AUTISMO À LUZ DA TEORIA WINNICOTIANA · 2012. 5. 31. · o objetivo de buscar uma melhor qualidade...
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AUTISMO À LUZ DA TEORIA WINNICOTIANA: REFLEXOS DE UM “SI MESMO” NÃO CONSTITUÍDO
MARINA RAELI*,PRISCILA DAL MOLIN *,RAQUEL TOZZI*,MARLY A. FERNANDES**
*Graduandas do quinto período em 2010 do Curso de Psicologia da PUC-Campinas**Docente de Psicopatologia do Curso de Psicologia da PUC-Campinas
RESUMO
Este estudo teve o objetivo de analisar e discutir as condutas da criança com autismo a partir da teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott. A prática oferecida pela disciplina Psicopatologia foi realizada em uma instituição que atende crianças e adolescentes com o diagnóstico de autismo , é composta por uma equipe multidisciplinar e oferece um programa sócio-educativo e familiar com o objetivo de buscar uma melhor qualidade de vida para o usuário e família.As observações e contato com as crianças aconteceram em espaços abertos , nas salas de aula e de atendimento, durante as atividades com os profissionais. Após as observações foram elaborados diários de campo (dados das observações, narrativas, questionamentos e diálogo com a teoria) que foram apresentados e socializados no laboratório da disciplina Psicopatologia. Os dados coletados pelas observações das condutas das crianças com autismo indicam reflexos de um si mesmo não constituído pois apresentam defasagens no desenvolvimento das três tarefas básicas: integração no tempo e espaço, alojamento da psique no soma e relações objetais, relativas ao estágio de dependência absoluta segundo a teoria Winnicottiana
Descritores-Autismo, psicanálise, Winnicott
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SUMÁRIO
5.1-Considerações Finais ................................................................................. 24
1.INTRODUÇÃO
1.1. Autismo Infantil
Ao longo da história da clínica, um dos desafios trazidos em pauta foi a
nosografia das ditas “novas formas da esquizofrenia infantil”, já que até então
essas classificações estavam calcadas, principalmente, ao modelo adulto de
patologia (MARCELLI E COHEN, 2009). Ao retratar a história das demências, os
mesmos autores explicitam dois desafios da época para a classificação das
patologias infantis: o primeiro se dá à freqüência em que o delírio ocorre na
criança e o “lugar particular da noção de demência” (p.223).
Portanto, na história da definição de autismo, antes classificada como
“esquizofrenia da criança” (POTTER, 1933; LUTZ, 1936; DESPERT, BENDER,
1937 apud MARCELLI E COHEN, 2009), é importante ressaltar que a definição se
deu por meio do exercício clínico, focando de uma forma primeiramente
rudimentar, o dinamismo de um “núcleo psicótico” como refere Marcelli e Cohen
(2009).
A definição mais marcante na história da psicopatologia “autismo” foi a
proposta por Kanner em 1943 (apud MORAIS ET AL, 2004):
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O patognomônico dessas crianças é a inabilidade de manterem relações normais com outras pessoas desde o início da vida [...] Desde o início há uma extrema solidão autista que, todas as vezes que isso é possível, desdenha, ignora, exclui tudo que vem à criança do exterior (p.180).
No seu estudo de caso postulado no Nervous Child, sob o título de Autistic
Disturbances of affective contact, o autor trazido por Morais et al (2004) explica
que algumas das crianças não se antecipavam ao serem pegas pelos pais no
colo. Além deste, outros aspectos igualmente importantes foram percebidos
nessas crianças, como descreve o próprio autor:
(...) não eram capazes de se moldar ao corpo de quem as segurava,... oito das onze crianças adquiriram habilidade para falar na idade usual mas não usavam a linguagem com o propósito de se comunicar, ... a reprodução de frases de maneira ecolálica permitia o surgimento de um fenômeno gramatical particular: os pronomes pessoais eram repetidos apenas como ouvidos... dificuldade na criação de atividades espontâneas”. (p.180).
Foi somente em 1944 que o psiquiatra austríaco, passa então a denominar
a síndrome como Autismo Infantil Precoce (KANNER, 1943 apud MORAIS ET AL,
1944). Mas, é somente na década de noventa, com a criação da Classificação
Internacional de Doenças (CID-10), que o autismo passa a ser definido e
classificado como um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, além de outros
distúrbios que apresentam alterações nos mesmos aspectos que também foram
acrescentados (CID-10, 1993 apud MORAIS ET AL, 2004). Os critérios
diagnósticos para o autismo segundo o CID-10, seria:
(...) a) falha em usar adequadamente o fitar “olho no olho”, a expressão facial, a postura corporal e os gestos para regular a interação social;b) falha em desenvolver (de uma forma apropriada para a idade mental e a despeito de oportunidades amplas) relacionamento com colegas que envolvem uma participação mútua de interesses , atividades e emoções;(...)2)(...)a) um atraso ou falta total do desenvolvimento da linguagem falada, que não é acompanhada por uma tentativa de compensação pelo uso de gestos e mímicas como um modo alternativo de comunicação (...);(...)c) uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou uso idiossincrático de palavras ou frases(...) (p.185).
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Dessa maneira, pode-se apreender, de acordo com Morais et al (2004),
que o autismo, basicamente, refere-se a um distúrbio nas habilidades de
comunicação, que acarretam a déficits na linguagem. Assim, nos diversos
sistemas diagnósticos, como explica Bosa e Callias (2000), os autores e
organizações têm se calcado em três critérios para a definição do quadro de
autismo e que dizem respeito à: prejuízo qualitativo na interação social; prejuízo
qualitativo na comunicação verbal e não verbal; no brinquedo imaginativo e
comportamentos e interesses restritivos e repetitivos.
