Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção...

4
189 Quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Italo Calvino 1. A noção de autor exerce um papel importante na produção cultural em todo o período da modernidade, uma heran- ça que começou a ser forjada desde a invenção da escrita, passando pelo de- senvolvimento das técnicas de impres- são tipográfica e pelo estabelecimento de um mercado editorial. O projeto da modernidade cobre pelo menos 200 anos da cultura ocidental, aparecendo no século XVIII e firmando-se no século XIX, momento em que a divisão social do trabalho e a especialização da ciência e da arte levam à segmenta- ção de atividades que antes podiam ser exercidas por uma mesma pessoa. “Essa diversidade num só homem, essa uni-versidade, torna-se cada vez mais árdua“, na medida em que o projeto dos iluministas “firma os campos distintos em que o pensamento e a ação po- deriam exercitar-se: a fé de um lado, a verdade (da ciência) de outro” (Coelho 1 , p. 20). É nesse período que “a noção de autor constitui o momento forte da individuali- zação na história das idéias, dos co- nhecimentos, das literaturas, na histó- ria da filosofia também, e na das ciên- cias”(Foucault 2 , p. 33). O autor, assim, representa a realização do projeto da modernidade por meio da unicidade do sujeito e da sua obra, da sua unidade estilística, da sua coerência conceitual e até mesmo por sua originalidade. Es- ses aspectos servem para comprovar a autenticidade do discurso, e foram tão solidamente estabelecidos na cultura que ainda hoje são aplicados em gran- de medida tanto pela crítica literária, como, sobretudo, pelas instâncias de Autoria e cultura na pós-modernidade Resumo Trata da noção de autor, abordando a formação e as funções que a autoria desempenha na modernidade e na pós-modernidade. Palavras-chave Autoria; Direito autoral; Cultura pós-moderna. Irati Antonio avaliação científica. É possível identifi- car nesses aspectos os ideais da mo- dernidade, como universalidade, harmo- nia, a idéia da existência de idéias úni- cas, a verdade e a razão. A construção desse autor está ligada ao interesse principalmente religioso (da igreja cristã) de conferir um deter- minado valor e uma ordem particular a um discurso, com o propósito de insti- tucionalizá-lo, transformando-o em um discurso competente, na forma usada por Marilena Chauí 3 , quer dizer, aquele que é permitido ou autorizado segundo determinados cânones. Dessa forma, o nome do autor outorga um certo estatu- to ao discurso, à obra, conferindo-lhe autenticidade (o discurso é real, verda- deiro), distinção (o discurso tem valor, é especial, importante) e permanência (o discurso conservar-se, fixa-se para a eternidade), assegurando “uma função classificativa; um tal nome permite rea- grupar um certo número de textos, deli- mitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos”(Foucault 2 , p. 44-5). Outro aspecto importante da autoria está ligado à questão econômica e so- cial, principalmente a partir do século XIX, quando “o autor se converte em um produtor para o mercado” (Beiguelman 4 ). E é a esse aspecto que se relaciona o direito de autor, ou seja, protegendo os seus interesses econômicos. Para tan- to, através do Estado, estabeleceu-se um contrato jurídico que pudesse regu- lar tais interesses e os conflitos advin- dos deles. Direito autoral diz respeito, portanto, à propriedade intelectual ou artística so- bre obras ou produtos. Basicamente, é o direito legal do autor ou criador de uma obra a controlar a reprodução e a distri- buição dessa obra. Esse direito pode ser exclusivamente do autor, que pode também vendê-lo ou licenciá-lo a edito- res ou outros. É desse aspecto que tra- ARTIGOS Ci. Inf., Brasília, v. 27, n. 2, p. 189-192, maio/ago. 1998

Transcript of Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção...

Page 1: Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção cultural em todo o período da modernidade, ... [...] eram recebidos, pos- ... de e na identidade formalizada

189

Quem é cada um de nós senão umacombinatória de experiências,

de informações, de leituras, deimaginações?

