Autopercepção da saúde bucal e impacto na qualidade de ... Autopercepção da saúde bucal e...

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TEMAS LIVRES FREE THEMES 3317 1 Departamento de Odontologia, Centro de Ciências da Saúde (CCBS), Universidade Estadual de Montes Claros. Avenida Dr. Rui Braga s/nº. Caixa Postal 126, Vila Mauricéia. 39.401-089 Montes Claros MG. [email protected] 2 Universidade Federal de Minas Gerais. Autopercepção da saúde bucal e impacto na qualidade de vida do idoso: uma abordagem quanti-qualitativa Self-perception of oral health and impact on quality of life among the elderly: a quantitative-qualitative approach Resumo Este estudo, de abordagem quanti-qua- litativa, objetivou aprofundar o entendimento das relações entre autopercepção, impacto na quali- dade de vida e condições bucais de idosos. Exame clínico e entrevista gravada contendo questões ob- jetivas e discursivas foram realizados com 45 ido- sos. Conduziu-se análise descritiva quantitativa das questões objetivas e referentes ao exame clíni- co e à análise de conteúdo das questões discursivas de abordagem qualitativa. Imagens fotográficas do estado bucal foram relacionadas a trechos das entrevistas. A análise quantitativa evidenciou: 4,8 dentes em média; CPOD (número de dentes cari- ados, perdidos e obturados) médio de 29,9; 57,7% eram desdentados, 60% acreditavam não necessi- tar tratamento, 75% sofriam impacto na quali- dade de vida devido às condições bucais, apesar de 67% perceberem positivamente sua saúde bucal. Na análise qualitativa constatou-se subestima- ção de sintomas, falta de esperança e resignação frente às limitações impostas pelo precário estado clínico. Muitos encararam as limitações como conseqüência do envelhecimento e não como pro- blema que mereça ser corrigido. O que mais inco- modou foram as relações de dependência e a pro- ximidade com a morte, minimizando outros pro- blemas. A população idosa foi informada de que poderia modificar sua autopercepção, conscien- tizando-a que esta realidade pode ser modificada. Palavras-chave Autopercepção, Saúde bucal, Qualidade de vida, Idosos, Pesquisa qualitativa Abstract A qualitative-quantitative approach was used in this study to obtain a clearer under- standing of the relationship between self-percep- tion, impact on quality of life and oral health among the elderly. Clinical examination and re- corded interviews with objective and discursive questions were conducted with 45 institutional- ized elderly people. Descriptive analyses of quan- titative data were made. The interviews were tran- scribed and a systematic reading of the interviews was carried out selecting the components related to the categories under analysis. Photographic images of the oral clinical status were correlated with participants’ speech. Quantitative analysis revealed: an average of 4.8 teeth; DMFT were 29.9; 57.7 % were toothless; 60% believed they did not need dental care; 75% suffered a great impact on quality of life due to oral health conditions, de- spite the fact that 67% evaluated their oral health positively. Underestimation of symptoms, lack of hope and resignation due to limitations regard- ing poor clinical status were detected. Most elder- ly people viewed such limitations as a consequence of aging and not as a problem that may be solved. This reality can be changed through information and guidance for elderly people. Key words Self-perception, Oral health, Quality of life, Aged, Qualitative research Desirée Sant’Ana Haikal 1 Alfredo Maurício Batista de Paula 1 Andrea Maria Eleutério de Barros Lima Martins 1 Allyson Nogueira Moreira 2 Efigênia Ferreira e Ferreira 2

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1 Departamento de

Odontologia, Centro de

Ciências da Saúde (CCBS),

Universidade Estadual de

Montes Claros. Avenida Dr.

Rui Braga s/nº. Caixa Postal

126, Vila Mauricéia.

39.401-089 Montes Claros

MG.

[email protected] Universidade Federal de

Minas Gerais.

Autopercepção da saúde bucal e impactona qualidade de vida do idoso: uma abordagem quanti-qualitativa

Self-perception of oral health and impact on quality of lifeamong the elderly: a quantitative-qualitative approach

Resumo Este estudo, de abordagem quanti-qua-litativa, objetivou aprofundar o entendimento dasrelações entre autopercepção, impacto na quali-dade de vida e condições bucais de idosos. Exameclínico e entrevista gravada contendo questões ob-jetivas e discursivas foram realizados com 45 ido-sos. Conduziu-se análise descritiva quantitativadas questões objetivas e referentes ao exame clíni-co e à análise de conteúdo das questões discursivasde abordagem qualitativa. Imagens fotográficasdo estado bucal foram relacionadas a trechos dasentrevistas. A análise quantitativa evidenciou: 4,8dentes em média; CPOD (número de dentes cari-ados, perdidos e obturados) médio de 29,9; 57,7%eram desdentados, 60% acreditavam não necessi-tar tratamento, 75% sofriam impacto na quali-dade de vida devido às condições bucais, apesar de67% perceberem positivamente sua saúde bucal.Na análise qualitativa constatou-se subestima-ção de sintomas, falta de esperança e resignaçãofrente às limitações impostas pelo precário estadoclínico. Muitos encararam as limitações comoconseqüência do envelhecimento e não como pro-blema que mereça ser corrigido. O que mais inco-modou foram as relações de dependência e a pro-ximidade com a morte, minimizando outros pro-blemas. A população idosa foi informada de quepoderia modificar sua autopercepção, conscien-tizando-a que esta realidade pode ser modificada.Palavras-chave Autopercepção, Saúde bucal,Qualidade de vida, Idosos, Pesquisa qualitativa

