AUTOAJUDA ARTIGO
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Sua vida é fruto de suas próprias escolhas (?): Um olhar sobre o discurso da “autoajuda”
Alessandra Valério1
RESUMO: Este artigo faz uma breve análise das relações existentes entre o universo discursivo-ideológico da literatura de autoajuda e o mundo do trabalho, mediadas pelos dispositivos teóricos oriundos da Análise do Discurso Francesa. A partir de uma rápida contextualização do gênero referido e das situações profissionais da pós-modernidade, este trabalho traça um painel das relações conflituosas que envolvem o discurso da auto-ajuda e realidade na qual se situa.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Auto-Ajuda; Relações de Trabalho.
DISPOSIÇÕES INICIAIS
O presente artigo se debruça sobre o que atualmente designa-se como literatura de
“autoajuda”. Não é uma tarefa simples aventurar-se sobre um território híbrido e contingente,
sem esbarrar em alguma estereotipia ou em conceitos caricaturados, estimulados por uma
apreciação não fundamentada. Embora exista neste domínio muita desconfiança em relação a
esse tipo de produção textual , o gênero vem ganhando o mercado editorial, inexoravelmente,
nos últimos anos. Segundo dados da revista Superinteressante (08/2012, p. 64), de 2000 a
2010, houve um aumento de 50% nas vendas do gênero no mercado americano, enquanto, no
Brasil, durante o mesmo período, o filão acumulou ascensão de 700%.
Num país sem grandes condições e inclinações à aquisição de livros como o Brasil
(embora o mercado editorial venha mostrando alguma oscilação), esse alcance obtido pela
autoajuda é, no mínimo, sintomático. Compreender esta contradição implica remontar ao
panorama cultural vigente, buscando o ponto de intersecção onde se fundem os anseios do
homem moderno, seu contexto social e o discurso do “sua vida está em suas mãos”,
recorrente, nesse tipo de texto. Foucault (1989) sustenta a necessidade de elucidação do
sujeito moderno, que pode ocorrer através da pesquisa e análise das narrativas e dos discursos
e manuais de prática onde se compreende o movimento de formação da subjetividade da
civilização, assim compreender os fundamentos da prática da autoajuda permite a apreensão
do momento sócio-histórico do ser humano atual. Este estudo pretende enveredar por este
torvelinho ideológico, a partir dos dispositivos teóricos oriundos da Análise do Discurso de
linha francesa, a fim de delinear alguns horizontes que norteiam o discurso da auto-ajuda.
PRINCÍPIOS TEÓRICOS
1 Doutoranda em Letras – Unioeste
Um ponto básico para a abordagem do objeto de estudo desta pesquisa é o esboço da
concepção de linguagem que norteia este trabalho, questão esta que maneja a escolha da teoria
a ser utilizada. Bakhtin (1992, p.78) concebe a linguagem como atividade, forma de ação
entre indivíduos histórica e socialmente localizados, articulando o linguístico com o social e,
por consequência, com a ideologia: “O signo ideológico não é apenas o reflexo, uma sombra
da realidade, mas também um fragmento material desta realidade”. Este vínculo do signo com
a ideologia remete, diretamente, ao caráter de não-neutralidade da linguagem. A língua não é
neutra; ao contrário, materializa as construções ideológicas sociais. Portanto, não há
gratuidade no que tange à matéria linguística e este enfoque é ponto nevrálgico para o estudo
dos textos de autoajuda.
No mesmo rumo da concepção de Bakthin (1992), Pêcheux (1969), procurando
contornar o estruturalismo reducionista reinante no século XX, partiu deste caráter social da
língua e fundamentou a Análise do Discurso (AD), construindo uma base epistemológica que
teve como fundamentos a lingüística, o materialismo histórico e a psicanálise. Originária da
necessidade de uma teoria que resgatasse o campo do significado no trabalho com a
linguagem, a AD irrompe na década de 70, como uma disciplina centrada no processo de
construção de sentidos.
