemcomo aprendizagem.

A grounded theory foi adotada como estratégia para análise dos dados. Estaabordagem visa à construção de teorias em pesquisa qualitativa e é “[...] um métodode pesquisa qualitativo que usa um sistemático conjunto de procedimentos paradesenvolver indutivamente uma ‘teoria’ sustentada sobre o fenômeno. Olevantamento da pesquisa constitui uma formulação teórica da realidade sobinvestigação” (Strauss & Corbin, 1990, p. 24). Para Carson e Coviello (1996) agrounded theory provê uma abordagem mais aberta à análise de dados. Ao invés dese forçar os dados dentro de suposições e categorias obtidas através de deduçõeslógicas, os achados de campo são empregados para gerar uma teoria substantivaderivada dos conceitos e categorias usados pelos próprios agentes sociais parainterpretar e organizar seus mundos. Strauss e Corbin (1990) e Carson e Coviello(1996) comentam que a interpretação de dados pode ser guiada por literatura e teoriaexistente. Isto é um processo altamente recursivo entre teoria que é construída e ateoria existente (Wolfgramm, Boal & Hunt, 1998). Nesta metodologia o pesquisadorinicia com um construto minimalista a priori, investiga profundamentecomportamentos e eventos e, gradualmente, elabora uma teoria fundamentada,substantiva (Strauss e Corbin, 1990). Salienta-se que na grounded theory:

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[...] sua força está na possibilidade de compreender as experiências dos indivíduospor meio de um método flexível e aberto às descobertas e que [...] recontar eexplicar essas experiências por meio de uma teoria: um conjunto integrado deproposições que explicam a variação da ocorrência de um fenômeno socialsubjacente ao comportamento de um grupo ou à interação entre grupos. [...] nãoé uma teoria formal, [...] mas uma teoria substantiva, específica para determinadogrupo ou situação e não visa generalizar além de sua área substantiva. (Bandeira-De-Mello; Cunha, 2006, p. 247-248)

Esse método propõe desenvolver proposições ao invés de testar hipóteses,permitindo a descoberta de processos que podem gerar uma teoria substantiva, baseadano estudo do que os atores “fazem” e em “como” eles interpretam essas ações(Creswell, 1998). “Antes de testar os relacionamentos entre variáveis, nós queremosdescobrir categorias relevantes e os relacionamentos entre elas” (Strauss & Corbin,1990, p.49).

Assim, foram utilizados métodos de comparação constante e de codificação determos para captar a essência do fenômeno estudado dando sentido aos dados (Strauss& Corbin, 1990). Trata-se de um procedimento que, já no levantamento, admite passosde construção de conceitos – principalmente indutivos – e teorias. De acordo comMayring (2002), a grounded theory parte da suposição de que o pesquisador, já durantea coleta de dados, desenvolve, aprimora e interliga conceitos teóricos, construtos esuposições, de tal maneira que levantamento e análise se superpõem. No decorrer dolevantamento de dados cristaliza-se um referencial teórico, que está sendo modificadoe completado passo a passo.

Resultados

A faixa etária dos pesquisados variou de 25 a 35 anos, sexo feminino (43%) emasculino (57%), sendo que 62% exerciam cargo gerencial ou de supervisão, com umtempo médio de experiência no trabalho de 10 anos. Procurou-se investigar com autilização de um roteiro de entrevistas basicamente dois eixos principais: o processode aprendizagem e o desenvolvimento de competências. Da análise das entrevistasemergiram as categorias de conteúdo, que são apresentadas a seguir (tabela 1).

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Tabela 1 – Categorias identificadas no estudo.

Categorias gerais

Roteiro de entrevista

Microcategorias identificadas:

Descrição da microcategoria

Prática Quando coloca-se em prática algo.

Observação Pela observação de demonstrações sobre o que se quer aprender.

Interação Pela discussão e troca idéias com outros colegas de trabalho.

I. Aprende-se

mais:

Leitura Pela leitura de artigos e livros.

Contexto interação

A aprendizagem das pessoas e seu desenvolvimento se produzem em contextos ou situações sociais, de interação grupal, facilitando que as pessoas possam conhecer pontos de vista diferentes e desenvolver suas próprias idéias.

Desenvolvimento pessoal para autonomia.

A aprendizagem é um processo de desenvolvimento e crescimento pessoal e afetivo que permite que as pessoas conquistem sua autonomia. Exigem um investimento e dedicação intensivos no autoconhecimento.

Ação e experienciar.

A aprendizagem ocorre pela ação e por aquilo que se experiencia. •O que se aprende fica evidenciado no que se faz (forma de agir).

Pr

oces

so d

e ap

rend

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em

II.

Aprender significa:

Processo cognitivo

A aprendizagem é principalmente uma atividade interna e tem a ver com mudança dos processos e estruturas mentais das pessoas.

Reflexão Que propiciam a reflexão dos participantes, mediante sua observação, com objeto de conhecer, analisar e avaliar a própria prática, de conhecer a si mesmo.

Simulação Que utilizam a simulação como atividade principal.

Interação Que utilizam a aprendizagem entre colegas como estratégia relevante para o desenvolvimento profissional.

B

arre

iras

III Quanto a

Preferência por atividades de formação

Orientação/

acompanhamento Que incorporam orientação/acompanhamento na aquisição de habilidades profissionais.

Interesse do aprendiz

Para obter um bom ambiente de aprendizagem é necessário que os participantes se dediquem com interesse à atividade.

Orientação/ acompanhamento

Manter equilibrados os níveis de orientação/acompanhamento na atividade de formação melhora as relações e o ambiente da mesma.

Atividades inovadoras.

O que cria um bom ambiente é a realização de atividades inovadoras.

A

mbi

ente

IV. Quanto ao

ambiente das atividades de

formação

Resultados percebidos

Perceber como produtivas as tarefas da atividade de formação ajuda a criar um bom ambiente.

Associar teoria à prática.

Deve promover a possibilidade de associar-se teoria à prática.

Resolução de problemas.

Deve se realizar sobre a base dos problemas reais diagnosticados pelas empresas.

Pl

anej

a-

men

to

V. Planejamento das atividades De formação:

Colaboração Deve ser uma tarefa colaborativa com implicação dos alunos na mesma.

Conteúdo Domínio do conteúdo

Motivar Capacidade de motivar

Clareza Clareza ao expor o tema

Fo

rmad

or

VI. A principal

característica de um bom formador deve ser

Propiciar a reflexão Capacidade para propiciar a reflexão

Competências referenciadas

como prioritárias

Capacidade de Gerenciar pessoas Conhecimentos – Competência Técnica Capacidade de estabelecer relacionamento Interpessoal Capacidade de Trabalhar em Equipe

C

ompe

tênc

ias

VII. Competências

Gerenciais necessárias para o bom

desempenho em sua

profissão

Competências secundárias

Planejamento estratégico – Agilidade e Flexibilidade – Responsabilidade – Atenção voltada para o cliente – Liderança

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Discussão

Tendo em vista os pressupostos metodológicos adotados neste estudo, opropósito desta seção é apresentar a teoria substantiva gerada a partir dos sujeitospesquisados e que, entende-se, contribui para a compreensão do fenômeno estudado.Sinteticamente pode-se dizer que a partir da percepção dos pesquisados identifica-sealgumas questões abordadas na literatura sobre aprendizagem e desenvolvimento decompetências. Pelos relatos, a noção do significado de aprendizagem pode seridentificada em quatro dimensões: (1) interação; (2) desenvolvimento pessoal eautonomia; (3) ação/experienciar e (4) processos e estruturas mentais. A importânciade “colocar em prática” e “aprender pela experiência e pela ação” são formas preferidaspelos entrevistados, facilitando o seu processo de aprendizagem, também identificadasnos estudos desenvolvidos por Leite, Godoy e Antonello (2006) e por Antonello (2004,2005).

Para os entrevistados o objetivo da aprendizagem é provocar alguma mudançana própria eficácia, mudar valores e atitudes ou ter experiências que sejam aproveitadasno futuro. Assim, a aprendizagem é o processo pelo qual eles criam conhecimento pormeio da transformação da experiência. Uma experiência de aprendizagem não éconsiderada uma conseqüência completa enquanto não tenha tido uma aplicação emuma situação de trabalho concreta e, na qual, de acordo com os entrevistados, possamavaliar sua eficácia. Este aspecto reporta-se a noção de competência: um dos pontoschaves é a transformação da experiência em conhecimento e em ação, a competência seexpressa na ação (Le Boterf, 1999).

Alguns dos resultados obtidos são similares a uma idéia já apresentada porWatkins e Marsick (1992, p. 294-297) de que as condições que aumentam a aprendizagemsão: (a) Proatividade: na qual o aprendiz toma para si e dirige sua aprendizagem –semelhante às condições de autonomia e empowerment; (b) Reflexão Crítica: na qualos aprendizes identificam e tornam explícitas normas, valores e suposições que estãoescondidas de sua consciência e desafia o modo como as coisas são feitas ao seuredor; (c) Criatividade: que permite as pessoas pensarem e perceberem as situações apartir de perspectivas diferentes.

Já a aprendizagem incidental não é reconhecida ou classificada freqüentementecomo aprendizagem pelos pesquisados, confirmando assim, outros estudos de que édifícil mensurá-la. Porém, “as conseqüências não intencionais de uma situação deaprendizagem são freqüentemente mais importantes para o aprendiz que os objetivosoriginais” (Mcferrin, 1999, p.1). Aprendizes não distinguem freqüentementeaprendizagem formal e incidentalmente adquirida (Mealman, 1993) ou se preferemoportunidades de aprendizagem incidental no lugar da formal, embora alguns estudosdemonstrem que reter a aprendizagem incidental era pessoalmente significativo paraos indivíduos (Woods, 1998).

A necessidade da aproximação da teoria da prática apontada pelos entrevistados,evidencia que o resgate da bagagem de conhecimentos/experiências do indivíduo emseu cotidiano e no ambiente de formação, possibilita-lhe apropriar-se desta bagageme, ao mesmo tempo, contribui para o seu autodesenvolvimento. Além disso, os

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pesquisados salientam a importância do facilitador ter a capacidade de propiciar areflexão em ambiente de formação. Estes aspectos permitem-lhes ampliar seu repertóriode respostas às situações que se apresentam em seu dia-a-dia. No re-apropriar de suaexperiência profissional/pessoal, esperam poder redimensionar situações com as quaisse deparam a partir de uma perspectiva diferente, questões também apontadas emestudo de Antonello (2004). Trata-se da aplicação da dinâmica da relação entre ação-reflexão e aprendizagem. Desta forma, pode-se dizer que a aprendizagem designa oprocesso pelo qual o indivíduo constrói, assimila e aperfeiçoa conhecimentos e novascompetências, por intermédio do qual suas representações, seus comportamentos esuas capacidades de ação são modificados.

Na percepção dos pesquisados as competências consideradas imprescindíveispara seu desempenho profissional como administrador numa função gerencial, alémdo conhecimento, situadas no campo das competências sociais, são a capacidade de:gerenciar pessoas; de relacionamento interpessoal e de trabalhar em equipe. Naliteratura, reconhece-se que a principal meta da formação gerencial é ajudar os gestoresa desenvolverem-se como profissionais reflexivos, que possam refletir criticamentesobre sua própria prática profissional. Os gestores no atual contexto de negóciosprecisam ser capazes de analisar a informação; resolver de problemas; comunicar-se;relacionar-se e trabalhar em equipe; e refletir sobre seu próprio papel no processo deaprendizagem (Schön, 2000).

Observa-se que os pesquisados sinalizam que aprendem reconhecendo erespondendo a um jogo diverso de demandas ambientais e pessoais. A aprendizagemenvolveria a interação entre duas dimensões interdependentes de conhecimento:aquisição e transformação. Cada dimensão exige que um indivíduo solucione umadialética ou um jogo de aprender por meio das tensões.

Assim, tomando as micro-categorias identificadas no estudo para a categoria“aprender significa” – contexto, interação, reflexão e desenvolvimento pessoal –pode-se dizer que a dimensão de aquisição de conhecimento exige que um indivíduosolucione a tensão entre apreensão (experiência concreta) e a compreensão(conceituação abstrata). Apreensão exige que um indivíduo aceite um novoconhecimento por percepção sensória e experiência direta com o mundo(sentimentos). Em contraste, a compreensão acontece quando um indivíduo uneconhecimento por intermédio de conceitos abstratos e representações simbólicas. Acompreensão acontece quando o indivíduo desconstrói e separa a experiência emeventos significativos e os coloca dentro de um sistema simbólico da cultura e dasociedade. O conhecimento adquirido por apreensão ou compreensão interagiriaprontamente com a segunda dimensão de aprendizagem, aqui denominada de:transformação de conhecimento.

A dimensão de transformação da aprendizagem também é caracterizada por umatensão dialética: intenção de conhecimento (observação-reflexiva) versus extensãodo conhecimento (experimentação-ativa). No processo de aprender pela intenção, oindivíduo move-se internamente para refletir sobre o conhecimento previamenteadquirido. Em contraste, aprendizagem por meio da extensão exige que ele se mova,além de si mesmo, para interagir com um ambiente externo e os outros indivíduos.

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Os relatos analisados revelaram a noção de aprendizagem na ação eautogerenciada, onde o desenvolvimento de competências exige uma escolha etransformação interna do indivíduo a partir das interações sociais. Evidenciou-se ainda,a importância atribuída pelos entrevistados ao papel da autonomia e da motivação noprocesso de aprendizagem, atuando como capacitadores no seu contínuodesenvolvimento, bem como, da relevância do papel do facilitador para estimular amotivação por meio da orientação e do acompanhamento.

A forma como os entrevistados relataram que solucionam estas tensões dialéticas,revelou como delineiam sua trajetória em torno do processo ciclo de aprendizagem.Vista enquanto um todo, a aprendizagem por eles descrita, trata-se de um processocontínuo de responder às diversas demandas pessoais e ambientais destes indivíduos,que surgem da interação entre experiência, conceituação, reflexão e ação constituindoum ciclo – embora não necessariamente fechado, ordenado e seqüencial – mas melhorexpresso pela noção de espiral, acompanhado pelo desenvolvimento de umacompetência. Assim, a análise dos relatos oportuniza elaborar a configuração que seapresenta na figura. 2.

Figura 2 – Processo de aprendizagem e desenvolvimento de competências conforme sujeitospesquisados.

Na figura 2 se evidencia a idéia de que a aprendizagem dos pesquisados é umprocesso de natureza social, emancipatória, tácita que envolve a representação internado indivíduo (autoconhecimento; interesse e motivação em aprender) e sua ação social(conhecimento do outro) viabilizando o desenvolvimento de suas competências.Quando os entrevistados falam em aprendizagem, estão falando de um conceito queinclui ambos, o explícito e o tácito. Inclui o que é dito e o que é não dito; o que érepresentado e o que é assumido. Inclui a linguagem, as ferramentas, os documentos,

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as imagens, os símbolos, os papéis definidos, os critérios especificados, osprocedimentos, os regulamentos e os contratos que várias práticas fazem explícitaspara uma variedade de propósitos. Inclui também, todas as relações implícitas,convenções tácitas, sugestões sutis, regras não declaradas, as intuições, aspercepções, a sensibilidade, compreensões incorporadas, suposições subjacentes, asvisões de mundo compartilhadas que nunca puderam ser articuladas.

Assim, a transposição dos saberes para a prática não comporta apenas umadimensão técnica, implicando num trabalho pessoal de reconstrução das representaçõese das atitudes, de reinvenção quotidiana de estratégias de ação, oportunizando odesenvolvimento pessoal e a autonomia. A contribuição mais significativa daaprendizagem na ação no desenvolvimento de competências reside, talvez, na rupturacom um modo de pensamento essencialmente prescritivo e justificativo, que exige ainversão da relação entre a “teoria” e a realidade observada, a partir da interação como outro e do contexto em que está inserido o sujeito.

Iniciou-se o artigo abordando as dificuldades de se estabelecer uma definiçãopara aprendizagem experiencial. A diversidade de nomenclaturas e abordagens dotema pode confundir o leitor que esteja buscando compreender o processo deaprendizagem e sua contribuição no desenvolvimento de competências. Além disso,por algum tempo, houve uma tendência de se abordar a questão do desenvolvimentode competências descolada dos processos de aprendizagem que permeiam estefenômeno. Desta forma, conclui-se esta seção propondo um quadro de referênciasrelativamente integrado para a definição e o papel da aprendizagem na ação nodesenvolvimento de competências. A idéia não é unificar, mas estabelecer interlocuçõesentre algumas definições e abordagens. A partir da revisão teórica e da reflexão acercado estudo exploratório desenvolvido, percebe-se conexões relativas ao conceito deaprendizagem que se denomina experiencial ou na ação em contextos organizacionaise de formação: (a) processo: ênfase no como, em termos de continuidade e idéia deespiral; (b) transformação: baseado na possibilidade de mudança de atitude; (c) grupo:enfatizando o coletivo; (d) criação e reflexão: sob a ótica da conscientização einovação; (e) ação: a apropriação e disseminação do conhecimento, experienciar ecompartilhar por interações; (f) situada: o aprendizado ocorre em função da atividade,contexto e cultura no qual ocorre ou se situa, sendo carregado de significado.

Assim, considerando: (i). as conexões acima obtidas pela incursão nas formas,definições, abordagens e processos de aprendizagem apresentados na literatura e; (ii).o estudo exploratório aqui apresentado e a teoria substantiva gerada; propõe-se que:a aprendizagem, independente de sua forma ou processo, freqüência, intensidade econstância, designa ao indivíduo e aos grupos a oportunidade de vivenciar ouexperimentar algum tipo de situação ou problema e isto pode implicar numa ação. Estaação poderá estar envolvida por reflexão antes, durante ou depois do que se vivencia,oportunizando o desenvolvimento de competências.

Identifica-se, também, a possibilidade do ciclo de aprendizagem experiencialcontribuir para o desenvolvimento de competências, considerando-se os tipos deaprendizagem, vide figura 3.

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A noção de aprendizagem como um conceito tem evoluído marcantemente emtermos de significado. Em sua forma tradicional tende a ser conceituada como apreocupação com a aquisição de habilidades que são ampliadas pela experiência notrabalho. Concepções mais contemporâneas tendem a enfatizar menos a informaçãoou aquisição de habilidades e transferem o seu olhar para o desenvolvimento denovos e modernos processos cognitivos junto à aquisição e desenvolvimento decompetências. A aprendizagem na ação é muito mais do que um simples acumular deexperiências. Para quem experiência é a interação de uma pessoa ou coletivo com asituação de trabalho, nem toda a experiência permite diretamente uma aprendizagem. Atransformação que a experiência quase sempre promove nos indivíduos pode ser oresultado de uma “repetição” ou “impregnação” e significar muito pouco no plano daformação. Para que tal aconteça, é necessário que exista intencionalidade da parte dosatores no ambiente de aprendizagem formal ou nas práticas de trabalho como ficouevidenciado nos resultados do estudo. Para potencializar formativamente os ambientesorganizacionais e de formação com o objetivo desenvolver competências é necessárioque a interação com essas situações faça sentido para os que nela estão envolvidos.