Abstract A qualitative-quantitative approachwas used in this study to obtain a clearer under-standing of the relationship between self-percep-tion, impact on quality of life and oral healthamong the elderly. Clinical examination and re-corded interviews with objective and discursivequestions were conducted with 45 institutional-ized elderly people. Descriptive analyses of quan-titative data were made. The interviews were tran-scribed and a systematic reading of the interviewswas carried out selecting the components relatedto the categories under analysis. Photographicimages of the oral clinical status were correlatedwith participants’ speech. Quantitative analysisrevealed: an average of 4.8 teeth; DMFT were 29.9;57.7 % were toothless; 60% believed they did notneed dental care; 75% suffered a great impact onquality of life due to oral health conditions, de-spite the fact that 67% evaluated their oral healthpositively. Underestimation of symptoms, lack ofhope and resignation due to limitations regard-ing poor clinical status were detected. Most elder-ly people viewed such limitations as a consequenceof aging and not as a problem that may be solved.This reality can be changed through informationand guidance for elderly people. Key words Self-perception, Oral health, Qualityof life, Aged, Qualitative research

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Introdução

A população idosa brasileira cresce rapidamen-te. O Brasil terá a sexta maior população idosa,em números absolutos, do mundo, chegando aaproximadamente 15% da população total em2025 e a 19% em 20501, enfatizando a necessida-de de políticas de saúde públicas que enfoquem amanutenção de satisfatória qualidade de vida aosque envelhecem.

Problemas odontológicos podem influenciara qualidade de vida e o bem-estar2. O Levanta-mento Epidemiológico das Condições de SaúdeBucal da População Brasileira, Projeto SB Brasil(2002/2003) realizado pelo Ministério da Saúdeevidenciou um quadro crítico de saúde bucal paraidosos: 54,8% de desdentados totais, CPOD (nú-mero de dentes cariados, perdidos e obturados)médio de 27,93 e menos de 10% com mais de 20dentes na boca3, proporção bem inferior à metaproposta pela Organização Mundial de Saúde(OMS) para o ano 20004.

Dados epidemiológicos são fundamentais paraplanejamentos, organizações e monitoramentosdos serviços5, mas são restritos à visão profissio-nal, objetiva. Ganham outro significado, quandoacompanhados da avaliação da autopercepção dascondições de saúde bucal, dada pelos próprios in-divíduos, sobretudo considerando que o compor-tamento das pessoas é condicionado por suas per-cepções e pela importância dada a elas. Idosos fo-ram apontados como maiores usuários de servi-ços médicos e maiores não usuários de serviçosodontológicos. Mesmo em países que mantémprogramas odontológicos gratuitos dirigidos aidosos, a principal razão para não procurarem oserviço odontológico é a não percepção de suanecessidade6. Do ponto de vista prático, a auto-percepção da saúde bucal tem impacto sobre autilização dos serviços, sendo preditora de freqüên-cia por procura de atendimento7-9.

Geralmente, pessoas idosas atribuem valorespositivos à sua saúde bucal, mesmo com estadosclínicos desfavoráveis8-17. Já as variáveis referen-tes ao impacto da saúde bucal na qualidade devida, comumente aparecem associadas à auto-percepção2,9,11,14,17, embora ainda seja necessáriocompreender melhor os elementos básicos quedeterminam esta autopercepção da saúde bucal.

Qualidade de vida é uma noção eminente-mente humana, que tem sido aproximada ao graude satisfação existencial, pressupondo uma sín-tese cultural dos elementos que determinada so-ciedade considera como padrão de conforto ebem-estar18. Neste sentido, na odontologia, in-

dicadores sócio-odontológicos têm sido propos-tos para medir com que magnitude as alteraçõesbucais comprometem a qualidade de vida e bem-estar, e incluem medidas subjetivas como dor,incômodo, problemas estéticos, restrições na ali-mentação, na comunicação, nas relações afeti-vas, nas atividades diárias e no bem-estar psico-lógico dos indivíduos19. Destacam-se o GeriatricOral Health Assessment Index (GOHAI) ou Ín-dice de Determinação da Saúde Bucal Geriátrica,de Atchison e Dolan20, e o Oral Health ImpactProfile (OHIP) ou Perfil do Impacto da SaúdeBucal, de Slade e Spencer21. Além destes, existemoutros disponíveis na literatura científica cujaintenção acaba sendo quantificar o que é subjeti-vo, baseados em experiências de vida e mediadospelo contexto social, cultural e histórico vivencia-dos por cada indivíduo8.

O propósito deste estudo foi aprofundar oentendimento das relações entre autopercepçãoda saúde bucal, impacto da saúde bucal na qua-lidade de vida e estado clínico bucal de idosos.

Metodologia

Na busca de maior compreensão sobre as ques-tões que permeiam os sentimentos e as represen-tações quanto à saúde bucal de idosos e partindoda premissa de que a produção do conhecimen-to em saúde coletiva incorpora o social comoum campo no qual a doença adquire um especí-fico significado22, utilizou-se uma abordagemquanti-qualitativa. A forma puramente quanti-tativa seria limitada no entendimento do proble-ma em questão, não dando conta de captar asexperiências subjetivas dos indivíduos acerca deseu bem-estar. A pesquisa qualitativa apresentarelação dinâmica entre mundo objetivo e subje-tividade do sujeito, que não pode ser traduzidaem números. É voltada para a descoberta, iden-tificação, descrição aprofundada e geração deexplicações, além de buscar o significado e a in-tencionalidade dos atos23,24 contemplando o pro-pósito deste trabalho.