Italo Calvino

1. A noção de autor exerce um papelimportante na produção cultural em todoo período da modernidade, uma heran-ça que começou a ser forjada desde ainvenção da escrita, passando pelo de-senvolvimento das técnicas de impres-são tipográfica e pelo estabelecimentode um mercado editorial. O projeto damodernidade cobre pelo menos 200anos da cultura ocidental, aparecendono século XVIII e firmando-se no séculoXIX, momento em que a divisão socialdo trabalho e a especialização daciência e da arte levam à segmenta-ção de atividades que antes podiam serexercidas por uma mesma pessoa.“Essa diversidade num só homem, essauni-versidade, torna-se cada vez maisárdua“, na medida em que o projeto dosiluministas “firma os campos distintosem que o pensamento e a ação po-deriam exercitar-se: a fé de um lado, averdade (da ciência) de outro” (Coelho1,p. 20).

É nesse período que “a noção de autorconstitui o momento forte da individuali-zação na história das idéias, dos co-nhecimentos, das literaturas, na histó-ria da filosofia também, e na das ciên-cias” (Foucault2, p. 33). O autor, assim,representa a realização do projeto damodernidade por meio da unicidade dosujeito e da sua obra, da sua unidadeestilística, da sua coerência conceituale até mesmo por sua originalidade. Es-ses aspectos servem para comprovar aautenticidade do discurso, e foram tãosolidamente estabelecidos na culturaque ainda hoje são aplicados em gran-de medida tanto pela crítica literária,como, sobretudo, pelas instâncias de

Autoria e cultura napós-modernidade

Resumo

Trata da noção de autor, abordando aformação e as funções que a autoriadesempenha na modernidade e napós-modernidade.

Palavras-chave

Autoria; Direito autoral; Culturapós-moderna.

Irati Antonio avaliação científica. É possível identifi-car nesses aspectos os ideais da mo-dernidade, como universalidade, harmo-nia, a idéia da existência de idéias úni-cas, a verdade e a razão.

A construção desse autor está ligadaao interesse principalmente religioso(da igreja cristã) de conferir um deter-minado valor e uma ordem particular aum discurso, com o propósito de insti-tucionalizá-lo, transformando-o em umdiscurso competente, na forma usadapor Marilena Chauí3, quer dizer, aqueleque é permitido ou autorizado segundodeterminados cânones. Dessa forma, onome do autor outorga um certo estatu-to ao discurso, à obra, conferindo-lheautenticidade (o discurso é real, verda-deiro), distinção (o discurso tem valor,é especial, importante) e permanência(o discurso conservar-se, fixa-se para aeternidade), assegurando “uma funçãoclassificativa; um tal nome permite rea-grupar um certo número de textos, deli-mitá-los, selecioná-los, opô-los a outrostextos” (Foucault2, p. 44-5).

Outro aspecto importante da autoriaestá ligado à questão econômica e so-cial, principalmente a partir do séculoXIX, quando “o autor se converte em umprodutor para o mercado” (Beiguelman4).E é a esse aspecto que se relaciona odireito de autor, ou seja, protegendo osseus interesses econômicos. Para tan-to, através do Estado, estabeleceu-seum contrato jurídico que pudesse regu-lar tais interesses e os conflitos advin-dos deles.

Direito autoral diz respeito, portanto, àpropriedade intelectual ou artística so-bre obras ou produtos. Basicamente, éo direito legal do autor ou criador de umaobra a controlar a reprodução e a distri-buição dessa obra. Esse direito podeser exclusivamente do autor, que podetambém vendê-lo ou licenciá-lo a edito-res ou outros. É desse aspecto que tra-

ARTIGOS

Ci. Inf., Brasília, v. 27, n. 2, p. 189-192, maio/ago. 1998

Page 2: Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção cultural em todo o período da modernidade, ... [...] eram recebidos, pos- ... de e na identidade formalizada

190

ta a legislação da área, no Brasil, a Lei9 610 de 19 de fevereiro de 1998. Re-produzir uma obra de qualquer nature-za (inclusive em formato eletrônico)sem a permissão do dententor do di-reitor autoral é um ato ilegal, passívelde sanções.

A autoria também está relacionada àquestão ética, que vai da criação em side uma obra ao direito inalienável “doreconhecimento dos direitos morais doautor (ter seu nome associado à suaobra)”, ou seja, o direito a receber cré-dito por sua produção, que se aplica aqualquer forma de expressão, inclusiveà Internet. “Esses são conceitos con-sagrados em nosso ordenamento jurí-dico, seja pela Constituição Federal,seja pela lei ordinária, convenções, tra-tados internacionais e até mesmo pelaDeclaração dos Direitos do Homem”(Bannitz5).