A possibilidade de agir com um determinado sentido sobre a situação é uma dascomponentes fundamentais da aprendizagem experiencial: reforça o contato direto, a relaçãosujeito-objeto e favorece o ambiente de reflexividade e de releitura da experiência. Nestecontexto torna-se pertinente à realização de um empreendimento, uma ação, um projeto, a

Figura 3 – O papel da aprendizagem na ação no desenvolvimento de competências.

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aposta no compartilhar de experiências e vivências, no confronto de processos e deresultados, instituindo espaços de aprendizagem coletiva. Trata-se de induzir um retorno àexperiência que visa a sua transformação em saber formalizado, onde a presença dos paresse converte em mediação social, essencial para fazer evoluir o saber da experiência, tornando-o menos precário e menos pragmático e oportunizando o desenvolvimento de competências.

Conclusão

Os resultados do estudo realizado permitem dizer que o desenvolvimento de umacompetência específica não é um mero produto de processos e formas de aprendizagemparticulares. Tal qual o processo de aprendizagem, o de desenvolvimento decompetências é dinâmico e complexo e, ambos estão totalmente inter-relacionados. Acomplexidade da combinação de diferentes ambientes e formas de aprendizagem,contexto e possibilidades permitem em maior ou menor grau o desenvolvimento decompetências ao indivíduo. Tentar um descolamento para compreendê-los isolada eseparadamente seria, no mínimo, imprudente.

O contexto é uma complexa trama de referências (intercâmbio de informações,idéias, dentre outros) que, em longo prazo, pode auxiliar a configurar o saber dos indivíduose, em igual tempo, determinar uma arquitetura social para este saber. Compreendidodeste modo, o contexto onde ocorre a aprendizagem pode ou não criar equilíbrio dinâmicoentre o saber/teoria e saber-fazer/prática. É através desta estreita interdependência ouco-produção de conhecimento teórico-prático que as competências podem serdesenvolvidas. Aprender significa desenvolver competências por envolvimento numprocesso contínuo de aprendizagem. Como tal, a aprendizagem não é apenas reprodução,mas também reformulação e renovação do conhecimento e das competências.

As situações de trabalho e de formação comportam uma multiplicidade de efeitosoriundos da aprendizagem, ou seja, mudanças duráveis no comportamento dosindivíduos e dos grupos. Estes são fruto da capitalização das experiências individuaise coletivas e da aquisição de conhecimentos na ação, produzindo-se de modo nãonecessariamente consciente. Correspondem a uma formação difusa, residual ou latente,mesmo quando a situação não tenha fins explicitamente de formação. São consideradoscomo co-produtos da atividade principal e constituem aquilo que se designa poraprendizagem informal. Diversos contextos instigam o indivíduo a analisar situações,a identificar problemas, a estabelecer prioridades, a perspectivar soluções, a gerar egerir recursos. Em suma, a aprendizagem na ação pode apresentar-se como um processoa ser empregado na geração e desenvolvimento de competências, capacitando osadministradores a fazer frente às novas exigências.

As novas formas de organizar os processos de trabalho e a literatura queaponta para a necessidade de superação das formas de organização tayloristas,oportunizam questionar o modelo de racionalidade técnica da formação –caracterizado pelo seu caráter linear e cumulativo – mas que, na prática, aindaparece predominar nos programas de formação e desenvolvimento adotados pelasorganizações. A necessidade de aprendizagem ao longo da vida na sociedade temse intensificado, assim como se reconhece cada vez mais que o desenvolvimento

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de competências não pode restringir-se à fase de educação inicial, deve ser umprocesso presente ao longo de toda vida da pessoa. Além disso, somente osmétodos tradicionais de ensino não se ajustam ou são suficientes à aprendizagem,mas também o pensamento reflexivo e crítico; a auto-avaliação; o autoconhecimentoe a resolução de problemas (Dochy, & Moerkerke, 1997). O presente estudo permitedizer que, para se instalar uma cultura da aprendizagem que possibilite odesenvolvimento de competências, é necessária compreensão clara das novasdiretrizes de uma tarefa educativa – seja no ambiente organizacional ou educacional– voltada não para o ensino, mas para aprendizagem.

Por fim, o fenômeno de forte mobilidade profissional e de multiplicação de temposde formação, ao longo de toda a vida profissional, propicia o encadeamento interativodas situações de trabalho e de formação, associadas aos processos de enriquecimentoprofissional. Mas, algumas indagações permanecem na continuidade desta discussão,estudos e reflexões futuras: qual potencial formativo das situações de trabalho numquadro de mudança e de transformação? Como as áreas de Treinamento eDesenvolvimento têm se posicionado frente a estas transformações? Que efeitos deaprendizagem – residuais e latentes – são gerados no seu decurso? Qual a naturezadas competências que são desenvolvidas nestes contextos?

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Recebido em janeiro de 20067 Aceito em julho de 2007

Claudia Simone Antonello: psicóloga; doutora em Administração (PPGA/UFRGS); professora do Programade Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul.

Endereço para correspondência: [email protected]

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Experiência migratória: encontro consigo mesmo?Percepções de brasileiros sobre sua cultura e mudanças

pessoais

Roberta de Alencar-RodriguesMarlene Neves Strey

Janice Pereira

Resumo: O objetivo deste trabalho é conhecer a percepção dos(as) brasileiros(as) que moraramtemporariamente no exterior sobre a sua própria cultura. Isto é, como eles(as) percebem acultura brasileira nos aspectos comuns e diferentes em relação à cultura estrangeira. Tambémserão abordados o significado dessa vivência migratória e as mudanças pessoais ocorridas.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujos resultados obtidos a partir de entrevistas individu-ais com 6 participantes foram examinados através da Análise de Conteúdo. Constatou-se queos(as) brasileiros(as) percebem que há o predomínio da afetividade na sua cultura, da falta deresponsabilidade com os compromissos, do improviso e da falta de planejamento nas ações.Como resultado da experiência migratória, identifica-se que morar no exterior possibilita desco-bertas pessoais e amadurecimento. Apresenta-se também que a experiência migratória podegerar dificuldades de adaptação na nova cultura e no retorno ao Brasil.Palavras-chave: emigração, cultura brasileira, adaptação cultural, retorno.

Migratory experience: Is it a meeting with itself? Brazilians´sperceptions about their culture and personal changes

Abstract: The aim of this paper is to know the perception of Brazilians who lived temporarilyabroad concerned to their own culture. It means, how they perceive the Brazilian culturecomparing to the foreign culture considering similar and different aspects. The meaning of livingabroad and the personal change will be also discussed. It’s a qualitative research, which theresults obtained from individual interviews with 6 participants were examined through ContentAnalysis. We find out that Brazilians consider that there is the prevalence of affective in theirculture, as well as the prevalence of lack of responsibility with appointments, of improvisationand lack of planning in actions. As a result of migratory experience, it is identified that livingabroad let personal discovers and maturation. And this experience in another country can causeadaptation difficulties in the new culture as well as in the return to Brazil.Key words: Emigration, Brazilian culture, cultural adaptation, return.

Introdução

O fenômeno da globalização diminuiu a distância entre os povos, facilitando queos indivíduos alarguem suas fronteiras. Essa tendência é observada através do grandecontigente de brasileiros(as) que emigra para o exterior por diferentes motivos, comobuscar melhores condições de vida, estudar o idioma, obter experiências novas, entreoutros. A pesquisa realizada, em abril de 2002, por BELTA (Brazilian Educational and

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Language Travel Association), uma associação que reúne as principais empresas deintercâmbio do país, revelou que 40 mil pessoas saíram do Brasil para estudar noexterior no ano de 2001. Na década de 90, segundo Goza (1992), muitos(as) brasileiros(as)foram para a América do Norte em busca de emprego e condições sociais mais estáveisdo que as vigentes no Brasil.

Em decorrência desta realidade, muitas disciplinas passam a dirigir seu olhar àemigração brasileira. Nesse sentido, um dos objetos de pesquisa da Psicologia acercadesse fenômeno é entender como esses(as) brasileiros(as), após a inserção numa novacultura estrangeira e no seu retorno ao Brasil, percebem a cultura brasileira. A experiênciaintercultural promove o desenvolvimento da responsabilidade social, permitindo tambémque as pessoas retornem com sua cidadania ampliada (Sebben, 1997). Desse modo,neste artigo, pretende-se apresentar como os(as) brasileiros(as) percebem a sua própriacultura após morarem temporariamente em outro país e revelar as mudanças ocorridas nomodo de ser do(a) adulto(a) jovem após a experiência migratória.

Trilhando alguns conceitos de cultura

Cultura é um conjunto de hábitos, instrumentos, objetos de uso, arte, tipos derelações interpessoais, regras sociais e instituições de um dado grupo (Bonin, 1999). Acultura corresponde às percepções compartilhadas sobre a sociedade, comportamentosdesejáveis ou prescritos para os membros daquela cultura (normas), assim como osdiferentes lugares ocupados na hierarquia social (papéis).

Ferreira (2002) expõe que, por muitos anos, a psicologia social norte-americanaprocurou identificar modelos e leis gerais que pudessem fornecer subsídios que explicassema estrutura subjacente nos comportamentos manifestos nas interações sociais. Emcontrapartida, a psicologia transcultural se preocupou em determinar as possibilidades degeneralização a outras culturas dos achados provenientes dos estudos feitos na culturanorte-americana, desenvolvendo estudos comparativos que envolvessem diferentes paísese grupos culturais. Logo, os estudos transculturais objetivam encontrar a variabilidadeexistente no comportamento das várias sociedades ou grupos culturais a fim de identificaro que é particular e o que é genérico de cada cultura. Os(as) pesquisadores(as) priorizamadotar a dimensão individualismo versus coletivismo para explicar a variabilidade entrecondutas sociais observadas em diferentes culturas.

Para Ferreira (2002), o individualismo caracteriza as culturas em que a experiênciasocial se organiza em torno de indivíduos autônomos, enquanto o coletivismo é definidopor laços fortes aos grupos de pertença, predominante em culturas estruturadas emfunção da coletividade (família, tribo, grupos religiosos, país). As culturasindividualistas priorizam o regulamento do comportamento individual, auto-suficiênciae separação dos objetivos pessoais dos objetivos grupais, sendo que a pessoa é ocentro do campo psicológico, ao contrário das culturas coletivistas, em que osindivíduos submetem seus objetivos pessoais aos objetivos do grupo e seu campopsicológico é o grupo (Bontempo, Lobel & Triandis, 1990).

Na verdade, as diferentes culturas apresentam uma maior probabilidade de seremindividualistas ou coletivistas. No entanto, Ferreira (2002) ressalta que a maioria das

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pesquisas sobre a temática do individualismo e coletivismo foi realizada comparandopadrões de comportamento de asiáticos e norte-americanos e, algumas vezes, deeuropeus indicando que os resultados não retratem a realidade de países latino-americanos, que tem suas próprias particularidades.

Numa perspectiva sociológica, Damatta (1997) expõe que os sistemas sociais sediferem a partir de uma distinção entre o que se entende por indivíduo e pessoa, sendoque esses termos são usados para explicar o universo social e de nele agir. A palavraindivíduo, na abordagem sociológica, significa ser livre, ter um direito a um espaçopróprio, ser igual aos outros, fazer escolhas, fazer as regras do mundo onde vive,sendo que sua consciência é individual. Enquanto pessoa é definida por ser presa àtotalidade social à qual está vinculada, complementar aos outros, não ter escolhas,receber as regras do mundo onde vive, sendo que sua consciência é social.

Damatta (1997, p.226) ainda usa o ditado brasileiro “aos mal-nascidos, a lei, aosamigos, tudo” para explicar sobre as leis no Brasil. Através desse ditado, ele explicaque quem faz parte de uma rede importante de dependência social no Brasil tem direitoa tudo, enquanto que aqueles que se encontram isolados diante da sociedade, semmediações pessoais só têm direito à lei. Em outras palavras, Sales (1999) reitera queos(as) brasileiros(as) que têm seus mediadores sociais se sentem no direito de tirarvantagem das situações, pela consciência que têm se sua posição de superioridade emrelação aos outros. Ainda Damatta (1997, p.219) justifica que as leis igualam e tornamos indivíduos sem história, sem relações sociais. No sistema brasileiro, são usadasexpressões como “sabe com quem está falando?” que simbolizam o uso da autoridade,que tenta transformar o universo da universalidade legal para o mundo das relaçõesconcretas e pessoais e o “jeitinho brasileiro” que representam uma forma de corrompera lei e abrir uma exceção dessa regra.

A socióloga Sales (1999, p.103) explica que a expressão “jeitinho” denuncia aprofunda diferença entre as classes sociais no Brasil, denotando que “a lei é para osoutros, não para mim, que sou melhor e mais esperto”. Neste sentido, o termo jeitinhooculta a desigualdade social brasileira edificada numa cultura política de mando esubserviência. Essa teórica desenvolveu o conceito fetiche da igualdade para estudara desigualdade social brasileira do ponto de vista da cultura política, considerando ofetiche como mediador nas relações de classe. Isto é, o jeitinho do brasileiro se relacionar,sua informalidade no convívio e o seu calor humano estão a serviço de mascarar asdiferenças de classes, privatizando as relações sociais, anulando as diferenças entre opúblico e o privado e encurtando essas distâncias sociais.

A História contribui para elucidar a maneira como se constitui a cultura de umpovo. Como exemplo, Gambini (2000) explica que a primeira noção acerca do Brasil éconcebida na escola, onde é ensinado que os(as) brasileiros(as) são “ fruto dodescobrimento movido pelo acaso, por calamarias e desvios de rotas, por uma delirantechegada às Índias” (p. 159). Ele questiona se o fato de dizer que o Brasil foi descobertonão sugere que algo maravilhoso, que sempre estivera escondido, repentinamente,surgiu. Desse modo, o autor defende a idéia de que nunca houve descobrimento, massim invasão de um território habitado em toda sua extensão, já que o solo brasileiro jáestava ocupado por seres humanos há trinta mil anos. Assim, o drama da origem

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dos(as) brasileiro(as) reside, inicialmente, na negação de que os(as) indígenas tivessemalma, fazendo com que a experiência humana acumulada durante milhares de anos nãofosse também levada em consideração.

No século XVI, os(as) índios(as) brasileiros(as) já tinham aprendido a sobreviver,encontrar e preparar alimentos, formar vínculos sociais, criar uma linguagem. Issosignifica que questões de organização social como arte, língua, religião, lazer, valoresjá haviam sido resolvidas pelos(as) 12 milhões de índios(as) que deviam habitar oBrasil no século XVI.

Os estrangeiros distorceram e negaram toda essa configuração que já tinha sidoestabelecida pelos(as) índios(as). Gambini (2000) justifica dizendo que, no Brasil, haviamais de mil variações do idioma, sendo que hoje, não restam mais do que 170 línguasindígenas. Além das línguas perdidas, outros aspectos do inconsciente coletivobrasileiro foram deletados como “sentimentos, maneiras de ver, compreender e valorizaro mundo” (Gambini, 2000, p. 161). Para entender a origem do povo brasileiro, esseautor aponta que é imprescindível entender essas perdas que esse povo foi perdendoao longo de sua história.

Quando os portugueses desembarcaram na Bahia, os(as) índios(as) nus osreceberam movidos pela curiosidade, pelo deslumbramento de conhecerem utensíliosdesconhecidos, homens de aparência diversa portadores de metais reluzentes. Porisso, no momento do desembarque, os(as) indígenas acreditavam que os naveganteseram portadores de boas novas, sendo que essa crença levou os(as) indígenas(as)receber os estrangeiros de braços abertos (Gambini, 2000).

Nas palavras desse autor, “a pedagogia missionária dizia à criança índia: esqueçaquem você é, abandone sua identidade, desvencilhe-se de sua alma, olhe para mim,espelhe-se em mim, queira e fique igual a mim” (p. 174). A partir desse fragmento, depreende-se que a fundação desse povo se deu com o desprezo e negação das suas raízes.

O historiador Azevedo (1996) descreve os traços dominantes que caracterizamos(as) brasileiros(as) como o predomínio do afetivo, do irracional e do místico, queconfiguram a vida brasileira ditada por uma “ética de fundo emotivo” (Holanda, 1995,p. 148). Os grupos humanos se formam e também se mantém por um conjunto decrenças, preconceitos e lógica de sentimentos. Assim, verifica-se que os sentimentosinterferem constantemente no juízo crítico, nas opiniões, nas formas de raciocínioemocional, levando esse povo a não ter interesse, na maioria das vezes, pelasconsiderações objetivas e tender resolver os problemas concretos em termos pessoais.

A bondade é um dos atributos mais gerais que constituem os(as) brasileiros(as),que é manifestada através da sua sensibilidade ao sofrimento alheio, da sua facilidadeem esquecer e perdoar as ofensas recebidas, da tolerância, da hospitalidade e a dagenerosidade no acolhimento. Azevedo (1996) atribui à distância, que separava umnúcleo de população de outro, a hospitalidade como marca brasileira. Segundo o autor,a chegada de viajantes nesses povoados era sempre motivo para festa, pois era quandopodiam ter contato com o mundo exterior e quebrar a monotonia da solidão. A distânciaentre os núcleos de populações favoreceu a hospitalidade, bem como o fortalecimentodo sentimento de família. Desse modo, o núcleo familiar oferecia amparo aos seusmembros que eram submetidos à sedução dos viajantes, estrangeiros ou forasteiros.

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Holanda (1995) concorda com Azevedo (1996) ao referir à cordialidade, àhospitalidade, à generosidade como traços que definem o caráter brasileiro. No entanto,Holanda (1995) e Ribeiro (1995) atribuem não à distância física entre os povos o fatorpropulsor da hospitalidade, mas sim à desigualdade social entre as classes sociais. Damesma forma que Damatta (1997) usa o termo expressão jeitinho e Sales (1999) utiliza aexpressão fetiche da igualdade para abordarem a informalidade do povo brasileiro,Holanda (1995, p.148), por sua vez, emprega o conceito homem cordial para expressaro modo como os(as) brasileiros(as) através da informalidade no convívio encurta asdistâncias sociais. Para Holanda (1995), esse homem cordial é fator de mediação entreclasses sociais, caracterizado pelo horror às distâncias, arraigado na esfera do íntimo,do familiar e do privado, entrando em cena até mesmo naquelas relações onde seesperaria que as pessoas fossem mais caracteristicamente informais.

Processos migratórios e aculturaçãoA necessidade de mudança faz parte da natureza humana e isso favorece o

desenvolvimento, pois o ser humano sofre diferentes influências durante a sua vidadecorrente da sua interação com o meio ambiente. Percorrendo os registros históricosda humanidade, verifica-se que os fenômenos migratórios, no período pré-histórico,contribuíram para a evolução da espécie humana, através da capacidade de adaptaçãoa diferentes ambientes.

Na época que compreende o império romano, a campanha das cruzadas e operíodo das grandes navegações, o objetivo dessas migrações era a a colonização. Jáa partir da Revolução Industrial, a emigração passa a ser a alternativa encontrada pelasclasses camponesas para buscar melhores condições de sobrevivência.

