Austregésilo Carrano - Canto Dos Malditos

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    CANTO dos malditos-CARRANO, Austregsilo, 2001CARRANO, Austregsilo. Canto dos malditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.SEQUELAS... E... SEQUELASSeqelas no acabam com o tempo. Amenizam.Quando passam em minha mente as horas de espera, sinceramente, tenho d demim. N na garganta, choro estagnado, revolta acompanhada de longo suspiro.Ainda hoje, anos depois, a espera por demais agoniante.Horas, minutos, segundos so eternidades martirizantes. No comeam hoje,adormeceram, a muito custo... comigo.Esta espera, oh Deus! como nunca pagar o pecado original. ser condenado morte vrias vezes.Quem disse que s se morre uma vez?Sentidos se misturam, batidas cardacas invadem a audio. Aspirada a respiraono ... introchada. Os nervos j no tremem... do solavancos. A espera estacabando. Ouo barulho de rodinhas.A todo custo, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do

    quarto. Olhos na abertura da porta rodam a fechadura. J no sei quem e o quesou. Acuado, tento fuga alucinante. Agarrado, imobilizado... escuto parte do meugemido. Quem disse que s se morre uma vez?Austregsilo CarranoPoema das 4 horas de espera para ser eletrocutado... (aplicao da eletroconvulsoterapia)11Captulo 1COLGIO ESTADUAL DO PARAN, ano de 1974. Um grupo de jovens estudantes rene-se nas

    escadarias, todas as noites, antes das aulas. Repartem seus sonhos, histrias, inseguranas eaventuras de adolescentes.Um grupo de jovens especiais, ligados por uma afinidade secreta, que desperta a

    curiosidade e alguma inveja dos outros adolescentes. Este grupo diferente, rebelde, roupasexticas, cabelos compridos e fala estranha. Comunicam-se com uma certa superioridade edesenvoltura, trocam experincias de um mundo misterioso e envolvente que atrai a curiosidade

    de todos: as drogas.Bicho, ontem no foto Clic pintou um vidro de Artane.Pra com isso, Artane uma loucura.S loucura? uma tremenda viagem. O que eu vi de aranha subindo nas paredes, cara! Que

    doideira! Eu tava comendo pipoca doce, e o Ado comeou a encarnar dizendo que era mel. Queviagem! Eu enfiava a mo no saco e tirava mel, cara! D pra acreditar? Que loucura!Artane foda. Voc v o diabo. o cido do pobre. E pico, voc j transou?No, e nem t a fim...Voc no sabe o que t perdendo!Acho sujeira.12Que nada, cara! A gente tem mais que curtir e depois s ter cuidado. Voc

    toma uns cc hoje, d o tempo de alguns dias para tomar outra dose. uma viagemque voc quer que nunca acabe.Eu acho muito arriscado. Esse papo de viciar muito perigoso.

    Cara! no tem perigo de viciar, no... s dar um tempo entre uma picada eoutra. Deixa de ser bunda-mole.Bunda-mole a porra! Eu acho sujeira e pronto. Se voc quer correr o risco,

    meu chapa, e se tornar escravo da coisa... o problema seu, t legal?T legal, t legal, no precisa se enervar, no! A escolha sua, ningum t

    querendo fazer a sua cabea, no. Se voc ficar s nas bolas e no fumo, t limpo, eu tomo unspicos de vez em quando... s ter cuidado.Que cuidado? Voc entrou numa de colocar nos canos e o cuidado desapareceu, meu chapa. E

    se vacilar, vai ser garoto de bicha, s pra conseguir o bagulho. E a, meu irmo, a barra pesa.Acho que o bunda-mole aqui voc, cara!Qual , cara? T numa de ofender? Que papo mais sem rumo, transar com bicha por

    bagulho... eu sou macho!Olha, pelo papo que eu ouvi, quando a coisa te domina, a barra fica diferente.

    Voc se vende por uma picada. Cara, eu no t nessa mesmo.

    Pra viciar no to fcil assim. O cara tem que vacilar muito.Vacilar... o lance que pra segurar, fica difcil. A viagem uma loucura...e ela te leva. A, cara, a coisa perde o controle, voc viciou. T fodido.

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    E a? Faz tratamento...Tratamento... onde? em hospcio de loucos? Voc t brincando. Cara, no t

    querendo dar uma de careta, no. S que eu acho que o lance de colocar na veia uma puta de uma sacanagem, pois voc a caa. E pra coisa te engolir dois toques.13T legal, cada um faz o que quer. Vamos mudar de papo, j ficou cavernoso... Depois da

    terceira aula, vamos l pro foto... t a fim de uns Artane.

    E uma boa. S espero que tenha sobrado. Tava a turma toda ontem l. Voc no conhecetodos.No ramos uma turma das drogas pesadas. Um ou outro, s vezes, experimentava o pico. Mas

    no geral ficvamos mesmo com as bolas, os xaropes e o fininho. As bolas e os xaropes, comoRumilar, comprvamos na maior limpeza, nas farmcias, que no exigem receitas. Buscvamoscogumelos em campos, onde as vacas eram as nossas madrinhas. Depois de uma chuva, farturade cogu...Raramente pintava uns graminhas de coca, que a maioria cheirava. Nem seringa tnhamos. Eram

    tantas histrias, de algum que se foi por uma overdose, que minha galera tinha o temor do pico.Alm disso ningum trabalhava e a coca sempre e foi cara. Nos reunamos no que denominamosfoto, um estdio fotogrfico, localizado no centro de Curitiba.Ficvamos rondando o local, impacientes, quando os pais do

    Edson e do Issan, que eram japoneses, se demoravam mais para sair.A, Paulo, que horas so?

    Vinte pras dez. Ser que os velhos esto no foto ainda?S to. Tm dias que eles abusam.Ah!... Eles abusam? rimos., u!... L vem o Edson.O foto ficava no meio da quadra, numa ruazinha estreita. Na esquina, espervamos o sinal de

    barra limpa. Os velhos dos japoneses haviam comprado uma casa na Vila Hauer. Antes, moravamno foto. L deixaram os mveis antigos.E a... meus coroas j vo sair! anunciou Edson.Cara, o Paulo t com uma quina de fumo, e do bom.E do Boquera? perguntou Edson a Paulo, se referindo ao bairro do Boqueiro.S. L tem pintado coisa boa.14E voc chegou bem em casa ontem? continuou Edson.Voc t querendo dizer hoje de manh? Seu irmo acordou a gente em cima da hora. Quase

    que seus pais do um flagrante em todo mundo!

    S que a gente tem que maneirar. Quando os coroas chegaram hoje, sobrou pra mim e proissan.Eles viram a gente saindo?No. Ficaram putos com a zorra que tava o foto... caf derramado, pipoca l em cima. Numa

    dessas, os velhos encontram umas bagas... a fica estranho.E s a rapaziada cooperar. Antes de sair, dar uma geral em tudo. Mas ontem a

    festa foi demais. No deu tempo, acordamos em cima da hora... O Austry me disse que vocsmoravam aqui no foto.S. Agora eles compraram uma casa...Da a limpeza. O foto fica por nossa conta. Os gatos saem e as ratazanas fazem a festa!O Issan t nos chamando. Vamos nessa! disse Edson.Paulo, de imediato, tirou o pacotinho de fumo e uma seda, catando as sementes.

    Pink Floyd tocando, Issan na cozinha preparando um rango. As vezes vinham unspratos diferentes, a galera adorava.

    O foto tornara-se para ns um segundo lar, ou mais que um lar. Entre aquelas paredes, ramosns mesmos. Sentamo-nos os astros do rock, reis dos malandros, super-homens, os cabeas-feitas. ramos os melhores. Mil fantasias, um espao s nosso. Um palco de sonhos e iluses,onde malucos eram todos, na maior limpeza...Na entrada, pela rua estreita, uma porta de grade que, com macete, podia-se abrir. Ficava

    sempre abaixada, era o nosso alarme. Em seguida, as vitrines, com psteres e mquinas defotografia. Abrindo a porta, com metade de vidro, estamos no salo. Um pequeno balco, sof jgasto, mquinas fotogrficas em cima da mesa de retoques, algumas de pezinhos. Uma televisoem cima de uma cadeira.15

    Os holofotes misturavam-se com os guarda-sis. Algumas sombrinhas japonesas, num canto,formavam um cenrio. Perto da porta que dava acesso ao grande salo, ao lado da escada quelevava sobreloja, um enorme espelho. O teto era muito alto, pois para cima era um edifcioresidencial. Nos fundos do grande salo, uma saleta e uma segunda entrada para o foto. Haviatambm uma sala escura, para revelao. Incrvel que, aps tantos anos, a lembrana do fotoesteja to viva em minha mente. Como amvamos aquele palco de iluses!As noitadas repetiam-se. Rolava um baseado aps o outro. O vidro de Artane esvaziando-se. A

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    grade da entrada subindo. Issan, o primeiro a se levantar. Assim o salo ia enchendo. Eliane, amascote da galera. Catorze anos, eu a trouxe. De imediato foi adotada pela turma, a nenm dacasa. Eu tinha dezessete, o Edson, um dos mais velhos, dezenove, todos nessa faixa. Eliane, airm mais nova de todos, era protegida. Ningum a tocava. Alta, com longos cabelos castanho-escuros. Grandes olhos azuis, linda Eliane, mas tolinha. Fumava e ria at da sombra. A gradesubia, Issan se esticava. Era o Herbert, o alemo... um loiro de cabelos compridos e lisos. Peludo,barba sobrava, boa-pinta, papudo. Ele sabia de tudo. Ado tambm chegara, o patinho feio da

    turma. Entupia-se de Artane. E o Negro que chegara com Herbert , magro e alto, beiudo,assustava no escuro. E a Suzi, uma morena gostosa, cabelos bem curtinhos. Oalemo, boa-pinta, era o seu gal. E a Ktia, uma nissei, gatinha do Edson. Todos, naquelepalco...Pessoal, sabem onde eu encontrei o Negro?Ficamos esperando a resposta. O Negro havia chegado j muito ligado. Jogara-se no sof.

    Cruzou os braos, e fazia beicinho.O Negro tava l na praa Rui Barbosa, andando de um ponto de nibus ao outro, assim...

    (Herbert cruzou os braos e imitou at o beio do Negro.)A, Negro, olha a bandeira! Voc fica dando essa furada, azara a de todos ns. Se segura,

    meu! (Edson, cortando as nossas gargalhadas.)

