AUTORES-PERSONAGENS: OS ENREDOS TEÓRICOS DA MICRO ... · panorâmica de Edoardo Grendi, Giovanni...
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AUTORES-PERSONAGENS: OS ENREDOS TEÓRICOS DA MICRO-
HISTÓRIA ITALIANA
RAPHAEL CESAR LINO*
O presente artigo tem como objetivo fazer uma pequena análise acerca de alguns
pressupostos conceituais que figuram entre as discussões em torno da micro-história
italiana. Tendo em vista que esta prática historiográfica1 não pode ser circunscrita num
único modelo teórico, nossa perspectiva é partir de alguns pontos em comum que
estejam presentes nas suas diferentes vertentes. Neste caso, nos referimos a
microanálise, ou redução de escala de observação e os diálogos teórico-metodológicos
que se estabelecem a partir daí.
Nosso foco será a trajetória intelectual de três importantes autores/protagonistas
dessa história, Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg. Pontuar cada uma
dessas posturas ajuda a compreender melhor este capítulo da história da historiografia,
dado o contexto em que se insere e a celeuma em que estão envolvidas diretamente
(como a crise dos paradigmas, especialmente do estruturalismo e do marxismo). Além
disso, ter em conta as diferenças internas que existem ao redor do nome micro-história é
fundamental para compreender seus desdobramentos em outros contextos
historiográficos, dado o amplo alcance que vem tomando desde então.
O texto foi dividido em duas partes, uma que descreve o contexto historiográfico
italiano, e o surgimento da revista, Quaderni Storici, periódico que ganha destaque na
produção intelectual italiana nas décadas de 1960 e 70. Na segunda parte tentamos
expor uma visão panorâmica da trajetória intelectual dos historiadores citados, que
podem ser considerados, ao mesmo tempo, “autores e personagens” desta história. Em
* Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e
Letras de Assis - UNESP - Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100,
CEP: 19806-900, Assis, São Paulo - Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected].
1 Chamamos aqui de “prática historiográfica” por nos basearmos numa definição de micro-
história que a impossibilita de ser considerada como uma “tendência” ou uma “escola”,
justamente pelo grande número de experiências e diferenças internas existentes que são parte
integrante da discussão que procuramos apresentar aqui.CF: BARROS, José D’Assunção.
Sobre a feitura da micro-história. OPSIS, Vol. 7, n°9, jul-dez 2007 (pp.167-185).
última instância, faremos uma pequena conclusão a fim de pontuar alguns caminhos de
pesquisa que envolvem a micro-história.
A historiografia italiana e os Quaderni Storici
A historiografia italiana do pós-guerra era fortemente marcada por duas
vertentes principais, a primeira, o marxismo de Antonio Gramsci, que era apropriada
por muitos militantes da esquerda para repensar a sociedade italiana depois da queda do
fascismo, cuja proposta variava, da criação de uma sociedade socialista/comunista ou
social democrática, dependendo dos grupos e dos partidos aos quais se vinculavam. Por
outro lado, outra postura dita mais conservadora, se pautava no pensamento liberal do
intelectual Benedetto Croce2.
Ambas as propostas configuravam o que ficou conhecido como postura ético-
política, e nesse sentido, a história era utilizada para justificar cada uma das duas
posturas, com a discussão sempre ao redor de questões políticas, seja para justificar a
existência das instituições do Estado, seja para repensar outras formas de sociedade.
Nesse contexto, é fundada a revista Quaderni Storici della Marche, em 1966,
pelo historiador Alberto Caracciolo, com intensões de abertura à interdisciplinaridade, e
perfil pouco acadêmico. Desde seu primeiro número marca sua posição dentro da
historiografia italiana, ligando-a a outros contextos intelectuais, evidenciado pela
publicação do texto do historiador francês Fernand Braudel, História e ciências sociais:
a longa duração (original de 1958).
O artigo de Braudel é emblemático para a revista, pois lhe dá ao mesmo tempo
um caráter polêmico e a posiciona como vanguarda na Itália, com destaque para a
aproximação com outras tendências historiográficas e com as ciências sociais, atuando
como um “manifesto” (LIMA, 2006: 27). A perspectiva local de Ancona é conectada
com contextos globais, um projeto bastante ambicioso:
Usar a história regional de Ancona e das Marche como base de pesquisa e
experimentação metodológica, mantendo ao mesmo tempo contato com os
2 O pensamento de Croce se caracteriza por descrever a história de modo historicista e idealista, assim, o surgimento do Estado se relacionava com o desenvolvimento do Espírito da nação (aos moldes hegelianos), o Resorgimiento e unificação eram vistos como etapas do desenvolvimento do Estado Liberal da Itália.