Dentre os fatores considerados pelos indivíduos ao migrarem, Rocha (1996) citamelhores condições de emprego, moradia, fatores de adaptação e despesas. Geralmente,as causas que impulsionam esse fenômeno são de ordem econômica, porém podem sera busca de novas experiências. Goza (1992) informa que, entre as décadas de 40 a 80, oBrasil, com condições tão favoráveis, conheceu um êxodo maciço de emigrantes àprocura de melhores oportunidades em outros lugares.

Os processos migratórios não só interferem na urbanização do local, como tambéminfluenciam a identidade cultural. Quando a pessoa emigra fisicamente, isso não querdizer que tenha também emigrado emocionalmente, pois ultrapassar as fronteirasgeográficas não se constitui a principal tarefa da migração, mas sim transpor as barreirassociais, econômicas, culturais e lingüísticas.

Na opinião de Rocha (1996), a identidade cultural dos indivíduos imigrantes sofreinfluência, na medida em que acabam adotando o modelo de comportamento da novacultura a fim de serem aceitos pela nova sociedade. Do mesmo modo, Sarriera (2000)também busca explicar como os indivíduos que se desenvolveram num contexto cultural seadministram para se adaptarem a novos contextos resultantes da migração. Neste caso, eleutiliza o conceito de aculturação para se referir às mudanças resultantes desse encontrointergrupal, em que pessoas ou grupos, originárias de diferentes contextos culturais,estabelecem contato regular com outra cultura no meio da qual têm que refazer suas vidas.

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A adaptação, conforme Berry (2002), implica em desaprender algum repertóriocomportamental que não é mais apropriado, e aprender um novo repertório que sejacompatível com o novo contexto social e cultural. Isso é levado em conta por Sebben(1996) ao falar que, na emigração, a pessoa é levada a pensar e raciocinar no idioma dacomunidade local dentro de um contexto diferente do que é acostumado.

Para Sarriera (2000), a boa adaptação está diretamente vinculada à valorização daprópria cultura, que também é ilustrada por Sebben (1996, p.151) ao dizer que “ ointercambista, muitas vezes, apresenta a necessidade de se manter vinculado a várioselementos de seu contexto cultural de origem, tais como música, alimentos, cartas,lembranças e sonhos, onde ressurgem aspectos de seu país de origem, como forma demanter ativa a experiência de “ser ele mesmo” .

Nos casos em que a pessoa percebe a experiência migratória como geradora deestresse e ela ou ele não tem uma boa resposta de enfrentamento, pode aparecer adepressão e a ansiedade. Isso acontece, porque as mudanças no contexto culturalexcederam a capacidade do indivíduo devido à magnitude, velocidade ou algum outroaspecto de mudança ou devido à aprendizagem ou problemas psicológicos como adepressão ou a ansiedade. Essas questões também são consideradas por Sebben(1996) ao enfatizar que há a possibilidade do indivíduo manifestar alguma doençafísica ou psicológica, porém a gravidade da enfermidade também está relacionada aocontexto de migração, isto é, sozinho ou em grupo.

Berry (2002) menciona outros fatores que contribuem para a aculturação: idade,educação e distância cultural. Esse autor enfatiza que a idade daquele(a) que emigravai ter relação como se processa a aculturação. Provavelmente, os conflitos sejammáximos no período entre a adolescência e a vida adulta jovem, quando os indivíduosestão desenvolvendo sua identidade.

Elevado nível de educação é fator de proteção para uma adaptação positiva, poisdiminui o estresse. Berry (2002) justifica que a educação é um recurso pessoal em simesmo, a análise e a resolução de problema treinadas na educação formal contribuempara uma melhor adaptação. Recursos como o status ocupacional e rede de apoiofavorecem uma boa adaptação. Por outro lado, grandes distâncias culturais implicam nanecessidade de grandes desprendimentos culturais e re-aprendizagem cultural, podendotrazer conflitos ininterruptos levando a conflitos que geram uma pobre adaptação.

RetornoSayad (2000) destaca que o retorno é naturalmente o desejo e o sonho de todos(as)

os(as) imigrantes. É como recuperar a visão, a luz que falta ao cego e à cega, mas, comoos(as) cegos(as), eles e elas sabem que esta é uma operação impossível. Só lhes resta,então, refugiaram-se numa intranqüila nostalgia ou saudade da terra natal.

Esse autor afirma que o retorno é, para o(a) próprio(a) imigrante, mas tambémpara o seu grupo, um retorno a si, um retorno ao tempo anterior à emigração, umaretrospectiva. Há a possibilidade de voltar ao ponto de partida, mas, por outro lado,não se pode voltar ao tempo da partida, tornar-se novamente aquele(a) que se eranaquele momento, nem reencontrar na mesma situação, os lugares e as pessoas que se

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deixou. Sebben (1996, p.134) concorda com Sayad (2000) quando defende a idéia deque nenhum “retorno é um simples retorno, pois é uma nova emigração, com perdas,medos e esperanças”.

Sebben (1996) postula que ao retornar ao país de origem, o(a) imigrante carregaconsigo uma bagagem de conhecimentos e experiências adquiridas que o fazem sesentir estranho(a) frente às pessoas de quem anteriormente sentia-se mais íntimo(a).Em função disso, o país de origem parecerá estrangeiro, ao passo que o país deemigração será conhecido, o que acarreta dificuldades de readaptação. As experiênciase costumes vivenciados no exterior dificultarão os(as) brasileiros(as) a participarespontaneamente de muitos fenômenos no seu país e passar por novas experiências,pois se posicionarão criticamente tendo em vista a outra realidade cultural inserida noseu modo de ser.

Método

ParticipantesOs(as) participantes desta pesquisa foram três homens e três mulheres, com

idade entre 20 e 35 anos, que moraram por pelo menos seis meses no exterior e queaceitaram conceder entrevista. A escolha foi por conveniência, recurso utilizado pararealizar o estudo na própria rede de contatos da pesquisadora. A escolha de 6participantes baseou-se no critério de saturação proposto por Bauer e Aarts (2004,p.39) ao afirmar que “saturação é um critério de finalização” e também em Gaskell eBauer (2004, p.485) ao defenderem a idéia de que o tamanho da amostra não interessase há evidência de saturação, acrescentando que a “construção do corpus é umprocesso interativo, onde camadas adicionais de pessoas ou textos são adicionados àanálise até que se chegue a uma saturação e dados posteriores não trazem novasobservações”.

Apesar de utilizar trechos de entrevistas literais da fala dos participantes, seusdados pessoais foram trocados para evitar identificação. A participante A, 27 anos,sexo feminino, 3° grau completo, morou com seu esposo por três anos nos EstadosUnidos, onde realizou curso de pós-graduação e trabalhou em restaurantes e numaconsultoria de Recursos Humanos. No momento da partida para o exterior tinha 23anos. A participante B, 32 anos, sexo feminino, 3° grau completo, morou por quatroanos na França, sendo que viajou para lá aos 24 anos para acompanhar o esposo, e nãotrabalhou. A participante C, 33 anos, sexo feminino, 3° grau completo, morou em trêspaíses diferentes da Europa. Aos 19 anos, foi para Espanha, onde trabalhou comobabá , e depois, teve a oportunidade de morar na Itália e Bélgica, perfazendo um ano eonze e meses de experiência no exterior. O participante D, 25 anos, sexo masculino, 3°grau completo, morou um ano na Alemanha para estudar alemão quando tinha 22 anos.O participante E, 31 anos, sexo masculino, 3° grau completo, morou por seis meses naBélgica, quando foi, aos 24 anos, finalizar seu curso de pós-graduação. O participanteF, 28 anos, sexo masculino, 3 ° grau completo, viajou para os Estados Unidos, aos 24

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anos, e morou lá durante três anos, realizando curso de pós-graduação e trabalhandocomo entregador de pizza.

InstrumentosPara a obtenção dos dados, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas que

centravam-se nos seguintes aspectos: 1. A percepção da cultura brasileira após oretorno ao Brasil, 2. Os aspectos comuns entre a cultura brasileira e a cultura estrangeira,3. Os aspectos diferentes entre a cultura brasileira e a cultura estrangeira, 4. Ossignificados da vivência no exterior e suas repercussões no modo de ser do(a) adultojovem.

As entrevistas foram transcritas e os dados brutos do texto decorrente foramtransformados em unidades de significados. Posteriormente foram agrupadas em setecategorias de acordo com suas semelhanças do ponto de vista semântico (Moraes,2000) e submetido à análise de Conteúdo proposta por Bardin (1991).

Resultados e discussão

O material levantado nas entrevistas foi classificado nas seguintes categorias:(a) Percepção de adultos(as) jovens que viveram temporariamente no exterior quantoà sua própria cultura após retornar ao seu país, (b) Aspectos comuns entre a culturabrasileira e a estrangeira, (c) Aspectos diferentes entre a cultura brasileira e a estrangeira,(d) Significados da vivência no exterior, (e) Mudanças no modo de ser após a viagem,(f) Dificuldade de adaptação no exterior, (g) Dificuldade de readaptação no retorno aoBrasil. Após a reunião e síntese dessas categorias, passou-se à análise qualitativa dasentrevistas.

A categoria “Percepção de adultos(as) jovens que viveram temporariamente noexterior quanto à sua própria cultura após retornar ao seu país” reitera a concepção dacultura brasileira, na perspectiva dos relacionamentos, como calorosa. Neste sentido,recortes das entrevistas como “cultura com mais contato físico, afetividade, povohospitaleiro que vai fazer de tudo para ajudar” (participante A) ilustram o que Azevedo(1996), Holanda (1995) e Ribeiro (1995) retratam como características do povo brasileiro,quando afirmam que a prevalência do afetivo e a bondade são atributos que constituemo(a) brasileiro(a). Esse aspecto é apontado por Gambini (2000) ao referir que ahospitalidade brasileira tem raízes históricas, porque revela que os(as) indígenaspercebiam os colonizadores portugueses como portadores de boas novas e, assim,recebiam os estrangeiros com braços abertos. A afetividade qualifica cultura coletivistas,porque Bontempo, Lobel e Triandis (1990) citam um estudo comparativo da CulturalConection entre vinte e um brasileiros(as) e vinte e um cidadãos(as) provenientes deoutros países não latino-americanos, que constata ser a cultura brasileira coletivista,orientada por forte sentimento de reciprocidade e solidariedade, residindo também,nesta perspectiva, uma justificativa para os(as) entrevistados(as) terem eleito aafetividade como predicado de sua cultura. Esse achado condiz também com osresultados da pesquisa de Sales (1999) realizada com imigrantes brasileiros em Boston,

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Estados Unidos, pois seus entrevistados e suas entrevistadas também assinalaram ocalor humano como marca característica do povo brasileiro.

Ainda nessa categoria, foi descrita a dificuldade dos(as) brasileiros(as) cumprircom o que prometem, aludindo à expressão “jeitinho brasileiro” para definir o modocomo os(as) brasileiros(as) lidam com os compromissos. Todos os depoimentosdenotam a dificuldade “do brasileiro não ter compromissos com horários, de assumircompromissos e levá-los adiante e de cumprir regras” (participante C), indo aoencontro das explicações de Damatta (1997) e de Sales (1999) acerca do funcionamentodas leis no Brasil. Damatta (1997) cita o ditado brasileiro “aos mal-nascidos, a lei, aosamigos, tudo” para explicar que, no Brasil, quem faz parte de uma rede importante deimportante de dependência social tem direito a tudo, enquanto que aqueles(as) que seencontram isolados(as), sem mediações sociais, só tem direito a lei. Isso significa,conforme Sales (1999, p.103), que “a lei é para os outros, não para mim, que sou omelhor e mais esperto”. Assim, a falta de compromisso dos(as) brasileiros(as) pode serresultado dessa ideologia que hierarquiza as pessoas e permite que quem tem um(a)mediador(a), tenha o direito de não cumprir a lei.

Esse “jeitinho brasileiro” foi ilustrado de modo jocoso no comentário de umparticipante: “os brasileiros costumam dar um jeito em todas as coisas e tudo acabaem pizza” (participante F), sugerindo a alternativa bem humorada de como o povoadministra suas dificuldades. Isso pode refletir a flexibilidade dos(as) brasileiros(as)em se adaptar às situações novas e o bom humor diante das adversidades impostaspela vida (Azevedo, 1996).

Por último, todos(as) os(as) participantes consideram que voltaram do exteriormais críticos(as) em relação à cultura brasileira. Isso reforça os achados de Sebben(1996) sobre o(a) imigrante que, tendo agora também a bagagem de experiências dopaís estrangeiro, não conseguirá ter novas vivências sem manter-se crítico(a).

No agrupamento “Aspectos Comuns entre as Culturas Brasileira e Estrangeira”,foi indicado que a cultura brasileira reproduz, em muitos aspectos, a cultura norte-americana, mostrando a tendência brasileira em abandonar a sua identidade em prol doespelhamento numa cultura estrangeira (Gambini, 2000). Além disso, os(as)entrevistados(as) mencionaram que a idade de namorar, época da faculdade e o sonhodos jovens coincidem na cultura brasileira e na cultura estrangeira, constituindo asmesmas tarefas do ciclo vital em ambas as culturas (Griffa, 2001).

Na categoria “Aspectos Diferentes entre a Cultura Brasileira e a Estrangeira”, amaioria dos(as) participantes constata que a saída do(a) jovem de casa no exterior émais precoce. Nesse caso, deve-se considerar que eles(as) tiveram sua experiênciaintercultural em sociedades individualistas, que prescrevem como desejáveis valores,papéis e comportamentos em torno de indivíduos autônomos e que, por sua vez, sãopaíses desenvolvidos, que oferecem boas condições para garantir o auto-sustentocedo, fora da casa dos pais. O adiamento da saída de casa dos(as) jovens brasileiros(as)pode ser explicado por eles(as) estarem inseridos(as) numa cultura coletivista queprivilegia o sentimento de família e pela economia brasileira dificultar a independênciaeconômica dos pais.

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Também nesta categoria, a cultura brasileira foi identificada como cultura doimproviso, registrada nas falas “eles podem fazer projetos a longo prazo, nós fazemosas coisas no improviso e não nos programamos muito” (participante D) e “ o ritmo dobrasileiro é outro, corremos mais, nós não sabemos se amanhã estaremos empregados”(participante E), denunciando o grau de instabilidade econômica e o desempregobrasileiros que imprimem suas marcas no comportamento do brasileiro. Desse modo,recorrer ao improviso torna-se o modo de sobrevivência dos(as) cidadãos(as)brasileiros(as) numa sociedade com economia flutuante. Esse modo improvisado deexecutar suas atividades desvela “a inverossímil alegria e espantosa felicidade de umpovo sacrificado”(Ribeiro, 1995).

Na categoria “Mudanças no modo de ser após a viagem”, todos(as) osparticipantes conferem um maior amadurecimento devido à vivência fora do país. “Volteimais segura, não tenho mais medo de nada. Eu acho que estou com mais coragem deencarar qualquer dificuldade” (participante B) são recortes dos depoimentos quesinalizam a coragem como um caminho para amadurecer e transpor obstáculos (May,1999; Pelligrini, 1997).

O aumento da crítica foi outro aspecto destacado por todos(as) osentrevistados(as) identificado na fala “é introduzido outro parâmetro para pensar”(participante C), sugerindo que o legado da migração promove uma maior compreensãoconsigo mesmo(a) e com as contingências do ambiente (Sebben, 1996). Retornar aoBrasil mais críticos(as) é resultado da introjeção de novos paradigmas no seu modo deser e como bem assinala Rauber e Cáceres (1997), o próprio afastamento social ecultural contribui para que se tornem mais críticos(as) em relação à sociedade que oscerca, reformulem valores e busquem autonomia.

Muitos trechos de entrevistas explicitam que a viagem propiciou uma reformulaçãode valores. Citações como “Aprendi a valorizar a cultura brasileira, relativizar acultura, valorizar a família e as coisas que tenho” (participante C) coincidem com asafirmações de Rauber e Caceres (1997) ao enunciar que contato com a cultura diferentepode alterar valores pessoais e também com as de Sebben (1996) ao destacar que “oimigrante que retorna traz consigo uma reorganização de valores e de vínculos” (p.135).

Outra categoria consistiu nos “Significados da Vivência no Exterior”, na qual aemigração simbolizou de maneira unânime um momento de transformação e descobertaspessoais. O relato “eu me descobri outra pessoa, me transformei, acho que o quemudou é que eu me senti mais livre” (participante A) pode denotar o quanto oafastamento do núcleo familiar, social e cultural propicia uma atmosfera de liberdade,levando esse participante a se mover, pensar, sentir e, acima de tudo, compreender amaneira como se sente em seu próprio mundo interior (Rogers, 1999). Em outras palavras,Pelligrini (1997) exprime que o ato de viajar a lugares próximos ou distantes poderepresentar ir em busca de recados, descobertas e insights que possam ampliar oslimites da consciência do mundo, da vida e de nós mesmos.

Os dados das entrevistas sinalizaram outras categorias que, num primeiromomento, não consisitiam questões norteadoras deste estudo que foram as“Dificuldades de Adaptação no Exterior” e as “Dificuldades de Readaptação no Retorno

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ao Brasil”. A fala “a adaptação na França foi difícil, porque eu tive de deixar afamília, mas isso fez cortar o cordão umbilical e então eu me tornei adulta. Quandocheguei na França, o choque cultural foi muito grande, pois eu não entendia nada.Eu tive um pesadelo que eu estava presa num vidro de conserva, como eu tivessetrancada e eu sou claustrofóbica, então eu me sentia presa num lugar” (participanteB) sintetiza a fala de outros(as) participantes quando verbalizam que odesconhecimento inicial do idioma pode ser um agravante na experiência migratória,uma vez que a pessoa é levada a raciocinar numa língua da comunidade local dentro deum contexto diferente do que é habituada (Sebben, 1997). Para amenizar essa dificuldade,Berry (2002) preconiza que o(a) imigrante tente desprender algum repertóriocomportamental que não é mais apropriado e aprenda um novo mais compatível com onovo contexto social e cultural. Essa desadaptação inicial ocorre porque a “emigraçãotraz uma desorganização generalizada no indivíduo por habitarem em si duas realidadesdiferentes: a do país recém-abandonado e a do novo país que se apresenta no momento”(Sebben, 1996, p.136).

Por último, emergiu a categoria “Dificuldades de Readaptação no Retorno aoBrasil”, na qual a experiência de volta ao país foi vivida como se estivesse no exterior.“Logo que se volta é como se voltasse para outro país, pelo menos foi o que eu senti.Eu tive que me readaptar, uma readaptação bastante difícil, quase tão difícil comomorar num país estrangeiro” (participante B) foi uma declaração constante entre os(as)participantes que reflete que o país de origem pode parecer estrangeiro e que, noretorno, a pessoa pode se sentir estrangeira no próprio país, porque encontra umarealidade diversa como familiares, costumes, afetos e relacionamentos modificados(Sebben, 1996). Como os(as) entrevistados(as) não reencontram a mesma situaçãovivida no tempo de partida e também trazem consigo novos parâmetros de outrasociedade, esses fatos legitimam a sensação de estranhamento na volta ao Brasil(Sayad, 2000).