Esta pesquisa foi previamente aprovada peloComitê de Ética em Pesquisas da UniversidadeFederal de Minas Gerais, atendendo à resolução196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

População

Uma das maiores instituições geriátricas deuma metrópole brasileira foi selecionada paracompor o universo do estudo por possuir grande

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número de idosos residentes de diferentes classessociais. Com o propósito de selecionar idosos comcondições cognitivas para responder a entrevista,foi realizada a aplicação prévia do Mini-Examedo Estado Mental (MEM)25 por um psicólogo dainstituição. Esse instrumento rastreia o compor-tamento cognitivo e tem sido empregado em es-tudos epidemiológicos26. A presente investigaçãorefere-se aos 45 idosos que além de aceitarem par-ticipar da pesquisa, obtiveram pontuações supe-riores a 24 no MEM, não caracterizando possí-veis quadros de demência26. Em pesquisas quali-tativas, o tamanho da amostra não é o fator de-terminante, estando mais dependente da quali-dade e profundidade das informações obtidas23.Entretanto, optou-se pelo recenseamento dos in-divíduos que atenderam ao critério de capacidadecognitiva, superando o “ponto de saturação” nor-malmente utilizado em pesquisas qualitativas.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada em dois mo-mentos: entrevista e exame clínico bucal, a fim deque a entrevista não fosse influenciada pelo exa-me. Optou-se, entretanto, em apresentar inicial-mente alguns resultados da entrevista e o estadoclínico e em seguida os resultados qualitativosdas entrevistas.

Entrevistas

A entrevista foi composta de uma parte es-truturada, utilizando formulário em papel, e outrasemi estruturada, de abordagem qualitativa, co-letada com o auxílio de gravador de áudio. Asvariáveis investigadas de forma estruturada fo-ram: idade (coletada como variável contínua eposteriormente categorizada por décadas); sexo(masculino; feminino); valor da contribuiçãomensal pago pelos idosos e/ou seus familiares àInstituição em reais (0 a 250; 350 a 500; 601 a 800;801 a 1000; acima de 1000); necessidade percebi-da de ir ao dentista (sim; não) obtida pela per-gunta “Você acha que está precisando ir ao den-tista?” e autopercepção da saúde bucal (excelen-te; boa; regular; ruim; péssima) obtida pela per-gunta “Como você acha que está a sua boca atu-almente?”. Foram considerados com autopercep-ção positiva aqueles que a classificaram comoexcelente ou boa; com autopercepção regular osque a classificaram como regular; e negativa osque a classificaram como ruim ou péssima.

Para a medida do impacto das condições bu-cais na qualidade de vida, optou-se por utilizar o

GOHAI20 considerando suas dimensões: autoper-cepção de incômodos, de sintomatologia doloro-sa no último ano, de problemas com a aparência,com a mastigação, com a fala e com limitaçõesnas relações sociais, sendo cada dimensão coleta-da de forma dicotômica (presente; ausente).

A constatação, durante estudo piloto prévio,de que um instrumento quantitativo não seriaadequado para esclarecer porque idosos auto-perceberam positivamente sua saúde bucal, mes-mo sofrendo impactos psicossociais, levou ospesquisadores a optarem pela abordagem quali-tativa complementar, mantendo a coleta objeti-va inicial. Foram então elaboradas questões dis-cursivas relacionadas a costumes comuns emnossa cultura, inclusive entre idosos, tais comocantar, conversar, ser fotografado e se alimentarem locais públicos, buscando maior compreen-são dos sentimentos gerados pelo estado clínicoe como a saúde bucal pode impactar nas ativida-des cotidianas. As questões formuladas forambaseadas nas dimensões do GOHAI20, nas res-postas registradas durante o primeiro estudopiloto e nas experiências dos pesquisadores (Qua-dro 1). Mais três estudos pilotos em outras insti-tuições geriátricas foram realizados até as ques-tões terem sido consideradas adequadas, cadaum desses estudos contou com a participação de10 idosos. Convém destacar que a noção de qua-lidade de vida adotada neste trabalho refere-se apadrões de satisfação, conforto e tolerância de-terminados pelos próprios sujeitos pesquisados,uma vez que tratam de valores socialmente de-terminados18.

A abordagem qualitativa requer estabeleci-mento de vínculo entre entrevistador e entrevis-tado, para que este se sinta à vontade no relato27.A pesquisadora responsável pelas entrevistas con-viveu com os idosos por 30 dias, somente ausen-tando-se durante finais de semana e horário no-turno. Após este período, iniciaram-se as entre-vistas semi-estruturadas, aplicadas de forma fle-xível, permitindo intervenções27. Alguns temassurgiram espontaneamente e outros foram sis-tematicamente estimulados pela pesquisadora(Quadro 1). As gravações realizadas foram trans-critas na íntegra.

Exame clínico

Todos os exames foram realizados por umúnico examinador treinado e calibrado que con-tou com a ajuda de um anotador, conforme cri-térios preconizados pela OMS5. Nesse estudo,foram considerados dados relativos ao CPOD e

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a média do número de dentes presentes. Ima-gens fotográficas do estado clínico foram reali-zadas contribuindo de forma ilustrativa.

Análise dos dados

Foi realizada análise descritiva dos dados re-ferentes ao estado clínico e à parte estruturada daentrevista. As falas transcritas das questões dis-cursivas semi-estruturadas foram analisadas se-

gundo a técnica de análise de conteúdo24 classifi-cando os dados através de leituras repetidas dasentrevistas e mergulho analítico profundo, pro-duzindo interpretações e explicações que procu-raram dar conta das questões que motivaram ainvestigação. Assim, fragmentos de entrevistas eimagens constituíram traços em torno dos quaisforam realizadas reflexões23. Destaques em negri-to nas falas foram realizados pelos autores a fimde evidenciar trechos que embasaram análises.

Quadro 1. Questões do GOHAI19 e questões utilizadas na presente investigação, segundo as dimensões

avaliadas.

Dimensão

investigada

Incômodo

Dor

Problemas

com a aparência

Dificuldade

mastigatória

Problemas com a

fonética

Limitação no

convívio social

Questões GOHAI

Sentiu-se nervoso ou tomou consciência

de problemas com seus dentes, gengivas

ou próteses?