últimos debates e avanços internacionais nas várias áreas especializadas na
história e nas ciências sociais (CARACCIOLO apud LIMA, 2006: 27-8).
É ao redor dos Quaderni Storici que se aglutinam os diferentes historiadores que
conduzem as discussões que dão origem à prática da micro-história. Na tentativa de
estudar suas origens, encontramos diferentes análises. Henrique Espada Lima, por
exemplo, em A micro-história italiana: Escalas, indícios e singularidades (2006),
procura recompor uma “arqueologia” da micro-história, não apenas recompondo
cronologicamente as discussões teóricas que circundam o tema, mas recuperando a
complexa rede de relações e trajetórias individuais (distintas e singulares) que de
alguma forma confluíram para o projeto da micro-história, e que tiveram os Quaderni
Storici como palco aglutinador.
Acompanhando esta perspectiva os estudos de história realizados por estes
historiadores tomaram contato com novos personagens, organizações sociais, e, por
conseguinte, exigiam novos aparatos teóricos conceituais que as análises tradicionais
não podiam responder com seus instrumentos. Os Quaderni Storici caminhavam para
“uma visão mais atenta a heterogeneidade” (LIMA, 2006 p.51).
Este movimento também se alinhou com uma nova composição da estrutura
organizativa da revista, houve alterações em sua equipe redacional, especialmente de
sua direção, que a partir da década de 1970 passa a ser composta por um novo grupo de
jovens historiadores, liderados por Pasquale Villani (bastante ligado aos Annales), entre
eles, Carlo Ginzburg, Giovanni Levi, Edoardo Grendi e Carlo Poni.
Para Lima, a micro-história começa a tomar seus primeiros rumos a partir desta
mudança na organização interna da revista, com a incorporação dos historiadores
citados acima. Embora cada um tenha uma trajetória intelectual distinta, algumas
questões importantes passam a ser o centro de discussão que direcionam os debates para
um sentido em comum. Os principais pontos de aproximação são: a crítica ao marxismo
(e aos modelos funcionalistas em geral), a aproximação com a antropologia e a
perspectiva local (que posteriormente fica conhecida como microanálise), em
substituição aos modelos generalizantes.
Outro historiador, o mexicano Carlos Rojas, em sua obra A micro-história
italiana: modos de uso (2012) insiste numa perspectiva distinta. Partindo de uma
concepção determinista, procura nas “particularidades italianas” e no contexto histórico
das décadas de 1960-70 as condições de surgimento da micro-história. Segundo Rojas,
ha uma densidade histórica na Itália, uma “lenta acumulação de processos e de diversas
experiências históricas que durante mais de dois milênios, essa densidade enriqueceu
com o papel central que a Itália desempenhou, ao longo de sua história particular”
(ROJAS, 2012: 36). Rojas insiste no fato de que a Itália tem uma particularidade
histórica excepcional dentro da história mundial:
A micro-história italiana apoiou-se, pois, na excepcional densidade histórica
de sua própria nação e na imensa variedade e multiplicidade de arquivos,
fontes, testemunhos, documentos, rastros e indícios históricos disponíveis e
consolidou-se não apenas devido ao trabalho também excepcional no plano
da teoria e da metodologia da história, mas igualmente por suas originais
contribuições historiográficas concretas (ROJAS, 2012: 38).
A interpretação de Rojas nos parece, em certa medida, enviesada. Primeiramente
por seu aspecto determinista, que faz parecer que o surgimento da micro-história foi um
resultado obvio dentro a historiografia italiana devido a suas particularidades políticas,
históricas, sociais e intelectuais. Além disso, esta noção de “densidade histórica”
também é algo problemático, pois dá destaque a uma perspectiva histórica que relembra
a dos grandes acontecimentos, dos grandes homens, que fica evidente pela afirmação da
“centralidade” da Itália em acontecimentos da história mundial.
Lima e Rojas divergem com relação às divisões das “fases de desenvolvimento”
da micro-história. Enquanto Lima a descreve como resultado de uma série de discussões
que vinculam o contexto histórico, o periódico Quaderni Storici e as discussões entre os
historiadores que se vinculam a ele, Rojas estabelece como marco fundador da micro-
história a publicação de Os andarilhos do bem, em 1966, de Carlo Ginzburg, e vê na
trajetória deste historiador os principais caminhos do debate, colocando em segundo
plano outros importantes expoentes desta história.