    16T legal, t legal. No vou dar mais bobeira, e tudo bem; t legal... falou, tropeando nas

    palavras.Acho bom, Negro. A Entorpecente tem um patrcio do Edson e do Issan, que barrapesadssima.O Herbert tem razo. Esse delega japons o co (Ado).Esta city t a maior sujeira depois que aquele cara morreu de over (Suzi)., overdose foda... se a gente vai com muita sede ao pote, puft! J era!

    (Herbert)Que cara?Um cara do Teatro Guara. A barra t suja, os homens to quentes. No d pra marcar touca!

    (Suzi) fase. Quando pinta uma sujeira dessas, sai a manchete. Os homens tm que

    mostrar servio. A, os putos caem em cima de qualquer um. E s uma fase, depois acalma (Ado).J pensaram se os homens chegam aqui no foto?Pare de agourar, Issan! (Ktia, batendo trs vezes.)

    Mas tem a ver. E se os homens seguem um de ns, como aconteceu com o Negro, hoje? (eu)No no ponham nesse rolo. Eu t aqui na minha, no falei nada (Negro, fazendo

    beicinho). esse Artane que deixa a gente bobo. Essa bola do peru, bom a gente dar um tempo

    (Issan).Que nada, cara! eu me amarro nuns Artanes. (Herbert, um dos mais velhos no trato com as

    drogas.)Voc no d vacilo! E raposa velha. Mas o pessoal que t no bagulho h pouco tempo tem que

    maneirar. Seno a barra fica feia (Edson).E o Abulemim? (Eliane, que no abria a boca.)Abulemim, Rumilar, Optalidon, tudo vai da cabea de cada um. Esse papo t enchendo o saco.

    T todo mundo entrando numa de horror.17

    Vamos mudar de assunto (Suzi, tirando Herbert pra danar)., mas o Artane... dizem que do pros malucos nos hospcios, pra acalm-los...Assim as noites aconteciam. Fumando, tomando bolas, vendo TV jogando cartas, conversando

    abobrinhas. O Edson transava com a Ktia, o Herbert com a Suzi. Os filhos de Deus quesobravam se entretinham com os bagulhos. Levvamos garotas para o foto, mas no fazamossuruba. Cada um dava sua trepadinha, sem nenhum bobo se intrometer. No dava para levarqualquer garota para amar no foto. O broto tinha que transar a nossa. Se fosse careta, nolevvamos. A dedurao era moda.A, pessoal! Que tal a gente ir pra Cambori, neste final de semana? (Herbert, parando de

    danar.)T todo mundo duro (Issan).No dedo, bicho! (Suzi) uma boa, a gente leva uns sanduches, uma grana para as cocas... Coca-cola, gente! (A

    declarao da Ktia provocou risadas.)No esquecendo a vaquinha, pros bagulhos. (Ado)Sexta-feira era o melhor dia, o foto no abria no sbado. Dormamos l mesmo, com exceo da

    Ktia e da Eliane. No sbado, quem ia viajar, dormiu no foto.

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    Cada um deu a sua verso em casa. Na estrada, em um posto de gasolina, o primeiro empecilho.Como conseguir carona para oito?Tudo bem gente, vamos nos dividir. Eu, Ado, Suzi e a Eliane sugeriu o Herbert, coando

    sua barba ensebada.Pra a! Vamos ficar eu e a Ktia com dois marmanjos? T brincando... - disse Edson,

    reclamando.Pra a, gente! eu, a Ktia e a Eliane vamos conseguir carona garantiu Suzi, muito segura.

    S pra vocs trs, eu acredito cortou Issan, gozando.Pra todo mundo... e mais algum que queira ir junto. Conosco no h enrosco! retrucouKtia, fazendo charminho.18Existem muitas coisas para as quais as mulheres tm mais jeitinho do que os homens. Se

    algum podia conseguir carona para oito, eram aquelas gatonas. E logo estvamos divididos emdois caminhes, rumando para Joinville. Depois, um nibus e camos em Cambori. Montamos asbarracas longe dos agitos. Era estratgico, assim as nossas loucuras estariam maisresguardadas.As estratgias nem sempre funcionam. A malucada tinha um sexto sentido. Num piscar de olhos

    estvamos rodeados de malucos, querendo e trazendo os baseados para serem desfrutados.Todos sem passado nem futuro. S curtindo o verde, que o calmante dos deuses. Som de umgravador. Rock e violo se misturando. Valia tudo. Casais entrando e saindo das barracas,seguiam risca o mestre John Lennon: Faam amor, no faam a guerra. O pessoal

    empenhava-se nessa frase.No domingo, eu, Ado e o Issan fomos a uma sorveteria. Compramos sorvetes de bola. O vidrode Artane, na bermuda do Ado. Tirou alguns comprimidos e os jogou no sorvete. Deve terogado uns dez, chupou o sorvete mais louco do mundo. No acampamento, cada um fazia algumacoisa. De repente, em uma das nossas barracas, um barulho que parecia tapas. Tinha algumdentro, quase derrubando a barraca. Corremos em socorro. L estava o Ado, com um chinelode pneu nas mos, batendo na cabea. Batidas fortes, nos disse que estava com a cabea cheiade ratos, e tinha que mata-los. Tiramos o chinelo de sua mo. Correu para fora da barraca eenfiou a cabea no balde de gua. Segurou o mximo que podia e nos disse:Viram?!... como eu matei todos os ratos afogados? Entrou na barraca e bodeou.Tudo aquilo para ns era divertido. As piraes tornavam-se assuntos. A volta para Curitiba foi

    mais tranqila. O mesmo esquema, as donzelas dando de dedinho... No demorou nadinha, umcarro branco parou. A rapaziada rapidinho arrodeou. Era um uruguaio em frias, ia para o Rio,tinha um amigo que vinha logo atrs. Iriam se encontrar com os parentes que j estavam no Riode Janeiro.

    19No deu outra, chegamos em Curitiba de chofer estrangeiro e dois carres importados.No colgio tudo corria bem. Eu, Issan e o Paulo fazamos o terceiro, que era o cientfico e

    cursinho para o vestibular. Os agitos eram constantes, mas no descuidvamos dos estudos.Nossas notas eram regulares e estvamos em abril. Era s manter a mdia e passar de ano semficar para recuperao.Eu gostava muito das aulas que recebamos na escolinha de artes. Adorava a professora de

    expresso corporal.Professora Elo, a posio de feto com os braos entrelaados nas pernas?No se prenda s regras, Austry. Crie! Ache a posio. Entre na msica. Criem, desabrochem.

    Vocs so uma flor desabrochando, nascendo. Vamos, gente, criando.Mas a senhora no ia dar aula de dico? pergunta Issan, que tambm se interessava.Calma, vamos primeiro ao corpo. Vocs tm que aprender a se expressar com ele. Tudo nele

    expressivo. Trabalhem com cada parte, as mos, os braos, os ombros. Tudo fala em vocs e

    sugere alguma coisa.E a aula de dico? insistiu Issan.O teatro um todo. No adianta o ator ter uma perfeita dico sem expresso, Issan. Nasemana que vem, voltaremos ao assunto. Agora, comecem os exerccios! No temos muitotempo...Pena que essas aulas eram dadas apenas nos recreios. Era o que mais se aproximava do que eu

    realmente almejava ser: um ator. Nunca perdia uma aula dela. E com sua ajuda montamos umapea de teatro. Competimos num festival amador, realizado e patrocinado pelo Teatro Guara oucoisa parecida. Competimos com alunos de teatro, tambm de outros estados. Obtivemos o 3lugar? Foi uma grande satisfao para todo o colgio. O diretor veio nos dar os cumprimentos.Geralmente, aps as aulas de arte, eu e o Issan amos para o foto e, quando chegvamos, o

    pessoal j estava embalado.20Passvamos tanto tempo l que minha me chegou a sugerir que eu levasse uma mala de

    roupas e a escova de dentes e aparecesse de vez em quando, para visit-la. Mas havia umaexplicao para essa atitude. At doze ou treze anos fui muito vigiado, no tinha a liberdade deser moleque. Isso me criou srios problemas de relacionamento, prejudicando os meus estudos

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    no ginsio. Eu era muito medroso, tinha medo de brigar. Os outros moleques se aproveitavamdesse medo. Eu apanhava de minha me o suficiente, em casa. Ela se concentrava muito em suaprofisso de costureira e no admitia que eu a perturbasse.Mas as enchees de saco dos outros moleques chegaram ao limite. Um belo dia, abri a cabea

    de um deles com uma pedra. Quase fui expulso do ginsio. Depois da conversa com o diretor, ealgumas explicaes, minha me comeou a me soltar, mais e mais. E a liberdade da rua apaixonante. De repente, o mundo se apresentava minha frente. Cresci um adolescente

    revoltado, como a maioria dos adolescentes de classe pobre. Vendo tudo, querendo tudo e notendo nada. Meus velhos assumiram uma atitude de passividade. No ousavam prender-me emcasa. Sabiam que eu iria agredi-los. No fisicamente, mas verbalmente. No tinham maisnenhum domnio sobre mim.Continuava meus estudos. Era uma porra-louca dentro dos colgios, mas passava de ano. Nunca

    havia repetido. Meus estudos e eu sabia que s atravs deles poderia ser alguma coisa na vida, eu os levava com seriedade, mesmo com todas as maluquices que fazamos com as bolinhas eo fumo. Nas frias de julho, fui convidado por um amigo a conhecer o Rio.Rio de Janeiro! Sempre tive um fascnio por essa cidade. No deu outra. Arrumei a mochila,

    agitei uns trocos. Mercedes-Benz, chofer, trinta e seis lugares. Chegamos no paraso encantado,Rio de Janeiro.Meu amigo tinha me dito que tinha uma tia no Rio, e que poderamos ficar na casa dela. S no

    mencionou que ela morava numa favela, e tinha uns seis filhos.21

    E tambm no contvamos com o mulato que estava morando com ela. Ele no gostou muito dasnossas caras de gringos., Austry, a barra aqui no t muito legal. Vamos deixar as mochilas por aqui... e amos luta.Voc no falou que sua tia ia dar uma fora?Eu no sabia que tinha um gigol na parada.Gigol, com seis barrigudinhos. Cara, sinceramente t com d dele...T limpo, vamos pra Copacabana, avenida Atlntica, Posto 6. Cara, voc vai seamarrar...Por enquanto, tudo t cheirando a presente de grego. Eu pensava que o Rio fosse uma cidademaravilhosa. S vi favela e lugares feios...A gente t no subrbio do Rio. Espera at a gente chegar na Zona Sul. Aqui s d p-de-chinelo. L na Zona Sul, o papo outro.Foi amor primeira vista. Prdios que formavam um imenso paredo, com uma curva suave.

