Autismo artigo boas explicações

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– 374 – DESENVOLVIMENTO E ADAPTABILIDADE DE PESSOAS COM TRANSTORNO AUTISTA NA PERSPECTIVA EVOLUCIONISTA DEVELOPMENT AND ADAPTABILITY OF PERSONS WITH AUTISTIC DISORDER IN EVOLUTIONARY PERSPECTIVE * A opção pelo termo “adaptabilidade” tem o intuito de demarcar conceitualmente a discussão numa perspectiva ontogenética do autismo, diferenciando do conceito de “adaptação”, como é tratado na perspectiva filogenética da Psicologia Evolucionista. 1 Psicóloga da Associação de Amigos do Autista (AMA-Joinville/SC), docente da Faculdade Guilherme Guímbala, de Joinville/ SC, mestre em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. 2 Professor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. 3 Professor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Correspondência para: Ana Carolina Wolff Mota. R. Hildo Novaes, 239 – Vila Nova Joinville/SC. CEP 89237-345. Telefone: (47) 3425-5649; (47) 8408-0804. Endereço eletrônico: anacwolf [email protected] Mota ACW; Cruz RM e Vieira ML. Desenvolvimento e adaptabilidade de pessoas com transtorno autista na perspectiva evolucionista. Rev Bras Cresc e Desenv Hum 2010; 21(2): 374-286. RESUMO Introdução: pessoas com autismo apresentam comprometimento em áreas importantes do desenvolvimento, como a interação social recíproca, as habilidades de comunicação e a capacidade imaginativa. Objetivo: o objetivo principal do artigo é apresentar uma atualização sobre o transtorno autista a partir da perspectiva evolucionista. Método: as fontes de pesquisa foram livros e artigos científicos atuais que envolvem temáticas sobre o desenvolvimento de pessoas com transtorno autista e teoria evolucionista. As fontes on- line privilegiadas para a pesquisa foram: Scielo, Sagepub e BVSPsi, em especial as publicações a partir do ano 2000. O portal virtual Google Acadêmico foi utilizado como meio de busca de artigos específicos, como aqueles indicados entre as referências de outros artigos. Discussão: por meio da apresentação argumentativa de uma ampla revisão da literatura (principalmente internacional e atual) procura-se demonstrar que explicações a respeito da presença dos comportamentos atípicos em função do pertencimento à espécie humana nos permitem ter uma visão mais global do fenômeno (levando em consideração aspectos gerais do desenvolvimento e do autismo). Por sua vez, considerar a história que cada um experiencia durante o desenvolvimento nos permite identificar como cada pessoa atualiza o potencial que foi moldado ao longo da evolução humana. Conclusão: o transtorno autista pode ser mais bem compreendido ser for levado em consideração aspectos da filogênese (valor de sobrevivência para espécie) e ontogênese (história de cada indivíduo). Nesse sentido, essa concepção nos permite ter uma compreensão mais holística e complexa do autismo e de sua relação com o desenvolvimento humano. Palavras-chave: adaptabilidade, autismo, desenvolvimento, perspectiva evolucionista. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 21(2): 374-386 ARTIGO DE REVISÃO REVIEW ARTICLE Ana Carolina Wolff Mota 1 Roberto Moraes Cruz 2 Mauro Luis Vieira 3

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DESENVOLVIMENTO E ADAPTABILIDADE DE PESSOAS COMTRANSTORNO AUTISTA NA PERSPECTIVA EVOLUCIONISTA

DEVELOPMENT AND ADAPTABILITY OF PERSONS WITHAUTISTIC DISORDER IN EVOLUTIONARY PERSPECTIVE

* A opção pelo termo “adaptabilidade” tem o intuito de demarcar conceitualmente a discussão numa perspectiva ontogenética doautismo, diferenciando do conceito de “adaptação”, como é tratado na perspectiva filogenética da Psicologia Evolucionista.

1 Psicóloga da Associação de Amigos do Autista (AMA-Joinville/SC), docente da Faculdade Guilherme Guímbala, de Joinville/SC, mestre em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

2 Professor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.3 Professor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

Correspondência para: Ana Carolina Wolff Mota. R. Hildo Novaes, 239 – Vila Nova Joinville/SC. CEP 89237-345.Telefone: (47) 3425-5649; (47) 8408-0804. Endereço eletrônico: [email protected]

Mota ACW; Cruz RM e Vieira ML. Desenvolvimento e adaptabilidade de pessoas comtranstorno autista na perspectiva evolucionista. Rev Bras Cresc e Desenv Hum 2010; 21(2):374-286.

RESUMOIntrodução: pessoas com autismo apresentam comprometimento em áreas importantes dodesenvolvimento, como a interação social recíproca, as habilidades de comunicação e acapacidade imaginativa. Objetivo: o objetivo principal do artigo é apresentar umaatualização sobre o transtorno autista a partir da perspectiva evolucionista. Método: asfontes de pesquisa foram livros e artigos científicos atuais que envolvem temáticas sobre odesenvolvimento de pessoas com transtorno autista e teoria evolucionista. As fontes on-line privilegiadas para a pesquisa foram: Scielo, Sagepub e BVSPsi, em especial aspublicações a partir do ano 2000. O portal virtual Google Acadêmico foi utilizado comomeio de busca de artigos específicos, como aqueles indicados entre as referências de outrosartigos. Discussão: por meio da apresentação argumentativa de uma ampla revisão daliteratura (principalmente internacional e atual) procura-se demonstrar que explicações arespeito da presença dos comportamentos atípicos em função do pertencimento à espéciehumana nos permitem ter uma visão mais global do fenômeno (levando em consideraçãoaspectos gerais do desenvolvimento e do autismo). Por sua vez, considerar a história quecada um experiencia durante o desenvolvimento nos permite identificar como cada pessoaatualiza o potencial que foi moldado ao longo da evolução humana. Conclusão: o transtornoautista pode ser mais bem compreendido ser for levado em consideração aspectos dafilogênese (valor de sobrevivência para espécie) e ontogênese (história de cada indivíduo).Nesse sentido, essa concepção nos permite ter uma compreensão mais holística e complexado autismo e de sua relação com o desenvolvimento humano.