1.2-A teoria do amadurecimento de Winnicott
Winnicott é o autor psicanalista que rompe com a psicanálise tradicional e
desenvolve sua teoria voltada para a constituição do ser como identidade unitária,
dando luz à relação de identificação primária da mãe com o bebê como trama
central, que na psicanálise tradicional é ocupada pelo complexo edípico
(ARAÚJO, 2003).
Para Winnicott, segundo Loparic (2006), haveria problemas fundamentais
para o indivíduo na fase inicial da vida que não seriam passíveis de solução pelos
elementos da teoria do complexo de Édipo. Além disso, para admitir um complexo
edípico precoce (teoria kleiniana), seria necessário sustentar a idéia de que o
individuo já nasce com um aparelho psíquico pronto, realizando atividades
mentais, com forças instituais e relações objetais (representações internas dos
objetos). Esta é uma idéia, de acordo com o autor, da qual Winnicott descarta
quando elabora sua teoria voltada para o estudo dos estágios primitivos do
amadurecimento psíquico, da integração de um eu.
De acordo com Dias (2003), a teoria winnicotiana concebe a idéia de que o
bebe chega ao mundo num estado de não-integração, ele é incapaz de
discriminar um “não eu” do “eu”, não há a consciência de um objeto externo, ou
mesmo o reconhecimento do próprio “eu”. Desta etapa do inicio da vida do
indivíduo, a mesma autora descreve:
O bebê ainda não é uma unidade; os inúmeros aspectos, que vão ser integrados à pessoa inteira que ele será, estão ainda desconectados. Não integrado, o bebê está como que espalhado, desorganizado, uma mera coleção de fenômenos sensório–motores reunidos pelo suporte do ambiente (p.128)
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O estudo de Winnicott, segundo Araújo (2003), permite uma forma
particular de compreender a constituição do ser como uma identidade unitária, o
“si mesmo”, na qual toma-se como ponto central a relação de identificação
primária da mãe com o bebê e a relação deste com o ambiente para a
constituição do si mesmo. Sua teoria, segundo Loparic (2006), compreende o
indivíduo em sua relação factual indivíduo-ambiente, caracterizando-o pela
tendência inata ao amadurecimento e o ambiente sendo o papel facilitador dessa
tendência, ou seja, Winnicott concebe a idéia de que o indivíduo possui um
potencial à integração, mas esta só ocorre se houver um ambiente que o favoreça
e que facilite esse processo (LOPARIC, 2006).
Sobre o tema, Winnicott (1983) esclarece:
Há tudo que é herdado, incluindo os processos de maturação, e talvez, tendências patológicas herdadas; estas têm uma realidade própria, e ninguém pode alterá-las; ao mesmo tempo, o processo maturativo depende para a sua evolução da provisão do ambiente. Podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial (p.81).
É desta forma que em seu desenvolvimento da Teoria do Amadurecimento,
Winnicott (1983) dará suma importância à primeira relação que o indivíduo tem
com o ambiente, que é materializada na relação mãe-bebê. Essa relação mãe-
bebê recebe o foco central na teoria winnicottiana, pois é nela que se apresentam
os estágios primitivos do desenvolvimento emocional, que ele acredita haver a
constituição das bases da personalidade e da saúde psíquica do indivíduo (DIAS,
2003).
Winnicott (1983) estuda os estágios primitivos do amadurecimento que
ocorrem na condição de dependência do bebê com a mãe, uma vez, para o autor,
o bebê só pode ser compreendido dentro de uma relação, pois não consegue
existir sozinho. Ao processo maturacional, Winnicott (1983) reporta aos estágios
de dependência, definidas por ele: dependência absoluta, seguida da
dependência relativa e, por último, rumo à independência.
Para que a criança passe de um estágio para outro, o autor evidencia a
importância da mãe suficientemente boa, que serve como o primeiro ambiente do
bebê e por isso, tem a função de apresentar o mundo à criança. Nessa tarefa ela
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deve exercer principalmente, a proteção da continuidade de ser do bebê, para
que ele alcance a constituição do “si mesmo” (Davis & Wallbridge, 1983).
Para que a mãe seja suficientemente boa em seus cuidados, e torne-se o
ambiente facilitador para essa criança, Winnicott (1983) descreve que é preciso
haver uma identificação primária para com o bebê, o que possibilitaria a mãe ser
devota à criança por conseguir pensar como ela. Ele reitera:
A mãe que se torna sensível o suficiente para adaptar-se às necessidades do lactente, no contato corporal, no modo de segurar, no olhar para ele, no seu movimento e quietude de acordo com as suas solicitações, é capaz de protegê-lo de sustos e do acaso, para que nada possa ser sentido como invasivo. Para ser feliz nessa tarefa, a mãe precisa ter se desenvolvido como uma pessoa total, e sentida de maneira viva e acordada. É tudo o que um recém-nascido necessita o ambiente apropriado para suas necessidades. (2006, p. 16)
Ou seja, a mãe-ambiente, como Araújo (2003) descreve, ao se identificar
com esse bebê, de forma a caracterizar um estado de “dois-em-um” o ajudará a
integrar-se, permitindo que ele viva uma experiência de onipotência. Essa
experiência, de acordo com o autor, é importante para afastar dele a ameaça da
falta de controle frente seu estado de vulnerabilidade, o que Davis & Wallbridge
(1982) definem como o estado em que o bebe é caracterizado por um sentimento
de desamparo físico e emocional,
o bebê não tem meios de saber nada a respeito do cuidado materno, que é em grande parte, uma questão de profilaxia, e ele não pode obter controle sobre o que é bem ou mal feito, mas está apenas em posição de obter proveito ou sofrer perturbações (p. 51).