O caminho apontado por Lima nos parece oferecer uma leitura mais crítica do
surgimento da micro-história, pois se recusa a percebê-la como um dado pronto nos
quais os percursos podem ser recuperados cronológica e linearmente, e também nega
que os resultados sejam comparados com relações de causa e efeito. Sem invalidar as
influências do contexto histórico, este historiador propõe analisar os discursos dispersos
nas trajetórias dos autores, considerando-os como personagens dessa história. Segundo
suas próprias palavras: “é preciso voltar a atenção para as singularidades das trajetórias
individuais de pesquisa que construíram de fato sua riqueza” (Lima, 2006: 147).
Este é a nosso ver uma forma de ser fiel às intensões destes historiadores,
insistiam na necessidade de problematizar a história a partir de uma postura que dá
ênfase as redes de relações sociais e as biografias dos envolvidos e em acontecimentos
circunscritos. Portanto, neste momento nossa atenção será deslocada para uma visão
panorâmica de Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Calo Ginzburg, na medida em que
seus interesses se cruzam no desenvolvimento da microanálise, das discussões em torno
da história social, e sobre o uso da narrativa como forma de comunicação do texto
historiográfico:
São três trajetórias de trabalho que se cruzam em vários pontos,
permanecendo ainda assim rigorosamente distintas e irredutíveis entre si, na
medida em que partem, cada uma de um conjunto de referências e influências
que raramente são coincidentes. [...] A ideia aqui é quebrar a linearidade na
leitura da micro-história e entende-la como um processo que produz e é
produzido por escolhas e embates que não são necessariamente coerentes ou
unidirecionais (LIMA, 2006: 148).
Grendi, Levi, Ginzburg: autores e personagens
Edoardo Grendi3 é um autor pouco conhecido entre nós brasileiros, seus
principais trabalhos permanecem sem tradução, mas algumas de suas contribuições
teóricas podem ser encontradas, no espanhol, e mais recentemente, seus textos
fundadores sobre a microanálise, foram publicados pelas historiadoras Mônica Ribeiro
de Oliveira e Carma Maria Carvalho de Almeida em Exercícios de micro-história
(2012).
O percurso de Grendi na historiografia começa por sua aproximação com a
história social, após um período de estudos em Londres toma contato com autores como
Eric Hobsbawm e Edward Thompson e encontra neste ambiente uma consonância com
3 Nascido em Gênova em 1932, estudou inicialmente Literatura, formando-se em 1956, e tomou contato com a história em 1958 quando, por sugestão de seu professor, Franco Venturini, vai para Inglaterra com uma bolsa de estudos na London School of Economics (LSE). Em 1970 passa a cooperar na Direção dos Quaderni Storici, e a partir de 1976 torna-se professor de História Moderna na Universidade de Gênova, atuando junto a esta universidade até sua morte em 1999.
seus questionamentos e críticas do marxismo tradicional e reúne uma série de elementos
para fundamentar outros mecanismos de análise.
Para Grendi, a visão marxista teria algumas lacunas em seus conceitos
operatórios, como por exemplo, a definição de “classe social”. O contato com o
trabalhismo inglês durante seu período de estudos a Inglaterra permitiu uma reflexão
profunda acerca do marxismo era preciso reconhecer “a estratificação social das classes
trabalhadoras para reconhecer a lógica de suas organizações e o sentido de suas
reivindicações” (LIMA, 2006: 158).
Em troca da visão das classes sociais como um dado pronto e homogêneo,
resultado de um processo histórico, Grendi propunha uma visão que presava pela sua
complexidade, as relações que estabeleciam entre si, as variações que ocorriam de uma
região para outra, enfim, propunha busca de uma estratificação social guiado por
questões e procedimentos quantitativos e qualitativos. Os dados demográficos, por
exemplo, poderiam ser interpretados por outras questões, não somente estatísticos. Estas
questões são reforçadas por seu encontro com a história social.
O contato com a história social também é marcado pelo encontro com a
antropologia, fortemente influenciada pela tradição inaugurada por Bronislaw
Malinowski. Posteriormente, e de forma mais marcante, Grendi se aproxima de Karl
Polanyi, um importante antropólogo húngaro, ligado a estudos econômicos. A grande
contribuição deste autor é ir além da análise economicista do marxismo, incorporando
os aspectos sociais às suas interpretações.