Palavras-chave: adaptabilidade, autismo, desenvolvimento, perspectiva evolucionista.

Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 21(2): 374-386 ARTIGO DE REVISÃOREVIEW ARTICLE

Ana Carolina Wolff Mota 1

Roberto Moraes Cruz 2

Mauro Luis Vieira 3

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INTRODUÇÃO

O autismo tem sido objeto de estudocientífico há pouco mais de seis décadas.Questionamentos sobre definiçõesdiagnósticas, possíveis causas, comorbida-des, características psicológicas, funciona-mento cerebral e possibilidades de interven-ção vêm até os dias atuais inquietandopesquisadores, profissionais e a populaçãoem geral. Os dados epidemiológicos produ-zidos também têm chamado atenção, muitasvezes, pelas controvérsias entre os númerosde diferentes regiões do mundo e pelo cres-cente índice de casos diagnosticados emgrandes centros de pesquisas mundiais: de16 casos definidos de forma mais restrita paracada 10.000 ou até 60 casos para cada10.000, considerando os espectros mais am-plos de disfunção na habilidade de sociali-zação. O diagnóstico tem sido em torno de

40 meses de idade: mais cedo do que na dé-cada de 80, que ocorriam não antes dos 54meses1.

Por outro lado, dados comparativos deprevalência entre meninos e meninas (em tor-no de 4:1) têm feito pensar no autismo enquantouma síndrome caracteristicamente masculina1-

2. A compreensão do cérebro em termos de doisprocessos psicológicos extremados, de empatiae de sistematização, tem sido vinculada à ideiade cérebros feminino e masculino, respectiva-mente. Estudos comparativos de desenvolvi-mento de meninas e meninos demonstram queas primeiras têm preferência ligeiramentemaior para olhar faces do que para olharmóbiles mecânicos de tamanho equivalente, jáos meninos apresentaram preferências opostas.

Colle et al.3 testaram a teoria que foicogitada primeiramente por Hans Asperger,demonstrando que, por volta de um ano, a di-ferença nos comportamentos entre meninos e

ABSTRACTIntroduction: people with autism have impairment in important areas of development suchas reciprocal social interaction, communication skills and imaginative capacity. Objective:the aim of this article is to present an update on the autism from the evolutionary background.Method: research sources were books and academic papers about current issues involvingthe development of people with autism and evolutionary theory. The online sources forresearch were: Scielo Sagepub BVSPsi and, in special, publications from 2000 onwards.The web portal Google Scholar was used for searching specific items, such as those listedamong the references of other articles. Discussion: through the presentation based onextensive arguments to a comprehensive review of the literature (mainly international andcurrent), it was proposed to demonstrate that explanations about the presence of atypicalbehavior on a basis considering the dimension of human species allow us to take a moreglobal view of the phenomenon (taking into account general aspects of development andautism). Furthermore, considering the history that each experience during developmentallows us to identify how each person updates the potential that has been produced by longof human evolution. Conclusion: It has been concluded that autism can be better understoodif it is taken into account aspects of the phylogeny (survival value for species) and ontogeny(the history of each individual). In effect, this conception allows us to have a more holisticand complex understanding of autism and its relationship with human development.

Key words: adaptability, autism, development, evolutionary perspective.

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meninas se acentua, especialmente por causado aumento de testosterona. Tal diferença en-tre o processamento cerebral de homens e mu-lheres também reforça a hipótese de um cére-bro autista como extremo do masculino pelaincidência muito maior em meninos que meni-nas. No transtorno de Asperger, que apresentasemelhante sofrimento no comportamentoempático e excelente capacidade sistematiza-dora, como se verifica em seu desempenho nafísica cotidiana3, essa proporção é ainda maior:dez meninos para uma menina2.

Com base na perspectiva evolucionista,constata-se que o ser humano atual é bastantediferente, em termos de desenvolvimento, habi-lidades e recursos para socialização, em relaçãoaos seus antepassados de milhares de anos atrás4.O transtorno autista, por sua vez, caracteriza-sepor falhas no desenvolvimento de funções típi-cas da espécie humana, como a comunicaçãosimbólica, capacidade de aprender com a expe-riência alheia, compartilhar experiências e deatribuir estados mentais a si mesmo e a outros5.Nesse sentido, o objetivo do presente artigo éapresentar uma atualização sobre as origens doautismo considerando os aspectos causais pró-ximos (fatores atuais na vida da pessoa e queestariam relacionados à ontogênese) e tambémtendo como “pano de fundo” os aspectosfilogenéticos últimos (mecanismos selecionadosao longo da evolução e que permitiriam a adap-tação do indivíduo ao meio).