As perturbações referir-se-iam aos aspectos dessa vulnerabilidade que,
para Winnicott (1983), o bebê não conseguiria vivenciar ainda e levam o nome de
agonias impensáveis. Essas agonias são referentes à fase inicial de vida do
indivíduo que não é capaz ainda de experienciá-las, e se referem à “sensação de
desintegração, de cair para sempre, de não ter conexão alguma com o corpo e
carecer de orientação” (WINNICOTT, 1983, p. 123). Elas se dão diante do
encontro com o mundo, inesperado e incompreensível para o bebê, e está cada
uma relacionada diretamente com aspecto do amadurecimento normal.
É sobre as possibilidades de falhas ambientais e da defesa que o bebê se
utilizará para defender-se das agonias impensáveis, que se pode encontrar a
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gênese dos distúrbios da personalidade (WINNICOTT, 1983). Neste cenário, é
que serão discutidas o entorno do Autismo na teoria Winnicottiana.
1.3. O autismo à luz da teoria de Winnicott
Levando-se em conta o processo de constituição da identidade unitária
como um processo gradual, que compreende principalmente a relação de
identificação primária da mãe para com o bebê, Winnicott (1983, apud Araujo,
2003) entra em contato com as conseqüências que podem advir caso a
constituição do “eu” não aconteça. A esses estudos, o autor enfatiza a relação
que se estabelece entre o amadurecimento do bebê e o cuidado da mãe para
com a criança e como isso pode afetá-lo diretamente, em seu desenvolvimento da
constituição de si. É dessa forma que o autor (1983 apud Davis & Wallbridge,
1982) vai constituir como cerne para a compreensão do autismo, a falha
ambiental.
De acordo com Winnicott (1983), as adversidades presentes no ambiente a
serem enfrentadas pelo lactante no processo de amadurecimento poderão ser
consideradas saudáveis quando enfrentadas no limite de tempo necessário e
quando não há interrupção no próprio amadurecimento (apud ARAUJO, 2003).
Quando a criança passa a somente se defender desse ambiente ameaçador ela
pára de exercer sua continuidade de ser e muitas vezes permanecem
completamente isoladas, ensimesmadas, o que seria a raiz das psicoses para
Winnicott.
Winnicott (1938, apud Araujo, 2003) evidencia a situação autística, que
seria nas palavras do mesmo autor:
uma organização patológica de defesa no sentido da invulnerabilidade, para que a criança não voltasse a “viver” a agonia impensável, “experimentada” durante uma invasão ou falha do ambiente para com ela, na fase de extrema dependência do início de sua vida. (p.4).
A situação autística é inerente a todo e qualquer indivíduo que sofra
perturbações no ambiente, mas, de acordo com Araujo (2003), quando sua
defesa contra a angústia torna-se uma constante revivência de agonia, ou seja,
quando não há superação dessa fase, o indivíduo vai permanecer no autismo. De
acordo com Loparic (2000, apud ARAUJO, 2003, p. 5), “a idéia de choque, susto
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e ameaça intrínseca à “vivência” de agonia produzida pela falha ou invasão do
ambiente, mostra que o bebê, no início, não está “emsimesmado”.
Considerando o tocante, é por não reconhecer-se a si nem ao outro que no
momento da invasão ou falha do ambiente, é sentido pelo bebê o desamparo e
aniquilamento, ambas consideradas agonias impensáveis porque não requerem a
um objeto (WINNICOTT, 1953a [1952] apud ARAUJO, 2003). O autor ressalta
ainda que, por acontecer em um momento tão precoce de sua vida, essas
agonias seriam sentidas mais física que psiquicamente.
Araujo (2003) ressalta que quando a agonia é sentida em um momento
anterior à identificação primária da mãe com o bebê, ou seja, num momento
primário, sua única defesa a essa invasão é seu recurso mais primitivo, o
isolamento, que inicialmente é essencial a ele para a exploração de si e seu
ambiente. O mesmo autor afirma ainda que é devido a invulnerabilidade
conquistada pelo isolamento que outras defesas tornam-se impossíveis,
caracterizando a estagnação no isolamento.
O autismo seria então a expressão maior da manifestação de defesa frente
ao um ambiente que se apresentou falho no estágio de dependência absoluta,
durante as realizações básicas para a integração do eu (ARAÚJO, 2003). Essa
defesa inibiria sua relação com o outro e com o mundo de forma adequada, o que
não permite então a continuidade de ser, a organização do ego e de suas
experiências (WINNICOTT, 1983) Para o autor, essa defesa não permite a
evolução da elaboração imaginativa das funções corpóreas assim como o do
contato externo com a noção de realidade e, por conseguinte, as relações
objetais. A esse processo, Winnicott (1960 apud Davis & Wallbridge,1982)
nomeou as três realizações, que são conquistas a serem vivenciadas pelo
lactante para que se dê o processo de formação da identidade: integração e não
integração, personalização e relações objetais primitivas e a experiência da
onipotência.
Sobre a integração e não integração, explica Winnicott (1968, apud Davis &
Wallbridge 1982):
Potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Há uma tendência geral ao crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento da parte psíquica da parceria psico-somática; tanto nas áreas físicas como psicológicas (...). (p.51).