Preocupou-se ou teve cuidados com seus

dentes, gengivas ou próteses?

Teve sensibilidade nos dentes ou gengivas

ao contato com calor, frio ou doces?

Usou medicamento para aliviar dor ou

desconforto relativos à boca?

Sentiu-se contente ou feliz com o aspecto

de seus dentes ou próteses?

Foi capaz de engolir confortavelmente?

Limita o tipo ou a quantidade de

alimentos que come devido a problemas

com seus dentes ou próteses?

Tem problemas mastigando carne sólida

ou maçã?

Foi capaz de comer qualquer coisa sem

sentir desconforto?

Seus dentes ou próteses o impediram de

falar da maneira como queria?

Limitou seus contatos com outras pessoas

devido às condições de seus dentes ou

próteses?

Sentiu desconforto ao alimentar-se em

frente a outras pessoas devido a problemas

com seus dentes ou próteses?

Questões utilizadas na presente

investigação

O que mais te incomoda em sua boca

atualmente?

Você sentiu dor nos dentes ou

gengivas no último ano? Conte como

foi (em caso afirmativo)

Você precisou usar algum

medicamento para alivio de dor

relativa à boca no último ano?

Se alguém tirar uma fotografia sua

você prefere aparecer sorrindo ou

sério? Por quê?

Como você costuma comer estes

alimentos?

Maçã inteira com casca, chupar

laranja, doces, carne em pedaços,

arroz e feijão, milho na espiga, pão,

salada de verdura crua, torrada,

sorvetes, torresmo.

Você tem dificuldade para comê-los?

Você acha bom cantar? Tem alguma

coisa que te atrapalha cantar? O que?

Você conversa muito com outras

pessoas? Tem alguma coisa que

atrapalhe você falar? O que?

Você teria algum problema em se

alimentar em um restaurante ou em

uma festa? Por quê?

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Resultados e discussão

Dos 45 idosos avaliados, 35 (78%) tinham maisde 71 anos e 27(60%) eram do sexo feminino. Ovalor mensal pago à instituição foi heterogêneo,variando de nenhuma contribuição até o máxi-mo de R$1.874,00, confirmando coexistência dediferentes classes sociais. Verificou-se precário es-tado clínico: 4,8 dentes presentes em média; CPODmédio de 29,9, com 92,8% de representatividadedo componente perdido (extraídos- 91% e extra-ção indicada-1,8%); 26 (57,7%) eram desdenta-dos totais; somente 3 (7%) idosos possuíam maisde 20 dentes presentes. Estes achados estão con-dizentes com os verificados entre idosos brasilei-ros, onde se tem observado a necessidade de tra-tamento em praticamente todos os indivíduos e ade reposições protéticas3,17,28-31. Apesar das neces-sidades acumuladas já identificadas na popula-ção desse estudo32, Vinte e sete (60%) idosos nãoperceberam necessidade de tratamento odonto-lógico, proporção essa superior à encontrada en-tre idosos participantes do SB Brasil (45,6%)17.Vale comentar que neste estudo houve maior pro-porção de idosos mais velhos quando compara-dos aos idosos do SB Brasil, representados so-mente pela faixa etária de 65 a 74 anos3,17,28,29.

Com relação às dimensões utilizadas paracontabilizar impacto da saúde bucal na qualidadede vida observou-se a seguinte distribuição, emnúmeros absolutos e percentuais respectivamen-te: incômodos (23; 51%), dor no último ano (13;29%), problemas com a aparência (6; 13%), difi-culdade mastigatória (17; 38%), problemas coma fala (1; 2,2%) e limitação nas relações sociais (5;11%). A proporção de acometimento verificadaem cada dimensão foi inferior ao encontradosentre idosos do SB Brasil17, embora a aferição e asanálises realizadas tenham sido diferentes. Napresente investigação, 34 (75%) idosos foram afe-tados por pelo menos uma dimensão, condizentecom o precário estado clínico bucal e contrastan-do com a autopercepção da saúde bucal.

A autopercepção da saúde bucal foi positivapara 30 (67%), regular para 10 (22%) e negativapara 5 (11%) idosos. Este predomínio de auto-percepção positiva já foi constatado em outrasinvestigações9,11,14,15,17,29,33, e entre idosos da re-gião sudeste, participantes do SB Brasil, a auto-percepção da saúde bucal foi para 58,9% positi-va, 28,2% regular e 12,9% negativa29. A Tabela 1sumariza as relações entre autopercepção positi-va, regular e negativa e as variáveis investigadas.Entre aqueles com autopercepção negativa foi

maior a proporção de idosos com 80 ou maisanos, de mulheres, e com menores valores pagosà instituição. Outros estudos não encontraramassociação da autopercepção com a idade17 e osexo13,14,17,29,33,34. A associação da autopercepçãocom classe social ou renda foi verificada em al-guns estudos14,29 e não em outros13,17. Nesse es-tudo, todos os idosos que autoperceberam ne-gativamente sua saúde bucal e a maioria dos queautoperceberam como regular relataram a ne-cessidade de ir ao dentista, indicando que a auto-percepção em saúde bucal é preditora da procu-ra por atendimento odontológico, conforme ve-rificado em outras investigações6,17,28,29.