    Pessoas passando como num formigueiro. O mar calmo em contraste com o agito e o barulho dosautomveis. Garotas e mais garotas, com biqunis, uma mais gostosa que a outra. Meus olhos

    no sabiam onde parar, queriam ver tudo ao mesmo tempo. Andando pelo calado, sentindo ovento vindo do mar, olhava apaixonado, estava abismado com tanta beleza. Aquele cenriomerecia mais uma vez, entre as centenas de vezes, ser filmado. Que cidade louca, papai emame, estou em Copacabana!...Tudo isso aqui lindo...Mas sem grana, meu chapa, no d pra encarar.Voc j ficou aqui um tempo. Sem grana?Sem grana no, na batalha, malandro.Ento, vamos nessa. Batalhar! Quantos eu tenho que matar?Entramos numa galeria. No era muito bonita, preferia o visual l de fora.22

    Chegamos num barzinho do outro lado da galeria. Meu amigo logo achou quatro conhecidossentados numa das mesas e apresentou-me. Eram bichas.Esse um amigo. Veio comigo l do Sul.

    Gauchinho, tch! exclamou uma, bem empolgadinha.Paranaense respondi seco.Humm... macho, seu amigo disse a bicha, me provocando. um cara legal respondeu meu amigo.No parece! comentou a bicha, virando a cabecinha.A, t chegando falei pro meu amigo.Calma, gauchinho, pra que pressa? atirou a fresca.Virei as costas e entrei na galeria. Meu amigo veio atrs, cheio de moral, pegou-me no brao e

    falou irado.Pra a, cara, voc disse que queria batalhar?Batalhar... isso, comer bicha? T por fora, meu chapa! Nunca comi bicha e no vai seragora...Cara, deixa de onda! E s dar uns finces nesses putos, pinta rapidinho uma grana. Um appra ficar, deixe de ser otrio!Otrio a porra. Voc falou em Curitiba que a gente ia ficar na casa de sua tia. No me falouque a gente ia comer bicha. Se eu soubesse no teria vindo. Qual , cara?T legal. A grana d s pra ir buscar as mochilas. Chegando aqui a gente se separa. Cada um

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    na sua, falou?T limpo.Nos separamos. E l estava eu, sentado num dos bancos de pedra na avenida Atlntica. Eram

    altas horas da noite.A barriga parecia um temporal. No roncava, trovejava. A mochila estava pesando o dobro, onde

    deix-la? Ficar com ela era incomodo, alm de algum vagabundo poder querer tir-la na mogrande. A cidade j no parecia to bonita e acolhedora. Esta mochila... tenho de deixa-la em

    algum lugar, num barzinho.O garom indicou-me o gerente. Lancei-lhe um bom papo, guardou a mochila, com minhapromessa de apanha-la pela manh.

    23Fiquei rodando pelo calado um tempo. O sono j pedia a sua hora, e o corpo

    estava pra l de cansado. Olhando aquele areio de praia, na minha frente... ouvindo o barulhodo mar... o agito, agora mais suave. Um cu todo estrelado, o teto mais lindo do mundo. svezes o meu pensamento era roubado por importunos que, ao me verem, bem rapidinho sumiam.O calado, acima da areia, oferecia uma sombra generosa, a luminosidade da avenida no meincomodava. Mas a areia que entrava pela minha roupa, esta sim, dava um coceiro. Fora isso,sem muitas reclamaes, adormeci.Aos primeiros raios de sol, um cheiro excitante de maresia com bacalhau podre

    foi me penetrando. O sol, no meu rosto sujo de areia. Alvo do sul, queimava como brasa de

    cigarro. Despertei. Percebi que havia dormido acompanhado. Alguns metros frente e atrs,outros hspedes acordando. Tirando a areia dos olhos, vi alguns ainda nos braos de Morfeu. Aolonge, montinhos individuais ou duplos parecendo um s. Todos hspedes do maior hotel demilhes de estrelas da Cidade Maravilhosa... Primeiro pensamento: voltar para casa... mas como?T duro, sem grana nem pra um po dgua! O hspede vizinho chama minha ateno.Tudo bem? disse um mulato, com uma jaqueta azul escolar.Beleza. E a?Voc no da redondeza?Sou paranaense.Ah! voc da Paraba, mas no tem cara, no.No! eu sou do Paran, l de baixo, do Sul.Ah! eu tinha entendido paraibense... que da Paraba, n?Mas estou indo embora.Voc chegou quando?Ontem.

    24E j vai embora? Eu t aqui fais treis meis...Voc de onde?Da terra boa! Da Bahia, Salvad. Conhece?Que nada... cheguei s at aqui.Mas voc nem chegou e j t indo?E fazer o qu? vou tentar vender uma jaqueta e comprar uma passagem praCuritiba.No precisa ir, no! Eu t h treis meis, s na batalha...T comendo bicha, cara?Qual , amizade? Essa de com bicha no comigo, no. T na batalha, pedindo grana. scheg no pessoal e cont um sete um e pronto.Um sete um, que isso?T vendo que voc mesmo de outras bandas. Um sete um uma estria, um lero,

    compadre. Voc chega no cara assim, : A, cidado, por fav, um minutinho, euno sou daqui e t precisando embora. Preciso compr uma passagem pra minhaterra. Ser que o cidado pode d uma fora pra minha pessoa?E funciona?Cara, mole. Carioca gosta de boa educao. s gast o portugueis e pronto. No d otra.S no d pra cheg falando gria. A cidado! no esquea do cidado, d boa impresso. Temcara que d uma baba boa. D pra com e peg at um hotelzinho l na Lapa.Ento, qual a tua, dormindo na areia?Coa grana do hotel, eu comprei um bagulho. Deixa eu acord direito e vamo tom aquelecaf...Fiquei vendo o mulato se despir. De sunga, o hspede correu at o mar. Parecia boa gente. Se

    fosse como ele disse, talvez eu deixasse pra ir embora amanh. O sol j se fazia sentir. Vestiu aroupa, ainda molhado. Atravessamos a avenida. No calado, a primeira abordagem do mulato.Um homem de meia-idade.A, cidado! pofav... um minutinho. Eu e meu amigo no somo daqui...25

    Ele l de baixo, do Sul, e eu sou l de cima. A gente t precisando de uma ajudinha pra tom

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    um caf. Ser que o cidado pode d uma forcinha pra gente?Vo trabalhar, seus vagabundos!O mulato ficou chocado. Quando caiu em si, falou irado:

    A, cidado ignorante, paraba bundo... Esse corno e ficou sabendo hoje! O cara j estavavirando a esquina., no deu certo... falei, desanimado.Acontece, de repente voc pega um de cu virado.

    , Nego, no vai ser fcil...Nego no, meu nome Rodolfo. Minha v me botou esse nome em homenagem a um artistade cinema. Um cara famoso no mundo todo. Onde estivesse, o Valentino deve ter-se coado.T legal, Rodolfo. Meu nome AustryVoc gringo, cara?No, o meu nome verdadeiro Austregsilo. Austry apelido. O filho-da-puta sedesmanchou de rir.Como que , Austressimo? Cara, que palavro!Rodolfo, para um nego... tambm no pega bem!...O que isso, cara, voc nunca ouviu fal no Rodolfo Valentino?Dele sim, mas que era um nego... t sabendo agora.T legal, Austreglio, sem gozao co as fantasia de nossos coroa... Vamo luta, que a barriga t roncando!...Tambm t com fome, desde ontem.

    A vem vindo uma dona. Mulher mais fcil, elas ficam com d.Quando nos aproximamos, ela ficou assustada. Diante de um crioulo magricela,alto, com uma jaqueta de pano azul, cala vermelha desbotada de velha, eu, um magricelabranco e cabeludo, com cala jeans desbotada, qualquer um ficaria assustado. Mas eu estavadecidido a no voltar para Curitiba sem antes curtir um pouco o Rio de Janeiro. Fazer umaviagem dessas e voltar derrotado no fazia parte da minha personalidade.26

    Vamos luta, Rodolfo, pensei comigo...,No precisa se assust no, dona! que eu e meu amigo no somos daqui... beme... a gente t com fome. A mulher nos olhou, analisou e... melhor pedir do que roubar. Venham comigo! Entramos no primeiro barzinho, virando aesquina do calado. Pediu duas mdias. Comi duas coxinhas, fiquei com vergonha de pediroutra. Rodolfo Valentino j no tinha esse preconceito. O safado comeu trs. Mas, analisando,acho que a dona pagou tudo sem reclamar, pois na hora da abordagem ela pensou que fosse umassalto. Ficamos comendo. Antes, porm, agradecemos gentil senhora. Ela seguiu o seu

    caminho.Cara, eu no lhe disse, que os cariocas so gente boa? Tem uns que pagam at umPF. s saber armar um sete um...Me pareceu que a mulher ficou assustada...Qui nada, cara, so gente boa mesmo disse entupindo a boca com a coxinha.Teu um sete um foi rpido e objetivo, demos sorte...Qui nada cara, eu j t...J sei, h treis meis aqui no Rio!...Qual , gozao? Vamos peg uma praia e depois a gente batalha o rango do almoo...Estava prevenido, com calo de banho. Era ms de julho e o sol estava de rachar. Para quem

    vinha de uma cidade fria, onde nesse mesmo ms a temperatura chega, s vezes, abaixo de zero,estava uma fornalha.Voc t parecendo gringo. Estvamos deitados na areia.Por qu?

    Gringo chega aqui e no mesmo dia quer ficar com essa cor de jumbo, aqui do mulato.Jumbo elefante...Calma, pimento! como voc branquela. Num tem sol l onde voc mora?27

    Tem, s que agora mais fcil cair neve do que deixar algum com cor de elefante.Qual , seu branquela azedo!...Atirou-me areia, revidei, comeamos a brincar de luta. Comeou a primeira amizade que eu faziano Rio. O Nego ensinou-me como batalhar, sem me prostituir. Os hotelzinhos da Lapa erambaratos. Mas o local de trabalho era Copa. Nem Ipanema era to bom como em Copacabana. Umdia, passando pela rua Pompeu Loureiro, tinha uma senhora num ponto de nibus. Pareceu-me apessoa certa para descolar uma grana. J batalhava sozinho.D licena, senhora! Eu no sou daqui, estou passando uns dias de frias aqui no Rio. Estousem nenhum dinheiro. A senhora poderia colaborar comigo, para um prato-feito?Voc de onde?Sou de Curitiba, Paran.E por que voc no volta para sua casa, l no Paran?Aprendera que falando a verdade as pessoas percebiam e auxiliavam com mais facilidade. Uma

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    carinha de ingnuo, tudo isso auxiliava no trabalho, para um bom resultado. que estou sem dinheiro.Voc quer que eu lhe compre uma passagem?Uma passagem, pra quando?U... para hoje.Mas eu gostaria de ficar mais uns dias...Ento voc quer curtir, como dizem vocs, jovens de hoje. Ficar vadiando e tomando txico!