Ter em conta os aspectos sociais na análise do advento do capitalismo
significava relativizar a visão economicista deste processo histórico, para Polanyi é
sempre o aspecto social que entra em jogo, e as transformações e conflitos que dela
advém são, principalmente culturais. A atenção de Grendi a este aspecto da teoria de
Polanyi soma-se a comparação que este estabelecia com as experiências dos
antropólogos ingleses nas tribos africanas. A comparação se baseava em aspectos que
seriam semelhantes a características das sociedades industriais, especialmente das
classes pobres, na Inglaterra do século XIX.
Esta discussão é trazida à Itália por Grendi numa resenha de A Grande
transformação, publicada em 1974, dando atenção às contribuições que este autor
poderia ter naquele contexto historiográfico italiano, especialmente pela aproximação
com a antropologia.
A citação da contraposição que Grendi faz de Polanyi e Marx é importante, pois
essa interlocução está ligada à construção da proposta microanalítica que o historiador
italiano passa a desenvolver, e, por sua vez, é central para a compreensão da micro-
história (LIMA, 2006). Com efeito, este diálogo é que vai constituir a base da
microanálise, que seria: não apontar o caráter econômico como determinante, por meio
da perspectiva antropológica; dar maior atenção aos aspectos sociais, e, por conseguinte,
dar visibilidade às questões culturais e simbólicas.
Esta “busca da complexidade” não poderia ser realizada dentro das perspectivas
globais, generalizantes e macro-históricas, por este motivo, defendia estudos de casos
circunscritos. Um texto manifesto de Grendi, que pode ser considerado um dos
trabalhos teóricos pioneiros da micro-história, é Microanálise e história social,
publicado em 1977 nos Quaderni Storici. Neste artigo, propõe considerar outras
possibilidades de investigação histórica, com alterações do ângulo analítico, dando
destaque à microanálise.
A utilização de dados distintos, como os recenseamentos, matrimônios,
variações de preços, por exemplo, permitem tornar esses grupos históricos mais
complexos, dilatando os aspectos sociais. Grendi dedica parte de seu texto para
descrever trabalhos que procuraram dar relevância às diferenças internas de grupos e
das classes sociais, destacando dados demográficos e estatísticos para penetrar na
complexidade das sociedades do passado e, para isso, comenta a necessidade de
aproximar de ferramentas e métodos oriundos da antropologia, da demografia e da
sociologia (GRENDI, 2009).
Em suma, o que Grendi propõe afinal é reconduzir a pesquisa histórica, por meio
dos dados seriais, para os comportamentos ou para as relações interpessoais,
circunscrito numa escala reduzida, em que tais relações são passíveis de serem
cartografadas, seguindo o exemplo do trabalho de campo do antropólogo.
Mais uma vez, se posicionando dentro do debate ao redor da história social
intensificado na década de 1970 nas páginas dos Quaderni Storici, “a história social é a
história das relações entre pessoas e grupos” (GRENDI: 2009: 36). Portanto, o
manifesto de Grendi presa por uma história que problematize a complexidade das
sociedades, confluindo com as críticas sobre modelos demasiadamente esquemáticos,
que sacrificam a realidade em prol da teoria. E de fato, tal possibilidade é possível pela
utilização da microanálise: “buscar na pesquisa histórica a distância cultural da
sociedade em que estamos vivendo, reconstruir a evolução e a dinâmica dos seus
comportamentos sociais” (GRENDI, 2009: 36).
Segundo Grendi, a qualidade microanalítica parte de, ao menos, quatro
premissas principais. A primeira delas é a fidelidade ao contexto histórico, que permite
estudar as mudanças sociais mais concretamente; em segundo lugar, a estrutura política,
compreendendo as redes de relações que se estabelecem numa determinada região; em
terceiro lugar, as transações econômicas, tendo como foco as relações entre
compradores e vendedores; em último lugar, a cultura, mais especificamente seu
significado “sociocultural contextual”, ou seja, as ações e determinações culturais
variam em cada contexto, histórico e geográfico.