Estudos têm evidenciado diferenças entre ascondições clínicas e a autopercepção do pacien-te8-14. Neste estudo, quanto menor o númeromédio de dentes presentes e maiores valores deCPOD médio, mais negativa foi a autopercepçãoda saúde bucal. Os idosos, em geral, apresenta-ram muitas perdas dentárias, gerando baixa pre-valência de extrações indicadas. Entretanto, aproporção entre a média de dentes presentes e amédia de elementos com extração indicada foidiferente entre os que autoperceberam positiva-mente e negativamente sua condição bucal. Entreidosos com autopercepção negativa parece haverpoucos dentes presentes e em precário estado. Oíndice CPOD considera igual peso para todos osseus componentes, mas indivíduos conferem sig-nificados diferentes para cada componente9,14.Estudos conduzidos entre idosos brasileiros têmobservado autopercepção mais positiva entreedentados do que entre dentados, possivelmentepor manterem poucos dentes e em precárias con-dições17,29,33, já estudos internacionais, onde amédia de dentes presentes é maior, observa-seassociação inversa9,10,13,34.

Estudos8,9,11,14,17 têm demonstrado associaçãoda autopercepção negativa em saúde bucal comvariáveis relativas ao impacto da saúde bucal naqualidade de vida, especialmente nas dimensõesde dor16,17,34, aparência9,17; problemas mastigató-rios17 e limitação nas relações sociais11,17. Na pre-sente investigação houve maior proporção de in-divíduos relatando incômodos e problemas mas-tigatórios dentre os que autoperceberam negati-vamente sua condição bucal. Entretanto, pelobaixo poder estatístico da amostra, a verificaçãode relações quantitativas torna-se limitada.

A abordagem qualitativa evidenciou hipóte-ses explicativas para a autopercepção positiva dasaúde bucal entre idosos que relataram impactonegativo da saúde bucal na qualidade de vida.

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Incômodos

Dentre as dimensões relativas ao impacto, apresença de incômodos foi a mais prevalente(51%). Foi importante a abrangência da questão“O que mais te incomoda em sua boca, atual-mente?”, dando liberdade para o idoso manifes-tar-se livremente. Foram mencionados nenhumincômodo, presença de desconfortos (queima-ção, dente quebrado, dente gasto, retenção de

alimentos, gosto ou odor desagradável), dor,sangramento gengival, problemas estéticos, pro-blemas mastigatórios, problemas com próteses,bem como menções sobre a necessidade de reali-zar algum tipo de tratamento odontológico. Orelato abaixo foi obtido de um idoso que afir-mou nenhum incômodo relativo à boca.

Tem uns dentes aqui, dá para mim comer. Faltauns, mas tá indo mais ou menos bem. Não tenhomau-hálito, não sinto dor, dá para falar. Os dentes

Tabela 1. Distribuição da autopercepção da saúde bucal dos idosos investigados segundo variáveis

sócio-demográficas, da autopercepção de necessidade de tratamento, do estado clínico, e referentes ao

impacto da saúde bucal na qualidade de vida.

* Salário mínimo corrente de R$ 240,00 e 1U$ equivalente a aproximadamente R$ 2,94 (dezembro/2003); 1 Variável expressa em

números absolutos (n) e porcentagens (%); 2 Variável expressa em médias e desvio padrão (±).

Variáveis

Idade 1

61 a 70 anos

71 a 80 anos

80 anos ou mais

Sexo 1

Feminino

Masculino

Valor pago à instituição em reais*1

0 a 250

350 a 500

601 a 800

801 a 1000

acima de 1000

Necessidade percebida de ir ao dentista1

Presente

Ausente

CPO-D 2

Dentes presentes2

Extração indicada por cárie2

Incômodos 1

Presente

Ausente

Dor no último ano 1

Presente

Ausente

Problemas com a aparência1

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Ausente

Problemas mastigatórios1

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Ausente

Problemas com a fonação1

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Ausente

Limitação nas relações sociais1

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que sobraram são tudo tratados, não tem nervo.(sexo masculino, 92 anos, nenhum incômodopercebido, autopercepção regular, Figura 1)

Apesar das precárias condições clínicas, coma presença de fístula, perdas dentárias e acentua-do acúmulo de cálculo, o fato de não perceberlimitação funcional parece ser determinante parao idoso mencionado não sentir-se incomodado,embora perceba que sua situação não está boa.Parece haver resignação diante das precárias con-dições bucais, possivelmente por desconhecimen-tos ou falta de esperança de que sua situação clí-nica pudesse ser melhorada. Resignado é aqueleque “sofre com resignação, que não lamenta asua sorte”, com “submissão paciente aos sofri-mentos”35. Os idosos de hoje são de uma épocaem que o edentulismo era praticamente inevitá-vel aos mais velhos14,31. Essa concepção pode in-fluenciar a percepção dos idosos avaliados comoprivilegiados por possuir dentes “tratados”, in-dependentemente do estado clínico em que seencontrem. O mesmo ocorreu quanto à presen-ça de prótese.

A dentadura está bamba, mas não tem impor-tância não, melhor que nada. (sexo feminino, 76anos, autopercepção positiva, Figura 2)

Apesar de todos os idosos com autopercep-ção negativa terem relatado incômodos, a pre-sença de incômodos não foi decisiva para umaavaliação negativa ou regular da saúde bucal.Dentre os 23 idosos que relataram incômodos,13 autoperceberam positivamente sua saúde bu-cal. O relato abaixo revela essa situação.