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Dessa maneira, a construção do ego se centra na continuidade da linha de
vida, ou seja, é uma construção gradual (DAVIS E WALLBRIDGE, 1982). Outra
definição talvez mais esclarecedora é feita por Dias (2003), que postula que a
integração seria a tendência inata ao amadurecimento. Nesta linha, a integração
levaria a unidade e abarcaria, da mesma maneira, todas as integrações parciais
que vão ocorrendo ao longo da vida. Essas integrações, primeiramente partiriam
de um estado de não integração para depois formarem a unidade “eu” (DIAS,
2003).
Dois aspectos fundamentais trazidos por essa autora, nesse processo, diz
respeita à tarefa de a integração no tempo e no espaço que o bebê precisa
construir. O primeiro sentido construído de tempo no subjetivo da criança é da
continuidade da presença, que só se torna possível através da experiência
repetida da presença da mãe e essencialmente a noção da permanência e
continuidade dos cuidados para com o bebê (DIAS, 2003). De acordo com a
autora, somente por meio da certeza da presença dos cuidados da mãe e a
continuidade desses é que ele pode preservar a sua “continuidade de ser e
manter vivo o mundo subjetivo” (p.197).
Se por algum motivo a mãe não é boa o suficiente (se ausenta, por um
período muito longo), o bebê que ainda não tem a noção de “si mesmo”
constituída sofre uma sensação de aniquilamento (DIAS, 2003). Isso se dá, pois a
memória antes construída de cuidados da presença da mãe, de repente se apaga
e o bebê se vê extremamente angustiado (sofre uma agonia impensável) e a
ausência parece romper com a “continuidade pessoal de existência” (DIAS,
2003.p.198). De acordo com essa autora, o apagamento dessa presença seria a
característica principal das psicoses e isso ocorre, pois o bebê depois de sofrer o
trauma, tem que recomeçar o processo novamente e fica privado de forma
permanente da continuidade desses cuidados que envolvem a presença da mãe
(DIAS, 2003).
O segundo aspecto, do espaço está intimamente ligado ao tempo, pois
elucida a autora:
Trata-se de possibilitar ao bebê a aquisição gradual do sentimento, que está longe de poder ser dado por suposto ou automaticamente adquirido,
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de ter um lugar em que possa habitar, onde possa sentir-se em casa, um lugar onde possa voltar a descansar e que seja uma posição básica a partir da qual operar (DIAS, 2003.p.204)
Assim, se o bebê for deixado por muito tempo sem ser sustentado
adequadamente, esse que ainda não tem consciência de si mesmo ou do corpo,
perde o contato com esse último, podendo gerar distúrbios psicossomáticos, além
de intensa sensação de desamparo (DIAS, 2003).
Portanto, conclui Dias (2003), se o ambiente provido pela mãe for
suficientemente bom, a criança poderá exercer sua continuidade de ser, com
poucos conflitos, mas naturais do processo de amadurecimento. As crianças que
tiveram esse ambiente, muito provavelmente construíram um senso de
previsibilidade de ações da mãe, que a deixaram com uma sensação de
segurança, que daria respaldo para a criança lidar com suas angústias e
continuar a ser.
Assim, o processo de integração do ego, para Winnicott (1968 apud DAVIS
E WALLBRIDGE, 1982), surge com a integração de ambos os elementos motores
e sensoriais, (que posteriormente virão a sustentar o narcisismo primário) que por
sua natureza, orientam o bebê em direção a noção de uma existência. Somente
dessa forma, segundo os supracitados, ou seja, proporcionando o apoio egóico
confiável que o bebê poderia permanecer durante alguns momentos de forma não
integrada sem ameaçar sua continuidade pessoal, sem sofrer angústias muito
intensas.
A segunda realização seria a da personalização que constituiria na relação
entre as experiências motoras, sensoriais e a funcional. A respeito disso descreve
Winnicott (1968, apud Davis & Wallbridge, 1982):
A base para este residir é uma vinculação de uma experiência motora, sensorial, e funcional, com o novo estado de ‘ser uma pessoa’ do bebê (...) em certo grau (na saúde) pode ser equiparada à superfície da pele, e assume uma posição entre o ‘eu’ e o ‘não eu’ do bebê (...) (p.55).
A psique ainda imatura embora esteja calcada em processos sensórios-
motores, ainda não se encontra estreitamente relacionada ao corpo e à vida
desse, o que caracteriza a integração da psique no soma também envolvida na
realização da personalização, que seria quando o “eu” passa a residir no corpo.
(DAVIS E WALLBRIDGE, 1982). Nesta fase os aspectos a serem desenvolvidos
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seriam o da coesão psicossomática e da espacialização (DIAS, 2003). Segundo
este autor, o primeiro aspecto refere-se à capacidade do bebê de integrar em uma
só unidade a psique e o soma, pois, primeiramente, o corpo e o soma estão
indiferenciáveis, o que indica o ato de olhar dos bebês para os movimentos das
mãos e dos pés, com curiosidade e até mesmo assombro: “O bebê simplesmente
interrompe o ato de usar a mão para alcançar algo e passa a fixar o olhas nela
(DAVIS E WALLBRIDGE, 1982.p.56).
Assim, à medida que o cuidado da mãe seja suficientemente bom para o
bebê ele passa a desenvolver uma noção de unidade de ambas (psique e soma)
a partir do momento em que ambas estão integradas, Dias (2003) explica: “A
psique e o soma do bebê chegarão a operar como uma unidade, de tal modo que
o bebê viva em seu corpo e que este funcione em conformidade com o usufruto
que o bebê faz dele.” (p.209).