    No tenho dinheiro para vagabundo! disse ela, voltando as costas para mim. Fiz o mesmo efiquei abordando outras pessoas. No dava para achar ruim, eram os ossos do oficio. Se fossediscutir, os homens vinham e me encanavam por vadiagem. Sem eu perceber, a mesma senhorase aproximou.Me desculpe, ns coroas esquecemos freqentemente que j fomos jovens.28

    Est aqui o dinheiro para o seu prato feito. E se cuide garoto, o Rio perigoso...Muito obrigado, dona!Com a grana que aquela gentil senhora-me havia me dado, ranguei um PF e sobrou para ocigarro. Agora, era fazer a digesto e pegar uma praioza. Quem sabe, hojeeu trocava o leo, pois j estava h uma semana no Rio... e nada. Eu nunca fui tomenosprezado. Afinal, pinta sempre tive... ou ser essa roupa que at agora no mudei? S podeser. Aqui no Rio tem dez mulheres para cada homem, se tem. Tem safado a com as minhas.O Nego tinha ido ao morro do So Carlos buscar uns fininhos, que ele transava na praia e no

    calado, noite. Preferia ir sozinho, porque gringo a galera no olhava com bons olhos. noite,no encontrei o Nego. Comecei a rodar pelo calado, passando por uns bancos de pedra. Tinhaum broto. Dava pra sacar que tambm estava na mesma situao que eu. Tinha uma figura decabelos encaracolados ao seu lado, o cara estava falando por ela tambm.Quando passei por eles, a gata no tirou o olho de mim. O encaracolado notou a indiscrio dadonzela, mas continuou falando. Fui at a primeira rua transversal, me mordendo mentalmente.Por que a gata no t sozinha? Voltei. No podia recusar um convite como aquele. Sentei numbanco prximo de onde estavam. Comecei a analisar as possibilidades. Se o cara for s amigodela, t limpo. Se no for, a coisa pode esquentar. Mas pelo tamanho dele, d pra encarar. Agarota continuava a me olhar indiscretamente. E eu no sabia o que fazer.A... vem c! ela me chamou. Na minha terra isso no acontece.Sente a, este meu amigo. Senti alvio.E a, tudo bem com vocs?Cara, voc lindo... Fiquei azul e verde, O broto j chegava de sola.29

    Voc tambm muito bonita disse eu, meio gaguejando.Amor primeira vista! O encaracolado riu de ns.Voc no daqui? perguntou a gata.Sou do Paran, e voc?Sou de Maca... ele, t conhecendo agora.Sou capixaba, t aqui no Rio h uns cinco meses.Eu estou h uns quinze dias afirmei mentindo, pois no queria ficar to paratrs.Percebi que o encaracolado ficou puto pelo fato da garota ter-se interessado por mim. Veio desola:! macaco novo. Voc tem que aprender muito por aqui.Por que, cara, voc se considera mais esperto?No nada disso. Pergunte fera, que ela explica. Eu vou tomar um direito. Levantou-se e saiu.

    , cara! ele tava te dando um toque. Os homens no do moleza com quem ficavadiando de bobeira aqui pelo calado. Essa avenida a maior sujeira. A lei de vadiagem. Sepegam, voc fica trinta dias enjaulado.T sabendo. Nego, um amigo, me falou. Na minha terra nunca tinha ouvido falar dessa lei.Esse pessoal que voc v a, andando pela Atlntica, como a gente, a maioria de fora. Vm pra c e no conhecem ningum... a ficam na batalha, uns transandocom bichas... se prostituem... ou transam fumo.Eu estou aqui h quinze dias e no estou comendo bicha e nem transando fumo...Ento, t pedindo?... isso a...J rangou?No.Ento, vamos rang!T duro, mas tenho cigarro.Depois a gente fuma. Vamos nessa...Puxou-me pela jaqueta. Num bar, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, o encaracolado seafogava num sanduche esquisito.

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    30A! vai uma mordida?...Mordi, o gosto no era ruim.Que sanduche esse?Sanduche de malandro. Voc compra uma coxinha, enfia dentro de um po, joga pimenta,molho vontade. Se sustenta, eu no sei, mas que enche, enche...O lance ... encher!

    Quando a gata, a Verinha, veio do banheiro, pediu a mesma coisa para ns. Comemos, rimos esamos para a grande passarela dos aventureiros: a avenida Atlntica, linda, e misteriosa...J estava com a Verinha nas maiores intimidades. Abraadinhos, nossos estmagos aindaroncavam, mas felizes por estarmos vivendo. Eu me sentia um gigante. No tinha aonde ir. Acidade toda era nossa, qualquer lugar servia. Podamos dormir em Copacabana, em Ipanema, noArpoador, no Leblon, enfim, toda a Zona Sul estava nossa disposio.Entramos em uma rua pouco iluminada. O encaracolado acendeu um baseado, desfrutamos evoltamos avenida.Caminhamos em direo ao Arpoador. Cruzvamos outros jovens bem vestidinhos, limpinhos.Encaravam-nos assustados, outros desviavam. Lembrei-me de que, em Curitiba, nos chamariamde maloqueiros. Mas ali era diferente, eram os sditosabrindo passagem ao seu rei e sua rainha. No esquecendo o digno fidalgo Encaracolado, quenos seguia curtindo sua viagem, sem nada dizer.Iramos pernoitar na sute real do Arpoador e, l chegando... o ilustre fidalgo, com os ps, ajeitou

    o p dourado, fazendo um travesseiro. Acomodou-se no seu nobre leito, entregando-se aos laosdos sonhos, que no deveriam ser poucos.Buscamos a sute real, a poucos metros do fidalgo. A brisa fresca, o cheiro do mar, reflexos dasluzes da cidade confundiam-se com o luar e saboreavam nossos corpos nus.31

    Fizemos amor que causaria inveja a muitos reis e rainhas de verdade.Pela manh, eu no era apenas um montinho na areia, mas dois em um... Chamei pelo fidalgo,tinha desaparecido. Fidalgo filha-da-puta! levou a minha jaqueta... Desgraado! eu me amarravanaquela jaqueta jeans, com uma guia nas costas.Aquele puto! levou minha jaqueta.Calma, Austry, no adianta ficar nervoso, a gente encontra ele.Calma, porra nenhuma... a jaca no era sua!Vai adiantar a sua adrenalina subir? Deixe abaixar... Mais tarde a gente cruzaa figura.Voc deve saber onde encontrar esse ladrozinho...

    No sei, no! Quando voc apareceu ontem, o figura tinha acabado de chegar.Vamos l pra Atlntica, eu vou acertar com esse desgraado!Rodamos duas noites atrs do fidalgo ladro, e nada. Fomos apanhar minha mochila, o cara j iaogar no lixo. Agradeci. Queria encontrar aquele puto que me fizera de otrio. Numa dessasnoites, topei com um broto de Curitiba...A, ferinha, t perdida por aqui?Austry?! O que voc est fazendo aqui?O mesmo que voc, perdido...Beijos e abraos. Ela era uma gracinha, loirinha, usava cabelos curtos, magrinha, noesqueltica. Um corpinho que era uma delcia, uma gatinha pra malandro nenhum botar defeito.Apresentei-lhe a Rainha. E naquela noite, na sute real do Arpoador, no hotel de milhares deestrelas, teve uma festa. No dia seguinte, eu era um recheio de um maravilhoso sanduche, entreas duas.O posto 6 em Copacabana era o que mais a gente freqentava. Uma mistura de

    tudo: maconheiro, cheirador, traficante, bicha, sapato, gente boa, gente ruim, turista, averdadeira salada russa do Rio de Janeiro. E todos se cruzavam na famosa estrela, a GaleriaAlaska, que s no nome era fria.32

    Boquinha quente...Formamos uma pequena cooperativa: ns trs batalhvamos na Atlntica. Comamos bem,dentro do possvel. Dormamos num hotelzinho da Lapa. E l fazamos nossas higienes, de corpoe roupa. Mas no deixvamos as mochilas, elas sempre ficavam com a gente. Na hora de dormir,haja corao. Mas era um sacrificio que no me incomodava.A Rainha era a encarregada de arranjar o fumo, conhecia a rapaziada. E o Rodolfo Valentino,onde diabos teria se metido?No mnimo, estava preso.s vezes amos batalhar em Ipanema. Um bairro cheio de burguesice, de frescurinhas.Preferamos mesmo a avenida Atlntica. Havia mais mochileiros, malucos, gente como ns.Sentia-mo-nos em casa na avenida. Era melhor do que freqentar ambiente de burgus metido acagar cheiroso. Bastava esses tipinhos ouvirem um grito mais alto, para gritarem socorro mame!Uns filhinhos de mame que, se estivessem na nossa pele, j teriam virado bibel de bicha h

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    muito tempo...Estvamos sentados em bancos de pedra, ao lado de um barzinho com mesinhas no calado,quando um cara numa mesinha fez sinal nos convidando a tomar um gole.Evidente que estava a fim de uma das gatas. Mas tudo bem, na lei da rua o lance se dar bem.Se o otrio estava a fim de pagar uns chopes, no havia mal algum.E a, compadre, tudo bem? perguntei.Tudo bem. Sentem, querem tomar alguma coisa?

    Ele era do tipo burguesinho. Roupinha da moda, sapatinho combinando, tudo certinho.Eu quero um chope! respondeu Rainha, com aquela voz rouca, que dava um teso...Eu tambm disse Taninha.Vou nessa tambm.Garom... mais trs chopes. Vocs so de onde?33

    Eu sou de Maca, eles so do Sul.Conheo Maca. E vocs... so gachos?Por que vocs aqui no Rio acham que quem do Sul tem que ser gacho? - exclamei meioirado. Pois essa histria de pensar que todo sulista gaucho uma tremenda falta de respeitocom os outros estados do Sul. Eu me orgulho de ser paranaense... e detesto ser chamado degacho! que o gaucho mais popularQue nada! xar... falta de estudar o mapa do Brasil. Ns somos paranaenses.