Como uma teoria da leitura, a análise do discurso propõe "problematizar" as maneiras
de ler, considerando a opacidade como característica da linguagem. Ao mediar a relação com
o texto, ela possibilita que se enxergue formas de significação que dificilmente seriam vistas a
"olho nu", ou seja, que seriam invisíveis sem os dispositivos teóricos de análise fornecidos
por essa disciplina. Como mostra Maingueneau (1989), de acordo com Pêcheux (1975), a
Análise do Discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando o
sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar leitor a
níveis opacos à ação estratégica de um sujeito.
Isto não significa que, para a AD a língua não tenha também um aspecto formal, pois
Pêcheux (1975), ao estruturar a sua epistemologia, garantiu-lhe uma base lingüística regida
por leis internas, sobre as quais se constroem os efeitos de sentido. Desta forma, a estrutura
lingüística também trabalha para obtenção da significação do discurso.
Faz-se necessária a explanação dos conceitos-chave da AD e indispensáveis para a
pesquisa com o corpus do discurso de auto-ajuda. Eles são as noções de Formação
Discursiva (FD) e Formação Ideológica (FI). Para sustentar sua teoria, Pêcheux (1975)
buscou base no trabalho de Althusser (1970) acerca das relações estabelecidas entre a
ideologia e os mecanismos de reprodução da mesma, regidos pelo Estado. Basicamente,
fazendo uma leitura de Marx, Althusser (1970) propõe investigar o que determina as
condições de reprodução social, partindo da idéia de que a ideologia se materializa em
práticas que repetem a estrutura social. Nesta perspectiva, a Formação Ideológica pode ser
compreendida como a visão de mundo de uma dada classe social, ou seja, as representações e
idéias que esta classe possui do mundo.
Um dos modos de concretização destas formações ideológicas seria o próprio discurso,
como podemos confirmar nas palavras de Pêcheux (1975, p. 166)
se deve conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence, assim pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas de que acabamos de falar comportam necessariamente, como um dos seus componentes, uma ou várias formações discursivas.
Já a noção de Formação Discursiva remonta diretamente a Foucault (1969), que
concebe o discurso como uma dispersão, uma unidade de discurso fechada sobre si mesma.
Assim, a função básica da AD seria a de buscar uma unidade dos elementos formadores desta
dispersão. Essas regras (BRANDÃO, 1998, p.28) “que determinam, portanto, uma ‘formação
discursiva’ se apresentam sempre como um sistema de relações entre objetos, tipos
enunciativos, conceitos e estratégias”. Essas relações, entretanto, apresentam uma espécie de
regularidade. Esta somente é obtida através do estudo dos enunciados que compõem a FD.
A Formação Discursiva, desta forma, ocupa um lugar centralizador, em que se fundem
a ideologia e o discurso. Portanto, ela é responsável pela determinação do que pode ser dito
ou não em determinada época ou lugar, impondo aos membros de grupos distintos o que
podem pensar e falar. Como afirma Fiorin (2000, p. 32), “Por isso, o discurso é mais o lugar
da reprodução do que da criação”. No entanto, uma FD não é uma ilha fechada e se pode dizer
ela é invadida por outras FDs diferentes, o que acarretará no conceito de interdiscurso.
O interdiscurso seria, então, a relação de um discurso com outros discursos: ele é a
sede das construções sociais de sentidos que compõem a memória dos já-ditos vigentes na
sociedade, na forma de redes de sentidos entrelaçados.
Para Maingueneau (1989), a interdiscursividade tem lugar prioritário no estudo do
discurso, pois o interesse não é somente apreender uma FD, porém a interação que ocorre
entre várias FD diferentes. Portanto, pode-se afirmar que o discurso é produto do trabalho
sobre outros discursos, já que a Formação Ideológica comporta mais de uma posição que pode
se confrontar com outras.