MÉTODO

Trata-se de um artigo de atualização so-bre o espectro autista, numa perspectiva da teo-ria evolucionista. Foram pesquisadas publica-ções atuais envolvendo os temasdesenvolvimento de pessoas com transtornoautista e teoria evolucionista de desenvolvimen-to humano. Os artigos utilizados tiveram comofontes os bancos de artigos Scielo, Sagepub eBVSPsi, sendo privilegiadas as publicações pos-

teriores ao ano 2000. O portal Google Acadê-mico foi utilizado como meio de busca de arti-gos específicos, a exemplo dos que foram indi-cados nas referências de outros artigos. Osdescritores utilizados para a pesquisa on-lineforam: transtorno autista, autismo, transtornoinvasivo, transtorno do desenvolvimento, desen-volvimento psicológico, intervenção precoce,atenção compartilhada, teoria da mente,evolucionismo, teoria evolucionista, adaptabi-lidade e os respectivos termos em inglês.

Uma vez que o presente estudo é umarevisão de literatura não sistemática, não se-rão apresentadas tabelas e análises estatísticas.O artigo está organizado da seguinte forma:inicialmente, é realizada uma reflexão sobre acontextualização do autismo em termos de de-senvolvimento ontogenético. Posteriormente érealizada uma análise da relação dessa dimen-são do desenvolvimento (ontogênese) com afilogênesem, estabelecendo parâmetros que fo-ram selecionados ao longo da evolução e quepermitem a adaptação do indivíduo ao seu con-texto.

No caso do autismo, são mencionadosaspectos que estariam dificultando esse pro-cesso de adaptação ou que ele passa a ocorrerde forma diferente do que se esperaria, em ter-mos de: funções senso-perceptivas, imagina-ção e processos cognitivos, de sociabilidade ecomunicação.

DISCUSSÃO

AUTISMO E DESENVOLVIMENTOONTOGENÉTICO: ASPECTOS SOBREETIOLOGIA, PERSPECTIVAHISTÓRICA E TENDÊNCIA ATUAL

O autismo é descrito como uma altera-ção grave do desenvolvimento infantil e seussintomas são tipicamente percebidos entre 18e 36 meses de idade, possivelmente como re-sultado de alteração neurológica que afeta ofuncionamento do cérebro2,5. A literatura cien-

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tífica atribui o adjetivo ‘invasivo’ ao quadro,como referência ao intenso e desconcertanteimpacto que sofrem áreas importantes do de-senvolvimento, como as áreas da interação so-cial recíproca e das habilidades de comunica-ção (verbal e não verbal), bem como acapacidade de imaginar, cuja principal impli-cação está na presença de comportamentosrepetitivos e interesse por atividades estereoti-padas. O quadro clínico do autismo comumen-te está associado a outras condições clínicas,como o atraso neuropsicomotor e/ ou deficiên-cia mental, que, embora quase sempre coexis-tam, ocupam condições distintas, sendo neces-sária uma segunda formulação diagnóstica paraidentificá-los6.

Quanto à etiologia, são discutíveis até osdias atuais as atribuições ao quadro de autismo.Desde a primeira descrição, realizada por LeoKanner, em 1943, diversas explicações foramproduzidas, derivando metodologias e técnicasempregadas no processo diagnóstico e em ou-tras dimensões de avaliação7.

A história do autismo se estendeu pelomenos pelos próximos 30 anos numa com-preensão do distúrbio sob a ótica afetiva ouambiental, tendo na escola francesa os princi-pais representantes, como Lebovice, Diatkine,Misès, Ajuriaguerra e outros8, prevalecendo atéa atualidade essa visão na França. Mas o in-tenso processo de dominação norte-americanaimpôs novos modos de abordar os fenômenosno campo da ciência, passando de um embasa-mento humanístico e compreensivo para umpensamento empírico e pragmático9.

O afastamento das ciências humanas e aaproximação cada vez maior das ciências na-turais e abordagens positivistas são verifica-dos à medida que as teorias e concepções so-bre etiologia do autismo emergem, a partir deestudos do cérebro e da genética, de forma não

tão compreensiva e mais explicativa. Nessesentido, Assumpção Jr.9 afirma haver duas “po-laridades” dentre as tendências para explicar oautismo e sua etiologia, as quais foram deno-minadas teorias afetivas e teorias cognitivas.

Na história da evolução humana, há re-latos de crianças com alterações no desenvol-vimento, sugerindo quadros autísticos, mesmoantes da descrição realizada por Leo Kanner,em 1943. É o caso de lendas tradicionais ouobras literárias, como Niliouchka, de Gorki ouo “menino selvagem” Victor, de Aveyron, re-tratado pelo médico francês Itard, no final doséculo XVIII9. Essas informações contribuempara sustentar a concepção do autismo comoum transtorno cuja etiologia não é psicogênica,ou produto cultural da modernidade, emboratenha sido esse o pressuposto mais fortementeaceito em meados do século XX, nos primei-ros estudos científicos realizados sobre a sín-drome8. Existem estudos mais contemporâne-os sobre possibilidade de determinaçõessociogeográficas no aparecimento dos sintomasdo autismo10.