Por esta última razão, o foco da proposta de Grendi em sua microanálise são
sempre as relações interpessoais, pois é neste ponto que reside a dinâmica da estrutura
social, o que leva o historiador a afirmar, inclusive, “antes de uma teoria geral das
classes sociais, o historiador deve verificar uma teoria dos grupos sociais” (GRENDI,
2009: 47). Por este motivo, é comum que a história social proponha o deslocamento das
análises para as relações entre grupos – familiares, de trabalho, etc. – cujas estruturas
complementares são determinações culturais circunscritas regionalmente, e recusando
categorias como, consciência de classe, estado, classe, mercado.
O segundo autor que destacamos foi Giovanni Levi4. Sua carreira como
historiador se mescla com suas atividades como militante de esquerda. Durante estes
anos alguns acontecimentos e vivências são descritas por ele como definidoras de seus
caminhos posteriores de suas pesquisas. Um caso emblemático citado por ele ocorre
após os movimentos de 1968, quando fazia intervenções com funcionários de indústrias
automobilísticas.
Em certa ocasião, conversando com um trabalhador, Levi deu-se conta de que
existiam interesses além dos pressupostos marxistas, que guiavam os interesses desta
4 Nascido em Milão em 1939, fez sua graduação em Letras e Filosofia na Universidade de Turim, onde foi professor entre os anos de 1964 e 1986. Redator e co-diretor dos Quaderni Storici entre 1974 e 1990, e ao lado de Carlo Ginzburg e Simona Cerutti, foi diretor da coleção Microstorie entre os anos 1981 e 1990.
classe, por exemplo, como utilizar o tempo livre fora das fábricas, muitas vezes seus
desejos eram unicamente explorar formas de lazer ou qualquer atividade que não
remetesse às horas de trabalho. Após este diálogo Levi afirma que passa a compreender
de outro modo a classe trabalhadora, para algo muito além das definições de Marx,
existia uma dimensão que só poderia ser compreendida se observasse de perto o
cotidiano e o universo simbólico dessas pessoas (LIMA, 2006).
Desse modo, ainda muito cedo em sua carreira intelectual Levi toma contato
com estudos estatísticos e econômicos, dois eixos importantes de seus trabalhos. Estas
perspectivas de estudos logo o direcionam para a demografia histórica e para o estudo
intensivo de fontes seriais, com destaque para métodos de reconstrução de famílias e
pesquisas histórico-demográficas sobre povoados, ambas as perspectivas baseadas em
modelos franceses.
Seu diferencial é que os dados estatísticos e demográficos não tem somente uma
dimensão quantitativa, dando atenção também aos indícios das relações sociais que
podem ser encontradas neste tipo de documentação. Dito de outra forma, podemos citar
como exemplo suas pesquisas iniciais se voltam para estudos na região do Piemonte,
procurando elencar algumas questões sobre migração na formação do espaço urbano de
Turim.
Neste percurso, o historiador italiano se dá conta de que as questões migratórias
também se relacionam com aspectos característicos do “mundo camponês”, “não apenas
quantitativos, mas também sociais, culturais e demográficos” (LIMA, 2006: 236). Estas
aproximações para além dos dados quantitativos confluem com os debates ao redor da
história social que ocorrem no mesmo período. Debate em que também no caso de Levi
passa pela marca da antropologia, e, logo, também pelo contato com Edoardo Grendi.
Uma das influências intelectuais de Levi que somam importantes contribuições
às críticas ao marxismo é o economista russo Aleksandr Chaianov. Este autor
contestava a divisão marxista dos modos de produção, perspectiva que é somada às
pesquisas de estudos regionais empreendidas por Levi na Itália. Chaianov Afirmava que
o modelo camponês, não visava o lucro, mas procurava manter equilíbrio entre o
consumo familiar e a força de trabalho disponível. A produção depende do ciclo
familiar (LIMA, 2006: 238-9).
Dois aspectos devem ser destacados, segundo Lima, primeiro o foco nos
modelos “culturais e históricos” e o estudo de uma “sociedade singular” que marca a
presença de uma microanálise, e aproximação com a antropologia, conduzida em parte
pelos modelos de Chaianov citados anteriormente. Com efeito, seus estudos sobre as
migrações camponesas, desenvolvimento urbano no Antigo Regime são conduzidas
pela constatação de que havia uma busca de equilíbrio no núcleo familiar, cujas
variações seguiam uma lógica cultural especifica de cada região. Em suma, um impulso
microanalítico – guiado pelo estudo regional, somado a leitura antropológica – dando
atenção aos aspectos culturais específicos de cada recorte – e finalmente, baseando-se
nos dados fornecidos por fontes seriais.