Deste modo, uma característica fundadora do discurso é a que se pode chamar de
heterogeneidade, que é a relação existente entre a exterioridade e a interioridade de um
discurso. A heterogeneidade pode estar explicitamente mostrada na superfície através de
indícios como marcas lingüísticas (discurso direto, discurso indireto, negação, aspas,
metadiscurso do enunciador), denunciando a presença do outro explicitamente, ou na
heterogeneidade constitutiva, com o outro estando inscrito no discurso, mas cuja presença não
é explicitamente marcada. A heterogeneidade constitutiva é apreendida pela memória
discursiva de uma formação social.
Para completar a tríade de sustentação teórica da AD, cabe aqui mencionar que toda
FD “deriva de condições de produção” (PÊCHEUX, 1975, p. 167). Estas condições de
produção remetem à situação da enunciação, onde entram em jogo as noções de papéis ou
lugares sociais, que determinarão quem pode falar o que, como (de que forma) e a quem. As
FDs têm determinados, de antemão, os seus lugares sociais, de modo que os indivíduos se
ajustam a essas formações e articulam a partir daí seus enunciados. Portanto, é imprescindível
que estes indivíduos saibam de que lugares falam, que lugares ocupam seus interlocutores e o
que desta forma pode abordar o discurso.
Outra questão pertinente para este arcabouço teórico é a que se refere à questão do
sujeito na AD. A concepção que parece mais adequada à sustentação teórica dessa pesquisa é
a formulada por Possenti (2000, p. 58):
Em suma o falante nem é inútil, nem todo-poderoso. Dizer que o falante constitui o discurso significa dizer que ele, submetendo-se ao que é determinado (certos elementos sintáticos e semânticos, certos valores sociais) no momento em que fala e tendo em vista os efeitos que quer produzir, escolhe, entre os recursos alternativos que o trabalho lingüístico de outros falantes e o seu próprio, até o momento, lhe põem à disposição, aqueles que lhe parecem os mais adequados.
Assim, temos um sujeito que possui objetivos perante a linguagem e não é um mero
repetidor de frases feitas. Ele tem à sua disposição um certo grau de flexibilidade da língua
com que pode trabalhar, de acordo com o que pretende (ofender, lisonjear, ordenar). Desta
forma, faz uso dos recursos que melhor se adaptem aos seus interesses.
Portanto, partindo desse pressuposto, pode-se inferir que a escolha de um elemento
lingüístico em detrimento de outro, na superfície textual, não é gratuita, mas parte de uma
escolha feita pelo locutor de modo que seus objetivos sejam garantidos através desta, o que
nem sempre ocorre, pois a constituição do efeito final também depende da forma como o seu
interlocutor fará esta leitura. Este é o próximo ponto importante: a questão do sentido.
A construção do sentido é intrínseca às relações estabelecidas entre as formações
discursivas, formações ideológicas, heterogeneidade, interdiscurso e o sujeito. Ou seja, o
sentido de uma FD está relacionado, diretamente, com os vínculos que esta FD mantém com
outras FDs no interior do espaço discursivo.
Finalizando, uma outra noção relevante é fornecida por Bakhtin acerca dos gêneros do
discurso (1997, p. 179):
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana (...). O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também e sobre tudo por sua construção composicional.
Assim, os discursos são cerceados por formas já prontas, que não são estáticas e nem
homogêneas, mas que são, de certa forma, estáveis. O locutor age na escolha da forma
adequada para sustentar seu enunciado, de acordo com seus objetivos. Portanto, o interlocutor
reconhece essas formas e sabe diferenciá-las para a construção do sentido.
Dessa forma, a escolha deste ou daquele gênero também é ideológica. Ou seja, o fim
determina o meio a ser empregado. No caso da pesquisa com as histórias oriundas da
literatura de auto-ajuda, cabe ao trabalho esclarecer a razão da escolha do gênero narrativo em
detrimento de outros gêneros e em que a historicidade desta modalidade pode esclarecer os
fins a serem perseguidos com a eleição desses meios.