O segundo aspecto a ser enfrentado refere-se à espacialização, que se
refere à concretização do habitar no corpo, ou seja, o bebê estaria capacitado
para diferenciar “o dentro do fora” (DIAS, 2003; DAVIS & WALLBRIDGE, 1982).
A última dessas realizações seria a das relações objetais primitivas e a
experiência da onipotência, que de acordo com Davis & Wallbridge (1982),
embora a leitura psicanalítica possa levar o leitor a conclusões erradas, é preciso
ter em mente que a relação objetal está ligada à idéia de uma relação pessoal.
Volta-se a idéia da dependência absoluta, em que o “eu” da criança ainda não
está separado do “não eu”. Nesta linha, o objeto na relação objetal é para o bebê
indistinguível dele próprio.
1.4-Objetivo Geral
O objetivo geral deste estudo foi relacionar a teoria psicanalítica, com
enfoque nas idéias de Winnicott, com a prática de estágio proporcionada pela
disciplina Psicopatologia do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas em uma instituição de crianças com autismo.
1.4-Objetivo específico
Analisar e discutir as condutas da criança com o diagnóstico de autismo à
luz da teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott.
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2. MÉTODO
2.1-Instituição
A instituição visitada foi a ADACAMP (Associação para o desenvolvimento
dos autistas de Campinas) que atende autistas da região de campinas e tem
como foco principal o usuário e sua família na busca de uma melhor qualidade de
vida, com objetivos de inserção familiar, escolar e social. Prioriza o atendimento
individualizado, visando às necessidades particulares de cada usuário e suas
especificidades, levando em conta as necessidades de cada um em determinada
fase da vida. Para isso, a equipe interdisciplinar utiliza de métodos de intervenção
baseados em conhecimentos científicos atualizados, promove auxílio às
pesquisas sobre os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento e outros eventos
científicos para profissionais da área, além da educação da sociedade para um
maior entendimento sobre o transtorno e a diminuição do preconceito.
A Equipe é composta de um Diretor Clínico (Psiquiatra), Diretora Técnica,
Assistente Administrativa, e profissionais nas áreas de Pedagogia, Psicologia,
Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Assistência Social, Educadores Físicos,
Monitores, Cozinheira e Serviços Gerais.
A instituição atende usuários desde criança até à idade adulta. Atualmente,
o usuário de menor idade atendido pela instituição possui 2 anos e 3 meses e o
de maior idade 30 anos (em média). Dispõe de um espaço físico com salas
diversas para o atendimento de pedagogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos
e fonoaudiólogos, assim como uma quadra para a prática de atividades físicas,
duas oficinas (cozinha e reciclagem e encadernação para adultos) e espaços
destinados a Musicoterapia e Arterapia. O espaço ainda dispõe de área verde ao
ar livre e um parque para lazer.
Os serviços oferecidos pela instituição compreende programas de apoio
sócio-familiar, que inclui o atendimento psicológico e social, orientação,
encaminhamento, acompanhamento e visitas domiciliares. Também, dispõe de
programa de apoio sócio-educativo, que visa atender a especificidade de cada
caso e que possuem projetos de educação (estimulação infantil, inserção,
inclusão escolar e currículo da funcionalidade), saúde (clínico-terapêutico,
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musicoterapia e zooterapia) e esporte (educação física e lazer). A instituição
também tem apoio do CIAD (Centro Interdisciplinar de Atenção ao Deficiente), da
Instituição Padre Aroldo (ONG dedicada à recuperação e prevenção contra o uso
e abuso de Drogas e Álcool), da Secretaria de Saúde e Prefeitura da cidade.
2.2-Procedimento
A prática de observação foi realizada individualmente, uma vez por
semana, durante uma hora e meia no período de Abril a Maio, totalizando seis
visitas. As observações foram feitas compreendendo diversos contextos, como
salas de aula, salas de atendimento fonoaudiológico e terapia ocupacional,
parque recreativo e refeitório.
Inicialmente foi realizada uma reunião que teve como objetivo a
apresentação e inserção das alunas no campo. Após cada observação foram
elaborados diários de campo contendo uma narrativa da experiência, dados de
observação, questionamentos e diálogo com a teoria por meio do levantamento
da literatura atualizada e especializada no tema pesquisado.
A experiência foi apresentada e socializada com a docente, os monitores e demais colegas durante as aulas de laboratório da disciplina Psicopatologia.A partir do contato com a prática foi delimitado um foco e com a orientação da docente foi desenvolvido o trabalho escrito e a elaboração de um pôster para apresentação do estudo à equipe da Instituição.
3.RESULTADO
A partir do contato com as crianças com o diagnóstico de autismo, para
ilustrar, apresentamos abaixo, três quadros com os dados parciais que foram
obtidos por meio das observações:
3.1.Quadro 1. Síntese dos dados das crianças e dos contextos das
observações
(observadora 1)
Observação
N° de crianças
Faixa etária
Contexto AtividadeProfissional de referência
1 3 7 anos Parque; Atividade livre; Monitor
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2 811 a 21 anos
Sala de atendimento terapia ocupacional e sala de aula;
Higiene bucal e estimulação sensorial e motora;
Terapeuta Ocupacional
Pedagoga
3 516 a 21 anos
Sala de aula;
Jogos pedagógicos, exploração de brinquedos, organização e limpeza da cozinha;
Pedagoga
4 313 a 16 anos
Área livre parque;
Atividades físicas com obstáculos em plano reto e inclinado e passeio de bicicleta;
Educadores físicos
5 514 a 30 anos
Sala de aula;Jogos pedagógicos, PECS.