A partir das colocações citadas sobre Levi, podemos destacar alguns de seus
conceitos que passam a figurar, posteriormente, como elementos de sua proposta de
micro-história. Inicialmente citamos o texto Un problema de escala5, de 1981, que pode
ser encarado também como um manifesto a favor de pesquisas guiadas pela redução de
escala de observação. Basicamente Levi procura refletir sobre os limites das análises de
nível macro, assim como propõe modos de realizar um “bom exercício micro-histórico”,
a pesquisa a nível micro ajudaria a criar modelos macro mais consistentes e mais ricos
em detalhes (LEVI, 2003).
Em 1985 surge A herança Imaterial, de Giovanni Levi. Um importante estudo
sobre uma comunidade de Piemonte, nos séculos XVII e XVIII. Nesta obra Levi
trabalha a questão da compra e venda de terras, que ocorriam por uma série de relações
interpessoais que extrapolavam as leis de mercado, assim como as relações de poder que
se estabeleciam nesta pequena comunidade. Este estudo contrariava as diretrizes
macroestruturais, que afirmavam que neste período, já se caminhava para a formação do
estado nacional italiano (ROJAS, 2012).
Finalizando nossa pequena descrição de Levi, devemos salientar alguns
conceitos-chave que caracterizam as discussões teóricas que figuraram entre as
publicações dos Quaderni Storici, durante os anos que se desenvolveram os aparatos
teóricos da micro-história. Primeiramente a ideia central de Levi, a redução de escala de
observação.
5 A versão utilizada aqui é a tradução do italiano para o espanhol feita pelo historiador mexicano, Calos Rojas.
Esta ideia está ligada ao encontro de Levi com a antropologia, neste caso, pela
influência do antropólogo norueguês Fredrik Barth. Ambos partiam da crítica aos
modelos funcionalistas, e propunham redimensionar o olhar em seus estudos a fim de
dar voz a complexidade social.
A noção de escala é apropriada do pensamento de Barth para criar um modelo
metodológico: “a consideração de pequena escala se propõe, portanto como um modo
de colher o funcionamento real dos mecanismos que em um nível ‘macro’ deixam
coisas demais por explicar” (LEVI apud LIMA, 2006: 260). Desse modo, a intensão é
voltar-se para o grande numero de realidades individuais, e demonstrar que a realidade
social não é um quadro homogêneo, muitos menos que suas regras funcionam
perfeitamente. A sociedade passa a ser vista como a somatória de diversas realidades
individuais.
A ideia de jogo é bastante presente nesta leitura da sociedade. Cada indivíduo
teria certo grau de conhecimento das regras que constituem sua realidade, assim como
um conjunto de ações possíveis com as quais pode se movimentar dentro de sua
condição social, partindo de intensões conscientes (ou inconscientes), ainda que essas
ações e possibilidades tenham variações desiguais dependendo do ator social em
questão.
Ao lado da ideia de jogo, temos a noção de estratégia, na qual um indivíduo,
partindo de uma “racionalidade limitada”, na qual estes limites podem ser culturais,
sociais ou econômicos, realiza suas ações para agir dentro de seu horizonte de
experiências a fim de seguir suas próprias escolhas, mesmo que os resultados sejam
bastante incertos. Após esta pequena descrição de Giovanni Levi, passamos um último
autor de grande importância para se discutir a micro-história, Carlo Ginzburg6.
Ginzburg é, sem dúvida, o historiador italiano mais conhecido
internacionalmente, não somente no meio acadêmico e especialista, mas também do
publico em geral, graças ao grande de sua obra mais conhecida, O queijo e os vermes,
publicado pela primeira vez em 1976.
6 Nascido em 1939, em Turim na Itália numa família de intelectuais judeus que lutaram na resistência antifascista, seu nome é uma homenagem aos irmãos Carlo Rosselli e Nello Rosselli, dois militantes que foram assassinados pelos fascistas em 1937. As atividades intelectuais dos pais de Ginzburg incluíam fortemente os trabalhos com literatura (crítica literária e tradução). Sua mãe, Natalia Ginzburg, por exemplo, foi uma das figuras mais importantes da literatura italiana no século XX.