Autoajuda: um gênero em expansão
A heterogeneidade e o hibridismo são sem dúvida os traços fundamentais deste gênero
discursivo que, atualmente, convencionou-se designar de literatura de autoajuda. Ele também
pode ser chamado de literatura de autodesenvolvimento, motivacional ou humanista.
Partindo desta premissa inicial, qualquer definição estanque acerca do objeto seria
arriscada. Porém, algumas regularidades são observáveis e podem ser consideradas o ponto de
partida para uma abordagem do gênero. Nesta perspectiva, Rüdiger (1996, p. 57), um dos
primeiros a se aventurar nesta área, esboça um perfil incipiente, caracterizando o filão de
discursos de autoajuda como “uma série de práticas, sobretudo de leitura, através das quais o
indivíduo comum vem tentando descobrir, dentro de si, os recursos e a solução dos problemas
pessoais criados pela vida moderna”.
A convicção do poder da subjetividade, da capacidade interna de superação das
dificuldades e a solução interior para conflitos exteriores parecem ser a condição sine qua non
da constituição do discurso do fenômeno em questão. Deste modo, a literatura de autoajuda é
formada, sobretudo, por manuais e textos de prática, que contêm, em essência, uma
metodologia para a conquista do sucesso material, isto é, a riqueza e o poder; um conceito a
respeito da auto-realização pessoal e sobre os meios de como obtê-la individualmente.
Usando os mais variados tipos textuais: provérbios, narrativas, fábulas, depoimentos,
receitas e diferentes recursos lingüísticos, a literatura de autoajuda forma um painel de textos
ecléticos que emaranham princípios científicos, religiosos, místicos e transcendentais com
conhecimentos da área empresarial, da psicologia, da pedagogia e da neurolinguística. O norte
é o sucesso que, em geral, traduz-se em dinheiro, lucro, status social, admiração e respeito no
meio em que o indivíduo se insere, quesitos por que muitos anseiam e raros obtêm.
Apesar deste sincretismo generalizado, o gênero aponta dois deslocamentos que
enveredam por trilhas sutilmente diferenciadas. De acordo com Rüdiger (1996, p.58)
Esquematicamente, os títulos que se subsumem ao gênero podem ser divididos em duas categorias: primeiro, os livros que ensinam a desenvolver capacidades objetivas, pretendem nos ajudar a conseguir sucesso nos negócios, comunicar-se com as pessoas, etc.; segundo, os livros que ensinam a desenvolver capacidades subjetivas, pretendem nos ajudar a obter auto-estima, saber envelhecer, vencer a depressão ou viver em plenitude.
Essas duas vertentes podem ser compreendidas de forma sintética (mas não estática),
como dois grandes grupos da literatura de autoajuda: um é mais voltado para o campo
profissional e outro é direcionado para o lado emocional, subjetivo e espiritual. O primeiro
traça o perfil do trabalhador do século XXI, as exigências do mercado e as relações de
produção que caracterizam o contexto atual: ele possui uma abordagem pragmática e incisiva.
O segundo lida com questões de âmbito interno: dificuldades emocionais, problemas sexuais,
conjugais e familiares, esboçando um painel psicanalítico do indivíduo da pós-modernidade.
Cada grupo lança mão de recursos diferenciados para o alcance de seus objetivos. No
primeiro tem-se a predominância de um tom mais imperativo e dinâmico, ao passo que, no
último, presencia-se uma maior espiritualidade e introspecção.