Atualmente, há evidências de que fato-res genéticos estão associados à etiologia dadistúrbio11, devido à relação com causasneurobiológicas, como convulsões, deficiênciamental, diminuição de neurônios e sinapses naamígdala, hipocampo e cerebelo, tamanho au-mentado do encéfalo e concentração aumenta-da de serotonina circulante12. Há evidências,ainda, de que bebês autistas têm crescimentoacelerado do crânio no primeiro ano de vida,embora poucos tenham macrocefalia13. Alémdisso, desde os estudos de Edward Ritvo8,quando se registraram estudos genéticos doautismoa, vem se estabelecendo relação entreautismo e hereditariedade12.

Pesquisas com lactentes têm permitidoidentificar suas capacidades desde muito cedo

a Entre 1980 e 1982, Edward Ritvo catalogou quase 300 famílias com membros autistas em duplicidade ou até triplicidade (entreirmãos gêmeos e outros parentescos de 1º e 2º grau).

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em razão da aplicação de procedimentosinvestigativos mais eficazes, fazendo com quesuposições equivocadas e subestimações a res-peito de recém-nascidos sejam superadas14. Aomesmo tempo, evidências têm possibilitadomaior atenção aos casos que fogem das regrasdo desenvolvimento, como crianças com atra-sos ou transtornos nesse processo.

A busca de evidências empíricas sobrecrianças autistas é uma necessidade, mas bas-tante difícil do ponto de vista metodológico,pois implica, antes, uma identificação precocedo autismo. Estudos longitudinais, com basena observação sistemática, são extremamenteraros, pois a chance de se observar um lactente,em projetos longitudinais, que mais tarde serádiagnosticado como “autista”, é baixa15-16.

Em meados da década de 1980, o conhe-cimento sobre desenvolvimento inicial decrianças com autismo limitava-se a relatóriosde pais e filmagens caseiras antes do diagnós-tico. Bosa15 comenta a respeito de algumascontroversas em pesquisas que informam so-bre o desenvolvimento inicial de lactentes maistarde diagnosticados como autistas. Os resul-tados de estudos que utilizavam informaçõesretrospectivas faziam questionar se a conside-ração sobre a ausência de comprometimentossociais no primeiro semestre de vida era fatoou, ao contrário, havia, mas não eram percebi-dos pelos pais. A autora revela que as razõespodem estar nas sutilezas com que se expres-sam tais dificuldades e mesmo “negação” de-las pelos pais, ou ainda a inexperiência dessespais no convívio com os filhos.

Atualmente, alguns instrumentos pro-põem a identificação de crianças muito peque-nas que possam estar em risco de diagnósticode autismo, por meio do relato dos pais e rotei-ro de observação. Através de uma abordagemrelacionada ao desenvolvimento humano, ten-dem a privilegiar os domínios da interação ecomunicação social, bem como funções sen-sório-regulatórias17. Além disso, a detecção decrianças em tão tenra idade com risco de

autismo possibilita intervenção precoce, pelacompreensão dos desvios do desenvolvimentoem relação ao desenvolvimento típico18,19, per-mitindo que essas crianças aprendam habili-dades que lhes faltam e, portanto, melhoremcondições de interação social e qualidade devida delas e das pessoas com quem convivem.

Como transtorno do desenvolvimento,pessoas com autismo estão sob a condição defuncionamento que contraria os pressupostose expectativas do desenvolvimento humano,desencontrando-se com o que está previsto pelaordem filogenética para o desenvolvimentoontogenético. Para a compreensão do transtor-no, portanto, não basta mera comparação des-critiva entre desenvolvimento típico e atípico,mas a contemplação de modelos dinâmicos depensamento9. Nesse sentido, a relação entrepelo menos duas dimensões temporais(ontogênese, filogênese) pode oferecer umimportante instrumental teórico para a detecçãoprecoce do transtorno.

RELAÇÃO ENTREDESENVOLVIMENTOONTOGENÉTICO DE PESSOAS COMTRANSTORNO AUTISTA EDESENVOLVIMENTO FILOGENÉTICO

Na perspectiva evolucionista, os sereshumanos são considerados biologicamente cul-turais4, pois não somente a capacidade paracriar e usar a cultura é um dos fatos biológicosmais notáveis da nossa espécie, como tambémnão haveria desenvolvimento algum semmaturação biológica9. Portanto, cultura e ge-nética são indissociáveis, de modo que conhe-cimentos e aprendizados podem ser herdadosgeneticamente no curso da evolução humana3.

Essa herança é compreendida como umprocesso de seleção longitudinal da espécie,que permite que habilidades adquiridas ao lon-go da trajetória de vida de um grupo de indi-víduos fiquem “impressas”, “cifradas” gene-ticamente. Assim, tais habilidades passam aser inatas ao homem, atuando como mecanis-

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mos de funcionamento estratégico para a me-lhor adaptabilidade de cada indivíduo da es-pécie no seu tempo de vida20. Portanto, a no-ção de evolução está diretamente ligada aonúmero de descendentes que irão representarum indivíduo em um conjunto deles que exis-tirá posteriormente9. Na perspectivaevolucionista, o desenvolvimento humano nãoé determinado biologicamente, como às ve-zes é equivocadamente tratado, mas é frutoda interação entre os domínios biológicos eculturais.

Tal interação entre condições biológicase ambientais faz com que o desenvolvimentoindividual seja probabilístico20. As milharesde recombinações gênicas do processo de evo-lução humana fazem com que os indivíduosmais adaptados sejam também mais fecundos;essa condição atua especialmente nosfenótipos, ou seja, nas características do indi-víduo, fruto da interação entre o genótipo e oambiente, de modo que esses comportamen-tos/características passam a constituir-se comopadrão de organização9.