    E com muito orgulhoValeu, Taninha! bati em suas costas.J vi que dei uma mancada. Eu gostaria de conhecer o Sul. Deve ser muito bonito. lindo! concordou Taninha.Os chopes chegaram. Ningum se olhou, no atacamos, demolimos. Um gole e reduzimos oscopos quase ao fundo.Puxa... vocs esto com sede!Faz uma cara que no tomo um chopinho, tava seco - lambendo a espuma, respondi.Meu nome Lus Carlos, e o de vocs?Vera...Tnia...- AustryVocs esto com fome?Estamos. A gente s rangou pela manh respondeu Rainha.Eu moro ali no Catumbi. Moro sozinho, se vocs tiverem fim de ir at l, a gente prepara

    alguma coisa pra comer...O cara parecia gente boa. Mas, sem dvida, o que ele queria era transar com uma das garotas.A, cara, a gente t com fome sim! Tem muitos dias que a gente no sabe o que estar dentrode uma baia. Ns podamos aceitar o seu convite. Mas chegando l, voc vai querer cobrar,obrigando uma das garotas a trepar com voc.34

    E a, compadre, no vai ser legal pra ningum. Jogo limpo o meu lema!Qual o seu signo, Austry?Touro. No sei o que tem a ver...Voc bastante direto, prprio dos taurinos. Vocs no me conhecem. No sou de obrigarningum a fazer o que no quer. E eu estou convidando vocs trs. mais fcil vocs fazeremalguma coisa comigo... do que eu com vocs. O cara se saiu bem. No sei se estava com cimesdas garotas., eu acho que t tudo bem disse Rainha.

    ! concordou Tnia.Tudo bem, mas vamos tomar mais uns chopes...Ele morava num apartamento muito gostoso. Tinha dois quartos e tudo o mais. Fui logo pedindolicena para tomar um banho. gua quentinha, que delcia! Nos hoteizinhos, s havia guagelada. Ele me emprestou uma camisa, pois minha roupa ficou sem condies de uso depois dobelo banho. Os brotos aproveitaram para tomar banho e lavar algumas das nossas roupas. Eletambm deu camisetas para elas. Ficaram sexy s de camisetas e calcinhas.O cara era gente boa. Comemos, jogamos cartas, apresentamos o fininho, ele deu umas bolas.Criou-se um clima, ns quatro parecamos muito unidos. Enquanto as garotas davam um jeito nacozinha, ns papevamos na sala.Voc faz o qu?S estudo, meu pai me sustenta. uma boa, eu tambm s estudo. Meus velhos me agentam. No sou o que se pode chamarde filhinho de papai...Mas melhor assim, Austry. Voc recebendo tudo na mo, como o meu caso... d urnasensao de impotncia, uma insegurana. Voc no faz nada por si mesmo. Cria-se umadependncia difcil de se desfazer e um receio do futuro.

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    , deve dar.35

    - Quantos anos voc tem, Austry?Fiz dezessete, em maio.Mas voc tem cabea de mais idade. Eu t com vinte anos e estou achando que no tenho asua experincia de vida.No sei por que voc diz isso...

    Pela sua independncia. Vir para o Rio sem conhecer ningum e ficar tanto tempo. No qualquer um que tem esse pique.Eu vim com um amigo.Amigo que o deixou no mesmo dia em que vocs chegaram... isso no amigo, um safado!Voc tem razo. Mas se no fosse o convite dele, eu no teria me arriscado numa aventuradessas.Mas se invejo voc justamente por isso. Se acontecesse comigo, eu j teria telefonado praminha famlia e voltado pra casa. No teria a sua coragem de ficar sem grana numa cidadedesconhecida e perigosa como o Rio de Janeiro.Eu no acho que o Rio seja assim to violento como algumas manchetes publicam.Mas . O Rio h muitos anos tem um ndice de criminalidade alto.Mas eu no sou o nico nessa situao, as garotas tambm esto na mesma.Tenho inveja delas tambm. Vocs esto curtindo sem saber se iro comer amanh, onde irodormir, na areia ou sei l onde. Esse tipo de situao assusta no s a mim, mas a muita gente.

    E talvez por isso vocs sejam to perseguidos pelas autoridades. Vocs esto mostrando um jeitolivre de viver que agride os princpios de uma sociedade materialista e conservadora. Vocs souma ameaa aos valores dessas pessoas.Eu que digo. Esses burguesinhos at desviam da gente na rua. Como se fssemos umaagresso aos seus olhos.E so. Eles representam no eles mesmos, e sim os valores familiares. Eu tambm. Se eudeixar o cabelo crescer e comear a falar gria, o meu pai tem um enfarte.36

    Eles so muito radicais para aceitarem uma transformao de valores to violenta como a queest ocorrendo nos ltimos anos. E a nica sada que essas pessoas enxergam a represlia,atravs do autoritarismo em que o pas vive. Mas vocs cabeludos, porras-loucas... desafiam essepoder e pagam com sofrimento essa ousadia.Cara! voc t falando uma coisa que tem muito a ver. Quando um de ns cai nessasdelegacias, a barra fica pesada. Fazem o que querem com a gente l dentro. Graas a Deus euno passei por essa... ainda no. E se prenderem a gente com fumo, ento! Voc apanha at pelo

    cabelo. Torturam at com choque nos colhes. Dizem que voc dedura at a me!A polcia neste pas sempre foi covarde, e sempre ser. Se o cara j est preso, ser torturadoainda por cima uma tremenda de uma covardia. Ento, matem de uma vez. Acho que maishonesto.E no importa se mulher, no. Essas delegacias so verdadeiras casas de terror. Torturacorre solta dentro delas falou Rainha, entrando no papo.L em Curitiba, eu acho que a polcia mais violenta que aqui no Rio disseTaninha. dificil de saber. Mas creio que deveria ser proibida a tortura em todo o Brasil, por parte dasautoridades. Ento, que aprovassem a pena de morte para os que cometessem crimes brbaros,e pronto! Agora, por causa de um baseadinho... darem afogamento, choque e outros tipos detortura, isso ser irracional continuou Rainha.Mas a nica maneira de combater as drogas que eles enxergam falou LusCarlos.

    Combater as drogas! Se eles vendem em farmcias, abertamente, as piores drogas! Essasbolas, qumica pura, que estouram o estmago e... sei l o qu. Fazem dez vezes mais mal que amaconha, que uma erva natural. T certo que a coca, essa pesada argumentou Rainha, seempolgando com o papo.37

    pesada por sofrer tambm um processo qumico. Na Bolvia, os nativos mascam a folha dacoca para ter foras para subir as montanhas, onde esto seus vilarejos. O que deixa a cocaviolenta justamente o processo que ela sofre. Se fosse consumida ao natural talvez nemviciasse disse Rainha, dando uma aula.No sei, no tenho conhecimento suficiente para debater com voc. Mas acho que voc temrazo disse Lus Carlos.Que tal a gente ir assistir televiso? sugeri.Fomos para o quarto assistir TV. Tnia no saa do meu lado. Sentiu que o cara estava a fimdela. Ele no era nenhum Alain Delon, mas tambm no era um cara feio. Eu e as duas nosempoleiramos na cama do anfitrio. Ele sentou-se no cho acarpetado do quarto e ligou a TV.Tnia, senta aqui ao meu lado.No, aqui t legal falou como se j estivesse esperando o convite. Rimos.

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    Instantes depois, Tnia foi para junto dele. Eu e a Rainha acabamos dormindo. Acordei comgritos: Caf na mesa! Por um segundo pensei que estava em casa, o que me trouxe ao real. Oms de julho acabava na prxima semana, minha pequena aventura estava terminando. E meusestudos eram o que realmente importava na minha grande vida. O terceiro nesse semestre iaser mais puxado: preparar-se para o vestiba... Atingir meu objetivo: fazer Comunicao. Vou serum dos melhores jornalistas que este pas j teve, sonhava.Hoje, que dia do ms?

    Dia 23 de julho. Amanh a Independncia dos Estados Unidos respondeu com um sorrisoLus Carlos. Tudo indicava que a noite fora satisfatria.A Independncia dos States no 4 de julho? perguntou Rainha, tentando meimpressionar.Deve ser. Para mim foi ontem respondi. Semana que vem, adeus Rio! Vestiba este ano.

    38

    O caf t bom? perguntou Rainha me dando um beijo.Delcia. J d pra cas.Vestiba duro. No se pode brincar. Se voc quiser ter uma chance tem que se empenhar disse Lus., cara!... estudar, ter um diploma, um nome respeitado, e ser um frustrado.Rimou! Brinquei.

    Mas voc fez uma brincadeira com algo a que muitos ainda do o maior valor... O nome dafamlia, o sobrenome... enfim, o pedigree da figura... o que importa falou Rainha, com umacerta revolta., s vezes ns, os racionais, nos identificamos com os animais! Eu estavapara gozao.L em Curitiba, o pessoal valoriza o pedigree. Se voc vem de uma famlia de posses, todomundo puxa o saco e seu amigo. Mas se no tiver posses, te chamam de p-de-chinelo e nemte olham na cara afirmou Tnia, revoltada.P-de-chinelo!... que termo mais ridculo comentou Rainha e riram, os outros, no eu eTaninha, que j conhecamos o termo.Eu tambm acho um terminho ridculo. Mas pessoas tapadas tm uma mentalidade ridcula.So uns frustrados que colocam sua segurana pessoal na grana que tm no bolso, acima dequalquer senso humanitrio filosofou Lus Carlos.Mas o interesse existe em todos os lugares. Tapados materialistas que procuram apenasvantagens.