O corpus
Para a efetuação de uma análise, este estudo elegeu o primeiro grupo, ou seja, a
autoajuda de âmbito profissional, voltada à obtenção de sucesso no mercado de trabalho. Não
se trata, porém, de embaralhar as leituras de formação da área administrativa com o gênero
midiático. Como esclarecido, anteriormente, a autoajuda tem por característica a subjetivação
das soluções e fornece apenas parâmetros especulativos e ecléticos para a superação das
dificuldades, que podem ser ilustrados pelas máximas: “Mudança vem de dentro” e “Comece
por você” e não fornece subsídios para uma reflexão mais abrangente, totalizante.
Portanto, foram selecionados alguns textos best-sellers do gênero: Superação: 7
atitudes para o crescimento pessoal e profissional de Elias Lourenço (2005); Quem mexeu no
meu queijo? Uma maneira fantástica de lidar com as mudanças no seu trabalho de Spencer
Johnson (2004); Poder sem limites: o caminho do sucesso pessoal pela programação
neurolinguística de Anthony Hobbins (2008). Como esta análise visa lidar apenas com
autoajuda profissional, foi necessário fazer uma seleção nas próprias obras, a fim de se ater
aos textos referentes, apenas, ao mundo do trabalho.
5. DO TEXTO AO CONTEXTO: memória discursiva acerca das relações de trabalho
O componente mais importante em nossas vidas é, sem dúvida, o trabalho. Isso porque, além de constituir um ótimo subsídio para o aprendizado é o lastro no qual planejamos nosso destino. É através dele que desenvolvemos aptidões e realizamos nossos projetos de vida. Como a constituição de uma família e os bens materiais necessários para seu conforto ( ROBBINS, 2008, p. 58).
Situar os protagonistas do discurso, elucidando as condições de sua produção, é o
primeiro passo para uma tentativa de apreensão de seu sentido. Neste intento, é importante
esclarecer que esta concepção de trabalho, esboçada pelo fragmento acima, é algo que
ascendeu com as revoluções burguesa e industrial do século XVIII e está excepcionalmente
cristalizada nos discursos hegemônicos atuais.
Num breve olhar pela história da humanidade, não é difícil constatar que o trabalho
foi, por muitas vezes, concebido como castigo, privação e humilhação. Na literatura cristã, ele
surge como vingança divina contra os erros humanos: “Com o suor do teu rosto ganharás o
teu pão” (Gênesis, 3:19). No período greco-romano, era atividade relegada aos escravos.
Porém, com a erupção do aparelho capitalista, a produtividade e o consumo passam a ser
imprescindíveis para a manutenção do lucro e continuidade do sistema. A mão-de-obra
assalariada passa a ser o cerne da movimentação e a forma de sobrevivência da massa social.
A partir de então, o trabalho (no sentido de produção do capital) adquire um lugar
consagrado na sociedade e passa a ser referencial para a constituição da identidade humana.
No entanto, as disparidades existentes entre os fornecedores de mão-de-obra e os detentores
dos meios de produção são gritantes. Para que o último mantenha sua hegemonia lucrativa
faz-se necessário que o segundo aceite vender sua força pelo menor custo possível. É neste
âmbito que atua a ideologia, como uma força mantenedora da ordem hierárquica social.
É necessário que a massa trabalhadora aceite as condições de um jogo, em que ela sai
perdedora. Para tal, são inúmeros os dispositivos ideológicos que a classe dominante lança
mão: é o que Althusser (1970) denomina de “aparelhos ideológicos do estado”. A
canonização do trabalho, enquanto valor ascético, busca evitar que ele se torne refratário a
este dispositivo da ideologia, que, de certa forma, fragmenta a realidade e cujo instrumento
elementar é a opacidade da linguagem. Para a esfera capitalista, é imprescindível que os
indivíduos mantenham com o trabalho uma relação de submissão, dependência e veneração.
Não se trata, pois, de estabelecer uma ordem rígida e maniqueísta para a organização
social produtiva. No entanto, seria ingênuo não levar em consideração estas relações de
domínio; seria o mesmo que negar a existência de uma sociedade de classes ou concebê-las
como algo natural e intrínseco à natureza humana.