Reconhece-se que a mente e seus me-canismos de processamento de informaçõessão produto da história filogenética do ho-mem moderno20. Ao longo dessa história, oser humano, funcionalmente, apresentou ca-racterísticas superiores em termosadaptativos, uma vez que, pelo seu desen-volvimento fisiológico e cerebral, passou aconstruir e utilizar instrumentos que aumen-taram sua força e desempenho como preda-dor. Não só se adaptou ao ambiente comoconquistou o poder de alterá-lo e isso foiessencial para a sua sobrevivência9.

Por desenvolver estruturas cerebrais es-pecíficas, o Homo sapiens sapiens estruturouuma linguagem complexa (através de estrutu-ras cerebrais específicas), organizou-se social-mente de maneira a permitir a existência deum número cada vez maior de indivíduos e,construindo conceitos complexos e abstratos,criou de modo contínuo novos mecanismos

adaptativos9. Ao contrário do que se pode pen-sar – que as estratégias inatas se configuraminstintos e determinam biologicamente o com-portamento humano – elas têm a função de or-ganizar estruturalmente a atividade dos filho-tes da espécie humana, garantindo com maiorsegurança sua adaptabilidade na situação devida ao longo do tempo.

O ser humano nasce em condição deexceção na evolução dos mamíferos em ge-ral. Em comparação com outras espécies, émarcado por retardo na maturação pré e pós-natal21. Tal imaturidade no estágio inicial dodesenvolvimento faz com que sejamos muitodependentes dos adultos para sobreviver eaprender as complexas regras de sociabilida-de de herança cultural. Por isso, ao longo desua história, desenvolveu e se apropriou bio-logicamente de mecanismos e estratégiasadaptativos subordinados a essa condição so-cial. Assim, como enfatizam Seidl de Mourae Ribas21, o fato de serem pouco equipadosexige que consigam garantir o cuidado dosadultos de sua cultura para sobreviver. Para oprocesso de adaptabilidade às condições apóso nascimento, a criança depende das relaçõesque estabelece com seus pares mais maduros,de modo que possa ter recursos para se rela-cionar com o mundo20.

Os recém-nascidos, então, são dotadosde um repertório de predisposições biológi-cas, preparados com várias habilidades sen-sório-perceptivas e motivacionais para inte-ragir em um ambiente com condições tambémselecionadas ao longo de milhares de anos.20

Logo que nascem, estão propensos a procurarestímulos sociais, de modo que os adultos res-pondam da mesma forma, oferecendo e refor-çando os contatos sociais, para que estejamgarantidos os cuidados e a proteção de peri-gos, oferecendo-lhes a possibilidade de terexperiências de bem-estar e calor emocional21.Nesse sentido, é possível afirmar que crian-ças sem a referida predisposição ao contatosocial tornam-se vulneráveis a prejuízos se-

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veros no processo de adaptação, como se veráadiante, no caso do autismo.

Relacionando os temas autismo e adap-tação, do ponto de vista evolucionista, talvezfosse o caso de se questionar por que, no de-correr de milhares de anos, mecanismos sele-tivos não teriam eliminado a maior parte dasdoenças, especialmente as doenças mentais,que, em geral, são extremamente não adaptati-vas?9 Porém, as desordens não devem ser com-preendidas como adaptações da espécieprojetadas para causar tais efeitos, pois, na vi-são evolucionista, quando algo não é funcio-nal, os mecanismos de seleção geralmenteagem para eliminá-lo e investem na propaga-ção de uma uniformidade gênica22. Ou seja, nãohá explicações últimas, do ponto de vistafilogenético, das causas dos comportamentose manifestações das pessoas com transtornoautista, mas o padrão destas se explica por cau-sas próximas, à medida que seus comportamen-tos são explicados em função do próprio sujei-to e não pela sua relação com a espécie a quepertence.

Contudo, mesmo que a filogênese nãoexplique os comportamentos de pessoas comtranstorno autista, a herança filogenética atu-ante nos humanos permite a observação cadavez mais apurada do desenvolvimento infan-til, possibilitando também a detecção precocede casos em que as crianças são acometidaspor atraso ou transtorno do desenvolvimento,como se demonstrará na sequência.

O nascimento representa um momen-to que requer a adaptação de um ser que, noperíodo gestacional, tinha tudo de que pre-cisava à sua disposição. A garantia dos cui-dados parentais, após o nascimento, se dá pormeio de comportamentos que tornem esserecém-nascido atraente e exigente da aten-ção dos pais. Um exemplo disso são as ma-nifestações vocais. As crianças apresentamo comportamento de choro logo que nascem,sugerindo, numa explicação evolucionista,que a sua função é sinalizar o vigor desse

lactente aos adultos, ou manipular psicolo-gicamente os pais para que lhe forneçam cui-dado parental20. Crianças autistas, no relatoretrospectivo dos pais, tendem a apresentarpouca vocalização, especialmente de conso-antes, bem como apresentar temperamentopassivo e atitude pouco exigente de atençãoparental17.