No geral a boca está boa, tem só um único denteque me preocupa. É o único que tenho na boca. Oresto está tudo bem. [...] A falta dos dentes me inco-

moda porque sei que com isso incomodo outras pes-soas porque demoro, preciso que corte muito peque-no. Meu sonho é ter um liquidificador pessoal parabater tudo. Eu não consigo engolir se não mastigarbem, mas não vou ficar amolando ninguém por cau-sa disso... (sexo masculino, 72 anos, relato de incô-modo, autopercepção positiva)

O idoso mencionado possuía alto poder aqui-sitivo, curso superior e convênio de assistênciaodontológica privada. Apesar de usar prótesesem precárias condições, não autopercebeu ne-cessidade de tratamento odontológico, sugerin-do que o custo pode não ser a principal barreirapara o uso do serviço odontológico, conformeapontado em outro estudo36. Este relato tam-bém explicita hipótese anteriormente levantada,de que a ausência de dentes é percebida mais po-sitivamente do que a presença de poucos dentesem precárias condições. Além disso, o idoso sen-tia-se incomodado com a mastigação, mas nãopelos seus próprios prejuízos, e sim por pensarincomodar outras pessoas, sugerindo que porisso autopercebeu positivamente sua saúde bu-cal. Se ele pudesse por si triturar os alimentos,possivelmente não relataria incômodo algum. Afala enfatiza a questão da dependência e da perdade autonomia, como impactantes na vida do ido-so. Este outro relato também evidencia o proble-ma, inclusive para ir ao dentista.

Precisar preciso (ir ao dentista), mas é difícil,estou esperando para ver se minha sobrinha meleva. Para mim tudo é difícil, minha sobrinha custavir aqui ... o consultório dela está cheio, não podeficar parando para vir aqui... (sexo feminino, 88anos, autopercepção negativa, tia de dentista)

Figura 1. Estado clínico da cavidade bucal de idoso

com 92 anos.

Figura 2. Estado clínico da cavidade bucal e da

prótese utilizada por idosa com 76 anos.

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Dor

Dos 13 idosos que relataram dor, 9 autoper-ceberam positivamente suas condições bucais.Outras investigações evidenciaram associação di-reta entre sensibilidade dolorosa e autopercepçãonegativa17 e autopercepção da necessidade de tra-tamento7,28. Nesse estudo, nem a presença de dorfoi relacionada a uma autopercepção da saúdebucal mais crítica, sugerindo percepção do enve-lhecimento desvinculado de qualidade de vida.Alguns idosos pareceram subestimar a sintoma-tologia dolorosa, aceitando-as como naturais daidade avançada, conforme relatos obtidos de ido-sos que tiveram autopercepção positiva.

A dentadura fere a gengiva e aí dói, mas é coisaà toa, vem e passa. (sexo feminino, 76 anos, Figu-ra 2)

Sempre tem uma coisinha aqui, outra coisi-quinha ali. Ah! Estou com 84 anos, vou morrerassim mesmo. (sexo feminino, 84 anos)

Somente quando a dor foi relatada comomuito intensa, a autopercepção foi regular ounegativa.

Muita dor, dói até o ouvido. (sexo feminino,83 anos, autopercepção negativa)

Aparência

Com relação à aparência, 6 entrevistados re-lataram problemas; dentre esses, 5 autopercebe-ram positivamente a saúde bucal, sugerindo queperceber problemas com a aparência também nãodetermina autopercepção negativa da saúde bu-cal. Entretanto, outros idosos que não relataramobjetivamente problemas com aparência, rela-

ram, na abordagem qualitativa, insatisfações dessanatureza no ato de sorrir ao ser fotografado. Autilização de indicadores sócio-odontológicos deforma puramente quantitativa não capta essetipo de situação. Dessa forma, é possível que onúmero de idosos que sofrem impactos na qua-lidade de vida devido à aparência da boca sejamaior do que o usualmente captado. O relatoabaixo retrata esse conflito.

Sei que toda pessoa deve tirar retrato sorrindo.Tenho frustração de não ter dentes, fico acanhado,mas venho trabalhando para superar isso. Tenhoque me acostumar porque não vou ter dinheiropara arrumar, mas não vou deixar de sorrir porisso. (sexo masculino, 62 anos, autopercepção re-gular, Figura 3)

A falta de esperança em obter acesso aos ser-viços odontológicos, evidenciada na fala acima,gerou no idoso uma auto-imposição de confor-mação diante dos problemas bucais. Se o idosoem questão permanecesse sem tratamento, pos-sivelmente passaria a ter uma autopercepçãopositiva, pois, atingiria com o tempo a aceitaçãopretendida, parando de combater aquilo que nãoacredita ter poder para mudar. Conformado é“aquele que se acomoda com infortúnios, des-confortos, desgraças”35, trazendo consigo a per-cepção de uma situação indesejável. Já a aceita-ção refere-se ao “fato de aceitar-se com naturali-dade e conformação qualquer sofrimento ou in-fortúnio”35 passando a percepção de condiçãoindesejável para condição predominantementenatural. A conformação e a aceitação parecemcontribuir com o predomínio de autopercepçãopositiva diante de precárias condições clínicas,conforme revelado na fala abaixo, de uma idosamais velha e já mais conformada.

Os dentes da frente ainda estão aí, embora ene-grecidos, velhos, né? Mas não vai aparecer na foto.Melhor sorrir mesmo com os dentes assim do queficar com cara fechada, carrancuda. (sexo femini-no, 78 anos)

Mastigação

Problemas relacionados à mastigação foramidentificados por 28 idosos. Entretanto, durantea abordagem qualitativa, quando perguntadosobre o consumo de onze alimentos específicos(Quadro 1), somente 13 idosos relataram conse-guir mastigar todos eles. Esta discrepância foicausada pelo consumo de alimentos de maneiraalternativa. Idosos com deficiências mastigatóri-as criam mecanismos alternativos para ingeriralimentos que não conseguiriam mastigar de for-

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com 62 anos.

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ma convencional, adaptando-se tanto a elas, quedeixam de representar algo problemático. Paramuitos, amolecer, picar ou amassar os alimen-tos representa algo normal, que impede a per-cepção da dificuldade mastigatória. A aborda-gem qualitativa foi eficiente em captar este tipode consumo, pois o número de indivíduos aco-metidos por problemas mastigatórios mais quedobrou. Abordagens puramente quantitativasnão captam esse tipo de situação.