Pedagoga
Quadro 2. Síntese das condutas observadas.
LinguagemConduta psicomotora
Orientação para espaço
Orientação para Tempo
Outras condutas
EcolaliaDispraxia
Esbarrar nas pessoas e objetos
Não saber a hora
Fugas
Inversão pronomial
Tiques e estereotipias
Falta de adaptação motora nos ambientes
Não saber data
Fascínio por movimento e partes do próprio corpo
A não identificação do sujeito nas frases
Andar desenfreado
Não-diferenciação entre pessoa e objeto.
Sem noção de antes e depois
Falha na atividade de ir ao toalete
Ruídos e gritosIntolerância ao toque físico do outro
Falta de limite Enurese
Linguagem não funcional
Coordenação motora fina rudimentar
Invasão do espaço do outro.
Algumas crianças fizeram
Auto-agressividade
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diferenciação ontem, hoje e amanhã
Não uso da falaDificuldade na exploração dos objetos
Algumas entenderam que a hora do parque era após a tarefa
Falha em detectar sinais de perigo
Dificuldade no entendimento de significados
agitaçãoNão diferencia pessoa de objeto
Quadro 3- Síntese das condutas observadas (cont.)
Aparência física
vínculoSeparação mãe/criança
AfetividadeAlimentação
Aparentemente saudável
Ausência de contato visual
Não foi observado
Baixa tolerância à frustração
Compulsividade na alimentação
Boa higiene isolamentoagressividade
Independência para
se alimentar
Vestimenta adequada
Ausência de interação espontânea
Crises de alegria exagerada
Sem anomalia exceto quando apresenta comorbidade
Intolerância ao toque físico do outro
oscilação na expressão do humor
Não compreende o sentimento do outro
sorrisos
Dificuldade em compreender a perspectiva do outro
irritação
Não diferencia o outro de si
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4.DISCUSSÃO
O indivíduo com autismo é compreendido pela teoria winnicottina a partir
da expressão máxima de uma organização defensiva num estágio primitivo do
amadurecimento (ARAÚJO, 2003). Este mesmo autor ressalta que essa defesa
seria referente ao fracasso ambiental nos primórdios do desenvolvimento
emocional e pode ser caracterizada pela invulnerabilidade, a partir do mecanismo
de isolamento. A organização defensiva frente às ameaças de invasão do mundo
externo seria constantemente acessada e até cristalizada para que o indivíduo
não vivenciasse as ameaças frente a sua vulnerabilidade, ou seja, as agonias
impensáveis (ARAÚJO, 2003).
O indivíduo autista, que organizou-se de forma defensiva para sua
tendência inata a integração, teve como conseqüência um desenvolvimento
comprometido nas realizações de: alojamento da psique no soma, organização no
tempo e no espaço, contato com a realidade e o alcance do estágio “eu sou”, a
constituição do “si mesmo” (DIAS, 2003).
Essas realizações dizem respeito ao desenvolvimento das tarefas básicas:
integração no tempo e no espaço, personalização e relações objetais.
(WINNICOTT, 1983). Para o autor, habilidades e realizações não desenvolvidas,
destas três tarefas, podem ser observadas em diversas condutas dos indivíduos
com autismo.
Dentre as observações foi destacado o ato de comer de forma compulsiva,
o que demonstra ser um fator freqüente na atividade de alimentação do indivíduo
com autismo. As crianças que apresentaram esse comportamento tinham de ser
alimentadas aos poucos para que não devorassem o alimento de uma única vez,
ou acompanhadas pela fonoaudióloga, para que ela supervisionasse a atividade.
Dias (2003) afirma que há, no caráter psicótico, a característica da
impossibilidade que o indivíduo apresenta de “ter tempo”, de poder “contar com o
tempo”, “permitir um tempo para o desenvolvimento de um acontecimento ou de
uma experiência” (p.204). Para o autor, isso ocorreria devido à falha no
desenvolvimento subjetivo da noção de tempo, que corresponde à primeira tarefa
básica, a integração no tempo e no espaço.
De acordo com Dias (2003), no que tange à integração no tempo e no
espaço, o bebê desenvolveria nesta tarefa o aspecto de organização da
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temporalidade e espacialização em sua subjetividade, através das conquistas de
habilidades como a previsibilidade, noção de início meio e fim, possuir um
passado, presente e futuro e de ser datado (reconhecimento da própria existência
no ontem, hoje e amanhã). Essas habilidades, por sua vez, são conquistadas
através de experiências fundamentais, nas fases primitivas do desenvolvimento,
como da continuidade da presença da mãe, vivida pela permanência e
regularidade dos cuidados e também nas provisões maternas de cuidado
(alimentação, horário de sono o de despertar) respeitando, no primeiro momento,
o funcionamento fisiológico do bebê e dando o ritmo dos cuidados para além de
necessidades e capacidades da criança. É somente através desses cuidados que
o bebe consegue se temporalizar de forma subjetiva (DIAS, 2003).