    Infelizmente, Rainha tem razo..., mas em Curitiba demais. L, se voc no estiver bem vestidinha, dentro da moda, oscaras nem olham e as amigas desviam de voc na rua! disse Taninha.Mas isso transa de cidadezinha de interior.., onde assistem novela das oito e todo mundosai pra comprar as roupas que viram na novela. Isso transa de caipira. Onde moro assim! falou Rainha.Mas a mentalidade de Curitiba ainda de caipira mesmo.39

    Vivem valorizando o que de fora, principalmente do eixo Rio-So Paulo. No valorizam nem osartistas locais. E essa mentalidade ainda vai durar muitos anos...Eu no acredito que na capital de um Estado mais rico que o nosso, que as pessoas ficamiguais a macaquinhos... imitando! Acho que vocs esto exagerando. O Paran deve ter suaprpria cultura e personalidade afirmou Lus.Tem, mas no cultivada, e sim, desvalorizada. Imitam, como macaquinhos, sim... at

    programas locais de TV imitam os programas do Rio e de So Paulo. Acham uma gorda pra imitara Wilza Carla e colocam como jurada... outro, imita outro jurado... Num mau gosto que d d! El h talentos para ensinar o que arte. S que as panelinhas que dominam os meios decomunicao no do chance.Como que voc sabe disso, Austry?No colgio onde estudo ns temos uma escolinha de arte. E tambm transamos teatro. Areclamao s uma: a desvalorizao do talento paranaense. Lojas e firmas contratam atoresde outros estados at pra anunciar um chinelo. E os artistas locais raramente so vistos comoartistas.Puxa, eu que tinha idia totalmente diferente do Sul. O que se fala por aqui que l asoportunidades de estudo e emprego so boas.Quanto aos estudos e empregos, concordo. Mas em matria de cultura e de arte, asoportunidades so pequenas. No h incentivos econmicos e, o mais importante, oreconhecimento da prpria populao. Estou falando o que eu tenho escutado dos atores eartistas que conheci. E tambm da minha professora de Teatro, que uma grande atriz.Mas o povo que no valoriza seus artistas, sua arte e, principalmente, sua cultura um povofraco e sem personalidade disse Lus.

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    Voc disse tudo. E naquele ditado de que santo de casa no faz milagre, eu acrescentaria oseguinte: na casa de tapados santo nenhum milagroso! falou a Rainha.40

    A situao de desvalorizao e anonimato em que vive o talento paranaense revoltante.Muitos abandonam o Paran e vm em busca de uma deixa aqui no Rio ou em So Paulo. Comemo po que o diabo amassou e jogou fora. Tudo pela arte...Mas o que falta para que esse pessoal possa mostrar seus trabalhos?

    Falta tudo. No temos uma gravadora de fora nacional. No temos um canal de televiso comfora nacional. No temos nem uma editora de livros respeitvel, com fora de competio. Faltarealmente tudo no setor artstico e cultural.O papo ainda rolou muito sobre a cultura e a arte no Paran. Naquela poca, no poderiaimaginar que essas dificuldades perdurariam por tantos anos.Combinamos que voltaramos noite. Fomos praia. J no fim da tarde, o bronze incomodava.Comeamos a batalha na Atlntica. Esse tipo de atividade faz desenvolver uma certasensibilidade: a gente comea a perceber, de antemo, qual a pessoa que ser solidria ouaquela que certamente ir mand-lo trabalhar. Estvamos to profissionais que, em poucosminutos, tnhamos o suficiente para o jantar, o cigarro e, se quisssemos, at dormir numhotelzinho.Era tudo o que necessitvamos para o momento. E resolvemos curtir um pouco. Os baresrepletos de gente bonita, a maioria bronzeada, turistas do mundo todo. Abertos a tudo, alegres.Sempre sobrava distrao. Tudo aquilo criou um fascnio em mim pela cidade, que realmente

    merece o ttulo que tem. Era simplesmente maravilhoso...A noite j ia adulta. Estvamos nas proximidades da Galeria Alaska quando, num repente... otempo fechou, tudo escureceu e o mau cheiro tomou conta do lugar. Os ratos chegaram como setivesse estourado a terceira guerra mundial com armas empunho, metranca, gritos e pancadas em alguns cabeludos. E, claro, sobrou para ns tambm.41

    Cad os documentos? carteira de trabalho? rapidinho!O filho-da-me j sabia que no tnhamos tais instrumentos.Ns somos menores. E no somos daqui, seu Policial... disse com respeito, temendo a faltade gentileza de to dignificante representante da Lei.Papo furado! vocs so vadios... classificou-nos de acordo com os preconceitos morais entegros da nossa sociedade.No somos vadios no, cara! Somos estudantes! falou a Rainha, com toda sua nobrezaplebia.Cara a puta que te pariu, sua maconheira vagabunda... Cad a carteira de estudante?

    gritava o grande homem, com arma em punho.Mais do que depressa comeamos a procurar em nossas mochilas as ditas cujas. O grandehomem j estava ficando impaciente. E o bom senso mandava no contrari-lo. Cad essadesgraada? S a tinha mostrado para porteiros de cinema, com a data de nascimento alterada. Eagora necessitava dela, e ela nada de aparecer. Nem a minha e nem as das garotas...Todo mundo pro camburo! ordenou o grande homem. Vamos logo, porra!, gritava,empurrando.Fomos escoltados por dois outros super-homens. Para dentro do camburo lotado de mochileiros.Fomos parar a umas quatro quadras de onde nos pegaram.Os exemplares funcionrios pblicos responsveis pelo alto ndice de segurana em nosso pasfizeram o seu papel, mostraram que fazem jus aos impostos que os cidados pagam para tersegurana. Deram um show cinematogrfico em plena avenida Atlntica. Prenderam um bando deadolescentes, sujos e malvestidos. Certamente algum turista deve ter se impressionado com aeficincia da polcia brasileira. Esse turista deveria ser, no mnimo, um ignorante paraguaio.

    ramos, sem dvida, uma agresso aos olhos dos senhores de famlia.42Na delegacia, comearam as difamaes em forma de entrevista.Cad o fumo? pergunta um dos funcionrios pblicos, pago pelos meus pais.Que fumo, delegado? A gente no disso no... disse Rainha, olhando para cima, Ofuncionrio de meu pai estava sentado atrs de uma mesa, em cima de um tablado. Tnhamosque olhar para cima. Aquilo, sem dvida, era para lhe dar um ar de superioridade.Deixe de papo furado, garota! No encontraram nada com esses trs? perguntoua um outro funcionrio do meu pai.T legal! seus vagabundos. Deram sorte de no carem com nada em cima, seno ahistria seria outra. Mas esto vadiando. Encarcere os trs! Tragam os outros falou oempregadinho convencido.Levaram-nos para as celas. Eram separadas uma das outras por paredes de tijolos, com gradessomente na parte que dava para o corredor. Colocaram as duas numa cela de frente e melevaram pra uma cela sozinho, l no fundo a ltima cela. O movimento de abre e fecha cela foinoite adentro. Eu achava um absurdo tudo aquilo, pois no era nenhum criminoso para ficar ali.No tinham pegado a gente com nada, e eu era menor. Baseando-me nisso, comecei uma

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    algazarra.Me tirem daqui! Me tirem daqui! Ns no fizemos nada. Eu quero sair daqui... Meu pai deputado, vocs vo se ver com ele... Me tirem daqui... Porra!... Me tirem daqui, seus merdas. Meus argumentos de nada adiantaram. S conseguia a solidariedade da cambada que estavapresa.Cale a boca, seu merda! T querendo dormir, seu filho-da-puta... gritavam os outroshspedes daquela espelunca.

    Vai tomar no cu, seu rato de cadeia! Se vai dormir, tome cuidado com o buraquinho!... Alguns riam. Outros queriam dormir mesmo. Mas o intercmbio cultural continuava de cela emcela.43

    Manhee!... me tire daqui... eu no fiz nada.. manhee! me tire daqui... estavam megozando.Seu viado, se voc estivesse aqui eu ia fazer voc dormir com uma porrada no meio da cara,seu corno!...Ele valento... manhee! me tire daqui... manhee!...Depois do alvoroo dentro do pavilho, um gorila apareceu na porta da minha cela, dirigindo-se amim:Cala a boca, seu moleque de merda! seno eu entro a e te encho de bolacha.Enche, porra nenhuma. Sou menor! se enfiar a mo, amanh quem t aqui dentro voc, seu babaca. Tive muita coragem ou era novato em assunto de ser encanado.

    Voc vai ver s, seu pirralho! Vou buscar a chave...A, valento, vo te levar pro pau-de-arara. Seu otrio... babaco... gritavam das outrascelas.Cale a boca, Austry! vai ser pior pra voc tentou acalmar-me a Rainha.Que nada, quero sair daqui, no sou nenhum bandido! E se esse macaco vier me bater, vai vero que o velho vai fazer com ele!... (Papai, ah!... se voc imaginasse o que eu estava armandoem cima da sua cabecinha branca.)Num relmpago apareceu a branca de neve. Com um balde at a boca. O filho de uma chimpanzcom um gorila deu-me um banho. E a gua, no mnimo, era da latrina. O cheiro foi dificil deagentar.Seu corno... filho de uma macaca... viado! Tentei cuspir-lhe. Desviou e saiu rindo.Fiquei quatro dias me acalmando. As garotas saram no segundo dia. S sa depois deinterrogado.T calminho?...Sim, senhor... senhor Policial!

    Tinha tomado uma resoluo naqueles quatro dias de meditao. Assim que abrissem aquelafamigerada cela, pegaria o nibus 128 e... Rodoviria.44

    Na Rodo, batalhei rapidinho a grana da passagem. Minha mochila estava mais magra, apenas asroupas sujas. Passagem na mo, sentado esperando a hora do bus, meditava: valeu, foram friasde que jamais esquecerei. Tinha certeza de que estava indo, mas voltaria. A cidade de SoSebastio do Rio de Janeiro conquistara mais um admirador. Iria voltar e para morar.Em Curitiba, tudo estava na mesma. A feira hippie aos sbados pela manh na praa Zacarias.Um ponto de encontro do pessoal de cabea feita. Ali se curtiam e programavam os agitos. Aturma da Saldanha, que curtia uma briga com correntes, pedaos de pau, canivetes... Outraturma, famosinha por suas encrencas, era a chefiada pelo Cigano... O pessoal da pracinha doJapo tambm marcava presena... os da praa da Espanha... alm de outras patotas violentas,que marcaram uma fase da juventude curitibana dos anos 70 e racharam muitas cabeas.Tudo estava na mesma. As patotinhas acabando com as festinhas nas casas dos bacanas, os

    papos das pessoas, o colgio e minha turma. Eu estava diferente, no esquentava mais com aroupinha bem transadinha que os jovens da minha idade tanto valorizavam. Diferente, apsexperimentar a verdadeira liberdade, embora por pouco tempo, quase um ms dormindo no seionde... sem noo de horrios e tempo. E o mais empolgante: ter uma cidade toda como leito.Sentia-me superior, autoconfiante, uma sensao gostosa de ter realizado algo diferente. Nasminhas inseguranas de adolescente, aquela experincia foi importante.Num fim de semana de agosto fomos novamente para Cambori. Edson, Issan, Ado e eu. Fomose voltamos de nibus. S que eu dei uma vacilada, ofereci umas bolas para uma gata dentro donibus. A garota nos dedurou para um coroa careca. Aochegarmos na Rodoviria de Curitiba, esse coroa, recalcado e frustrado, chegou com os tiras paracima de ns.So esses a! Os quatro esto todos maconhados e ofereceram droga pra uma moa, dentro donibus! Esses cabeludos maloqueiros!...45