Conclusão

A experiência no exterior permitiu esses(as) jovens adultos(as) retornarem comsua cidadania ampliada. Como voltam com um parâmetro de outra sociedade introjetado,isso lhes favorece a repensar e criticar os aspectos da cultura brasileira. Osatravessamentos dessa nova realidade vivida em outro país imprimem marcas na suaidentidade, o que os(as) leva se sentirem “fora do ninho” na volta ao Brasil.

Dos(as) seis entrevistados(as), dois homens e uma mulher viajaram para o exteriorjá com o terceiro grau completo e duas mulheres e um homem ainda estavam cursandoo Ensino Superior. Desse modo, o nível educacional semelhante dos(as) participantesnão indicou nenhuma diferença significativa que influenciasse na adaptação em outropaís. Todos emigraram para o exterior em torno dos vinte anos de idade e, como nessapesquisa não houve um grupo controle com idades diferentes para comparar com essepúblico pesquisado, não há como afirmar se a variável idade foi fator relevante naadaptação no exterior dos(as) participantes.

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Os resultados obtidos não sugerem nenhuma diferença quanto ao gênero, o quetalvez pudesse ser verificado com um maior número de participantes. No entanto, aeleição por seis participantes se deu pela saturação dos dados, tornando viável arealização desse estudo, uma vez que na fala dos(as) seis entrevistados(as) já foipossível observar repetição de informações.

A informalidade no convívio e o calor humano são os predicados que designamesse povo. Na verdade, esse modo de convivência brasileiro disfarça as diferençasentre as classes, na medida em que reduz as distâncias sociais. Diante desse resultado,é possível pensar que a informalidade e o calor humano dos(as) brasileiros(as)constatados nessa pesquisa não são novidades, pois o senso comum provê esseconhecimento acerca das características do povo brasileiro. Entretanto, teóricos comoSales (1999), Ribeiro (1995), Holanda (1995) e Damatta (1997) legitimam o que já é deconhecimento de todos nós acerca dos(as) brasileiros(as). Consideramos que apesardessas características, muitas vezes, ilustrarem a fotografia dos(as) brasileiros(as),não podemos tomar esse achado como universal, pois também há brasileiros(as)pontuais nos seus compromissos, reservados(as) nos relacionamentos.

Vislumbrar outros horizontes num país estrangeiro agrega amadurecimento, sendouma possibilidade também de revisar valores. Cruzar fronteiras em busca dodesconhecido impulsiona problematizar saberes cristalizados e encontrar as peças-chave que possam ser o embasamento na edificação de novos conhecimentos e valores.

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Recebido em setembro de 2006 Aceito em maio de 2007

Roberta de Alencar-Rodrigues: psicóloga; mestre em Psicologia Social e da Personalidade na PUCRS.Docente e supervisora de estágio da Faculdade Assis Gurgacz, Cascavel, Paraná.Marlene Neves Strey: psicóloga; doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri; orientadora ecoordenadora do Grupo de Relações de Gênero no Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.Janice Pereira: psicóloga; doutora em Psicologia pela PUCRS; professora da Faculdade de Psicologia daPUCRS.

Endereço para correspondência: [email protected]

* Trabalho apresentado para conclusão de curso.

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Avaliação psicológica, neuropsicológica e recursos emneuroimagem: novas perspectivas em saúde mental

Carolina VieiraEliane da Silva Moreira Fay

Lucas Neiva-Silva

Resumo: A avaliação psicológica constitui-se em uma importante atividade do exercício profis-sional do psicólogo. Na área de saúde mental, um dos objetivos a ser alcançados refere-se aocorreto diagnóstico, e, para tal, utilizam-se instrumentos psicológicos específicos. Consideran-do a importância de se obter maior precisão diagnóstica para estabelecer tratamentos e aborda-gens adequadas, discute-se sobre a necessidade de associar outros recursos científicos ao pro-cesso de avaliação psicológica e neuropsicológica, como as técnicas, os métodos e resultados deneuroimagem. Este artigo tem como objetivo discutir a integração dos novos recursos daneurociência aos procedimentos tradicionais da avaliação psicológica na área da saúde mental.Palavras-chave: avaliação psicológica, avaliação neuropsicológica, saúde mental, neuroimagem.

Psychological assessment, neuropsychological assessment andneuroimage resources: New perspectives in mental health

Abstract: Psychological assessment is an important Psychologist activity. In the mental healtharea, one of the aims is the correct diagnosis. To reach this, specific tools are used. In this work,it is discussed about how necessary is improving the diagnosis process with other scientificresources such as brain imaging and other neuroimage techniques. This study aims to discussthe integration of the new neuroscience resources with the traditional procedures of psychologicalassessment in the area of mental health.Key words: Psychological assessment, neuropsychological assessment, mental health,neuroimage.

Introdução

Historicamente a avaliação psicológica teve início com Spearman e Binet, nosprimórdios do século XIX, através do desenvolvimento da teoria da Psicometria, coma construção do primeiro teste de aptidão para crianças. Neste período, a principalfunção do psicólogo era a de contribuir na área educacional, com a avaliação dorendimento escolar, capacidade intelectual, aptidões e inaptidões infantis (Neto, Gauer& Furtado, 2003). A partir daí, por longos anos, a história da avaliação psicológicatornou-se imperialista no uso de testes psicológicos psicométricos, o que restringiasua aplicabilidade na avaliação de adaptação ou inadaptação do indivíduo a padrõesestabelecidos (Pasquali, 2001).

No contexto histórico atual, a avaliação psicológica vem passando por umprocesso de aprimoramento técnico-científico. Recentemente, os testes psicológicos,instrumental imprescindível para esta atividade, vêm sendo questionados,

Aletheia, n.26, p.181-195, jul./dez. 2007

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principalmente em relação à fidedignidade dos resultados da avaliação. Provavelmenteem conseqüência da banalização no meio sócio-profissional e reforçada pela falta decritérios e fundamentos científicos (Noronha, 2002).

Como medida para qualificar os instrumentos psicológicos, o Conselho Federalde Psicologia criou o sistema de avaliação de testes (SATEPSI), seguindo critériosobjetivos e consistentes, a fim de padronizar as técnicas e validar o seu uso para apopulação brasileira. No que se refere à utilização dos instrumentos psicológicosdentro do contexto da saúde mental, faz-se necessária a utilização não só de taisrecursos e técnicas psicológicas, como também a inserção de novas abordagens parao entendimento da saúde mental e avaliação do grau de déficits cerebrais que muitaspsicopatologias desencadeiam ao longo do seu curso. Para isto, o uso da neurociênciaé parte importante do processo psicodiagnóstico.

No entanto, o que ainda se observa é uma escassez de material publicado cominformações atualizadas envolvendo a avaliação psicológica e instrumentospsicológicos. Em face da necessidade de aprimorar e qualificar as avaliaçõespsicológicas no campo da saúde mental, este trabalho tem o objetivo de desenvolveruma discussão sobre o processo de avaliação psicológica nos moldes convencionaise sugerir, em alguns casos, a utilização de maneira complementar de novos recursoscomo as técnicas de neuroimagem.

Avaliação psicológica e saúde mentalA avaliação, através dos mais variados métodos e técnicas, visa a descrever e

classificar o comportamento das pessoas com o objetivo de enquadrá-lo dentro dealguma tipologia, que permita ao sujeito tirar conclusões sobre os outros e, assim,saber como ele mesmo deve se comportar e agir em relação a esses outros (Pasquali,2001). A avaliação psicológica pretende acrescentar um cunho científico a esta atividade,utilizando o método da observação e formulação de hipóteses e inferências confiáveispara sua prática profissional (Pasquali, 2001).

Durante muito tempo, a avaliação psicológica ficou quase que restrita ao usode testes psicológicos. Eram utilizados aqueles considerados tradicionais, ou seja,os instrumentos apresentados e ensinados nas disciplinas específicas dasuniversidades. Tal situação favoreceu uma cultura dos testes, na qual a ênfase estavana reprodução mecânica referente à administração e correção dos mesmos (Alchiere& Bandeira, 2000).

Com os avanços na compreensão da saúde mental e com a introdução denovas abordagens psicológicas foi possível a construção de novas técnicas –projetivas – que ampliaram o entendimento do funcionamento psíquico e dapersonalidade como algo dinâmico e global (Neto, Gauer & Furtado, 2003).Atualmente, a avaliação psicológica é parte importante da atuação profissional dopsicólogo, oferecendo amplo campo de atuação. Um dos alicerces de tal práticaconstitui-se em utilização de técnicas projetivas e objetivas (Formiga & Mello, 2000).Neste processo, os testes psicológicos tornaram-se ferramentas essenciais,acompanhados de várias outras fontes de informações.

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O psicodiagnóstico, modalidade de avaliação referente à esfera clínica, legitima opsicólogo para a prática diagnóstica. Neste, os dados advém de fontes que vão alémde descrições de aspectos clínicos. Em uma definição mais abrangente, Cunha, Freitase Raymundo (1993, p.5) descrevem o psicodiagnóstico como “um processo científico,limitado no tempo, que utiliza métodos e técnicas psicológicas (input), em nívelindividual ou não, entendendo, à luz dos princípios teóricos, os problemas, identificandoe avaliando aspectos específicos, classificando o caso e prevendo seu curso possível,para comunicar resultado (output)”.

As condições ideais para o trabalho avaliativo estão na possibilidade desobrepor diversificadas informações oriundas de observação, análise das funçõesmentais, entrevistas e dados da história do sujeito (Anastasi & Urbina, 2000).Todas devem ser cruzadas com os resultados dos testes. Dos itens de informaçõesvão se formando hipóteses que ao longo do processo vão sendo validadas ourefutadas.

Pode-se considerar a avaliação psicodiagnóstica, necessariamente, um processointegrado que requer minucioso trabalho de investigação das áreas bio-psico-social,associação de eventos, clarificações e descobertas. Na área clínica busca-se um trabalhoinvestigativo, no qual o enfoque principal torna-se o diagnóstico, prognóstico eindicação de condutas terapêuticas. Outro aspecto importante refere-se ao seu caráterpreditivo (Anastasi & Urbina, 2000).

No que se refere às particularidades encontradas no cotidiano da prática clínicaem saúde mental, observa-se que as avaliações tendem a ser subjetivas e, algumasvezes, precipitadas, restringindo-se a poucas fontes de informações e até somente aocontato clínico, permitindo erros nos diagnósticos e tratamentos. Grupos de sintomassimilares a vários quadros mentais confundem e conduzem à imprecisão, sendonecessárias, em muitas situações, constantes mudanças nas prescriçõesmedicamentosas para aliviar a sintomatologia.

Além disso, o mais complexo parece estar em distinguir aspectos decorrentes delimitações cognitivas pré-existentes daquelas acarretadas pelo deterioro mentalpresentes em algumas patologias psiquiátricas. Os efeitos na vida dos pacientes sãomuito negativos e de importante gravidade.

Tradicionalmente, a avaliação psicológica estrutura-se a partir de técnicas,instrumentos e métodos considerados psicológicos. Dentro da área da saúde mental,torna-se importante atingir o objetivo do diagnóstico e, para tal, o psicólogo deveestar bem qualificado e instrumentalizado. Sob estes aspectos, a utilização da avaliaçãopsicológica em um contexto hospitalar psiquiátrico ou de saúde mental visa a englobaráreas de investigação da personalidade e aspectos neuropsicológicos envolvendo osprocessos cognitivos subjacentes ou não à atividade do sistema nervoso em condiçõesnormais e patológicas.

Avaliação da personalidadeEm virtude do grande desenvolvimento da área de avaliação da personalidade

ocorrido nas últimas décadas, muitas são as possibilidades teórico-metodológicas

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disponíveis ao psicólogo no contexto da saúde mental. Indo além das diversasabordagens teóricas, um grande conjunto de instrumentos de avaliação encontra-sedisponível ao profissional que se mantém atualizado. Nesta seção, serão apresentadosalguns destes recursos de avaliação da personalidade comumente utilizados emcontextos de tratamento da saúde mental. Destaca-se ainda que os instrumentos deavaliação psicológica e neuropsicológica estão passando por um processo de revisãoe reavaliação, onde também são atualizados aspectos relacionados à validação epadronização junto à população brasileira. Neste sentido, sugere-se que o profissionalde psicologia sempre verifique junto ao Conselho Federal de Psicologia(www.pol.org.br) a lista completa dos instrumentos de avaliação com parecer favorável,bem como acompanhe o processo de avaliação dos mesmos que é continuamenteatualizado.

Uma das formas de se avaliar a personalidade é através do uso de técnicasprojetivas. O Teste de Zulliger; Teste de Apercepção Temática para adultos (TAT);HTP (desenho da casa, árvore, pessoa) são algumas das técnicas projetivas queestão sendo atualmente utilizadas dentro do contexto hospitalar relacionado à saúdemental. O teste de Zulliger ou Z-teste foi criado em 1942 por Zulliger, psiquiatrasuíço, que se baseou nos experimentos realizados por Rorschach com manchas detintas feitas ao acaso, para a investigação da personalidade. Trata-se de uma técnicaconsistente, que se caracteriza por três pranchas e/ou slides com manchas no qual osujeito deve dizer com o que elas se parecem, o que elas poderiam ser. Após aaplicação, é realizado um inquérito que permite esclarecer os aspectos quecontribuíram para a formação da resposta, que será analisada quantitativamente equalitativamente, envolvendo aspectos estruturais da personalidade, incluindocognição e afeto, evidenciando os traços classificados como “normais” e patológicosdo sujeito (Vaz, 1998).

O TAT (Teste de Apercepção Temática) foi criado por Murray e teve sua origemnos Estados Unidos em 1943. No Brasil, foi publicado em 1995 e recentemente, recebeuparecer favorável quanto à sua finalidade pelo Conselho Federal de Psicologia, conformeresolução nº 02/2003. Sua apresentação consta de 19 pranchas com impressos deimagens de situações da vida diária e uma prancha em branco (total de 20). A solicitaçãoé de que o sujeito verbalize uma história a respeito das referidas situações. Logo apósa sua aplicação, é realizado um inquérito específico, de acordo com as orientaçõesapresentadas no manual do teste. A partir destas informações, é realizado olevantamento qualitativo, envolvendo aspectos globais da personalidade comoimpulsos, emoções, sentimentos, complexos e conflitos mobilizados pelo instrumento(Cronbach, 1996).

No HTP (House-Tree-Person), desenvolvido por Buck e divulgado em 1948, ésolicitado que a pessoa desenhe uma casa, uma árvore e uma pessoa. Este testetambém é considerado como técnica gráfica verbal porque envolve desenho e técnicaverbal, já que é solicitado ao sujeito que fale sobre cada desenho, seguindo umquestionário específico para cada item. O levantamento segue as interpretaçõesfornecidas no manual do teste. Buck (2003) afirma que o uso do teste associado aos

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demais dados informativos e instrumentos podem identificar conflitos, interesses geraise características do ambiente no qual o sujeito esteja inserido.

Além do uso de testes projetivos, as escalas de avaliação da personalidadetambém apresentam boa resposta ao serem utilizadas com pacientes internados,tornando-se instrumentos mais objetivos e focais, permitindo melhor estruturação doprocesso de avaliação (Neto & cols., 2003). Porém, seu uso necessita de uma maiororganização mental por parte do paciente, tanto para a compreensão do instrumentalcomo para a execução do mesmo. Atualmente, têm-se utilizado as Escalas Beck deDepressão; Escala Fatorial de Neuroticismo (EFN); Inventário de Habilidades Sociais(IHS), que auxiliam na classificação diagnóstica e estimativa do grau de severidade dotranstorno, além de proporcionarem o nível de ajustamento individual.

A Escala Beck constitui-se do Inventário de Depressão de Beck (BDI), Inventáriode Ansiedade de Beck (BAI), Escala de Desesperança de Beck (BHS) e Escala deIdeação Suicida (BSI). Foi desenvolvida por Beck e colegas do Departamento dePsiquiatria da Universidade de Pennsylvania, em 1961, sendo revisada em 1979. NoBrasil, sua versão foi validada por Cunha, constando de manual com instruções paraadministração, escore e interpretação.

A Escala Beck destina-se ao uso com pacientes psiquiátricos de 17 a 80 anos emede a intensidade da depressão e ansiedade, além de oferecer indícios de risco desuicídio em pessoas com história de tentativas de suicídio e/ou a presença de ideaçãosuicida, medindo a extensão da motivação e planejamento de comportamento suicida(Cunha & cols., 1993; Oliveira, 1998).

Já a Escala Fatorial de Ajustamento Emocional / Neuroticismo (EFN), que tevesua primeira edição em 2001, por Hutz e Nunes, segue o modelo dos Cinco GrandesFatores de Personalidade. Constitui-se em uma escala objetiva que avalia traços depersonalidade a partir de aspectos como capacidade permanente de ajustamento einstabilidade emocional (Hutz & Nunes, 2001). Foi o primeiro instrumento disponívelno Brasil avaliando a personalidade sob a perspectiva dos Cinco Grande Fatores(Nunes & Hutz, 2002). Seu uso é indicado entre a faixa etária de 16 a 50 anos, compessoas com escolaridade mínima de ensino médio.

O Inventário de Habilidades Sociais (IHS), publicado em 2001 por Del Prette e DelPrette, é um instrumento objetivo que visa a avaliar o desempenho social em diferentessituações (ocupacional, escolar, familiar, diária), auxiliando no diagnóstico clínico.Não há especificação quanto à idade de aplicação, sendo sugerido seu uso com adultose jovens com ensino médio completo (Bandeira, Costa, Del Prette, Del Prette & Gerk-Carneiro, 2000).

Avaliação neuropsicológicaO objetivo da avaliação neuropsicológica é identificar distúrbios das funções

superiores produzidos por alterações cerebrais, desencadeando respostascomportamentais. Dentro do contexto de saúde mental, esta modalidade deavaliação visa a esclarecer a existência de alguma patologia orgânica que possaestar desencadeando a sintomatologia de um quadro específico, bem como a

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investigação de alterações funcionais e estruturais das funções cognitivasacarretadas por patologias psiquiátricas. Portanto, a avaliação neuropsicológicaabrange objetivos como o diagnóstico diferencial, a identificação docomprometimento das funções cognitivas e a avaliação do grau de deterioroapresentado pelo portador de doença mental.

Sob este aspecto, Neto e cols. (2003) expõem que a avaliação neuropsicológicaengloba a investigação da capacidade intelectiva do paciente, com o intuito demensurar as funções cognitivas e o impacto de problemas psicopatológicos sobreo funcionamento cognitivo. Estes autores referem que o uso de testes para aavaliação geral de inteligência inclui as Escalas Weschler, que possibilitam aobtenção de três medidas: quociente intelectual total (nível geral da capacidadecognitiva e de adaptação do indivíduo), quociente verbal e de execução, querepresentam as modalidades de raciocínio e expressão de caracteres verbais e não-verbais. A Escala de Inteligência Wechsler para Crianças (WISC III), indicado paraavaliação intelectual de pessoas na faixa etária entre 6 e 16 anos recebeu parecerfavorável do CFP. Da mesma forma, a Escala Wechsler para adultos (WAIS III)também teve avaliação favorável. Além destes testes, existem outros – BPR-5; R1;G-36 – que também permitem a mensuração de níveis de inteligência. Os doisúltimos testes são utilizados para a avaliação não-verbal da inteligência e tambémpara pessoas com baixo nível de escolaridade. A avaliação de outras funçõescognitivas pode ser feita através do uso de testes específicos de atenção econcentração, como o teste D-2, que obteve parecer favorável para sua aplicaçãopelo Conselho Federal de Psicologia (2004).