Além da instauração da idéia de pro-priedade, para Michel Foucault2, “os tex-tos, os livros, os discursos começaramefetivamente a ter autores (outros quenão personagens míticas ou figuras sa-cralizadas e sacralizantes) na medidaem que o autor se tornou passível deser punido, isto é, na medida em queos discursos se tornaram transgresso-res”. Antes disso, “o discurso não eraum produto, uma coisa, um bem; eraessencialmente um ato”. Por isso, aautoria não é universal, nem está pre-sente ou é necessária em todos os dis-cursos. “Houve um tempo em que tex-tos literários [...] eram recebidos, pos-tos em circulação e valorizados semque se pusesse a questão da autoria;o seu anonimato não levantava dificul-dades” (p. 47-8).

Menos para os textos científicos, queeram aceitos “na Idade Média comoportadores do valor de verdade apenasna condição de serem assinalados como nome do autor” (Foucault2, p. 48-9).Essa situação modificou-se nos sécu-los XVII e XVIII, quando os discursoscientíficos passaram a ser reconheci-dos se resultassem de verdades já es-tabelecidas e sistematicamente de-monstradas, ou ainda, quando se inse-riam em sistemas teóricos e metodoló-gicos organizados. Hoje, o papel doautor é preponderante nas obras literá-rias, enquanto na ciência, o texto, mui-tas vezes, já é produto do trabalho de

pesquisa de uma equipe, no qual a au-toria e as citações têm a função de per-mitir que seja traçada a genealogia dopróprio texto e de seus autores, ou seja,permitem a verificação e a validação dosmétodos empregados e dos resultadosalcançados.

2. Os conceitos de autoria e dos instru-mentos que regem os seus direitos fun-damentam-se na idéia da individualida-de e na identidade formalizada do autore na sua (suposta) objetividade, assimcomo na concepção de que a obra ou aprodução intelectual e artística é única,original, íntegra e permanente; na se-paração entre autor e obra (sujeito ver-sus objeto); na institucionalização dasrelações com o Estado e com o merca-do; na aceitação e na obediência aoscontratos éticos, sociais e jurídicos per-tinentes.

Essa herança do modo de pensar damodernidade encontra hoje muitas difi-culdades e incongruências para a suamanifestação, uma vez que a própriaatividade autoral passa por transforma-ções que questionam o próprio concei-to de autoria. É possível observar es-sas mudanças especialmente no cine-ma, no hipertexto e nas redes de comu-nicação eletrônicas, nos quais as obrassão o resultado do trabalho de gruposde criadores, escritores, produtores,artistas, músicos, fotógrafos, todos au-tores de um filme, de textos eletrôni-cos, de conexões entre discursos. Emais: nessas formas de expressão,nem a produção, nem a leitura dessasobras ocorrem de maneira linear, umaspecto que se evidencia mais clara-mente na produção cultural contempo-rânea.

Enquanto na modernidade, o racionalis-mo impõe formas de pensar duras, natentativa da “redução do todo ao unomediante a eliminação das singularida-des” (Coelho6, p. 311), na sociedadecontemporânea há uma aceitação daheterogeneidade e da relatividade cul-tural, com seus pluralismos, ambigüi-dades, localismo, simultaneidade, infor-malidade, subjetividade, suas verdadesmúltiplas. O racionalismo de Kant e oabsoluto de Hegel cedem, assim, lugara formas de pensar mais livres e à flexi-bilização dos enunciados, que afastamo ser humano da idéia de transcedên-cia e superioridade em relação à natu-

reza (iluminismo, racionalismo) e o apro-ximam da concepção do sujeito éticocapaz de fazer suas escolhas, de umamaneira em que a própria vida pode setornar uma forma de expressão e deconhecimento, ou como diz Michel Ma-ffesoli7, uma obra de arte (estetizaçãoda vida), em que prevalece o desejo, osentimento, a vontade de experimenta-ção – inconciliáveis na modernidade.

Pensando a função do autor diante des-sas questões, é admissível propor, en-tão, “retirar do sujeito o papel de funda-mento originário”, analisando-o comouma variável do discurso. Assim, o au-tor “é com certeza apenas uma das es-pecificações possíveis da função sujei-to. Possível ou necessária?” (Foucault2,p. 70). A desconstrução da identidadedo sujeito, que é estática e imutável namodernidade, sugere a constituição daidéia de identificação, como o processode distinguir os diferentes papéis queum mesmo sujeito pode desempenhar.