    O recalque em certas pessoas digno de pena. Esse cavalheiro dedo-duro era a imagem doverdadeiro recalcado. Careca, barrigudo, aparentando quarento, aproveitou a chance de jogarsuas frustraes em cima da gente. T certo que errei em oferecer aqueles comprimidos para a

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    distinta garota que, antes do episdio, estava querendo brincar com a rola. Quando o nibusparou, ningum mais a viu. Percebia-se nos olhos daquele coroa o dio que sentia por cabeludos.Talvez porque fosse careca ou porque algum cabeludo estava transando com a filha ou esposadele. J havia encontrado muitos coroas daquele tipo. Moralistas durante o dia, e noite nasbocas, caa de garotes para uma trepadinha.Ficamos surpresos com aquela recepo. Estvamos de cabea feita. Mas na hora o mesmo queser jogado embaixo de um chuveiro de gua fria. A doideira desapareceu dando lugar a uma

    tremedeira que no dava para controlar. Passava tudo pela cabea da gente: pau-de-arara,porrada... e a tortura que viria depois.Na sala, no subsolo da Rodoviria, mandaram esvaziar todas as mochilas. Um dos guardas iarevistando. O meu receio e o de todos era o que tinha sobrado de fumo... onde estava? O Edson,antes de tirarmos as nossas jaquetas, j tinha tirado a dele. Jogou-a junto com as roupas dasmochilas. O guardinha, confuso com tantas bugigangas que tnhamos tirado das mochilas, estavavisivelmente perdido.Posso ir ao banheiro? perguntou Edson, pegando novamente a sua jaqueta que havia sido revistada.Vem c! chamou outro guarda, enfiando a mo no saco do Edson para revist-lo.Pode ir, aquela porta!Tnhamos uma vantagem, os guardas da Rodoviria no eram os homens da Entorpecentes. Eramuns vigias, fardados de ratos.46

    O Artane e o envelope de Abulemim foram encontrados. Os vigias fardados se cumprimentaramcom olhares. Um deles perguntou se aquilo era boleta.No, no senhor. Esses remdios so para os nervos.Fomos entregues aos homens da Entorpecentes. Levaram- nos para o seu quartel-general.

    Sabamos que iramos conhecer o famoso comandante japons.Era conhecido por pendurar maconheiro no pau-de-arara, e ele mesmo fazer as torturas.Chegavam a dizer at que arrancavam unhas de viciados. Dormimos os quatro numa cela. Notivemos o prazer de conhec-lo naquela noite. Mas pela manh fomos levados a uma sala. Lestavam nossas mochilas todas reviradas.Ficamos em p, esperando, sem saber o qu. O rato que estava com a gente nada dizia.Entrou o famigerado torturador. Encostou-se na mesa e ficou nos encarando por um bom

    tempo.Vocs esto com sorte... com muita sorte. H muito que estou de olho em vocs. Sei quepuxam fumo.Falava calmo, outros ratos chegaram. Era um japons de meia estatura, cabelo dividido para o

    lado, nem gordo, nem magro. Devia ter uns trinta e poucos anos. Ado tentou argumentar.No, senhor, a gente...Cala a boca! No mandei ningum falar! E esses remdios, de quem so?So meus respondi , so para os nervos...Deixem de palhaada! pensam que sou trouxa? Comeou a rodar em nossa volta,encarando. A sorte de vocs no termos pegado nem uma baguinha com vocs. Eugostaria de estar com vocs pendurados... mas a oportunidade ainda vir.Issan, no sei por qu, agachou-se para arrumar um tnis que estava pendurado na mochila.

    Sem vacilar o grande comandante chutou-lhe o peito. Issan caiu para trs. S aquela jaquetapreta do japons j assustava, dava para ver o berro.47

    Levanta!... eu quero que vocs prestem ateno no que vou dizer. Estou de olhoem vocs h muito tempo, e mais um vacilo, eu no vou ser to bonzinho como estou sendo.Esse foto que seu pai tem, fica onde?

    Na Saldanha Marinho.J ouvi falar de umas reunies que vocs fazem l. Qualquer dia eu apareo pra fazer umavisita! E agora, sumam da minha frente. Saiu. Ficamos arrumando nossas mochilas.No deu para acreditar. A fera tinha nos soltado. No tnha-mos o flagrante. Na

    rua, sufocados ainda, no acreditvamos estar respirando aquele ar de fim de inverno.Nunca mais vou colocar um fumo na boca! falei com deciso.Eu tambm. Vocs viram, eles j esto de olho no foto! disse Edson, preocupado.Mas por que ele deu um toque na gente? perguntou Ado.Sei l, mas a turma vai ter que dar um tempo no local. J pensaram?! Se eles aparecerem desupeto... t todo mundo fodido! falou Issan.Porra, cara!... que vacilo seu oferecer bagulho pra aquela garota... T parecendo loque, queraparecer?Olha, Ado, vai tomar no cu!... t legal?Que que h, cara, quer levar umas porradas?... s voc comear, que eu termino!...Parem, vocs dois! j aconteceu e pronto! T todo mundo da turma vacilando. At o foto, eles sabem onde . E se vocs querem saber, essa cada foi at uma boa. Serviu pra gente abrir oolho. Seria pior uma batida no foto! argumentou Issan.

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    Cara! valeu a sua dispensada do bagulho l na Rodo... disse Ado, puxando osaco.Demos sorte. Se eles do a geral na hora que estvamos pegando as mochilas dobagageiro do nibus, tinham achado a maconha.48

    Enquanto a gente descia pra sala da Rodo, eu empurrei o fumo num buraco do bolso da jaqueta efui empurrando em direo ao meio do forro. Por isso, aqueles guardinhas no encontraram... foi

    pura sorte. Depois, dispensei a coisa no banheiro.Cara, se encontram aquele fumo, a gente tinha sido pendurado...O conceito que as pessoas fazem do usurio da maconha nos ficou evidente: o

    mesmo que um ladro, um assassino. Eu nunca tinha cado numa especializada, tomei noo deque o que fazamos era muito srio. Ele s nos deu um toque porque o Edson e o Issan eramaponeses. Embora o nico menor fosse eu, fiquei muito impressionado com o delegado. OsOutros tambm.Se tivessem encontrado maconha, sem dvida eles nos teriam pendurado no

    pau-de-arara, fssemos ou no menores. E atravs da tortura do usurio de maconha que eleschegam aos pequenos traficantes. A tortura violenta. No afogamento, enfiam a cabea davtima dentro de vasos sanitrios cheios de fezes. Amarram os punhos cruzados com ostornozelos, enfiam um pedao de pau entre eles e levantam o corpo. Deixando a pessoapendurada como um frango. Esse o famoso pau-de-arara. Comeam a bater com pedaos depau nas juntas e nos ossos dos tornozelos, nas solas dos ps, nas costas, deixam apenas uns

    vermelhes na pele, mas por dentro se est todo quebrado. Choque nos colhes, a tortura cruel.Os anos 70 foram tambm marcados pela tortura da polcia brasileira. Barbarizavam, pois o

    famigerado AI-5 lhes garantia essas atividades. Torturavam, desapareciam com pessoas, tudo emnome da Lei, chegando ao ponto das atitudes desses carrascos ultrapassarem as barreirasnacionais. Os jovens, os cabeludos maconheiros, como ramos denominados por uma sociedadedirigida a pensar como os ditadores desejavam, eram alvo de todas as atenes. Os dirigentes-ditadores, inteligentemente, desviavam a ateno da sociedade em nossa direo.49

    Enchiam os jornais de manchetes como Maconheiro cabeludo estupra menor, Maconheiroscabeludos assaltam para comprar drogas... e outras manchetes desse gnero. Criavam napopulao averso a qualquer jovem que usasse cabelos compridos. Fomos assim perseguidosno s por policiais, mas tambm discriminados e repudiados at por nossos familiares.A averso aos cabeludos era to forte que, s vezes, ramos agredidos, provocados e

    humilhados pelas pessoas. Era a poltica autoritria e desonesta praticada nos anos da ditadura.

    Mas at o ano de 1978 ns, os cabeludos, seguramos as neuroses de uma sociedade pisoteada ecarente de liberdade. Foi atravs de nossos cabelos compridos e rebeldias que conscientizamos opovo de seu valor e introduzimos idias de mudanas. Essas idias dos cabeludos, gritadas emmsicas, em slogans de amor desde os anos 60, venciam mais uma vez as armas, as torturas eos canhes. Pois foi durante os quinze anos do famigerado AI-5 que ns, cabeludos maconheiros,lutamos e nos rebelamos contra esse artigo mesquinho, que tantas vtimas fez. Foram quinzeanos de tortura e sangue, sendo que a maior parcela fomos ns, os jovens cabeludosmaconheiros, que pagamos sociedade livre, mas no justa, de hoje.Deixamos de nos encontrar no foto por um bom tempo. Cruzvamos nos barzinhos e pimbolins.

    Mas eu jamais imaginaria o que me aguardava...Captulo 251

    JAMAIS SONHARIA AONDE OS caminhos da minha adolescncia me levariam. Algo que supusacontecer apenas em filmes americanos de terror aconteceu. Em meados de outubro de 1974,

    chegando em casa, fui convidado por meu pai a acompanh-lo em visita a um amigo seu,hospitalizado. Estranhei aquele convite, pois no tnhamos o hbito de sair juntos, mas fui.Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas instalaes de imediato dois enfermeiros

    vieram ao nosso encontro. Com sorrisos, postaram-se um de cada lado.Desconfiei daquela posio. Pegaram em meus braos.Ei! pra a... o que est acontecendo? perguntei assustado e olhando para meu pai.Calma, filho, para o seu bem! respondeu meu pai.Seu pai o trouxe aqui pra voc fazer uns exames, apenas isso... falou um enfermeiro negro.Mas que exame, pai? eu no estou doente... perguntei, forando para soltarem os meusbraos.Calma, filho! para o seu bem...Que calma? eles esto me puxando... qual , velho?Ns sabemos que voc no est doente. Ele s quer que voc faa uns exames e mais nada...disse, tentando me acalmar, o enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilho.