Inicialmente, por influência dos pais, Ginzburg estudou Letras e filosofia, mas
após o contato com Delio Cantimori passa a se interessar e a se dedicar aos estudos de
história. Além de Cantimori podemos citar outros contatos intelectuais de Ginzburg, a
psicanalise Freudiana, a antropologia de Claude Lévi-Strauss, além do contato com Eric
Hobsbawm e Edward Thompson, e o historiador da arte Aby Warburg, durante seu
período de estudos na Inglaterra.
Neste período Cantimori desenvolvia estudos sobre heresias no século XVI, na
região da Itália, e se caracteriza por utilizar a filologia para na pesquisa histórica, a fim
de recuperar o pensamento e a experiência dos povos do passado. A influência de
Cantimori é evidente quando se observa seus questionamentos e os estudos posteriores
de Ginzburg, como nos demonstra Lima, o foco de Cantimori eram os conflitos que se
abriam no interior dos “poderes constituídos”, o foco na religiosidade também é outro
ponto no qual pode se notar sua reverberação, de um modo geral:
Os pensamentos de tecelões e sapateiros, mercadores e artesãos, frades
apóstatas e mulheres, e mostrava como aqueles pensamentos se encontravam,
a partir de baixo, com o quanto de mais ousado a alta cultura foi capaz de
elaborar (LIMA, 2006 p.287).
Isto posto, é também necessário lembrar que devido a mesma influência de
Cantimori, Ginzburg também tomou contato com a revista dos Annales, e mais ainda de
Marc Bloch e sua obra, Os reis taumaturgos (1924). Bloch propunha o estudo de um
tema – que a época de publicação se situava na marginalidade historiográfica – sobre
uma prática que se relacionava com os modos de pensar e agir dentro de um contexto
histórico.
O primeiro artigo de Ginzburg é Feitiçaria e religiosidade popular: notas
sobre um processo modenense de 1519, de 1961. Nele o historiador analisa um processo
inquisitorial contra uma camponesa, Chiara Signorini, que foi acusada de bruxaria por
sua ex-patroa. Um trabalho que explora as relações entre religiosidade popular e os
conflitos com as normas religiosas vigentes, neste caso, obviamente, o cristianismo.
O caminho aberto por Feitiçaria e religiosidade popular leva Ginzburg a
encontrar outra documentação sobre heresias, durante seus períodos de pesquisas em
arquivos, uma série de processos contra pessoas que se auto intitulavam Benandanti, ou
“andarilhos do bem”. Os resultados destas pesquisas compõe uma nova obra, Os
andarilhos do bem (1966).
Neste percurso já é possível observar a construção de um aparato teórico que
visa fugir dos modelos macro-históricos, passando a circunscrever cada vez as
descrições nas suas pesquisas, de modo que as heresias e a religiosidade popular são
abordas a partir do exemplo de indivíduos concretos. E foi também durante as pesquisas
de arquivo para elaborar Os andarilhos do bem, que Ginzburg se depara com um caso
bastante peculiar de um processo de um moleiro que possuía uma cosmologia própria.
A obra em questão é O queijo e os vermes – o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela inquisição (1976). Em síntese, a obra é o estudo de um caso de
acusação de heresia de um moleiro, Menocchio, que ao ser interrogado pelo Santo
Ofício demonstra possuir uma visão de mundo particular. Suas interpretações iam desde
a teologia, da criação do mundo e dos homens, até críticas bastante ácidas sobre a Igreja
católica. Para ele, Deus não criou os homens, primeiro surgiram os anjos na terra, do
mesmo modo que os vermes aparecem no queijo quando estraga. E ainda, os padres e
todo o clero não deveriam acumular riquezas, e eram também responsáveis pela fome e
as precárias condições de vida das pessoas mais pobres.
O queijo e os vermes pode ser considerada a pesquisa mais importante de
Ginzburg, devido ao seu grande alcance, e permitiu ao historiador teorizar
posteriormente muitos pontos metodológicos que seriam transportados para a micro-
história (ROJAS, 2012). Primeiramente a definição de cultura proposta por Ginzburg.
Esta seria o que chamou de jaula flexível, ou seja, o pertencimento a uma determinada
classe ou grupo social não seria totalmente definidora dos aparatos mentais e culturais
que um indivíduo possui. A dicotomia entre cultura erudita e popular é permeada por
uma série de possibilidades de ação individual nas quais o sujeito pode se movimentar.