Há outras fontes que citam baterias de avaliação da memória de trabalho (BAMT– UFMG) que ainda se encontram em processo de validação. O teste de Wisconsinavalia o comportamento executivo, especificamente flexibilidade e planejamento. Esteteste, mais recentemente, recebeu parecer favorável do CFP. Existem outrosinstrumentos que foram traduzidos para sua utilização no Brasil como, por exemplo, oTorre de Londres, porém estes instrumentos ainda são autorizados apenas para usoexploratório em pesquisas (Souza, Ignácio, Cunha, Oliveira & Moll, 2001; Wood,Carvalho, Rothe-Neves & Haase, 2001).

Com relação ao teste BPR-5 – Bateria de Provas de Raciocínio –, forma A e formaB, composto por uma bateria de provas de raciocínio que teve sua primeira edição em2000, cabe ressaltar a sua utilidade na estimativa do funcionamento cognitivo geral edas habilidades do sujeito em cinco áreas específicas: raciocínio abstrato, verbal,mecânico, espacial e numérico. Sua faixa de aplicação concentra-se em estudantes desexta à oitava séries do ensino fundamental para a forma A, e ensino médio e superiorpara a forma B (Primi & Almeida, 2000).

O teste R-1 foi apresentado por Oliveira, na sua segunda edição no ano de 2002.Caracteriza-se por ser um teste não-verbal de inteligência, de investigação do raciocínioabstrato, inicialmente tendo sido aplicado na seleção de motoristas amadores eprofissionais, atualmente tendo o seu uso expandido para a população em geral. Esteteste abrange uma ampla faixa etária, sendo indicado para analfabetos e escolares até

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o ensino médio. Embora haja poucos estudos utilizando este teste, é possível citar orealizado por Primi, Güntert e Alchiere (2000), através da correlação do Teste de Zulligercom seis medidas de habilidades cognitivas, que demonstrou a associação negativadeste com medidas cognitivas, além de um padrão específico de correlação dependendoda habilidade cognitiva a ser considerada.

Já o teste G-36, divulgado em 1966, e que também mede a inteligência não-verbal,teve sua quarta edição publicada em 2002 por Boccalandro. Assim como o teste R1, oG-36 mede o raciocínio abstrato e oferece mais uma alternativa no uso com pessoas apartir da quinta série do ensino fundamental até o nível universitário.

Sobre a avaliação não-verbal da inteligência, também é possível utilizar o Testedos Relógios (Souza & Cambraia, 2002). Este mede o fator geral de inteligência edispõe de duas formas, B e C. A forma B é destinada para pessoas até a quinta série doensino fundamental, incluindo aquelas analfabetas. Já a forma C, é dirigida para pessoaa partir da sexta série do ensino fundamental até curso superior completo. Talinstrumento também está sendo utilizado por alguns profissionais para a investigaçãode funções específicas como a memória visual e imediata. Destaca-se como um teste deinteligência que pode ser utilizado com pessoas analfabetas.

Para a investigação de funções como a atenção e a concentração, o teste D-2,mostra-se bastante confiável. Foi criado por Brickenkamp e, segundo as informaçõescontidas no manual do teste, pode ser utilizado entre a faixa etária de 9 a 52 anos.Avaliando as mesmas funções, o AC – Teste de Atenção Concentrada também seencontra validado para a população brasileira, tendo recebido parecer favorável peloConselho Federal de Psicologia (2003).

Além disso, na avaliação neuropsicológica, principalmente nos casos em que existesuspeita de quadros demenciais, estão sendo empregadas tarefas cognitivas como odigit span (Izquierdo, 2002), na qual são verbalizados ao paciente vários números e,após alguns segundos, solicitado que os repita. Outra versão conhecida é a tarefa deusar palavras no lugar de números. Cabe ressaltar, que é de grande importância a qualidadedas entrevistas de avaliação, com coleta de dados que devem envolver além deobservações e questionamentos específicos e objetivos por parte do profissional, aparticipação ativa do paciente no que se refere ao fornecimento de datas, eventos esituações, para posteriormente serem checadas através de outras fontes.

Segundo Lourenço (2002), outra técnica amplamente empregada para investigaçãodas funções intelectivas, principalmente para o diagnóstico de demência, a Escala deAvaliação Cognitiva Mini-Mental (Mini Exame do Estado Mental – MMSE), publicadapela primeira vez por Folstein, Folstein e McHugh (1975) e traduzida por Bertolucci,Brucki, Campacci e Juliano (1994).

Outros instrumentos aplicados na área de saúde mental para o diagnósticode quadro demencial e que foram traduzidos e validados são: 1) Avaliação dasatividades de vida diária – Índice de Katz (Gallo, Reichel & Andersen,1995), quemede a capacidade e prejuízo funcional nas atividades do dia-a-dia; e 2) RMBPC –Revised Memory and Behavior Problems Checklist – (Teri, Truax, Longston, Uomoto

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& Vitalino, 1992), para investigação de memória e comportamento. Ambos sãoassociados a outras técnicas científicas (como de neuroimagem), e auxiliam naavaliação do tipo de assistência e tratamento que o paciente necessita, bem comoa presença de distúrbios do comportamento e o impacto destes aos cuidadores dopaciente (Almeida, 1999).

Almeida (1998) realizou um estudo utilizando a escala MMSE para diagnósticode demência no Brasil, em ambulatório de saúde mental. O autor concluiu que estaescala mostra-se útil e prática na avaliação cognitiva, principalmente na populaçãoidosa, porém apresenta influência de variáveis como o nível de escolaridade eidade das pessoas. Também salienta a necessidade de novos estudos envolvendopessoas que não tenham associado algum transtorno mental, visto que o quadroem idosos evolui com algum tipo de comprometimento cognitivo. Há outros estudosenvolvendo a utilização e aplicabilidade da escala MMSE na população geral,como os realizados por Brucki, Nitrini, Caramelli, Bertolucci, Okamoto (2003) eBertolucci e cols. (1994).

Dentro das áreas investigadas no processo neuropsicológico, a cognição assumefoco principal, isto porque é entendida como a capacidade que possuímos para seobter a aquisição do conhecimento. Está intimamente associada ao conceito deinteligência, como pontua Melo (1979), ao relacionar a totalidade das habilidades àdefinição citada. Dessa forma, o perfil intelectual de um indivíduo pode ser entendidoatravés da avaliação quantitativa das capacidades cognitivas. Aspectos qualitativospodem nortear padrões deficitários de desempenho.

As funções cognitivas operam através de processos extremamente complexos.Abrahão (2001) oferece um conceito mais refinado, no qual a cognição pode serentendida como mecanismos mentais que agem sobre a informação sensorial, ondebusca a sua interpretação, classificação e organização. Tais atividades e processossão veículos para se adquirir informação e desenvolver conhecimento. Jou e Sperb(1999) acrescentam que o sistema cognitivo tem como principal função processarinformações, pois a mente é cognitiva e computacional.

Sob outro aspecto, Beck e Freeman (1993) descrevem o modelo cognitivoatravés de um enfoque dinâmico e operacional. Aponta a percepção como pontochave do aparelho cognitivo, causando impacto na conduta e afeto. Por ser aresponsável pelo modo como os eventos são interpretados, a percepção influenciadiretamente o comportamento e as emoções. A questão principal refere-se àrepresentação mental que se constrói a partir de determinadas vivências, que emcasos de psicopatologias ganham formas intensamente distorcidas. Assim, éimportante destacar que, em muitos casos, distorções no pensamento servem paramanter estados de humor disfuncionais (Dattilio & Padesky, 1995). Os autoresressaltam três níveis da cognição que apresentam maior complexidade. O primeironível refere-se aos pensamentos automáticos representados através de idéias,crenças e imagens. No segundo, há suposições subjacentes que auxiliam naorganização das percepções, regras condicionais e crenças transituacionais. Porúltimo, estão as crenças básicas ou centrais, que tendem a ser mais rígidas e

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condicionais, caracterizadas como esquemas. Estão todos interligados, podendoser acessados nos casos de psicopatologia.

Em função dos sintomas e da desorganização mental provocada pelos transtornospsiquiátricos, o aparelho cognitivo torna-se vulnerável e diversos processos cognitivostornam-se deficitários. Em condições “normais”, as funções cognitivas sofrem perdasao longo do processo de envelhecimento, sem prejuízo maior ou incapacitaçãofuncional. Já no caso das patologias psiquiátricas, a deterioração mental pode serobservada na fase aguda de manifestações psiquiátricas, visto que variadas funçõescognitivas ficam afetadas (Barbizet & Duizabo, 1985).

Holmes (1997) e Neto, Motta, Wang e Elkis (1995) chamam a atenção para sintomascognitivos associados a um episódio de mania, como déficit na sensopercepção, nopensamento, atenção e linguagem. Também, citam a memória e a atividade motoracomo principais afetadas, acompanhadas de prejuízo na avaliação crítica.

Na prática clínica em instituições para tratamento de saúde mental, observa-seque no decorrer de algumas internações, decorrentes de reagudização do quadro, ospacientes apresentam perdas importantes no desempenho de habilidades afetivas,intelectivas, ocupacionais e sociais. O prejuízo é progressivo e as alterações são tantoqualitativas como quantitativas. Configuram a condição de deterioro e sugeremprocessos mentais danificados.

A deterioração intelectual é definida por Barbizet e Duizabo (1985) como umestado de modificação global das funções superiores que ocasionam condutasdesadaptativas. Tal deterioração pode ser transitória, delimitada por horas ou dias,ou estados irreversíveis como os processos demenciais. Em alguns casos, há adeterioração progressiva das funções mentais e ficam evidenciadas por perdas derendimento em atividades habituais, até mesmo de tarefas simples. Dentre as perdas,destacam-se o empobrecimento lingüístico e as disfunções na memória e orientação.Goldberg (1992) refere a existência de disfunção no córtex cerebral de grau complexoem quadros psiquiátricos, levando o indivíduo a anormalidades principalmente nopadrão de organização do pensamento. No entanto, também podem ocorrerdisfunções na área motora e da linguagem, entre outras. Portanto, quando se tratados chamados “transtornos psiquiátricos”, é importante englobar outras técnicasde investigação que não somente a abordagem clínica.

O trabalho investigativo pode exigir outros procedimentos científicos, alémdos convencionais. Neste sentido, é necessário contar com outros recursos quepossibilitem dados complementares e comparativos, para obtenção de maiorprecisão no trabalho clínico, tornando o diagnóstico mais confiável. Comoalternativa, há os recursos oferecidos pela neurociência, estando entre eles astécnicas de neuroimagem.

Métodos e resultados em neuroimagemAtravés do emprego de técnicas avançadas de neuroimagem, permitiu-se

importante evolução a respeito do conhecimento de circuitos cerebrais responsáveispor distintas operações da cognição humana. A localização de algumas funções

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cerebrais possibilitou relacionar funções cognitivas com estruturas mentais. Ferreira(2006) cita a abrangência de técnicas de neuroimagem que permitem visualizar a estruturae o funcionamento cerebral como fluxo sanguíneo, metabolismo, composição químicae densidade de receptores cerebrais em seres vivos.

Com o avanço da área de neurociências e através de observações de atividadecerebral, foi possível detectar achados postulando a identificação anatômica dealgumas desordens mentais, bem como aspectos bioquímicos e moleculares. Ferreira(2006) atenta para a descoberta de substrato neural das doenças mentais,especialmente da esquizofrenia. Através da neuroimagem é identificar os déficitsfuncionais em vias neurais definidas ou desequilíbrios em suas múltiplas interaçõespara uma melhor explicação dos sintomas positivos e negativos do transtorno.Nicastri (1999) afirma que estas evoluções científicas e tecnológicas nortearamconhecimentos mais elucidativos a respeito da fisiologia e neuroquímica do cérebro,além de fornecerem elementos para a confirmação da base biológica dos distúrbiospsiquiátricos.

Os métodos de imagem têm dois papéis fundamentais no diagnóstico de doençaspsiquiátricas. O primeiro é excluir patologias, como tumores ou lesões isquêmicas, quepossam gerar os mesmos sintomas de alguns transtornos de saúde mental. O segundopapel é pesquisar possíveis alterações estruturais ou funcionais como causa primáriade transtornos psiquiátricos, através do estudo da morfologia e da fisiologia do encéfalo(Rocha, Alves, Garrido, Buchpiguel, Nitrini & Bussato, 2001).

Sassi e Soares (2001) expõem estudos atuais que se baseiam na utilização detecnologia que investiga o cérebro em relação a sua estrutura anatômica (TomografiaCerebral e Ressonância Nuclear Magnética) e a sua fisiologia (PET – Tomografia porEmissão de Pósitrons ou SPECT – Tomografia por Emissão de Fóton Único), sendoamplamente utilizada desde estudos experimentais até a prática clínica. Alguns estudos(Bussato, Almeida, Mello, Barbosa & Miguel, 1998; Sassi & Soares, 2001), salientamque a ressonância magnética nuclear suplantou o uso da tomografia computadorizadanos estudos de transtornos de saúde mental por não envolver radiação ionizante, porgerar imagens de alta resolução anatômica e por permitir medidas volumétricas maisacuradas de diversas regiões e estruturas do sistema nervoso central. De acordo comBrandão e Domingues (2002) e Lafer e Amaral (2000), a espectroscopia dos prótons porressonância magnética (EPRM) tem sido usada, na última década, para investigação“in vivo” dos aspectos fisiopatológicos dos distúrbios psiquiátricos, possibilitando aavaliação não-invasiva do metabolismo cerebral por meio da avaliação de determinadasfunções bioquímicas.

A utilização da técnica de PET na avaliação em saúde mental auxiliou nainvestigação do funcionamento cerebral durante a execução de paradigmas deestimulação mental envolvendo operações sensoriais, motoras, cognitivas ouemocionais (Bussato, 2000). Nestas investigações, foram utilizadas tarefas cognitivastradicionais (de linguagem, funções executivas ou memória) adaptadas para o contextodos exames de neuroimagem, através da comparação da média de padrões do fluxosangüíneo cerebral regional entre grupos controle e experimental (Frith, citado emBussato, 2000).

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Os estudos envolvendo tarefas de ativação têm se ampliado, com tarefasneuropsicológicas desenhadas diretamente para investigar os mecanismos cognitivossubjacentes a sintomas mentais específicos (Bussato, 2000). Este autor descreve osseguintes sintomas: de primeira ordem de Schneider (Spence & cols., citado emBussato) e alterações formais do pensamento (McGuire & cols., citado em Bussato,2000), além de outros. Bussato finaliza, salientando o uso do paradigma de ativaçãoda própria provocação de sintomas mentais: obsessões, sintomas fóbicos (Rauch &cols., citado em Bussato) e reações de tristeza (George & cols., citado em Bussato,2000). A ressonância magnética funcional começa a superar esses achados nomomento em que disponibiliza tecnologia mais avançada e menos invasiva e comisto, menos possibilidade de variações interindividuais que a PET e a SPECT. Estasúltimas são realizadas em repouso, podendo variar de acordo com os níveis de alerta,atenção ao ambiente e atividade mental durante o período de captação dos traçadores(radiação) (Bussato, 2000).

O que ainda parece dificultar um melhor entendimento sobre os transtornosmentais são as sutilezas das alterações cerebrais ou as limitações doneuroimageamento, uma vez que este procedimento deve ser sensível o suficientepara detectar aspectos sutis presentes nos transtornos (Rocha & cols., 2001).Hyman (2003) cita a possibilidade de falta de especificidade no que se refere àsalterações. Como exemplo, cita o hipocampo, estrutura cerebral estreitamenterelacionada à memória, que pode se apresentar em condições de atrofiamento, mastambém pode ser observado em casos de transtorno de estresse pós-traumático eem estágios finais do Mal de Alzheimer.

Considerações finais

Como é possível observar a partir do exposto, há um crescente desenvolvimentonos exames de neuroimagem, mas seu uso ainda é bastante restrito em especial nasavaliações realizadas por profissionais da Psicologia. Ao mesmo tempo, verifica-se anecessidade emergente de evolução nas avaliações psicológicas, principalmente naárea de saúde mental. A busca de novas técnicas justifica-se pela possibilidade dealcançar um trabalho investigativo mais preciso, que obtenha respostas mais objetivase conseqüências mais positivas para os pacientes.

Este trabalho buscou discutir a necessária integração, em saúde mental, daavaliação psicológica associada a técnicas, métodos e resultados de neuroimagem.Dentre desta perspectiva, o principal objetivo é alcançar uma maior precisão diagnósticae obter uma melhor qualificação da atividade profissional do psicólogo. Sendo odiagnóstico o primeiro passo a ser tomado e dele dependem as condutas terapêuticasa serem seguidas, faz-se necessário seu aprimoramento. Dependendo da acurácia doprocesso de avaliação, medidas serão tomadas e certamente trarão conseqüênciaspositivas ou negativas para os pacientes, as quais poderão garantir ou não um tratamentobem sucedido e com isso a melhoria da qualidade de vida.

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Somente é possível realizar tratamentos terapêuticos adequados apósdesenvolver idéias claras acerca do problema. Isto implica em avanço metodológicopara qualificar a natureza do diagnóstico, através da associação de múltiplosrecursos. Para tal, acredita-se que a associação entre instrumentos psicológicos etécnicas de neuroimagem deve ser explorada para precisar alterações, prejuízos eperdas das funções mentais, uma vez que esta integração correlaciona achadosfuncionais aos estruturais.

A avaliação e o diagnóstico neuropsicológicos – objeto de estudo destetrabalho – continua sendo extremamente complexo, e, portanto novos recursoscientíficos devem servir de aliados neste processo. É importante que novaspesquisas sejam realizadas abrangendo procedimentos técnico-metodológicos depadronização, para se alcançar uma melhor fidedignidade dos resultados. Somando-se a estes fatores, a capacitação dos profissionais interessados neste foco deestudo é primordial para que haja crescimento e desenvolvimento de novas técnicasde investigação.

Como citado anteriormente, lamentavelmente, reconhece-se um baixo grau deobjetividade em muitos processos de avaliação psicológica, principalmente emsaúde mental, acarretando prejuízos aos pacientes e o descrédito dos profissionaise acadêmicos desta área da ciência. Esta constatação impele a um imediatodesenvolvimento da técnica, associada às mais recentes descobertas de outrasáreas da saúde. Com todo o desenvolvimento da ciência psicológica, não se concebea perpetuação do desconhecimento do psicólogo diante de novos recursosdiagnósticos como os de neuroimagem, plenamente compatíveis com os jáexistentes instrumentos de avaliação. Buscando continuamente a melhoria daqualidade do serviço prestado aos pacientes, cabem a estes profissionais, aampliação das opções de investigação e a conseqüente incorporação de novastecnologias. Desta forma, construir-se-ão novas demandas dentro da área de saúdemental, e o conseqüente crescimento e reconhecimento da Psicologia como ciênciae como profissão.