As formações discursivas da auto-ajuda profissional parecem, em geral, superestimar o
valor do trabalho e da esfera produtiva na vida social. Desta forma, reiteram o discurso do
valor do trabalho como único meio de crescimento, projeção de futuro e realização.
Você quer saber qual é o segredo do sucesso? Por que existem pessoas bem-sucedidas e outras não? A resposta é: TRABALHO, TRABALHO, TRABALHO (LOURENÇO, 2003, p. 67).
Não é RECLAMAÇÃO que faz as coisas acontecerem, é AÇÃO. Trabalho inteligente, metas determinadas (LOURENÇO, 2003, p. 67).
É muito palpável a relação estabelecida entre o discurso da autoajuda e outros que ele
tenta combater e abafar. É a esta relação de interação que se denomina interdiscurso, que a
Formação Discursiva da autoajuda estabelece como a voz dominante.
Existe aquele sujeito que acorda de manhã e já comenta com a esposa “É hora de ir para a guerra”. Possivelmente, o dia dele será aquilo mesmo que ele definiu. Como alguém pode tratar a atividade de seu sustento e de sua família de forma tão pejorativa? Você é aquilo que você vê. ( ROBBINS, 2001, p. 178).
A voz que o locutor do excerto acima deixa aparecer é a voz da resistência, o contra-
discurso que se nega a reconhecer no trabalho apenas seu lado apreciativo. No entanto, ela é
combatida pelo discurso dominante que transfere a responsabilidade do mal-estar relativo para
o trabalho do próprio indivíduo, para o modo como ele “vê” a sua situação. É impingir a culpa
ao sujeito, responsabilizá-lo, individualmente, por sua insatisfação.
A situação acima ilustrada se torna ainda mais crítica, se for levado em consideração o
contexto atual do trabalho na chamada pós-modernidade, sociedade da informação ou mundo
globalizado. Este período se caracteriza por uma fragmentação inóspita das relações
trabalhistas, engendradas pela volubilidade e transitoriedade do mercado mundial.
Com a globalização, a concorrência torna-se perversa e incisiva; a indústria se projeta
numa verdadeira corrida contra o tempo, em busca de lançar ao mercado “novidades” e criar
novas necessidades de consumo. Tecnologia, conhecimento e velocidade se integram nas
exigências do novo perfil de profissional. A maleabilidade, a capacidade de adaptação e a
rentabilidade passam a ser os requisitos peremptórios para estar ativo no mercado de trabalho.
A autoajuda empunha esta bandeira e massifica este modelo: “Notar cedo as pequenas
mudanças, ajuda-o a adaptar-se às maiores que ocorrerão. Se você não mudar, morrerá”.
(SPENCER JOHNSON, 2004, p. 71).
Seja um revolucionário. MUDE. Não aceite a mesmice. As empresas precisam de revolucionários que estabeleçam metas ousadas e desafiadoras e busquem a inovação, que não se acomodem. (LOURENÇO, 2003, p. 108)
Ocorre, no entanto, que, com a passagem do modelo fordista-taylorista para o
tecnológico-informacional, o mercado de trabalho sofreu uma imensa redução na necessidade
de mão-de-obra. A base da reestruturação se encontra na necessidade de flexibilização
organizacional da produção, que exige indivíduos cada vez mais especializados na sua
atividade, só que em uma escala bem reduzida.
Deste modo, o sistema capitalista, de explorador passa e ser excludente, pois não há
como açambarcar o volume de mão-de-obra existente no mercado neste estágio econômico. E
também porque não oferece a todos os indivíduos a mesma oportunidade de aperfeiçoamento
e especialização. Como afirma a socióloga mexicana Girola (2003, p.03 ),
Pero la flexibilización del mercado impone a los sujetos un trato individualizado del que los sectores menos favorecidos pueden no tener cómo defenderse. Las políticas neoliberales pueden tener como consecuencia una privatización extrema de las posibilidades de capacitación, de conseguir un trabajo, de permanecer contratado.