Como sem problemas. Amoleço no feijão pri-meiro, depois eu chupo. Se ainda ficar uns pedaci-nhos duro, eu engulo inteiro mesmo. (sexo mas-culino, 83 anos, sobre consumo de torresmo)

Vou te contar, tem alimento duro que a gentedeixa na boca um pouco e ele amolece rápido. Tor-rada, biscoito. (sexo feminino, 75 anos)

Os idosos que perceberam objetivamenteuma dificuldade mastigatória pareceram se refe-rir mais à impossibilidade de ingerir alguns ali-mentos. Mesmo diante dessa limitação percebi-da, observa-se conformação e aceitação.

Alimentos duros, não dá. Todas as pessoas queusam dentadura têm esse problema, é normal. Agente vai se acostumando e procura comer semprealimentos mais macios.... Tem coisa que não temjeito. Côco e amendoim não dá, mas é tão fácilsubstituir. (sexo feminino, 75 anos)

Portanto, embora muitos idosos tenham pro-blemas mastigatórios, percebe-se que a maioria nãose importa, pois criou um mecanismo compensa-tório ao qual já se adaptou. Além disso, no geral, asdeficiências mastigatórias não determinaram umimpedimento ou limitação no convívio social.

Não teria problema algum (em se alimentarem um restaurante). Pediria um prato de acordo.Quem usa prótese tem que saber o que escolher, oque pode comer. Tem tanta coisa boa que a gentepode comer, por que insistir em coisa difícil. (sexomasculino, 75 anos, autopercepção positiva )

Fonação e convívio social

Um único indivíduo percebeu problemas coma fala e cinco perceberam limitação nas relaçõessociais na abordagem objetiva. Entretanto, maisuma vez, outros idosos mencionaram as condi-ções odontológicas durante a avaliação qualitativade questões sobre os atos de cantar, conversar ouse alimentar em público. Essas situações tambémnão são captadas na utilização de indicadores só-cio-odontológicos puramente quantitativos.

Tendo os dentes fica mais fácil cantar. Sem eleso som sai um pouco diferente, mas eu canto mesmoassim. (sexo masculino, 80 anos)

Eu mastigo só com estes dois dentes aqui, mui-ta coisa eu engulo inteiro. Mas, nem ligo se os ou-tros olham. (sexo feminino, 85 anos, sobre se ali-mentar em festas)

A baixa prevalência de indivíduos relatandoproblemas com a fala e nas relações sociais, as-sim como com a aparência, pode ser devida asentimentos de solidão e abandono, conformerelato a baixo.

Quase não converso, aqui não tem ninguémpara conversar... Detesto solidão. (sexo feminino,88 anos)

Autopercepção

Os achados concernentes às questões quali-tativas do impacto das condições bucais na qua-lidade de vida ajudam a compreender o predo-mínio de autopercepção positiva da saúde bucal,apesar do estado clínico precário. Abaixo, relatosapresentando algumas justificativas dadas pelosidosos ao autoperceberem positivamente suascondições bucais.

Não tenho nada não, falta fazer umas coisasque quebraram, mas pela minha idade, tá até bom.Tenho 69 anos e tá bom até demais. (sexo mascu-lino, 69 anos)

A boca tá boa, em cima tenho dentadura, embaixo tem umas raízes que precisa arrancar, masnão quero arrancar agora porque não incomoda.(sexo feminino, 89 anos, Figura 4)

Em baixo tem alguns dentes, em cima não temnada. Ah! Já estou no fim, não preciso de dentadu-ra, nem de dentista. Não dói, dá pra continuarassim é só não mastigar coisa dura. (sexo femini-no, 91 anos, autopercepção positiva, Figura 5)

Figura 4. Estado clínico da cavidade bucal de idosa

com 89 anos.

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Embora os idosos tenham identificado algu-mas condições clínicas ou necessidades de trata-mento odontológico, eles não se referiram a elascomo algo que deva ser melhorado ou resolvido,sugerindo baixa auto-estima e aceitação de limi-tações relacionadas à saúde bucal como naturaisnesta fase da vida. Acredita-se que os idosos setornam mais tolerantes com os problemas dacavidade bucal que surgem ao longo da velhice33.É responsabilidade de todo profissional de saúdeorientar que doenças bucais, desconfortos e des-figuramentos não são conseqüências inevitáveisdo envelhecimento14,37, mas decorrentes da ins-talação de processos patológicos que devem seridentificados e trabalhados de forma participati-va e efetiva38. A educação em saúde despontacomo um elo entre os desejos e expectativas des-sa população por uma vida melhor e as proje-ções e estimativas dos governantes ao oferecerprogramas de saúde mais eficientes38.

Muitos idosos e seus familiares acreditam ain-da que só devam procurar por atendimentoodontológico em caso de dor. Mas muitas alte-rações odontológicas são assintomáticas e des-conhecidas pelos indivíduos11 ou equivocada-mente vistas como inevitáveis ao envelhecimen-to14. A baixa expectativa dos idosos em relaçãoao tratamento odontológico, e o fato de acredi-tarem que a visita ao dentista seja importanteapenas para quem possui dentes, também repre-senta importante barreira ao uso de serviçosodontológicos28,39. Esses fatores parecem contri-buir na baixa proporção (40%) de idosos queperceberam a necessidade de ir ao dentista.

Dentista? Pra quê? Já não tenho dentes mais.Não tem nem porque ir agora. (sexo feminino, 88anos, autopercepção positiva)

Conforme observado entre idosos do SB Bra-sil, indivíduos desdentados totais apresentarammenor percepção da necessidade de tratamentoodontológico, apesar da utilização dos serviçospor esses indivíduos ser necessária para avalia-ção de próteses e reconhecimento de alteraçõesem tecidos moles, importantes no diagnósticoprecoce do câncer de boca17,28.