Na Internet, por exemplo, cada indivíduopode assumir várias identificações aomesmo tempo: todos podem ser auto-res, agentes, produtores, editores, lei-tores, consumidores, de um modo emque a subjetividade de cada papel pre-valece de acordo com o instante. Nes-se sentido, os papéis se misturam e seconfundem, distanciando-se de suascaracterizações tradicionais e colocan-do em discussão a reorganização des-ses temas. “A questão da autoria e dasubjetividade se apresenta de maneiradiferente em cada uma dessas esferas.Esse aspecto multifuncional é um dosdados da especificidade do ciberespa-ço” (Beiguelman4).

A obra intelectual e artística na Internetnão mais se apresenta exclusivamentecomo a produção íntegra e perene deautores que se pode reconhecer, mastambém como obra coletiva, múltipla e,freqüentemente, anônima, fragmentada,incompleta, mutante e, muitas vezes,fugaz. Aqui “prevalece uma perspectivacombinatória que, no limite, pode levara uma certa letargia esquizofrênica e àinstitucionalização da barbárie intelec-tual”, mas que também “pode estarapontando para uma renovação culturalem que a criação artística, intelectual ecientífica se insere em um outro jogode articulações”, o que “exigiria umareflexão sobre o resguardo do patrimô-

Autoria e cultura na pós-modernidade

Ci. Inf., Brasília, v. 27, n. 2, p. 189-192, maio/ago. 1998

Page 3: Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção cultural em todo o período da modernidade, ... [...] eram recebidos, pos- ... de e na identidade formalizada

191

nio intelectual numa formação culturalque pode prescindir da noção de auto-ria” (Beiguelman4).

Somam-se a isso outras característicasda produção intelectual gerada atravésde meios eletrônicos, como a informali-dade das relações ali estabelecidas eexperimentadas (diferentemente da ins-titucionalização estatal, por exemplo);a antinomia, especialmente, a contes-tação de valores; a desobediência a re-gras predeterminadas e a invenção denovos códigos de conduta e de comuni-cação (o indivíduo que é excluído pelomacrossistema ou pelos mais variadossistemas de produção sente-se deso-brigado a cumprir qualquer compromis-so ou contrato social predefinido). A ten-dência é não haver mais modos hege-mônicos de pensamento, mas tensões,conexões. O conjunto dessas manifes-tações indica que o fenômeno da pro-dução cultural frente aos meios eletrô-nicos de comunicação não está assen-tado apenas em novas tecnologias, masprincipalmente em um novo modo depensar e viver, em uma nova sensibili-dade.

O fenômeno do hipertexto é especial-mente relevante aqui. Compreendidocomo redes textuais sobre um tema, ouainda como redes de sistemas de tex-tos, o hipertexto é uma forma de expres-são particular, “a organização de seg-mentos de textos eletronicamente co-nectados em uma rede, de tal forma queo leitor possa ter liberdade de movimen-to” (Gaggi8, p. 103). Ou, em outras pa-lavras, possibilidades de escolha. Aodeterminar seu caminho, ao fazer suasescolhas, o leitor enfatiza o seu papelde sujeito, papel que pertencia sobretu-do ao autor.

A imagem simbólica da rede expressa,talvez de forma utópica, a multiplicida-de e a diversidade de produções, de lei-turas e de escolhas possíveis para o serhumano. Para Umberto Eco, a rede é“todo ponto que pode ser conectado comtodos os outros pontos e onde as cone-xões ainda não estão definidas [...].Uma rede é um território ilimitado”. Naexpressão de Foucault, “além da suaconfiguração interna e sua forma autô-noma”, o texto pode ser capturado emum sistema de referências com outrostextos dentro de uma rede, na qual exis-te um número infinito de espaços e

“mundos impossíveis”. Também na redeemalhada de Abraham Moles, há espa-ços de criação artística, imagética,científica e pessoal (Antonio9, p. 77-8).A imagem da rede é bastante esclare-cedora a respeito da natureza da Inter-net, um sistema interativo de comuni-cação humana, tornando possível que acriação, a publicação, a distribuição eo uso das produções culturais, científi-cas e artísticas ocorram de forma inte-grada, ao mesmo tempo, independen-temente do espaço, e aproximandoautores, produtores e consumidores.Os seus recursos favorecem a amplia-ção das possibilidades da própria pro-dução.