É neste momento que as ideologias individualistas apresentam-se como uma fonte de
distorção da realidade, sustentando a competição e a idéia de que cada um é único responsável
pelo seu sucesso ou fracasso dentro deste contexto. A autoajuda incorpora essa formação
ideológica, materializando-a no seu discurso, expandindo a imagem do indivíduo
autocentrado, dono de seu destino e cujo sucesso “está em suas mãos”.
Sua vida é fruto das suas próprias escolhas. Pelas decisões que toma, você escolhe seus pensamentos, seu nível de preparo físico, suas experiências, sua situação financeira, o que lhe cerca, as pessoas na sua vida. As circunstâncias não determinam quem você é. Elas revelam quem você é (ROBBINS, 2001, p. 295).
Novamente a transferência de responsabilidade do sistema social para o sujeito
unicamente é uma forma de amenizar as discrepâncias gritantes geradas pelo novo modelo das
relações de trabalho, um paliativo para as intermináveis angústias e insegurança oriundas
deste processo de descartabilidade do próprio ser humano. Mesmo sabendo das dificuldades,
o discurso da autoajuda tenta contornar a realidade, invertendo os papéis a todo custo.
É certo que vivemos permanentemente em "crise". Crise econômica, crise social, crise existencial. Mas a sabedoria chinesa estabelece dois significados para a palavra: perigo ou oportunidade. Cabe a nós a decisão. E nesse momento nosso destino estará sendo traçado (LOURENÇO, 2003, p. 29).
A situação se transfigura como apenas uma “questão de oportunidade”: compete ao
sujeito transformar a realidade em prazer ou sofrimento, fracasso ou sucesso.
Mas quando percebemos uma oportunidade, a questão crucial para a obtenção do sucesso, e aqui falamos de qualquer tipo de negócio ou profissão, passa a ser a atitude, isto é, a conciliação entre um compromisso assumido individualmente e a clara visão de futuro que se vislumbra a partir daquela iniciativa ( LOURENÇO, 2003, p.36).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo o senhor Grossi, diretor de marketing da Best Seller (cujas publicações do
gênero somam 50% dos lançamentos da editora), a explosão da autoajuda dá-se em
detrimento da "literatura tradicional" e a explicação de seu sucesso é simples: "em momentos
de crise, o leitor pára um pouco de sonhar, põe os pés no chão e procura as obras que vão
ensinar-lhe a melhorar sua vida".
Apesar de parecer apenas um modismo passageiro, o discurso da literatura de
autoajuda apresenta-se bastante cristalizado na sociedade pós-moderna. Os Estados Unidos
são, hoje, a “Meca” deste gênero “literário”, assim como a referência para o capitalismo
moderno.
Não é difícil compreender o sucesso de vendas desse gênero, em um país que tem
como cerne o mercado de trabalho e se mostra estruturado e competitivo. Porém, quando se
transpõe este fenômeno para um país como o Brasil, que abarca em sua genealogia todas as
disparidades e desigualdades possíveis, o fato torna-se hermético.
As exigências profissionais do mercado globalizado atual, endeusadas pela auto-ajuda,
são incompatíveis com a realidade social da maior parte dos brasileiros. Se o Estado não
oferece condições, não pode haver aperfeiçoamento e especialização tecnológica. Assim,
relega-se ao desemprego, à humilhação e à culpa, parte considerável da massa trabalhadora.
No entanto, os “manuais do sucesso” angariam lucros exorbitantes que nenhuma outra
literatura já provou no cenário nacional, comprovando o quanto a inversão engendrada pela
ideologia burguesa, concretizada pela linguagem e cristalizada nos discursos se faz presente e
pede com urgência uma reflexão mais abrangente.
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