Pessoas procuram ajuda quando realmenteacreditam que esta lhes será disponível6. A falta deesperança em obter acesso a tratamento odonto-lógico, por questões financeiras ou outras dificul-dades, parece ser decisiva entre os que afirmaramnão necessitar ir ao dentista. Muitos relatos evi-denciam percepção de necessidades de tratamen-to, mas devido às dificuldades vivenciadas, mui-tos deixam de acreditar que isso seja possível.

Falta dinheiro para ir no dentista, está aca-bando de arrebentar os cacos todos. (sexo femini-no, 83 anos)

Logo vou morrer. Não acho que vale a penagastar com isso (dentista), tempo e dinheiro. Eutenho pensado em outras coisas... Precisar, até queestaria precisando, não sei bem. Ah! Deixa pra lá.Não quero mexer com isso mais não. (sexo mascu-lino, 70 anos, autopercepção positiva, Figura 6)

A conformação e a falta de esperança são ele-mentos presentes na grande maioria dos espa-ços institucionais brasileiros40. De alguma formaestes indivíduos passam a ter valores sociais di-ferentes. A maioria, não parece se abater ou mes-mo se indignar com precárias condições bucais enem mesmo com as limitações conseqüentes des-tas condições. Os que gostam de cantar, conver-sar, sorrir, não vão deixar de fazer isso se tiveremà oportunidade, porque não têm dentes, ou por-que a prótese balança. Eles se sentem inertes,

Figura 5. Estado clínico da cavidade bucal de idosa

com 91 anos.

Figura 6. Estado da prótese utilizada por idoso com

70 anos.

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aguardando a morte e por isso aceitam a deteri-orização de seu quadro de saúde bucal, não acre-ditando que mereçam, ou que seja possível pos-suírem melhores condições bucais. Quanto maisse enxergam deteriorados e com capacidades cadavez mais limitadas, mais se sentem próximos dofim e passam a enxergar a morte como algo tãopróximo e certo, que permitem, muitas vezes, queseus corpos “morram” em vida. Há que se verifi-car se tais sentimentos são agravados pela insti-tucionalização ou se acompanham o processo deenvelhecimento per si, estando também presen-tes entre idosos não institucionalizados.

Daqui para a sepultura, vou ficar com esse dentemesmo. (sexo feminino, 89 anos)

Nesse estudo foram contabilizados somenteos indivíduos que relataram objetivamente so-frer impactos em cada uma das dimensões avali-adas (Tabela 1), não levando em conta aquelesque, apesar de sofrerem limitações não as perce-beram objetivamente. Portanto, apesar da altaporcentagem de idosos (75%) sofrendo impac-tos das condições bucais na qualidade de vida,ainda assim, este dado está subestimado se fo-rem consideradas as limitações reais, qualitati-vamente captadas, e não somente as percebidas,quantitativamente contabilizadas.

Considerações finais

O presente trabalho evidenciou que a maioriados idosos autopercebeu positivamente sua saú-de bucal, embora tenham apresentado precárioestado clínico e sofram impacto negativo da saú-de bucal na qualidade de vida.

Verificou-se alto CPOD, pequeno númeromédio de dentes presente e predomínio de idososedentados totais. Apesar do estado precário dospoucos dentes presentes, a maioria afirmou nãonecessitar de tratamento odontológico.

A utilização da metodologia qualitativa foi efe-tiva em identificar fatores sociais que permitemmelhor compreensão da autopercepção da saúdebucal entre idosos. Assim, constatou-se que osidosos perceberam alguns problemas ou a neces-sidade de tratamento, apesar da grande capaci-dade de aceitação das limitações impostas peloprecário estado clínico, com subestimação de sin-

Colaboradores

DS Haikal, AMB Paula, AMEBL Martins, ANMoreira e EF Ferreira participaram igualmente

de todas as etapas da elaboração do artigo.

tomas, resignação com uma situação que temcomo ser modificada e falta de esperanças de ob-terem acesso a tratamentos odontológicos. Amaioria dos idosos encarou limitações como con-seqüências inevitáveis do envelhecimento e nãocomo um problema que mereça ou possa ser cor-rigido. Muitos idosos relataram que o precárioestado clínico não os impede de vivenciar mo-mentos importantes da vida social como a masti-gação deficitária em ambientes públicos, o canto,a felicidade expressa pelo sorriso, até mesmo semdentes. O que realmente incomodou e foi impac-tante na qualidade de suas vidas foram as rela-ções de dependência, inclusive para ir ao dentista,a solidão e a proximidade com a morte, minimi-zando quaisquer outros problemas. A utilizaçãode indicadores sócio-odontológicos quantitativosvalidados, como é o caso do GOHAI, tem a van-tagem de permitir maior comparabilidade entreestudos, mas não captam essa subjetividade desentimentos relacionados ao bem-estar e ao ado-ecer, nem crenças e valores pessoais atribuídos àsaúde bucal, tão necessários para a compreensãodo problema em questão.

A administração do atendimento odontoló-gico ao idoso institucionalizado é complexa, masessencial. No Brasil, o modelo de assistência ge-riátrica institucionalizada é, muitas vezes, de des-caso, desrespeito e negligências. Mas é possívelreverter esse quadro construindo condições só-cio-culturais favoráveis a uma velhice bem su-cedida, institucionalizada ou não. Se o idoso tivervez e voz, poderá reiniciar um modo de vida inte-ressante. Uma velhice consciente, atuante e dis-posta a intensificar seu presente com qualidadede vida. É este o desafio que temos pela frente.

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Artigo apresentado em 23/08/2009Aprovado em 25/09/2009Versão final apresentada em 10/10/2009

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