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Recebido em novembro de 2005 Aceito em agosto de 2007

Carolina Vieira: psicóloga do Hospital Espírita Porto Alegre; especialista em Psicologia Clínica com ênfaseem Avaliação Psicológica (UFRGS).Eliane da Silva Moreira Fay: psicóloga do Hospital Espírita Porto Alegre; especialista em Psicologia Clínicacom ênfase em Avaliação Psicológica (UFRGS).Lucas Neiva-Silva: psicólogo; professor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica nas ênfases deAvaliação Psicológica e Saúde Comunitária (UFRGS).

Endereço para correspondência: [email protected]

*O presente trabalho é parte da Monografia de Especialização das primeiras autoras, sob orientação do terceiroautor.

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O trabalho do psicólogo na mediação de conflitos familiares:reflexões com base na experiência do serviço de mediação

familiar em Santa Catarina

Fernanda Graudenz MüllerAdriano Beiras

Roberto Moraes Cruz

Resumo: A mediação familiar é uma alternativa à justiça estatal para a dissolução do vínculoconjugal e dos conflitos decorrentes desse rompimento. O objetivo deste artigo é refletirsobre o trabalho do psicólogo na mediação de conflitos familiares, com base na experiência doServiço de Mediação Familiar (SMF), Florianópolis/SC, considerado um programa pioneirono Brasil. O SMF traduz a necessidade de constituição de serviços de mediação na sociedadebrasileira no sentido de promover eficácia social na resolução de conflitos no sistema judicial:autonomia dos envolvidos na solução de seus conflitos, economia processual (tempo, dinhei-ro) e pessoal (afetivo-emocional), competência relacional (compreensão da natureza do vin-culo/rompimento). O trabalho de mediação de conflitos contribui na avaliação dos limites eoportunidades de inserção de psicólogos no campo jurídico, especialmente no que tange àspolíticas publicas de atenção social.Palavras chaves: mediação, conflitos familiares, trabalho do psicólogo.

The psychologist’s work in family conflict mediation: Reflectionsbased on the experience of the family mediation service in Santa

CatarinaAbstract: Family mediation is an alternative to state justice for the dissolution of the matrimoniallink and the consequential conflicts of the break up. The purpose of this article is to reflectabout psychologist work at the Family Mediation Service (FMS), a pioneer program inFlorianópolis, Brazil. This service reflects the necessity to promote social efficacy in conflictsolution on the juridical system: autonomy of involved subject, processual economy (both intime and cost), as well as personal effects (both affective and emotional), relationship skills(comprehension of the nature of the link/break up). Mediation work contributes to evaluate theinsertion opportunities of psychologists in this juridical field and the capacity to attend sociallysignificant needs.Key words: Mediation, family conflicts, psychologist work.

Introdução

As constantes mudanças que ocorrem na sociedade, especialmente no campodos contratos, dos conflitos sociais e dos valores inerentes ao universo das famíliasconstituem aspectos fundamentais à reflexão e ao desenvolvimento de um processode formação de psicólogos no trabalho de mediação de conflitos familiares.

Aletheia, n.26, p.196-209, jul./dez. 2007

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Contemporaneamente, a multiplicidade e a complexidade dos tipos de família –as denominadas famílias plurais – ensejam situações reais as quais estão requerendoponderações, estudos e pesquisas dos profissionais ligados a essa esfera. Nessesentido, uma das questões que merece atenção diz respeito à maneira de resolução dosconflitos que eclodem no sistema familiar decorrentes da separação do casal. Oprocesso judicial originado do rompimento da união é apenas o aspecto superficial ederradeiro dessa situação, haja vista que o desamor inicia normalmente antes de umadas partes procurar a dissolução oficial do vínculo, para cuja decisão já concorreusofrimento e dor (Müller, 2005a).

As leis e o Direito regulamentam as relações para possibilitar a vida em sociedade.Mas existem aspectos dessas relações – tais como os emocionais – que não sãopassíveis de enquadramento legal. Em geral, nos casos de separação, o motivo aparenteque mantém o litígio na esfera judicial é, em regra, patrimonial, portanto objetivo epassível de divisão, e por isso comportaria uma acomodação satisfatória para ambasas partes envolvidas. O litígio apresentado consciente e objetivamente por intermédiode um processo judicial dissimula situações dolorosas relacionadas à experiência derompimento do tecido emocional, construído ao longo do processo de convivênciainterpessoal. Com efeito, aspectos emocionais geralmente estão imbricados no discursológico presente nos conflitos instanciados judicialmente.

Genericamente, os operadores do Direito, responsáveis pelos métodostradicionais e adversariais de resolução de conflitos não desenvolvem, ao longodo seu processo de formação profissional, competências para lidar com aspectospsicológicos, no qual é valorizado geralmente a necessidade de subsumir a situaçãoreal a uma lei, ou seja, de fazer o denominado raciocínio silogístico1 . Isso significaque, quando uma pessoa, diante de um conflito com uma outra, recorre a umadvogado, esse profissional requer em juízo, conforme a lei, que um terceiro estranhoà relação familiar (juiz de Direito) declare “de quem é o direito”. A outra pessoa,contra a qual a ação foi ajuizada é chamada a responder, também por meio de umadvogado (Müller, 2005a).

Jurisdicionada2 a situação, na qual é necessário desenvolver umaracionalidade, o que aflora é uma luta pela razão3, quando o substrato do conflitoé em geral emocional. Essa luta pela razão, entende Müller (2005a), faz com quedesse momento em diante fique estabelecido entre os advogados um duelo forense,

1 Silogismo, conforme Ferreira (2001, s/p) é a “dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadaspremissas, delas, por inferência, se tira uma terceira, chamada conclusão”. Exemplo de silogismo jurídico:todos os homens são mortais (premissa maior), João é homem (premissa menor), logo, João é mortal(conclusão).2 Jurisdicionada designa “submetida à jurisdição”, que significa o “poder atribuído ao juiz de Direito paraconhecer, julgar e executar os litígios” (Ferreira, 2001, s/p).3 Razão, no sentido de fundamento ou causa justificativa de uma ação, atitude, ponto de vista, motivo. Nestecaso está também relacionada à vaidade profissional. “Ao contrário do que se pensa, o homem não se tornaviolento quando perde a razão, mas sim quando a exerce com intransigência, ou seja, quando pretende exercê-la a despeito das razões dos outros” (Bisol, 1999, p.113).

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eivado pela competição e vaidade profissional, da qual decorre um jogo desobreposição de razões que impede a compreensão das dimensões sociais, afetivas,morais e suas respectivas repercussões na família. Os legítimos atores – nessecaso, denominados de autor e réu – tendem a ser colocados em segundo plano,com seus medos, angústias e aflições, sentimentos que são potencializados ante otemor do processo judicial.

São observáveis, nesse procedimento judicial, relações de poder e submissão,baseadas na lógica disjuntiva, maniqueísta e binária do ganhar-perder4 . O que passa ater relevância, confirmam o juiz de Direito Maurique (2001) e o Procurador de JustiçaBisol (1999), é a solução jurídica do litígio, distante da emocional, conduzindo, namaioria das vezes, à perpetuação do conflito. Tal cultura, que contribui para aumentaras diferenças incompreendidas entre os disputantes, reduz a eficácia social da soluçãode conflitos na sociedade.

A experiência de uma separação, embora muitas vezes sofrida, pode significaruma transformação positiva das relações e também dos envolvidos, ou seja, ser umtrampolim para um salto de possibilidades. Nesse entendimento, a mediação deconflitos é o método de solução de controvérsias que trabalha na perspectiva deque o conflito ou a crise possui um potencial transformativo (Müller, 2005a).

Além disso, por meio da mediação é possível perceber e considerar, além doselementos objetivos antes referidos (p. ex. as questões patrimoniais), os afetivos (porex. os sentimentos) e inconscientes (p. ex. o que não é verbalizado; atos falhos, etc.)dos conflitos, ultrapassando as questões jurídicas, que consideram apenas aspectosobjetivos, para auxiliar numa solução aditiva, ou seja, que soma e agrega, tendente aoholísmo5 , dado que quando alguém está com um conflito na esfera familiar (separação,disputa de guarda, investigação de paternidade etc.) seus problemas ultrapassam oselementos jurídicos, essa pessoa diz algo e nessa fala, e em seu corpo, existe um algo“por dizer”. Esse “por dizer” é também da esfera psicológica e normalmente o queacarreta e sustenta o conflito, chancela Pereira (2000). Dessa forma, é necessárioperceber a situação como um todo.

4 Disjuntivo, explica Morin (1996) em seu artigo Epistemologia da Complexidade, significa separado, desunido,desligado. “Na escola aprendemos a pensar separando” (ob. cit., p.275). Assim, as demais esferas oudimensões da vida, tais como as questões de cunho afetivo, não importam ao processo judicial.Maniqueísta advém de maniqueísmo: “doutrina do persa Mani (séc. III), sobre a qual se criou uma seitareligiosa que teve adeptos na Índia, China, África, Itália e Sul da Espanha, e segundo a qual o Universofoi criado e é dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o malabsoluto ou o Diabo” (Ferreira, 2001, s/p). Portanto, não existe na lógica jurídica um caminho intermediárioou do meio.Binário, por sua vez significa, segundo Ferreira (2001), reduzir uma situação a duas possibilidades ou “o quetem duas unidades, dois elementos”. Sua alusão decorre do seguinte: no processo judicial, existe somente umaalternativa: culpado ou inocente, autor ou réu, certo ou errado, procedente ou improcedente. Nesse sentido,conforme Barbosa (2004), a terceira solução que contempla o terceiro excluído não é admitida. Portanto, épossível perceber o sistema jurídico como disjuntivo, maniqueísta e binário, sinteticamente em função dalógica que o sustenta, na qual há sempre um certo e o outro errado ou um inocente e outro culpado.5 “Teoria segundo a qual o homem é um todo indivisível, e que não pode ser explicado pelos seus distintoscomponentes (físico, psicológico ou psíquico), considerados separadamente” (Ferreira, 2001, s/p).

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A mediação, utilizando técnicas da Psicologia, em especial das Psicoterapias,tais como a sumarização positiva, o resumo e o enquadre, amplia e torna maiscompreensíveis as diversas mensagens e mostra a importância da escuta não nervosa,da interpretação do que está por detrás do discurso, da linguagem corporal etc. Ocorreque justamente as variáveis psicológicas do conflito familiar tornam esse tipo demediação o mais complexo, pois envolve, como mencionado, além de aspectos objetivos,aspectos emocionais e inconscientes.

Nessa linha de raciocínio, muito embora ainda prevaleça em nossa cultura oparadigma disjuntivo do ganhar-perder, cuja lógica binária e determinista limita opçõespossíveis, o contexto de interação social contemporâneo vem propiciando, conformeSchinitman (1999), a criação de novos ramos do conhecimento científico e de novasperspectivas relativamente às ciências, o que exige meios tecnológicos apropriadospara o fomento de métodos inovadores de resolução de conflitos. A mediação é umdesses métodos.

Mediação, conforme Ferreira (2001, s/p), advém do latim mediatione quesignifica intercessão, intermédio [...] intervenção com que se busca produzir umacordo. [...] Derivado do verbo latino mediare – de mediar, intervir, colocar-se nomeio (Müller, 2005a).

Segundo Mello (2004), não há dados concretos quanto ao marco histórico inicialda mediação. Contudo, esta prática remonta à antiguidade chinesa, por influência dafilosofia de Confúcio, calcada na reciprocidade, na paz e na compreensão. Nesse sentido,sustentam Breitman e Porto (2001), a mediação de conflitos, emboracontemporaneamente seja um procedimento inovador, tem suas origens e razões nacivilização chinesa, com aproveitamento de costumes e utilização de antigas descobertasem situações semelhantes. A mediação foi retomada em nosso país com o modelooriundo da Lei da Arbitragem. São temas antigos, porém com nova roupagem.

A mediação caminha no sentido oposto à do conflito judicial, o qual originaum ganhador e um perdedor. Bush e Folger (1996) coadunam com Schinitman (1999)ao conceituarem a mediação. Para eles, a mediação pode ser entendida como ummétodo de solução de conflitos no qual as partes envolvidas recebem a intervençãode um terceiro, o mediador, que contribui, por meio da reabertura do diálogo, achegar a possibilidades inventivas para a solução da disputa, em que ambos fiquemsatisfeitos.

Dessa forma, a mediação é um método de solução de disputas flexível e nãovinculador, pelo qual um terceiro neutro facilita o diálogo entre as partes paraajudá-las a chegar a um acordo (Highton & Álvarez, 1999). É observável que namediação, diferentemente da arbitragem, não é o mediador quem decidirá ou trará asolução, mas sim, as próprias partes. Uma de suas peculiaridades, conforme Müller(2005a), é a capacidade de expansão das discussões tradicionais que são feitaspara chegar a um acordo, ampliando-as para além das questões jurídicas envolvidas,como já foi dito.

Ante o exposto, uma das possibilidades de trabalho de psicólogos em contextosjurídicos é nos processos de Mediação Familiar. Segundo Ávila (2002), a mediação

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familiar proporciona uma separação menos traumática e mais humana, considerandoque as formas tradicionais de finalizar um casamento ou união estável não estãosuprindo as reais necessidades dos envolvidos e de seus filhos.

De acordo com Moore (1998, p.22), a mediação é um “prolongamento ouaperfeiçoamento do processo de negociação que envolve a interferência de umaaceitável terceira parte, que tem um poder de tomada de decisão limitado ou nãoautoritário”. Para esse autor, o mediador tem a função de ajudar os conflitantes achegarem voluntariamente a um acordo mutuamente aceitável das questões em disputa.Haynes e Marodin (1996) afirmam que “o mediador é o administrador das negociações,é quem organiza a discussão das questões a serem resolvidas” (p.11).

No entendimento de Folger e Bush (1999), que transcende a compreensãorecém referida, a mediação de conflitos é o método de solução de controvérsias quetrabalha na perspectiva de que o conflito ou a crise possui um potencialtransformativo. Esses autores, em sua obra La promessa de la mediacion (1996),advogam que o conflito é parte integrante da vida e capaz de gerar transformações eque o processo de mediação revela uma capacidade própria de mudança nas pessoase promove um crescimento ao auxiliá-las em situações difíceis, tais como asdecorrentes de um conflito.

Conforme Müller (2005b), a mediação de conflitos é uma técnica estruturada deresolução de controvérsias na qual os disputantes buscam ou aceitam a intervençãode um terceiro imparcial e qualificado, o mediador. Esse facilitador os auxilia – pormeio da reabertura do diálogo – a encontrar soluções criativas e alternativas para oconflito, na qual ambos ganhem. Portanto, na mediação a decisão não é imposta porum terceiro. E esse é um aspecto significativo e diferencial de seu procedimento: nãoé o mediador quem trará a solução – como ocorre na justiça estatal – mas sim aspróprias partes. Por isso, o acordo mediado traz uma solução mutuamente aceitávele será estruturado de forma a preservar as relações dos envolvidos no conflito.Dessa forma, o maior êxito desse método ocorre quando ambas as partes têm algo aganhar se o conflito é solucionado negociadamente, vale dizer, quando as pessoasvão, ou deveriam, seguir se relacionando no futuro, como é o caso de casais emseparação e com filhos.

Nesse sentido, é perceptível que a mediação é destinada àqueles que prezama relação pessoal ou de convivência com aquele com quem se está em conflito oudesta relação não pode renunciar; por quem se disponha a revisar posiçõesanteriormente assumidas na busca de soluções para o embate; por quem desejarser o autor da solução escolhida e ainda por quem busque rapidez econfidencialidade no processo e opte pelo seu controle, conforme argúem Almeidae Braga Netto (2002).

De acordo com Moore (1998), nos último trinta anos, o uso da mediação tem sidodisseminado como técnica de resolução dos mais diferentes tipos de conflitos, taiscomo os decorrentes de relações trabalhistas e comerciais, disputas étnicas, disputaseconômicas, escolares e de instituições de educação, de política ambiental e social ede conflitos familiares.

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No Brasil, algumas experiências pioneiras de mediação vêm sendo destacadas epor isso multiplicadas em diversas cidades. Este artigo apresenta a experiência de umProjeto Piloto implantado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) nas Varasde Família do Foro Central da Comarca de Florianópolis.

Não regulamentada no Brasil, embora prestes a sê-la, como adiante será relatado,a mediação é uma alternativa válida e eficaz para a resolução de conflitos relacionadosà separação judicial. As experiências de diversos países, tais como Argentina e Canadá,assim o demonstram. O Canadá inclusive, é pioneiro em estudos de mediação deconflitos familiares e “desde 1.º de setembro de 1997, o governo de Quebec aprimorouo instituto da mediação familiar, com a promulgação de lei, dispondo que casal ecrianças envolvidos em conflito familiar terão acesso a uma sessão de informação e acinco sessões gratuitas de mediação” (Barbosa, 2004, p.02).

Na realidade nacional, a mediação está em estágio inicial e experimental. Apesarde já contar com mediadores provindos das mais distintas profissões e com oapoio de algumas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), existemresistências de ordens diversas, muitas delas decorrentes do desconhecimento doprocesso de mediação. Exemplo disso é que a população, de modo geral, aindacostuma delegar aos operadores do Direito as decisões de seus conflitos, situaçãooposta à da mediação, na qual, salientamos, os próprios conflitantes sãoresponsáveis pela solução de seus problemas, sendo o mediador uma parte imparciale tão somente responsável por auxiliar a que as partes consigam comunicar-sefuncionalmente.

A mediação familiar no contexto de separações judiciais surge, parafraseandoÁvila (2002) como, “uma forma inovadora de abordagem jurídica e também comoalternativa ao sistema tradicional judiciário para tratar de conflitos”, na qual doisaspectos são fundamentais: a cooperação entre as partes e a disponibilidade desolucionar o conflito para que aconteça um acordo entre os envolvidos.

O projeto piloto de Mediação Familiar do TJSC

O Serviço de Mediação Familiar – SMF – é um projeto que iniciou em setembrode 2001. Conforme informações disponíveis na página principal do Tribunal de Justiçana internet6 , o Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, motivado pela experiênciabem sucedida no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra em relação à utilização demétodos alternativos e não adversariais de resolução de conflitos, instituiu, pelaResolução nº. 11/2001-TJ/SC, o SMF, que tem como escopo oferecer aos envolvidosem disputas familiares um método para a sua resolução mais rápido, acessível e menosoneroso: a mediação de conflitos.

O mediador, no entendimento do Tribunal de Justiça7 , trabalha buscando asatisfação das pessoas na solução do conflito, para que não haja vencedor e vencido,

6 http://www.tj.sc.gov.br, acesso em 06/10/05.7 Maiores detalhes disponíveis em http://www.tj.sc.gov.br, acesso em 06/10/05.

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mas para que ocorra mútua cooperação entre os envolvidos e, por conseqüência, umadiminuição do número de processos litigiosos sendo ajuizados. Nesse sentido, o SMFinstituído na Comarca da capital e em outras Comarcas, executado por equipemultidisciplinar composta por assistentes sociais, psicólogos e advogados, auxilia noatendimento de casos complexos e, em geral, desgastantes para os pais, seus filhos eoutros envolvidos (Müller, 2005a).