Tomando o caso de Menocchio como exemplo, embora fosse um simples
moleiro, também foi capaz de aprender a ler e escrever e interpretar os ensinamentos
das sagradas escrituras de um modo bastante particular, que por este mesmo motivo,
incomodou as normas dos poderes constituídos. A circularidade cultural7 tem como
7 Este termo é derivado do pensamento de Mikhail Bakhtin, descritos principalmente pela obra cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais, cujos objetivos estão demonstrar “a força e o vigor da cultura popular e sua inesgotável capacidade de gerar autonomamente e de modo permanente novas formações, visões e conteúdos culturais” (p.129).
objetivo demonstrar como a cultura é algo dinâmico, impossível de ser circunscrito em
modelos simplistas e determinantes. Esta é, inclusive, uma das críticas que Ginzburg faz
para a história das mentalidades, sua incapacidade de se aproximar dos diálogos
existentes entre as classes sociais (ROJAS, 2012).
O modelo de história cultural inaugurado em O queijo e os vermes (1976) vai se
enriquecendo ao longo dos anos, o que pode ser identificado em Sinais. Raízes de um
paradigma indiciário (1979) e depois nos ensaios que terminam com a publicação de
História noturna (1989).
O artigo de Ginzburg Sinais. Raízes de um paradigma indiciário foi concebido
durante os anos 1976 e 1978. Nele há algumas lições que o autor aprendeu ao escrever
O queijo e os vermes, e também algumas reflexões mais amplas, resultado das reflexões
realizadas durante sua formação intelectual. Desde a primeira vez que foi editado o
artigo ocasionou uma onda de discussões e polêmicas, não só na Itália, mas também em
diversos outros países onde foi sendo sucessivamente publicado (ROJAS, 2012).
É o texto mais importante de epistemologia histórica dos últimos quarenta e
cinco anos, comparado apenas com a repercussão do texto de Braudel, História e
ciências sociais – a longa duração, de 1958 (ROJAS, 2012: 150). Seu sucesso pode ser
constatado pelo grande número de fortuna crítica que o artigo suscitou, além das
inúmeras mesas redondas, entrevistas em que Ginzburg era convidado para expor suas
ideias.
Com esse texto Ginzburg foi difundido por todo o mundo, penetrando em
diversas historiografias nacionais. A reação de Ginzburg a essa ampla difusão foi o de
negar a utilizar o termo “paradigma indiciário”, recusando-se explicitamente a se tornar
seu “pai”. Ainda que estas teses tenham continuado a influenciar sua produção
intelectual.
As recepções da micro-história
De modo geral, acreditamos que estes sejam pontos importantes para se pensar a
prática historiográfica da micro-história a partir de seus próprios termos, e de suas
próprias origens. Entre os anos de 1989 e 1992 se dissolvem os núcleos articuladores
dos principais paradigmas da perspectiva micro-histórica, e também novos historiadores
passam a ser incorporados nos Quaderni Storici. Em 1988 é criado um novo comitê
editorial, tais mudanças implicam o redirecionamento da equipe dirigente.
Neste período saem três, dos quatro membros articuladores da micro-história,
Carlo Ginzburg (que vai lecionar nos EUA), Giovanni Levi e Edoardo Grendi. Na
análise de Rojas, é neste período que acaba o caráter coletivo da micro-história, e
acentuam-se as diferenças internas. A partir dai o que temos é uma série de percursos
individuais, nos quais se desenvolveram e aprofundaram muitos de seus temas e
métodos, especialmente ao redor de suas três características essenciais: redução de
escala de observação, o paradigma indiciário e a perspectiva antropológica (ROJAS
2012). Ao invés de desaparecer a micro-história transformou-se em percursos
intelectuais, “produzindo vários e muitos exercícios de micro-história, ao mesmo tempo,
enriquecendo o debate ao oferecerem elementos para um novo modelo de análise
histórica” (ROJAS, 2012: 82).
Bibliografia:
BARROS, José D’Assunção. Sobre a feitura da micro-história. OPSIS, Vol. 7, n°9, jul-
dez 2007 (pp.167-185).
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
_______________. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GRENDI. Edoardo. Microanálise e história social. IN: OLIVEIRA, Monica Ribeiro &
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009.
LEVI, Giovanni. Un problema de escala. Revista Relaciones. Estudios de historia y
sociedade, 2003 XXVI. Disponível em www.redalyc.org/articulo.oa?id=13709510.
Acessado 23 de março de 2016.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Contribuición a la historia de la microhistoria
italiana. Rosario: Protoediciones, 2003.
___________________________. Micro-história italiana: modos de uso. Londrina:
Eduel, 2012.