Portanto, na observação apresentada, não haveria a experiência do tempo
na atividade de alimentar-se, que está fundada apenas no imediato e na urgência,
o indivíduo não permite o tempo para essa experiência (DIAS, 2003). Segundo o
autor supracitado, essa conduta pode corresponder a uma falha, principalmente,
na noção subjetiva de tempo, que provém da realização da tarefa básica de
integração no tempo e no espaço, o que se revela, então, a dificuldade na
experiência da alimentação ter uma duração, um início, um meio e um fim. A
dificuldade das atividades serem experienciadas a partir de um tempo subjetivo
pode refletir em outras condutas observadas em campo, como e a não orientação
no tempo (DIAS, 2003). A maiorias das crianças observadas não sabem a relação
de hoje, amanhã e ontem. Esses reflexos podem reportar à falha no
desenvolvimento da tarefa descrita acima.
Há outra ordem de comportamentos incomuns que foram observados nas
crianças com autismo, esses se referem às condutas motoras e a de orientação
no espaço. Foram observados aspectos à dispraxia, o esbarrar-se em tudo
(pessoas e objeto), e a dificuldade de adaptar com a devida ação motora para
“sair” de desafios, obstáculos. A observação de que os indivíduos com autismo
apresentam em sua marcha o esbarrar-se nas pessoas e nos objetos, “o andar
‘desenfreado’ que ‘atropela’ quem estiver na frente” é o aspecto referido pelas
observadoras. Esses tipos de conduta podem referir-se a uma dificuldade da
consciência do próprio corpo e na diferenciação com o “não eu”.
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Na medida em que existe a diferenciação entre o eu e o não eu, ocorre
também, com o alojamento a psique no soma, o limite entre o próprio corpo e
assim, a relação com o que está fora deste corpo (DIAS, 2003). Essas habilidades
dizem respeito à segunda tarefa básica, a personalização, que estaria envolvida
com o alojamento da psique no soma e nesta fase os aspectos a serem
desenvolvidos seriam o da coesão psicossomática e de espacialização (DIAS,
2003). Dessa forma, no resultado desse desenvolvimento, o bebê seria capaz de
habitar seu corpo em conformidade com o uso que precisa fazer desse (coesão
psicossomática) e constituir uma noção de “dentro e fora” (espacialização)
(DAVIS & WALLBRIDGE, 1982).
A criança com autismo, que apresenta a conduta de esbarrar ou ‘atropelar’
o outro e objetos pode apresentar uma relação dessa não diferenciação do
“dentro e fora” e da falta da integração da psique no soma, pois, desta forma, o
indivíduo não conseguiria conscientizar-se do seu próprio corpo, e por isso do
espaço que ocupa, conforme ressalta Dias (2003). Sobre isso, o autor reitera que
esta seria a dificuldade de estabelecer a unidade entre seu corpo e a psique, “irá
se concretizar na não percepção do si mesmo, nem da realidade interna.” (2003.
p. 212). Em cada uma das condutas observadas, nota-se uma dificuldade que não
aparenta apenas uma dificuldade somente motora, mas proveniente de uma
confusão psicológica.
Essa aparente confusão é tratada aqui pela possibilidade de relação com a
não integração da psique no corpo. Além disso, Dias (2003) reitera que é nessa
fase de coesão psicossomática, que o indivíduo, que habita aquele corpo,
consegue separar o que é fruto de sua ação e o que é do ambiente. Neste
ínterim, seria possível também compreender o tipo de desafio que os obstáculos
no ambiente apresentam para a criança autista:
Quando uma das profissionais teve que sair da sala, para não deixar as crianças fugirem, ela apenas deixou a carteira em que cada criança estava, encostada na parede.Desta forma, para a criança sair, da sala, era necessário apenas arrastar um pouco a sua própria carteira, para que desgrudasse da parede e assim, pudesse sair. Porém, mesmo as crianças estando com vontade de sair, elas não se mobilizam, não tentam movimentar ou desobstruir o objeto (a carteira) daquele lugar. Ficam quietas e paradas e quando um adulto aparece, elas olham para ele, no intuito de que esse as ajudem (Diário 1, observadora 3 e outras).
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De acordo com Dias (2003), as crianças têm condições motoras para
realizar a ação de arrastar a carteira, mas simplesmente não a fazem e isso pode
ocorrer principalmente pela aparente confusão em identificar o objeto externo
como o obstáculo causador do fato de não poder sair. A isso se implica a noção
de um objeto externo e, principalmente, da realidade, mas também, a noção da
qual explicamos acima, a diferenciação do que é causado por ela e o que é
causado pelo ambiente (DIAS, 2003).
As aulas de educação física, inclusive, têm como objetivo principal
atividades práticas de desafios cotidianos, que seriam atividade física em
situações com obstáculos para que o autista aprenda a se defender ou a se safar.
Essas atividades podem ocorrer até fora da instituição, como no trânsito para
educar a criança nos desafios rotineiros. Nessas atividades, como o andar na rua,
muitas crianças autistas apresentam a dificuldade de identificar tanto o perigo do
carro em movimento (aspecto evidenciado no momento em que elas atravessam
a rua sem olhar e esperar o carro passar), como também demonstram não
desviar de poças d’água ou de galhos. Tudo isso tem que ser ensinado, avisado e
supervisionado pelo profissional.