Ademais, a mediação nos conflitos familiares tende a contribuir para o efetivoexercício da cidadania, pois enseja a solução de conflitos pelos próprios envolvidos,deixando nas mãos do juiz de Direito somente o que não foi possível mediar. Cabereferir que as informações constantes na página da internet indicada referem aindaque o envolvimento de Universidades é fator essencial na propagação do SMF,tendo em vista que a parceria efetuada entre as instituições oferece suporte teóricoe prático para as atividades desenvolvidas, o que garante a interdisciplinaridade queo método propõe (Müller, 2005a).

O SMF foi implantado pela assistente social Eliedite Mattos Ávila, funcionáriado Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que fez seu mestrado na Universidade deMontreal, no Canadá8 . Ela teve como objeto de estudo a mediação familiar, trazendodesse país seu modelo e adaptando-o à realidade brasileira. O SMF foi introduzido,como dito alhures, para solucionar por meio da mediação, os conflitos decorrentesdo rompimento do vínculo conjugal, tais como os relacionados a alimentos, divisãode bens, guarda dos filhos, regulamentação de visitas e modificação de guarda.

Em relação ao funcionamento do SMF de Florianópolis: quando uma pessoaprocura, no setor de informações do Foro, o equivalente à defensoria pública, ou seja,um advogado pago pelo Estado para fazer a defesa de pessoas consideradas carentese sendo seu conflito decorrente de relações familiares, ela é informada sobre o SMF eencaminhada para o respectivo setor. O SMF dispõe do procedimento de triagem, noqual é sucintamente explicado ao interessado o que é a mediação e como funciona.Além de informações prestadas ao solicitante, na triagem é indagada sua condiçãosócio-econômica, dado que somente são aceitos os casais cuja renda familiar seja deaté 10 salários mínimos.

Tendo o interessado preenchido os requisitos necessários (interesse noprocesso de mediação, disponibilidade e renda compatível), é marcada a primeirasessão de mediação. De um modo geral, o serviço é procurado por apenas um dosseparandos. Nesse caso, o outro é informado e solicitado a comparecer no serviço,por meio de uma carta, geralmente entregue pela própria pessoa que procurou osetor de mediação.

O número de sessões de mediação familiar nos SMF está programado para disporde duas a quatro sessões. O SMF conta com mediadores provindos de diversas áreas,tais como do Serviço Social, do Direito e da Psicologia, como antes referido. Esses

8 Ávila, 1999, Eliedite Mattos. Le transfert de pratiques de médiation familiale: une étude Quebec-Brésil. Disser-tação (Mestrado em Serviço Social). Universidade de Montréal, Canadá.

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profissionais passam por um curso de base em mediação familiar, ministrado pelaprópria instituição e por um treinamento prático inicial dentro do projeto. O SMFdispõe também de advogados plantonistas, os quais são chamados a solucionardúvidas jurídicas durante o processo de mediação – a fim de auxiliar na manutenção daimparcialidade do mediador – e para acompanhar o casal na audiência, na qual elesserão ouvidos pelo magistrado e ratificarão, ou não, seu desejo de separação, bemcomo os demais itens do acordo mediado. Ao final, o acordo é homologado pelomagistrado.

O SMF funciona em dias úteis, das 13 horas às 19 horas, ao longo do anojudiciário; foi implantado também em outras cidades, bem como estão em fase deimplantação em outras Comarcas de Santa Catarina.

As etapas do processo de mediaçãoNa SMF da Comarca de Florianópolis, a mediação de conflitos possui as

seguintes etapas: introdução ao processo de mediação, verificação da decisão deseparação, negociação das responsabilidades parentais, negociação da divisão dosbens, negociação das responsabilidades financeiras e redação do termo de acordo.No primeiro encontro, o mediador cria uma atmosfera apropriada para as negociações,objetivando manter a postura imparcial, que significa, conforme Müller (2005a),demonstrar não ser tendencioso em relação a um dos envolvidos, bem como umaconduta desinteressada em relação às conseqüências do eventual acordo alcançado.Nesse momento são apresentadas as informações básicas dos conflitantes por esses,permitindo com que seja revelada a motivação do casal para a separação, identificandoos anseios e, por fim, mas de suma relevância, desenvolvendo o inicio da empatia ecooperação.

É nessa fase que o mediador apresenta os objetivos e as exigências da mediação,explica o seu papel e apresenta algumas regras, tais como: respeito pelo outro,suspensão dos procedimentos judiciais durante a mediação, a impossibilidade deobrigar o mediador a testemunhar, o sigilo sobre as sessões, divulgação de todas asinformações financeiras para as negociações sobre a divisão dos bens e a pensãoalimentícia, entre outras.

Num segundo momento, o mediador procura discutir com o casal a decisãode separação. De acordo com Ávila (2002, p. 39), nessa etapa “a tarefa do mediadorconsiste em identificar a natureza dos conflitos escondidos ou dos expressosabertamente pelo casal”. Confirmada a decisão pela separação são iniciadas asnegociações das responsabilidades parentais, as quais estão relacionadas aquestões de guarda, visitas, férias e pensão alimentícia. O objetivo é garantir obem estar dos filhos e ressaltar os interesses comuns e necessidades de cada umadas partes.

Uma etapa difícil e neste caso peculiar, dado que a experiência piloto ora relatadaabarca famílias de baixa renda, é a divisão dos bens. Nesse tópico, referem Haynes eMarodin (1996, p. 80) que o “o mediador precisa entender o que prevê a lei, porém não

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ser limitado por ela”. Segundo esses autores, ocorrendo uma limitação à lei, a mediaçãotornar-se “um processo que importaria aos clientes o mesmo resultado que um tribunal.(...) A mediação é um processo de poder que dá aos clientes o direito e a habilidade pradeterminar o que consideram justo para a família”.

Em seguida, são negociadas as responsabilidades financeiras. Essa fase, paraÁvila (2002), está relacionada à organização da vida após a separação. É feito umlevantamento da situação financeira dos conflitantes com o intuito de averiguar suasnecessidades econômicas, bem como as possibilidades que cada um demonstra paraarcar com as mesmas. Caso haja consenso e o casal chegue a um acordo, é redigido umprojeto de acordo, no qual as decisões tomadas são colocadas no papel e revistas pelocasal e pelo advogado de plantão no setor de mediação. Após essa etapa, é marcada asessão de homologação de acordo com o juiz.

Avaliação do serviço – dados estatísticos do ano de 20049

Durante o ano de 2004 foram realizados 1.652 atendimentos de triagem, sendoque desses, 886 foram encaminhados para as sessões de mediação de casal e 766caracterizaram-se por serem orientações gerais e também encaminhamentos paraoutros setores judiciais. Esses encaminhamentos ocorrem, por exemplo, em situaçõescomo as separações nas quais uma das pessoas envolvidas ou ambas radicalizamsuas posições, inviabilizando qualquer acordo, sendo orientadas a buscar algumasolução com advogado do Estado; também é inviabilizada a mediação nos casos emque o paradeiro do cônjuge é desconhecido. Há ainda encaminhamentos para oConselho Tutelar, para serviços de psicoterapia, pedidos de alvará judicial, situaçõesem que o conflito apresentado é de competência territorial de outros Fóruns deJustiça, entre outros.

Na triagem, muitas pessoas buscam apenas informações e orientaçõesjurídicas sobre sua separação, bem como a aqueles que expõem seus conflitoscomo forma de desabafo, sem necessidade de intervenção específica. Algumasrevelam, ao ouvirem as informações na triagem, sua intenção de repensar sua vidaconjugal para evitar o ingresso de ações litigiosas prematuras. Uma observaçãocotidiana é que, genericamente, as queixas são de cunho psicossocial, relacionadasa questões de vínculo afetivo e não atinentes aos bens materiais implicados nasituação, por exemplo.

Dentre os casos encaminhados para as sessões de mediação, foram homologadosum total de 228 acordos (26%); 120 (14%) foram encaminhados para ação judiciallitigiosa e 538 (60%) foram casos arquivados no setor. Desse total, o numero dereconciliações é o mais elevado, e os demais terminam como acordos informais ou pelonão comparecimento de uma das partes. Há ainda os casos em acompanhamento ouagendados.

9 Fonte: AVILA, Eliedite Mattos. Projeto Serviço de Mediação Familiar – Relatório Anual-2004. Tribunal deJustiça de Santa Catarina – TJSC, Florianópolis, 2004.

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10 Na conciliação o conciliador sugere ou induz o acordo e por isso o tempo necessário para chegar ao mesmoé menor.

Os tipos de homologações judiciais estão relacionadas a: dissoluções desociedade de fato (37%), separações de direito (26%), alimentos (14%), divórciosdiretos (20%) e guarda, modificação de guarda e visitas (3%). Para a realização dosacordos, têm sido feitas, em média, duas sessões de mediação com cada casal.Dentre essas estatísticas, o baixo índice de casos que efetivamente necessitam deuma ação judicial litigiosa (14%) evidencia que a mediação familiar auxilia nadiminuição dos processos judiciais, confirmando a eficácia da mediação napacificação social.

Com relação ao perfil do usuário do serviço deste projeto piloto, os seguintesdados forma colhidos de uma pesquisa documental dos arquivos do SMF: 71% daspessoas que procuram o serviço na triagem são do sexo feminino; 47% correspondema faixa etária entre 20 e 30 anos de idade; 66 % dos usuários estão desempregados;32% desejam resolver a questão da pensão alimentícia; 55% possuem apenas umfilho; 42 % tem o ensino fundamental incompleto e 41% tem renda fixa de doissalários mínimos.

Além da Comarca da Capital, o serviço já foi implantado nas seguintes cidadesdo Estado de Santa Catarina: Joinville, Balneário Camboriú, Ituporanga, DionísioCerqueira, Itajaí, Aberlardo Luz, Anchieta, Catanduvas e São José. E estão em processode implantação as comarcas de Chapecó e Concórdia. O projeto conta com parceriasde Universidades, entre outras instituições.

Reflexões sobre o SMF de FlorianópolisO número reduzido de sessões de mediação – em média duas – realizadas no

SMF de Florianópolis é a primeira reflexão a ser feita, sobretudo porque no ano de 2005os dados estatísticos parciais mostram que essa média caiu para 1,3 para cada acordo.Nesse sentido, cabe questionar: ocorre um processo de mediação familiar ou umaconciliação10 ; os acordos que porventura são assinados derivam da atuaçãocompetente do mediador ou simplesmente da necessidade ou da determinação docasal para a separação?

Além disso, existe a necessidade da implantação de um serviço de supervisãoaos mediadores e de capacitação continuada, visto que há uma carência deaprofundamento teórico acerca de conhecimentos sobre técnicas de negociação,técnicas das Psicoterapias Breves, teorias da comunicação e sistemas, entre outros,os quais são primordiais para que os mediadores atuem com excelência. Nesse pontoestá a importância de psicólogos para o processo de mediação, dado que possuem aformação mais consentânea com os atributos necessários a esse serviço. Esse aspectotraz embutido o questionamento sobre quais as competências necessárias a ummediador? E ainda, como deve ser organizada a sua formação? Que aspectos sãoimprescindíveis?

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Todavia, apesar das limitações do SMF, esse se configura como uma alternativaválida ao sistema judiciário tradicional dado que é caracterizado como uma via maisrápida, informal e econômica de alcançar um acordo. Além disso, o ajuste celebradopor meio da mediação familiar, que não é fruto de decisão imposta por uma outrapessoa, permite a que os envolvidos reflitam sobre suas reais necessidades e as deseus filhos, o que gera ajustes nos quais sobressai a responsabilização pessoal e ocumprimento das avenças fixadas.

Ademais, a mediação familiar mitiga sentimentos de mágoa, cólera e ansiedadecaracterísticas do processo de separação, além de permitir maior flexibilidade ecriatividade na resolução dos conflitos, aspectos relevantes para a realidade dapopulação de baixa renda do Brasil, onde o sistema judiciário tradicional, conformeMüller (2005b), é insuficiente. Decidir os rumos da vida enseja o resgate da autonomiado indivíduo, como também, afasta o problema da interpretação judicial. Nesse contexto,verificada a inoperância do Judiciário, a mediação desponta como uma possibilidadede solução dos conflitos interpessoais.

A necessidade de novas vias para desobstruir o Judiciário é considerada tãourgente que a atividade da mediação está prestes a ser institucionalizada no Direitobrasileiro. O primeiro texto legal sobre mediação de conflitos, de autoria da DeputadaZulaiê Cobra, aprovado pela Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n°. 4827/98) éde 1998 e está tramitando no Congresso Nacional. Um segundo texto foi elaborado,inspirado na redação legal da Província de Buenos Aires e foi ao primeiro agregado.Posteriormente à divulgação desse, foi sistematizada uma última versão doAnteprojeto de Lei de Mediação Paraprocessual, em outubro de 2002, e aqueles foisomada, que além de regulamentar a mediação, traz o Sistema Multiportas deResolução de Conflitos, composto pela mediação, arbitragem, conciliação eavaliação neutra de terceiro.

Conclusão

O desenvolvimento de programas e serviços de mediação de conflitos em diferentesinstâncias da Justiça é um processo recente e está diretamente associado a necessidadede construir um modus operandi alternativo à Justiça do Estado. A experiência noServiço de Mediação Familiar em Santa Catarina reflete a necessidade de avaliação dasexperiências de constituição de programas e serviços de mediação na sociedadebrasileira: sua eficácia social, graus de resolutividade no sistema judicial, economia e,especialmente, a percepção dos participantes envolvidos sobre a repercussão doprocesso de mediação em suas vidas.

Para que a sociedade brasileira se aproprie da mediação como recurso nãoconflitivo e alternativo à jurisdição e ao uso de mecanismos impostos na solução deconflitos, mudanças paradigmáticas precisarão penetrar seu processo cultural.Mudanças que estão relacionadas ao processo educativo de compreender os diferentesmeios de intermediar relações sociais, amorosas, afetivas.

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Nesse sentido, o trabalho dos psicólogos no campo jurídico, no âmbito dosprocessos de mediação de conflitos, deve estar permanentemente orientado pararesponder às necessidades da população no processo de condução e resolução deimpasses configurados juridicamente, compreendidas no contexto dos paradigmasculturais de afirmação das diferenças individuais e do compartilhamento denecessidades e sentimentos mútuos.

Por outro lado, o trabalho dos psicólogos em processos de mediação de conflitosfamiliares possibilita, de certa forma, o desenvolvimento da reflexão e da crítica acercados limites e oportunidades de inserção no campo jurídico, à capacidade de atendernecessidades socialmente significativas e de avaliar as repercussões das intervençõesrealizadas. Do ponto de vista do papel do mediador é necessário afirmar que, noprocesso de construção das competências do profissional que media conflitos, existea necessidade de integrar conhecimentos de diferentes disciplinas (especialmente daPsicologia e do Direito), coerentes com os objetivos e o processo de trabalho demediar, de forma a responder às exigências específicas do objeto de trabalho e àsdemandas sociais e de mercado de trabalho. Resultam dessa coerência teórico-instrumental, novas habilidades e atitudes que contribuem na formação de um perfilprofissional e no aperfeiçoamento da atuação do mediador.

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Recebido em fevereiro de 2006 Aceito em março de 2007

Fernanda G. Muller: advogada; psicóloga; mestranda em Psicologia (UFSC).Adriano Beiras: psicólogo; mestre em Psicologia (UFSC).Roberto M. Cruz: psicólogo; doutor em Engenharia de Produção (UFSC); professor adjunto do Departamentode Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFSC).

Endereço para correspondência: [email protected].

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O banqueiro dos pobres1

Adriana Weber

O livro O banqueiro dos pobres, de Muhammad Yunus, consiste no relato dahistória real de um economista, o próprio autor, que, através de seu empenho nocombate à pobreza, realizou uma “intervenção psicossocial” utilizando conceitos eações que podem ser analisados sob a ótica Psicologia Comunitária. O autor, em 2006,recebeu o Prêmio Nobel da Paz, sendo que o Comitê do Nobel considerou que oesforço de Yunus para eliminar a pobreza pode resultar em paz duradoura, que “nãopode ser alcançada a menos que grandes grupos da população encontrem meios desair da pobreza”, sendo o microcrédito um desses meios.

A obra retrata a experiência do professor Muhammad Yunus, nascido emBangladesh, economista com doutorado na Universidade do Colorado (EUA),responsável pela criação do Banco Grameen, que utiliza o microcrédito como ferramentapara alcançar as classes mais desfavorecidas do país, visando levar essas pessoas asair da pobreza. Ressalta-se que Bangladesh é um país no qual grande parte dapopulação vive nas ruas, descalça, sem água limpa, sem teto para se abrigar e onde afome é companheira cotidiana. Registros dão conta que 40% da população não chegama satisfazer suas necessidades alimentares mínimas, e a taxa de analfabetismo encontra-se próxima a 90%.

O livro está divido em seis grandes partes, sendo que as três primeiras retratama evolução das idéias do autor, as quais foram significativamente afetadas pelo contextovivido e onde se pode vislumbrar o nascimento do Grameen e o seu desenvolvimento.A quarta parte relata a experiência de outros países com o microcrédito, a partir doexemplo do Grameen. A quinta parte explicita a filosofia que move a instituição, o queé essencial para o entendimento da obra, pois esta filosofia incentiva e direciona asações de seus membros na busca de objetivos pouco comuns na sociedade atual.Finalmente, a sexta e última parte apresenta as novas áreas de atuação do BancoGrameen depois de sua consolidação como instituição independente.

Primeira parte – O começo

É apresentado o contexto familiar vivido pelo professor Yunus, a sua infância, osseus primeiros passos na Universidade e a sua experiência nos EUA quando cursou seudoutorado, fase esta que acabou por se mostrar bastante significativa posteriormente.Ao mesmo tempo, mostra o impacto causado pela fome sobre as idéias até então aceitaspelo professor Yunus e a sua conscientização no sentido de que algo precisava ser feito

Aletheia, n.26, p.210-213, jul./dez. 2007

1 Yunus, M., & Jolis, A. (2006). O banqueiro dos pobres. São Paulo: Ática.

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concretamente, quando então, inicia sua primeira experiência para combater a pobreza: a“Fazenda de Três Terços”. Posteriormente, o seu primeiro contato com as instituiçõesfinanceiras e suas características de operar, que acabaram por levar o autor ao seuprimeiro empréstimo, de 27 dólares para 42 famílias. É descrito o contexto vivido peloautor e as suas conseqüências sobre seu pensamento e suas ações.

Aqui se identifica o meio ecológico onde tudo começou. Enquanto Yunusensinava teorias econômicas na universidade, pessoas morriam de fome nas calçadas.

Diante de tal realidade, ele decidiu mudar seu microssistema, trocando a sala deaula pelo trabalho de campo junto à população da aldeia vizinha. Passou a familiarizar-se, buscando saber mais acerca da comunidade, conhecer as necessidades e avaliar aspotencialidades de seus membros.

Ao ter contato direto com as pessoas, ele começou a entender o sistema perversode perpetuação da miséria, bem como o fatalismo com o qual aquela população seresignava a conviver.