Assim como o choro, há uma série depossibilidades humanas que se atualizam aolongo do desenvolvimento ontogenético, quan-do interagem com a cultura humana, e propici-am ao recém-nascido a sua sobrevivência. Aoautista faltam os principais recursos de desen-volvimento que lhe garantam a adaptabilida-de, o que torna o transtorno autista um dos maisgraves do desenvolvimento. Vejamos outrasevidências que prejudicam severamente o de-senvolvimento e a garantia de pessoas acome-tidas pelo autismo.

a) FUNÇÕES SENSO-PERCEPTIVASA respeito de capacidade de selecionar

estímulos auditivos, recém-nascidos apresen-tam predisposição a centrar sua atenção emestímulos mais relevantes para sua melhoradaptação ao ambiente em que vivem, espe-cialmente os do contexto social.20 A regulaçãodos inúmeros estímulos sensoriais, aos quaiseles são expostos, pressupõe atuação de umsistema psicológico que envolve capacidadeperceptiva. Há uma capacidade perceptiva ele-mentar que é inata, sendo pouco sensível àaprendizagem. Autistas têm padrões desviantesde respostas para os estímulos sensoriais, apre-sentando uma hiper ou hiporresponsividade,correspondendo a um comprometimento dasfunções sensório-regulatórias23.

Haase et al.23 explicam que as pessoascom autismo não ‘sentem’ de forma diferente,mas interpretam diferentemente as sensaçõesque recebem, devido à construção dereferenciais subjetivos distintos, peculiares.Pessoas com transtorno autista apresentam res-postas diferenciadas para estímulos de dor, com

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indicações de que pode haver uma diminuiçãoda reatividade ou mesmo analgesia24. A dor,experiência genuinamente subjetiva e pessoal,definida ou associada a lesões teciduais, é con-siderada o quinto sinal vital e a habilidade deperceber e interpretar sensações de dor impli-ca prejuízos graves para a pessoa que a sente,pois ela não é capaz de promover o cuidadoque a dor sinaliza e nem emitir comportamen-tos para requisitar atenção necessária ao danocorporal.

Esse modo de funcionamento está rela-cionado ao que Frith9 apontou a respeito dafalha de autistas na coerência central, havendoforte tendência a prestar atenção em detalhes,sem estabelecer relação entre o todo e suaspartes; tendência a observar uma gravura “empartes”, ao invés de uma figura inteira, e a pre-ferir uma sequência randômica ao invés de umaprovida de significado (contexto). Autistas al-ternam frequentemente seus estadosatencionais entre hiper e hipoatenção, compor-tando-se de forma “demasiadamente focada”25,respondendo apenas para um tipo de estímuloproveniente do ambiente e excluindo os de-mais. Tais alterações nos processos atencionaispodem estar relacionadas às dificuldades paracompreender o sentido dos estímulos ambien-tais, de modo a fazerem “escolhas muito po-bres sobre ao que atentar quando não há pistase indicações claras”25.

Dentre os estímulos que são importan-tes de selecionar para a adaptação do lactenteao ambiente estão as faces humanas, pelas quaishá um interesse inato14. Pela tecnologia EyeGaze Systemb detecta-se que, numa imagemcom rostos humanos, pessoas com desenvol-vimento típico olham primeiro para os olhos,depois para a boca e o nariz, já pessoas comtranstorno autista gastam pouco tempo olhan-do para a região ocular, tendendo a olhar pon-

tos incomuns como a orelha, um detalhe nofundo, um fio de cabelo branco25.

Segundo Moura et al.26, a boca é umaregião do rosto pobre em sugestões sociais,sendo insuficiente para sinalizações sociais,enquanto a região dos olhos é altamente infor-mativa, de modo que muitas pistas sociais po-dem ser obtidas para inferir sobre pensamen-tos ou emoções do interlocutor. Admite-se,então, que pessoas com transtorno autista têmacesso a uma quantidade reduzida de informa-ções para instrumentalizar a ação interpessoal.Para esses autores, mesmo autistas de alto-fun-cionamento (sem deficiência mental) têm pre-juízo no reconhecimento das expressõesfaciais.

Reznik et al. 17 especificam diversoscomportamentos de autistas relacionados aointeresse pelo olhar humano, como evitação docontato visual, falha na capacidade de monito-ramento do olhar de um adulto bem como orien-tação pelo olhar de um adulto, dificuldade paraencarar ou enfrentar olho-a-olho. Comporta-mentos dessa ordem repercutem em outrosdomínios, como a atividade imitativa, porexemplo, presente precocemente em criançasde desenvolvimento típico2. O perfilneuropsicológico de pessoas autistas é marca-do pelo prejuízo na habilidade de imitar osmovimentos de outra pessoa18, repercutindo,por sua vez, na impossibilidade de desenvol-ver coerentemente o uso do olhar e a responsi-vidade da criança autista, bem como ao desen-volvimento de empatia2, comunicaçãointencional, atenção compartilhada5,8 e jogosimbólico14.

b) IMAGINAÇÃO E PROCESSOS COGNITIVOS

A capacidade imitativa dos autistas temsido amplamente discutida a partir de uma re-

b Exame objetivo que registra o percurso do olhar humano, por meio de raios infravermelhos que se projetam nas córneas edeterminam a angulação em relação à tela, detectando as direções para onde os olhos se dirigem.

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cente descoberta da neurociência: os neurônios-espelho. Trata-se de tipos especiais de neurô-nios, localizados na região do lobo frontal, des-critos em 1996 por Rizzolatti e equipe, emexperimentos com macacos rhesus28. Essesneurônios, também presentes em seres huma-nos, são ativados quando alguém realiza umatarefa com finalidade específica e tambémquando alguém observa outro que realiza amesma tarefa. São células nervosas envolvi-das na origem da linguagem humana e forte-mente relacionadas com várias modalidades decomportamento humano, como a imitação, teo-ria da mente, aprendizado de novas habilida-des e empatia.