Esse tipo de capacidade pode estar relacionada à terceira tarefa, relações
objetais, ela diz respeito ao desenvolvimento da realidade, a percepção de
objetos externos e, por fim, a capacidade de sentir-se real. (DAVIS &
WALLBRIDGE, 1982)
Primeiramente, as relações objetais ocorrem com objetos subjetivos e se
torna possível a partir do fato da mãe suficientemente boa propiciar ao bebê a
experiência de criar aquilo que encontra, e ao mesmo tempo protegê-lo de
qualquer irrupção de algo imprevisível que possa interromper sua continuidade de
ser (DIAS, 2003). Isso ocorre devido ao estado de identificação primária da mãe,
que se coloca no lugar do bebê, e consegue apresentar o objeto ao bebê, na hora
em que ele necessita: “O que o bebe encontra – isto é, cria – é o que necessita no
momento em que necessita.” (DIAS, p. 214. 2003)
Uma falha na apresentação dos objetos bloquearia o caminho da criança
na direção de sentir-se real e de relacionar-se com o mundo real, essa falha seria
no sentido da não apresentação de objetos, que culminaria diretamente ao estado
autístico ou à apresentação de objetos não no momento em que o bebê
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necessita, mas sim pela vontade da mãe, o que representaria ameaças à sua
continuidade de ser (DIAS, 2003).
Para a detecção de um sinal de perigo é provável que tenha que haver,
primeiramente, a consciência de um si mesmo, um eu limitado e integrado psique-
soma, para detectar o que é o “não eu“, o objeto, e, principalmente, a relação com
a realidade, para que haja uma relação com esse objeto, aqui voltado ao dar
sentido a esse objeto. Como em todas essas tarefas haveria defasagens no
percurso de seu desenvolvimento, o indivíduo autista apresentaria essas
inúmeras dificuldades para o reconhecimento da eminência de perigo como nas
atividades referidas.
No entanto as defasagens aqui apresentadas, relacionadas às três tarefas
básicas do desenvolvimento emocional, podem não se apresentar em todas as
crianças com autismo. As aquisições e habilidades de cada criança referem-se ao
processo de defesa e a de experiências vividas em seu processo, será único para
cada criança autista, como Araújo (2006) evidencia:
A defesa da criança não conseguiu não precisa ser sempre eficiente. À medida que o tempo vai passando, a criança estabelece alguns poucos contatos que vão se tornando mais familiares, e isso permite alguns ganhos, mesmo que precários, em razão de ela sempre recorrer ao isolamento diante da ameaça da angústia. (p.5)
Por isso, não é possível a generalização das inabilidades referentes ao
autismo, pois, foi observado que cada criança realizou a sua organização
defensiva em momentos relativamente diferentes.
5.CONCLUSÃO
O autismo à luz da teoria winnicottiana promove uma reflexão acerca de
sua etiologia, transpondo-a ao conhecimento Psicológico, já que esta
psicopatologia é abordada em diversas áreas do conhecimento. Winnicott não
negou os aspectos biológicos da mesma, mas evidenciou em sua teoria do
amadurecimento nos estágios inicias do desenvolvimento emocional, as
condições em que o indivíduo apresentaria o estado autístico.
O estado autístico seria a expressão máxima da organização defensiva do
indivíduo frente às ameaças de um ambiente falho e, portanto, invasivo e
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ameaçador. Assim esse indivíduo se utilizou do isolamento, para alcançar a
invulnerabilidade como defesa primordial. Essa defesa tem como característica
fundamental, ser utilizada nos primórdios do desenvolvimento emocional, o que
repercute uma defasagem nas três tarefas básicas relevantes para a constituição
do valor de saúde psíquica.
As três tarefas básicas implicam principalmente no alojamento da psique
no soma, organização no tempo e no espaço, contato com a realidade e o
alcance do estágio “eu sou” , a constituição do “si mesmo”. Como o autista,
voltou-se ao isolamento para defender-se ele apresenta defasagens nessas
capacidades. Tais defasagens podem ser presentes e reveladas nas condutas
das crianças autistas. A observação realizada em campo teve como objetivo
visualizar essas condutas que possivelmente refletiriam sintomas de um “si
mesmo” não constituído.
Portanto, através da teoria do amadurecimento de Winnicott, foi possível
estabelecer uma compreensão maior de sua teoria na prática da observação de
indivíduos com autismo e de suas condutas.
5.1-Considerações Finais
O presente trabalho ao analisar algumas das condutas das crianças com
autismo a partir do paradigma winnicottiano apresenta possíveis reflexos em suas
condutas referentes à defasagem no desenvolvimento das tarefas básicas.
Porém, é de suma importância considerar os casos ilustrados neste
trabalho como ilustração e referência pontual. As condutas aqui apresentadas não
são necessariamente apresentadas por todos os indivíduos com autismo. No
estudo desta psicopatologia exige-se que o estudo de cada caso individualmente
para uma melhor compreensão dos estágios de desenvolvimento defasados.
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__________. Os bebês e suas mães. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
AUTORAS
*Marina Raeli Dias Merheb
26
R: Manuel Barradas, 87 Jardim Paraiso
Campinas- SP Cep-13.100-022
*Priscila Dal Molin Carvalho
Av: Modesto Fernandes, 337 Barão Geraldo
Campinas- SP Cep-13.084-190
*Raquel Tozzi dos Santos
R: das Acácias, 567- Jardim São Paulo
Campinas- SP Cep-13.468-150
BREVE NOTA CURRICULAR
Graduandas do quinto período em 2010 do Curso de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas
Docente de Psicopatologia
**Marly A. Fernandes
Endereço Profissional
R: Barão Geraldo de Rezende, 282, cj 84
Vila Itapura-Campinas- SP.
Cep-13.020-440
BREVE NOTA CURRICULAR
Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de campinas
Formação em Psicanálise pelo Centro de Psicanálise de Campinas
Psicóloga Clínica
Docente de Psicopatologia no Curso de Psicologia da PUC-Campinas
Supervisora de Psicologia Saúde/clínica no Curso de Psicologia PUC-Campinas
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