Em outras palavras, essas são possibi-lidades de conversa (no sentido her-menêutico, forma de conhecimento),meios de favorecer as capacidades docidadão para além da fruição, para alémdo consumo, em direção a uma práticacultural, envolvendo também o fazer, ocontato, o uso, o refletir, a experimenta-ção compartilhada. As mudanças são mui-tas e profundas: mudanças de meios, demétodos, de comportamento, de pen-samento. Mudanças que geram trans-formações importantes no modo de vidadas pessoas, alguns aspectos sofren-do total inversão de valores.

“Olhando para as modificações históri-cas ocorridas, não parece indispensá-vel, longe disso, que a função autor per-maneça constante na sua forma, na suacomplexidade e mesmo na sua existên-cia. Podemos imaginar uma cultura emque os discursos circulassem e fossemrecebidos sem que a função autor ja-mais aparecesse” (Foucault2, p. 70).

3. A produção científica também pode es-tar sujeita a essas mudanças, emboraseja um pouco mais complexo perce-bê-las. Tradicionalmente, a publicaçãode literatura científica obedece a regrasde conduta ética, a padrões de qualida-de, a métodos científicos de pesquisa ea procedimentos editoriais reconhecidosno meio, por exemplo, os padrões inter-nacionais para a publicação de revistase a avaliação dos pares (peer review).A aplicação de todos esses instrumen-tos objetiva qualificar e validar o discur-so científico, de forma que ele possa seraceito e reconhecido como confiável porsua comunidade.

Em geral, os princípios e padrões edi-toriais nesse campo têm sido mantidosnas versões eletrônicas das revistascientíficas. É esse o caso da SciELO –Scientific Electronic Library Online(http://www.scielo.br), em que cada re-vista que integra essa coleção virtualmantém sua política editorial e seu es-tilo individual, bem como os procedimen-tos de avaliação dos artigos e de outrasmatérias que publica. A repetição des-ses aspectos tradicionais no formatoeletrônico dessas publicações é impor-tante no momento em que a publicaçãoeletrônica se desenvolve, procurandoassegurar a sua confiabilidade ética ecientífica. Isso não significa, entretan-to, que permanecerão os mesmos ouque não sofrerão transformações, visan-do a incorporar uma multiplicidade demétodos, padrões, estilos de apresen-tação e expressão etc.

Assim como as noções de autor e leitorse aproximam, e suas funções se mo-dificam, a noção tradicional de documen-to também está em transformação.Com o meio eletrônico e o hipertexto, adistinção entre revista e artigo, por exem-plo, torna-se menos perceptível. As re-des textuais permitem conectar textosou partes de textos, de forma indepen-dente, sem necessariamente ter deencontrar primeiro a revista ou o livro queos contêm. As implicações que advêmdessa possibilidade são um desafio euma oportunidade para transformaçõesenriquecedoras no processo de comu-nicação científica.

Ao lado do fracionamento do papel doautor e do enfraquecimento da autoriaindividual, na pós-modernidade emergetambém a fragmentação das leituras edas vivências, em contraposição à li-nearidade dominante na modernidade.O hipertexto e também a literaturacontemporânea, por exemplo, constituem oque Italo Calvino10 chamou de romanceenciclopédia, em que a “rede de cone-xões entre os fatos, entre as pessoas,entre as coisas do mundo” expressa “apresença simultânea dos elementos maisheterogêneos que concorrem para a de-terminação de cada evento” (p. 121).

Na cultura contemporânea, assim, o queantes era um centro claramente defini-do, um núcleo a partir do qual resultavatoda a produção cultural consideradarelevante e no qual essa produção

Autoria e cultura na pós-modernidade

Ci. Inf., Brasília, v. 27, n. 2, p. 189-192, maio/ago. 1998

Page 4: Autoria e cultura na pós-modernidade - · PDF fileimportante na produção cultural em todo o período da modernidade, ... [...] eram recebidos, pos- ... de e na identidade formalizada

192

podia ser percebida como unívoca, co-meça a se dividir, a se tornar difuso. Ocentro parece dar lugar aos nós de umarede. Nos dias atuais, entretanto, o úni-co princípio “que pode ser defendido emtodas as circunstâncias e em todos osestágios do desenvolvimento humano é:tudo vale” (Feyerabend11, p. 34).