Segundo Lameira et al.28, a disfunçãodos neurônios-espelho pode estar envolvidacom a gênese do autismo, pois a essas pessoasfalta a capacidade de se expressar, compreen-der e imitar sentimentos como medo, alegriaou tristeza. A repercussão da falha do sistemade neurônios-espelho compromete o desenvol-vimento de pessoas autistas já que não têmaparatos que lhes garantam a sobrevivênciaatravés da organização social, quando da pos-sibilidade de entender a ação de outras pessoas,bem como aprender novas habilidades a partirda atividade imitativa – que é base da culturahumana. A falha na capacidade imitativa é umcritério importante nos processos de diagnós-ticos e domínios de investigação e acompanha-mento em instrumentos de avaliação dirigidosa esse público17.

Da mesma forma que apresentam disfun-ção na capacidade empática, têm limitação nasatividades cerebrais executivas, em que estãoenvolvidos processos imaginativos, como brin-car e representar simbolicamente29-30, e em si-tuações que requerem a improvisação, comoaquelas em que não se pode prever o que acon-tecerá ou cujas regras não são explícitas. Sãofunções psicológicas essenciais para a adapta-ção humana, visto que a organização das ativi-dades humanas é marcada por regras subjeti-vas, aprendidas de forma espontânea, a partir

da capacidade de atribuir e se apropriar do sen-tido social e cultural das próprias vivências edas vivências dos outros. O que pessoas comdesenvolvimento típico aprendem espontanea-mente precisa ser ensinado a crianças comautismo através de instrução, como em proces-sos de aprendizagem científica, escolar.

De modo geral, essas propriedades psi-cológicas relacionam-se com o domíniocognitivo. A esse respeito, destaca-se a estrei-ta relação entre autismo e deficiência intelec-tual, ressaltada por Wing9,31, que propõe que oautismo se configura como um continuum emfunção do grau de comprometimento cognitivo.Assim, quanto maior o comprometimento in-telectual, tanto maior é a sintomatologia.

Nesse caso, no domínio da interação so-cial, os quadros autísticos podem variar desde aaproximação de outrem de modo bizarro até aindiferença quase total; na área de comunica-ção social (verbal e não verbal), variam entreuma comunicação espontânea, porém repetitiva,até uma ausência total de linguagem; podemapresentar atos imaginativos fora de situaçãorepetitiva, usando outro como ferramenta, aténulidade de capacidade imaginativa; podem tam-bém não apresentar ou apresentar minimamen-te movimentos estereotipados ou ser muito mar-cado por esses comportamentos.9

O déficit cognitivo pode atuar como di-ficultador na adaptabilidade do indivíduo hu-mano, uma vez que a inteligência permite quese encontrem soluções para um problema ou alógica de um argumento, de maneira rápida eversátil. Segundo Tobby e Cosmides22, o serhumano dispõe inatamente de programas deraciocínio, tomada de decisões e aprendizadocomplexamente especializados para resolverum problema de adaptação, independente dequalquer esforço consciente ou instrução for-mal. São programas distintos das mais geraishabilidades de processar informação ou com-portar-se inteligentemente, que tem todos oscritérios e princípios dos outros mecanismosinstintivos. Porém, tais mecanismos não estão

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íntegros no desenvolvimento de pessoas comautismo32.

c) SOCIABILIDADE E COMUNICAÇÃOO engajamento social e a habilidade co-

municativa estão entre os prejuízos centrais empessoas com autismo33. Nesse sentido, há pes-quisas que consideram que um dos principaisprejuízos no desenvolvimento de autistas é nacapacidade de compartilhar a atenção (jointattention)34. Como sendo uma das habilidadesmais importantes da fase de lactente, a aten-ção compartilhada estabelece uma relação in-trínseca com a comunicação social, com a imi-tação e inversão de papéis e da linguagem18,35.

Em crianças de desenvolvimento típico,a capacidade de compartilhar a atenção se apre-senta entre seis e nove meses, quando se iniciaa fase da comunicação triádica18. Naintersubjetividade secundária, ou seja, quandointroduzido um objeto ou evento na relaçãodual (mãe-filho), as duas pessoas que se rela-cionam tem seus focos de atenção voltados parao mesmo interesse. Assim, itens como “nãoaponta o que deseja” ou “usa as pessoas comoferramenta” são comuns em escalas para diag-nóstico de autismo, pois a apresentação dessascaracterísticas revela que não há atenção com-partilhada, já que saber apontar ou se comuni-car com gestos são habilidades provenientesda intersubjetividade secundária18. O desen-volvimento da atenção compartilhada tem sidorelacionado ao desenvolvimento da linguagemem pesquisas e experimentos34. Além disso, afalha nessa habilidade tem sido consideradacomo critério diagnóstico em diversos check-lists e o seu desenvolvimento tem sido propó-sito de processos terapêuticos dirigidos a essaclientela30,36.

A respeito da comunicação social e dainabilidade social do autista, outra razão queconfigura o autismo como grave transtorno dodesenvolvimento é o prejuízo severo na capa-cidade de compreender estados mentais de ou-tras pessoas2, como já referido anteriormente.