Segunda parte – A fase experimental

Na segunda parte, é descrito o modo de operar do Grameen, a opção do banco emconceder, preferencialmente, empréstimos a mulheres, e os impactos dessa ação naforma de atuar da instituição e sobre a sociedade muçulmana. Paralelamente, aparecemos primeiros resultados alcançados através dessa filosofia. Observa-se também adescrição da estrutura do sistema de empréstimos, a formação de grupos em detrimentodo indivíduo, do pagamento diário, que acabou por se transformar em semanal, e daidéia de que não cabe às pessoas ir ao banco, mas ao banco ir às pessoas, sistema esseque é, fundamentalmente, diferente do sistema das instituições financeiras tradicionais.

Após avaliar a situação da comunidade, o professor Yunus deu início à sua açãoexperimental, concedendo os primeiros empréstimos.

Neste capítulo, destaca-se o fortalecimento comunitário através da formação degrupos, onde as pessoas se apóiam mutuamente e desenvolvem o sentimento de identidadee valor enquanto seres humanos, deixando gradativamente de serem sujeitos “sujeitados”.

É evidente a importância do sistema de apoio que o grupo representa para cadaindivíduo, pois, não estando sozinho, este se torna mais forte para modificar ascondições do contexto em que vive.

Terceira parte – A criação

A ampliação do Grameen como instituição está relatada na terceira parte, quandose inicia, com a supervisão e “apoio” do Banco Central de Bangladesh, um processoexperimental de ampliação da atuação da instituição em uma região diferente, visandoavaliar a possibilidade de crescimento para outras regiões. Ao mesmo tempo, relata asdificuldades encontradas pelas hostilidades religiosas, principalmente pelo fato deque o Grameen, preferencialmente, empresta dinheiro para mulheres, independente-mente da religião que professem, e as dificuldades encontradas originadas pelas ca-

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tástrofes naturais que assolam aquele país e que redirecionam as ações do banconestas situações. Segundo o autor, são as mulheres que mais sentem a miséria, poistêm a responsabilidade de criação dos filhos e, por outro lado, quando recebem algumincentivo, preocupam-se em melhorar as condições de vida da família. Ao final, encon-tra-se a descrição do processo de independência do banco, passando de um projetosupervisionado pelo Banco Central, para um banco independente.

Mesmo diante de dificuldades, as redes sociais ampliaram-se e mais do quenunca exerceram sua função, o que resultou no processo de fortalecimento eindependência do Banco Grameen.

Quarta parte – A transposição do princípio Grameen – ganhando o mundo

As experiências realizadas pelo Grameen acabam por adquirir repercussãointernacional, e novos projetos, baseados em algumas das idéias já observadas,começam a ser implementadas em outros países. Algumas dessas experiências sãodescritas na quarta parte, bem como a idéia da internacionalização do microcréditocomo ferramenta de combate à pobreza. Nesta parte, o autor enfatiza que, em suaopinião, a pobreza é bastante similar em qualquer parte do mundo, não importando seestamos em Bangladesh ou Chicago, e que as pessoas precisam, muitas vezes, deapenas um financiamento para romperem o ciclo de pobreza.

Aqui o autor demonstra as peculiaridades vividas pelos pobres, não importandoo local onde se encontrem. A situação perversa de mal conseguirem sobreviver écomum a todos.

Novamente é ressaltada a importância dos grupos e da intervenção em redes. Apartir dos empréstimos proporcionados, verifica-se o empoderamento de indivíduos, aconscientização de seu valor e capacidade, bem como a formação de lideranças.

Quinta parte - Filosofia

Apresenta a filosofia que move as ações da instituição, baseada na concepçãodo livre mercado, orientado para a consciência social. É fundamental para a compreensãodo pensamento do autor, pois o mesmo aborda temas relativos à questão do capitalismoe marxismo, suas idéias quanto ao intervencionismo estatal, assim como a suaconcepção de desenvolvimento econômico, a questão demográfica e principalmente aquestão do emprego visto pelos economistas, quando o mesmo enfatiza: “oseconomistas só reconhecem um único tipo de emprego: o emprego assalariado”.Concomitantemente, o autor volta-se à análise do trabalho autônomo como forma deaproveitamento das qualidades inatas do indivíduo, visando a sua ascensão social.

Com sua filosofia e suas crenças, o Banco Grameen acabou gerando mudançasprofundas na vida de cada indivíduo e na comunidade. A principal idéia defendida éque os seres humanos possuem habilidades que devem ser exploradas, e que o dinheiroemprestado atua como uma ferramenta para o desenvolvimento deste potencial.

Neste capítulo, evidenciam-se os reflexos a longo prazo das ações comunitáriasimplementadas.

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Sexta parte – Novos horizontes (1990-1997)

Na sexta e última parte, podem-se observar os novos empreendimentos realizadosem outras áreas, como a piscicultura e o GrameenPhone que leva o telefone e a Internetpara áreas remotas do país. Também a concessão de empréstimos para a habitação,momento em que, para vencer entraves burocráticos, foi necessário utilizar a expressão“oficinas de produção”, o que resultou em empréstimos para 350 mil habitações. Aomesmo tempo, o autor aborda a questão da saúde e aposentadoria, e também o seuideal de um mundo onde não haveria mais pobreza.

A narração não segue a ordem cronológica dos acontecimentos. Contudo, otexto é simples e objetivo, sendo uma obra escrita para o público em geral. No quetange à importância desse trabalho, o simples fato de que uma experiência que foiiniciada em 1976, emprestando-se 27 dólares para 42 pessoas, transformar-se, em 1998,no empréstimo de 2,3 bilhões de dólares a 2,3 milhões de famílias, é fato suficiente parao aprofundamento do interesse ou estudo sobre o mesmo. Lembrando que o objetivoque norteia essa instituição é atingir as camadas mais desfavorecidas das populações,as classes muitas vezes esquecidas pela sociedade, a obra transmite uma novaperspectiva em relação ao indivíduo que se encontra nessas classes e quanto aosinstrumentos de combate à pobreza, observando-se um contexto capitalista comomodo de produção.

Assim como num processo de intervenção, após a implementação das ações,novas necessidades surgiram, impulsionando a ampliação da abrangência do Grameen.

Nesta última parte, Yunus descreve ações do banco, apresenta resultados eacima de tudo reafirma sua fé no ser humano.

Sem dúvida, Muhammad Yunus, enquanto economista, realizou uma importanteintervenção psicossocial, pois, ao entrar em contato com as comunidades, modificouconceitos, alterou crenças, quebrou paradigmas e, principalmente, resgatou o valorhumano, a dignidade e a cidadania dos que tiveram contato com o Banco Grameen esua equipe.

Recebido em julho de 2007 Aceito em outubro de 2007

Adriana Weber: acadêmica de Psicologia da ULBRA/Canoas.

Endereço para correspondência: [email protected]

* Trabalho realizado na disciplina de Psicologia Comunitária do Curso de Psicologia – ULBRA Canoas comorientação da profa. Sheila Gonçalves Câmara.

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4. Os pareceres comportam três possibilidades: a) aceitação integral; b) aceitaçãocom reformulações; c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor serádevidamente comunicado. Os originais, em nenhuma das possibilidades, serãodevolvidos.

5. Os autores do artigo receberão cópia dos pareceres dos consultores. Serãoinformados sobre as modificações a serem realizadas.

6. No encaminhamento da versão modificada do seu manuscrito (no prazomáximo de 15 dias após o recebimento da notificação), os autores deverão incluiruma carta ao Editor, esclarecendo as alterações feitas e aquelas que não julgarampertinentes e a justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadascom a ferramenta Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificaçõesrealizadas pode ser realizado via e-mail.

7. Os Editores reservam-se o direito de fazer pequenas alterações no texto dosartigos.

8. A decisão sobre a publicação de um manuscrito sempre será do EditorResponsável e Conselho Editorial, que fará uma avaliação do texto original, dassugestões indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor.

9. Os artigos serão aceitos em outra língua além do português (espanhol e inglês).10. Independentemente do número de autores, serão oferecidos dois exemplares

da revista, com o manuscrito publicado, por trabalho.

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11. As opiniões emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s)autor(es), não constituindo sua aceitação motivo para se entender que a revista Aletheiaou o Curso de Psicologia da ULBRA, compartilham das opiniões ou juízos emitidospelos autores.

12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente,desde que obtida a permissão do Editor Responsável. Os direitos autorais obtidospela publicação do artigo não serão repassados para o autor do artigo.

Apresentação dos manuscritos

Os artigos originais deverão ser encaminhados em disquete e em duas viasimpressas, digitadas em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12 epaginado desde a folha de rosto personalizada. O artigo deverá ter no máximo 20laudas. A folha deverá ser A4, com formatação de margens superior e inferior (nomínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista adota as normas doManual de Publicação da American Psychological Association - APA (5ª edição,2001).

Todo manuscrito encaminhado à Revista deverá ser acompanhado de documentoassinado por todos os autores, onde esteja explícita a intenção de submissão dotrabalho à publicação: Neste deve conter:

a) Autorização para reformulação da linguagem, se necessário;

b) Transferência de direitos autorais para a revista Aletheia;

a) Folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dosautores; resumo em português de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; títulodo artigo em língua inglesa; Abstract compatível com o texto do Resumo; key words;c) colocar o nome completo do(s) autor(es); titulação essencial; afiliação institucional;endereço, incluindo CEP, telefone e e-mail.

b) Folha de rosto não identificada: a segunda folha de rosto não conterá dadosde identificação dos autores dos artigos ao ser encaminhada aos consultores ad hocou a dois membros do Conselho Editorial.

c) Encaminhamento: Toda correspondência deve ser encaminhada à revistaAletheia, aos cuidados do Editor Responsável; encaminhar o manuscrito em uma viaimpressa e disquete ou CD, observando ortografia oficial.

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d) O artigo, em seus passos, deve apresentar a seguinte seqüência: Titulo,Autores, Introdução, Método (população/amostra; instrumentos; procedimentosde coleta e análise de dados, incluir nessa seção afirmação de aprovação doestudo em Comitê de Ética de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacionalde Saúde – Ministério da Saúde), Resultados, Discussão, Conclusão ouConsiderações finais, Referências. Usar as denominações tabelas e figuras (nãousar a expressão quadros e gráficos). Não colocar tabelas e figuras em arquivo oufolha separada.

* Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo as normasadotadas pela revista (APA) não serão avaliados.

Normas para citações

- As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadaspor algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento detexto ao qual se refere à nota.

- As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA.

- No caso da citação integral de um texto: deve ser sem itálico, delimitada poraspas, e a citação do autor seguida do ano e do número da página citada. Umacitação literal com 40 ou mais palavras deve ser apresentada em bloco próprio e semaspas, começando em nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesmaposição de um novo parágrafo. A fonte será a mesma utilizada no restante do texto(Times New Roman, 12).

- Anexos: apenas quando contiverem informação original importante, ou sendoindispensável para a compreensão de alguma parte do trabalho.

- Tabelas: incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word– ‘Simples 1’.

• Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano dapublicação entre parênteses. Exemplo: Rodrigues (2000).

• Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos notexto. Quando os sobrenomes forem citados entre parênteses, devem estar ligados por&. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000). Quando forem citados fora dos parênteses,devem ser ligados pela letra e.

• Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência,seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilizeo sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. (colaboradores). Exemplo: Silva,Foguel, Martins & Pires (2000), a partir da segunda referência, Silva ecolaboradores. (2000).

• Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor,

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seguido de e colaboradores (ANO). Nas Referências, todos os autores deverãoser citados.

• Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicaçãooriginal, seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant, 1871/1980).

• Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomese não a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;Souza, 2005).

• Publicações diferentes com a mesma data: Acrescentar letras minúsculas, apóso ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.

• Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: Utilizar a expressãocitado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),...

Nas Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins).• Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data,

página. Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45).

Normas para referências

As Referências deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposiçãodeve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em minúsculo.

LivroMendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.

Porto Alegre: Artes Médicas.

Capítulo de livroScharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em P. Papp (Org.),

Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:Artmed.

Artigo de periódico científicoDimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a

formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.

Artigos em meios Eletrônicos

Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” oucampo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:<http://www.scielo.br> Acessado: 11/02/2000.

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Artigo de revista científica no prelo

Albuquerque, P. (no prelo). Gênero e trabalho. Aletheia.

Trabalho apresentado em congresso

Silva, O. & Dias, M. (1999). Desemprego e suas repercussões na família. Em: Anais doXX Encontro de Psicologia Social, pp. 128-137, Gramado, RS.

Tese ou dissertação publicada

Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grandedo Sul. Porto Alegre, RS.

Tese ou dissertação não-publicada

Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.Dissertação de Mestrado não-publicada ou tese de Doutorado (não-publicada).Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento,Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.

Obra antiga e reeditada em data muito posterior

Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:Universal. (Original publicado em 1950)

Autoria institucional

American Psychological Association (1994). Publication manual (4ªed.).Washington:Autor

Endereço para envio de artigos

Universidade Luterana do BrasilCurso de PsicologiaRevista AletheiaAv. Farroupilha, 8001 – Bairro São JoséCEP: 92425-900Sala 121 – Prédio 01Canoas/RS – Brasil

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Instructions for the authors

Editorial policy

The Aletheia is a half-yearly journal edited by the Psychology Program of theLutheran University of Brazil, whose purpose is to publish researchers’ works, involvedin studies produced in Psychology or Sciences areas and similar. Just original works,that fit into the categories of research report, professional experience, updating,communications and reviews will be accepted.

Editorial rules

1. Just unpublished works will be accepted.

2. The article goes through the Editors appreciation.

3. The Editors will send to the appreciation of Editorial Body that can use adhoc consultants of recognized competence in the knowledge area, at his criterion,for analysis, recommending or rejecting the publication. The Editorial Body and adhoc Consultants analyze the manuscript, suggest changes and recommend or not itspublication. The final decision about the publication of a manuscript will always becompetence of the Editorial Body that will make an evaluation of original text, ofsuggestions designated by the consultants and the changes sent by the author.

4. The opinions hold three possibilities: a) full acceptance; b) acceptance withmodification; c) full refuse. Any one of the situations the author will be properlycommunicated. The originals will not be returned in any of the possibilities.

5. The article authors will receive a copy of opinions from the consultants. Theywill be informed about the modifications that must be done.

6. In the sending of changed version of his manuscript (in the maximum period of15 days after receiving the notification), the authors must include a letter for the Editor,elucidating the changes done and also those they did not judge relevant and thejustification. The changes done must be highlighted with the tool Word “yellow brush”.The sending with the changes done can be made by e-mail.

7. The Editors spare themselves the right of doing small changes in the articles’ text.

8. The decision about the publication of a manuscript will be responsibility ofthe Editor in charge that will make an evaluation of original text, of suggestions indicatedby the consultants and changes sent by the author.

9. The articles will be accepted in other language besides Portuguese (Spanishand English)

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10. Independently of the number of authors, one will offer two copies of magazine,with manuscript published by work.

11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and itsacceptance does not constitute reason to one understands that the Aletheia Magazineor the Psychology Program of ULBRA, share the opinions or senses emitted by theauthors.

12. The subject edited by the Aletheia can be printed total or partially, since onegets the permission of Editor in charge. The copy rights got by the publication ofarticle will not be extended to the author of article.

Presentation of manuscripts

The original articles must be sent in diskettes and also two printed copies, typedin double space, Times New Roman letter, size 12 and paginating since the title pagepersonalized. The article must be at most 20 pages. The sheet must be A4, with formatof higher and lower left margin (at least 2,5 cm) and right margin (at least 3 cm). Themagazine follows the rules of Manual of Publication of American PsychologicalAssociation - APA (5th edition, 2001).

Every manuscript sent to the Magazine must be accompanied of a documentsigned by all the authors, where it is explicit the intention of submission of work to thepublication: In the document must have:

a) Authorization for modification of language, when necessary;b) Transfer of copy rights for the Aletheia Magazine;

a) Identified title page: article title in Portuguese language; authors’ name;abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title inEnglish; abstract compatible with the text of synopsis; key words; c) put full nameof author(s); essential title; institutional affiliation; address, including Zip Code,telephone and e-mail.

b) Non identified title page: the second title page will not have identification dataof article authors when it is sent to the ad hoc consultants or for two members ofEditorial Body.

c) Sending: Every mail must be sent to the Aletheia Magazine, under the care ofEditor in charge; send the manuscript with a printed copy and diskette or CD, observingthe official spelling.

d) The article, must present the following sequence: Title, Authors, Introduction,Method (population/sample); instruments; procedures of collection and dataanalysis, include in this section statement of approval of study in Ethics Committee

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in agreement with Resolution 196/96 of National Council of Health – Ministry ofHealth), Results, Discussion, Conclusion or Final Considerations, References. Usethe denominations tables and figures (do not use the expression frame and graphics).Don’t put tables and figures in separated file or sheet.

* Works with incomplete documentation or that does not meet the rules followedby the magazine (APA) will not be evaluated.

Rules for citations

- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arrangedby Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which thenote refers to.

- The authors’ citations must be done in agreement with rules of APA.

- In the case of full citation of a text: it must be without italic, delimited byquotation mark and the author’s citation followed by the year and number of pagementioned. A literal citation with 40 or more words must be presented in proper blockwithout quotation mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in thesame position of a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining oftext (Times New Roman, 12).

- Annexes: just when having important original information or that is indispensablefor the understanding of some part of the work.

- Tables: including title and notes in agreement with the rules of APA. FormatWord – ‘Simple 1’.

• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year ofpublication between parenthesis. Example: Rodrigues (2000).

• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in thetext. Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited betweenparentheses: they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesisthey must be connected by the letter e.

• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference,followed by the date of article between parentheses. Starting from the second reference,use the last name of the first author, followed by and colls. (collaborators). Example:Silva, Foguel, Martins & Pires (2000), starting from the second reference, Silva andcollaborators. (2000).

• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followedby and colls. (YEAR). In the references all the authors must be cited.

• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,followed by the date of edition consulted. Example: (Kant, 1871/1980).

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• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last namesand not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;Souza, 2005).

• Different publications with the same date: Increase capital letter, after the yearof publication. Example: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.

• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expressioncited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...

In the References, include just the source consulted (Martins).

• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).

Rules for references

The References must be presented at the end of article. Its disposition must be inalphabetical order of the last name of author in small letter.

Book

Mendes, A. P. (1998). Family with adult childs. Porto Alegre: Artes Médicas.

Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Teenager and familiar relationship. PortoAlegre: Artes Médicas.

Chapter of book

Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). PortoAlegre: Artmed.

Article of scientific newspaper

Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health: Challengesfor the formation and professional performance. Studies of Psychology, 3(1),95-121.

Articles in electronic meansPaim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health” or open

field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.

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Article scientific magazine in the press

Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.

Work presented in congress

Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family. In:Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.

Thesis or published dissertation

Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies inPsychology of Development, Federal University of Rio Grande do Sul. PortoAlegre, RS

Thesis or non-published dissertation

Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Programof Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of RioGrande do Sul. Porto Alegre, RS

Old work reedited in posterior date

Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:Universal. (Original published in 950)

Institutional Authorship

American Psychological Association (1994). Publication manual (4thedition).Washington: Author

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Universidade Luterana do BrasilCurso de PsicologiaRevista AletheiaAv. Farroupilha, 8001 – Bairro São JoséCEP: 92425-900Sala 121 - Prédio 01Canoas – RS – Brasil

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