A idéia é interessante e desafiadora.Não impõe, não restringe, mas abrepossibilidades para a experiência doconhecimento. Nem todos os valoressão os mesmos para todos, ou as sen-sibilidades, idênticas. “Ninguém deixade ser autor, ou perde a proteção da lei,a cada nova forma de comunicaçãocriada ou mídia explorada” (Bannitz5).Por outro lado, formas de expressão dis-tintas requerem uma abordagem e so-luções igualmente diferenciadas. A di-versidade (de meios, formas de expres-são, culturas) pode ser um caminho parao caos e a desorganização, entretanto,“sem caos, não há conhecimento. Semfreqüente renúncia à razão, não há pro-gresso. [...] Não há uma só regra queseja válida em todas as circunstâncias,nem uma instância a que se possa ape-lar em todas as situações” (Feyerabend,p. 279).

Penso que a sensibilidade pós-moder-na é uma forma de ver, de viver e de co-nhecer o mundo que coloca em cons-tante confronto valores culturais e so-ciais diferentes, ao estabelecer relaçõesentre concepções distintas e até mes-mo contraditórias. Isso não quer dizerque a diversidade e a relativização dacultura e das formas de expressão pro-põem a rejeição absoluta dos valoresmodernos. Em vez disso, parece-me quea forma de relacionar a diferença estáem pensá-la junto com o seu duplo, seucontrário, seu avesso. Assim, a diferen-ça e o modo de relacionar valores dife-rentes podem desenvolver uma novasensibilidade humana (ou gosto, comodenominada na modernidade), entendi-da como a faculdade de experimentar,na forma proposta por Montesquieu(Coelho6, p. 340), da qual emergem osujeito ético e as escolhas. É assim queo cidadão pode definir as suas conexõese escolher o seu mundo impossível.

Por isso, no mundo contemporâneo,mais que em outro tempo, a cultura éimportante politicamente na medida emque possibilita um repertório de opçõespara o sujeito ético. A cultura contem-porânea (pós-moderna) parte de umadiversidade de valores e oferece ao indi-víduo, em conseqüência, várias esco-lhas. Sem escolha, não pode haver li-berdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. COELHO, Teixeira. Moderno, pós-moderno:modos & versões. 3. ed. rev. aum. SãoPaulo: Iluminuras, [1995]. 227 p.

2. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 2. ed.[Portugal]: Vega, Passagens, [199-]. 160p.

3. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1989.

4. BEIGUELMAN, Giselle. Autoria é fenômenohistórico. Itaú Cultural Revista [on-line], 18dez. 1997. Disponível em WWW: [http://www.ici.org.br/revista/index.html].

5. BANNITZ, Luiz Carlos. Não se perde a prote-ção legal a cada nova mídia que surge.Itaú Cultural Revista [on-line], 18 dez. 1997.Disponível em WWW: [http://www.ici.org.br/revista/index.html].

6. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de po-lítica cultural: cultura e imaginário. SãoPaulo: Iluminuras, 1997. 383 p.

7. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparên-cias. Petrópolis: Vozes, 1996. 350 p.

8. GAGGI, Silvio. From text to hypertext :decentering the subject in fiction, film, thev isual ar ts , and e lect ron ic media .Philadelphia: University of PennsylvaniaPress, 1997. 169 p.

9. ANTONIO, Irati. Informação e música no Bra-sil: memória, história e poder. São Paulo,1994. 285 p. Dissertação (Mestrado emCiências da Comunicação) – Escola deComunicações e Artes, Universidade deSão Paulo.

10. CALVINO, Italo. Seis propostas para o pró-ximo milênio: lições americanas. São Paulo:Companhia das Letras, 1997. 141 p.

11. FEYERABEND, Paul. Contra o método: es-boço de uma teoria anárquica da teoria doconhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Fran-cisco Alves, 1989. 487 p.

Irati Antonio

Consultora, SciELO – Scientific ElectronicLibrary On-line.

Authorship and postmodern culture

Abstract

The article discusses the conception ofauthorship, including its formation andfunctions both in the modern andpostmodern cultures.

Keywords

Authorship; Copyright; Postmodern culture.

Autoria e cultura na pós-modernidade

Ci. Inf., Brasília, v. 27, n. 2, p. 189-192, maio/ago. 1998

[email protected]