A capacidade do indivíduo de inferir a respei-to dos estados mentais dos outros é conhecidacomo “teoria da mente”. Para que o indivíduopossa fazer uso da teoria da mente, é precisoque esteja equipado com uma habilidade quepermita desenvolver uma medida (isto é, umsistema de referências que viabilize compara-ções entre nosso mundo interno, subjetivo e omundo externo, dos outros) daquilo que osoutros pensam, sentem, desejam, acreditam,duvidam38.

Essa habilidade é inata e o comprometi-mento, provavelmente congênito, são altamenteprejudiciais para o processo de adaptação depessoas com autismo. O homem, como sereminentemente gregário, depende da percep-ção dos estados mentais dos que com ele con-vivem para que possa estabelecer relações en-tre diferentes elementos do mesmo grupo deconvivência, de maneira que facilitem os pro-cessos de adaptação e, consequentemente, desobrevivência9. A falha dessa habilidade difi-culta ou mesmo impede que se explique oupreveja o comportamento de outras pessoas,dificultando, também, a interação social no seugrupo de convivência. A teoria da mente, por-tanto, está altamente relacionada aos proces-sos de desenvolvimento da capacidadeempática, outro aspecto de desenvolvimentotomado como inato no ser humano2,9.

Tobby e Cosmides22 referem que, damesma forma que adultos, crianças de quatroanos têm a capacidade de perceber a direçãode olhos de outras pessoas e usam disso parainferir sobre o estado mental daquele que é fi-tado. Numa situação real, por exemplo, quan-do uma pessoa está diante de várias balas, crian-ças a partir de quatro anos são capazes de inferirqual a bala desejada pela pessoa a partir da di-reção do seu olhar. Crianças com autismo, con-tudo, não apresentam essa habilidade 34. Essascrianças têm capacidade de computar direçãovisual corretamente, mas não de usar essa in-formação para deduzir o que alguém quer. Essemecanismo cognitivo, que parece óbvio para

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pessoas com desenvolvimento típico, não dei-xa de ser “senso comum”. Porém, o senso co-mum é algo causado, produzido por mecanis-mos cognitivos22. Para que se possa fazerinferência do estado mental de outra pessoa, énecessário um instinto de raciocínio que de-termine o funcionamento de um circuito deinferência.

Além disso, é importante reconhecer ossinais de linguagem não verbais, a exemplo dasexpressões faciais39. Autistas apresentam com-prometimento na capacidade de meta-represen-tação, de modo que tem dificuldade para com-preender os próprios estados mentais, bemcomo o de outros, pois esse reconhecimentopermite sucesso em interações sociais maiscomplexas, que envolvem a concepção de cren-ças e desejos de outrem. É necessário que, emum diálogo, por exemplo, a pessoa que fala secoloque a partir do lugar daquele que ouve.Essa habilidade empática não é encontrada emautistas, de modo que não obtém sucesso emum discurso comunicativo.

A expressão facial permite a percepçãode informações vitais que caracterizam esta-dos e atributos mentais. Apesar da habilidadepara classificar objetos genéricos, esse requi-sito não encaminha necessariamente à presen-ça da habilidade de identificar algo particular,como a expressão facial40. Da mesma formaque autistas conseguem captar a direção doolhar em figuras, mas não inferir sobre o dese-jo do personagem a partir dessa informação,também é capaz de identificar os sinais de umaexpressão facial, mas não atribuir sentidosaquilo que vê.

Um dos níveis de análise é pensar o de-senvolvimento humano em função de padrões eregularidades entre humanos, enquanto seres deuma mesma espécie. Nesse sentido, ao nascerem,herdam estruturas de desenvolvimento relativa-

mente consistentes que se estabeleceram ao lon-go da história da espécie14. Isso faz com que al-guns comportamentos sejam facilmente estabe-lecidos ao longo da história ontogenética dapessoa, como a facilidade para desenvolver ocomportamento de apego15.

As diferenças inter e intraespécies sãocompreendidas como processos selecionadosao longo da história filogenética de cada umadessas espécies e, no propósito de discussãodeste artigo, da humanidade. Por isso, não sepode afirmar que o autismo é representativode um modo de funcionamento para atender asnecessidades de adaptação. Ao contrário, é umtranstorno fortemente limitador desses proces-sos, pois autistas apresentam limitações espe-cialmente no domínio sociocomunicativo, fun-damentais para o processo de adaptação.

Nesse sentido, é importante que haja adetecção precoce de risco de transtornos dedesenvolvimento. Atualmente, há medidas dediagnóstico disponíveis que auxiliam profis-sionais a detectarem precocemente risco dediagnóstico de autismo através da comparaçãocom parâmetros típicos de desenvolvimento,destacando-se os que privilegiam a observa-ção clínica e o relato de pais.

A detecção do transtorno, quanto maisprecoce for, mais cedo permite intervenções emsituações naturais através da orientação siste-mática com a família e com a criança nas áreasmais acometidas pelo transtorno, possibilitan-do interferências significativas no rumo dodesenvolvimento16. Nesse sentido, essa pers-pectiva proporciona pensar as possibilidadesde intervenção com pessoas com autismo, semnegar suas limitações constitutivas, mas pro-porcionando-lhes condições socioambientaisque viabilizem o desenvolvimento de habili-dades e recursos para sua melhor adaptabili-dade no ambiente em que vivem.

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Recebido em: 08/ago./2010Modificado em 26/nov./2010

Aceito em 16/mar./2011