    52Ei!... espere a, meu pai no vai entrar? falei e vi a porta atrs de mim fechar-se.

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    Venha comigo! disse o negro. Largaram os meus braos.Caminhamos por um corredor. Do lado direito ficavam quartos, do lado esquerdo, uma sala no

    muito grande com mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era um quartoque usavam como enfermaria. Sentaram-me numa cama alta. Havia um pequeno armrio comvidro e um suporte para brao. O enfermeiro negrosentou-se ao meu lado na cama, o outro sentou-se a uma mesinha de enfermagem.Como o seu nome? perguntou o enfermeiro negro.

    - Austry.Bem, Austry, o que na realidade est acontecendo o seguinte... Fez uma pausa. Seu paiencontrou maconha numa jaqueta sua. Ele acha que voc viciado e trouxe-o aqui para fazertratamento.No acredito. Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem conversou comigo e j metrouxe pra c?!...E o fumo, voc fuma maconha? o negro.Dou meus peguinhas, mas isso no significa que seja viciado.Bom, s sei que seu pai o internou e a gente vai tratar de voc.Tratar de mim? Isso uma piada. Eu no sou um viciado, podem fazer o exame que quiserem.No sou dependente de droga nenhuma. Vamos, faam os exames! Podem fazer qualquer tipo deexame, vocs vero que no tenho dependncia nenhuma...Isso , se vocs forem capazes de entender o que ser um viciado! Cara! t afirmando pravocs: eu no sou nenhum dependente! Ento, que tratamento vocs vo fazer?

    Todos os viciados que passam por aqui comearam com a maconha e as bolas. Eagora esto nos picos.Problema deles. Pico no o meu caso e nunca ser. Podem olhar meus canos, no tenho umamarca. Se eu tomasse pico, t certo, vocs podiam me classificar como viciado, dependente, casoeu no passasse sem uma picada.53

    Mas maconha... maconha faz menos mal que o cigarro comum. o que voc diz. Os estudos mdicos dizem outra coisa. Agora vou lhe aplicar uma injeo evoc vai dormir um pouco. No precisa ficar com medo! Meu nome Marcelo disse oenfermeiro negro.Que medo! eu no acreditava, era um pesadelo... S podia ser um pesadelo eu, internado

    para fazer tratamento por fumar maconha... Se eu tomasse pico, cocana, t certo. Mas eu notomava, mal tinha cheirado uma ou duas vezes. S porque fumava maconha?... As vezes eupassava semanas sem colocar um fininho na boca. Qual ? Maconha no vicia ningum, e quemdisser o contrrio, eu desafio a provar que maconha vicia.

    Preparada a injeo... uma cavala! Brao no suporte, palmadinhas para despertar a veia, e apicada.Cara, no tem nada a ver esse internamento... Eu no... vou... fi... E no vi mais nada.Acordei no dia seguinte, tentava raciocinar... tonto pelo efeito da injeo! Estava num quartocinza-claro. Um pijama azul de bolinhas. No era meu. Levantei, fui at a porta. Ao abri-la, dei decara com um pessoal sentado s mesas, tomando caf. Todos me olharam, uma nova atrao.Queria ir ao banheiro, meu pnis estava duro, fato que chamou mais a ateno de todos.Encabulado, tentei esconder o meu estado. Perguntei onde era o banheiro, um caracom ar de gozao informou.O pavilho era grande como um barraco. L estava a sala com as mesas, em frente ao quarto

    em que eu dormira. Caminhando em direo ao fundo do pavilho, havia um corredor comquartos dos dois lados e mais uma sala grande com mesas compridas, como as de festas deigreja. Passando essa segunda grande sala, havia um corredor com mais quartos de cada lado. Asportas dos quartos tinham uma pequena abertura em horizontal, que permitiam ver o interior. O

    banheiro era do tamanho dos quartos, com vaso e chuveiro, uma pia de rosto e um pequenoespelho na parede.54Tomei caf, sem importar-me com os outros que ali estavam. Estava querendo entender a fria

    em que me encontrava. Matutava com meus botes. Sentia os olhares, querendo interrogar. Fui oltimo a levantar da mesa. Os outros tinham ido para o fundo do pavilho. Aps aquele caf comcevada e po, fui levado a outra sala, a das mesas grandes. O enfermeiro abriu uma porta emandou-me sair.Sa para um ptio de uns 20 por 20 metros, cercado por um muro de uns 5 metros de altura. Vi

    outros internos, que no estavam s mesas, em frente ao meu quarto. Mais pareciam mendigosmaltrapilhos. Ficavam isolados dos outros num canto prximo aos banheiros do ptio. Nessecanto havia um telhadinho, parecendo uma churrasqueira de parque. Aquele grupo estranho alificava. No meio do ptio havia um pouco de grama, onde alguns deitavam-se. Encostei numcanto do muro branco, observando aquele cenrio de filme de terror.O que mais me chamava a ateno era aquele grupo, no canto coberto... tinha um sujeito

    enorme, forte, meio gordo ou inchado, com um corte de cabelo estilo militar. No parava debalanar a mo direita e virava a cabea de um lado para outro. Era uma figura assustadora.

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    Outro sujeito corria de um canto para o outro, soltando um tipo de grunhido. Havia alguns com ascalas molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. Um outro escorregava andando com o corpo e orosto encostados na parede, parecendo querer entrar, fazer parte daquela parede, esconder-se detodo, misturar-se com o concreto.Era uma viso triste: aquelas pessoas reduzidas quilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas

    pareciam feras torturadas, agoniadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-lhestambm a alma.

    Os que haviam tomado caf comigo pareciam normais e no estavam em farrapos, como aquelesl do canto. Havia outros malvestidos ou sujos, esparramados na pouca grama.55

    Mas os daquele canto eram diferentes, pareciam a degradao de uma sobrevivente de umaguerra nuclear. O desespero em seus bares, o medo em seus atos... a individualidade em suasfantasias, apenas quebradas por algum ato de violncia de um para com o outro.quele canto era qualquer coisa diablica. Como se o demnio tivesse o comando de suas mentes,

    nelas derramando sua ira e divertindo-se em atorment-los. Aquilo era satnico: pessoasurinadas, defecadas, revirando os olhos, cabeas, querendo entrar dentro do concreto. Todoaquele tormento s podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem vida euestava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto, o canto dos malditos...O conceito geral daquele ptio uma grande jaula, onde as s ficavam, umas deitadas, outras

    sentadas em diversos lugares, olhares perdidos horas e horas, olhando no se sabia para onde.Todos mantidos escondidos, como animais contaminados e deviam ser trancados em algum lugar.

    E o lugar era aquele ptio. No sabia o que fazer... tudo ao meu redor, no! no estaacontecendo, era um pesadelo, meu Deus! Aquelas pessoas no eram reais... eu tinha queacordar!... A angstia comeou a tomar conta de mim... eu no estava ali, eu no queria ficar ali!meu Deus, que lugar era esse?!Ei! voc o enfermeiro?Sou. Respondeu, com um livro na mo, roupas comuns sentado numa cadeira,perto da porta que dava acesso ao interior do pavilho.Olha, eu no estou entendendo nada. Ontem eu falei com um outro enfermeiro, no falei commdico nenhum, no sei o que estou fazendo aqui dentro. Quero ir embora! griteidesesperado.Voc vai falar com o mdico. Daqui a pouco ele vai chegar, fale com ele disse sem dar amnima.56Agoniado, fiquei rodando pelo ptio. No ousava chegar perto daquele canto.

    Remoia-me: quando ele chegar, eu explico no sou viciado, no tenho necessidade de drogas.

    O senhor pode fazer os exames que quiser! Foi um equvoco de meu pai. Eu no preciso ficar aquidentro, rodeado por pessoas horrveis.Quando o mdico chegou, meu corao disparou. Dependia dele continuar naquele lugar

    pavoroso... dependia exclusivamente de mim mostrar a ele que eu era umapessoa normal. Ao entrar no ptio foi imediatamente cercado pelos internos que haviam tomadocaf em frente ao quarto onde eu dormira. Os do canto nem tomaram conhecimento do ilustrepersonagem. Aproximei-me. O enfermeiro do ptio falou alguma coisa ao seu ouvido e ele meolhou. Estendi-lhe a mo em cumprimento.Tocou apenas nas pontas dos meus dedos como se eu fosse contamin-lo. Disse-lhe que queriafalar-lhe. Abanou a cabea positivamente, entreteve-se em seguida com o grupo ao seu redor e,rapidamente, saiu do ptio.Enfermeiro, eu quero falar com o mdico.Se precisar, ele chama!Como assim? Eu quero falar com ele. No se ele precisar! Eu quero falar com ele. Ele no

    pode simplesmente me deixar preso aqui dentro. Eu exijo falar com ele.Aqui dentro, voc no exige nada! E se precisar, ele manda busca-lo respondeu, j.Ento, eu quero falar com meu pai!A sua famlia voc s ver daqui a quinze dias.Qu, quinze dias? Eu no vou ficar aqui dentro todo esse tempo, no, de jeito nenhum.Olha, coloca na sua cabea que voc est internado, esse o fato. Voc est em tratamento.Tratamento de qu? Vocs simplesmente me prenderam aqui dentro. Ningum veiome examinar pra ver se sou ou no um viciado. O mdico chega aqui, d uma olhada geral emtodo mundo e sai. Qual , que lance esse?!57

    Cara, eu no tenho que lhe dar explicao nenhuma. E melhor voc ficar calmo para o seuprprio bem continuou nervoso com minha insistncia.No adiantava, O cara era radical. Perguntei a ele se poderia falar com o mdico

    de tarde. S amanh ele estar de volta!respondeu seco. Que merda ficar aqui, eu no quero. Os pensamentos comeavam a seatropelar em minha mente. No conseguia coordena-los: ontem, meus estudos, vestibular,minhas aulas... um pesadelo, meu Deus, isto no est acontecendo, no pode ser real... Estou

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    preso ao canto dos loucos cagados, que merda! tenho dezessete anos e estou num hospcio. No real, meu Deus! Pai... por que voc fez isso comigo? Achar maconha... no sou viciado! noprova nada, ignorncia sua, pai. Eu, dentro de um lugar desses... e meus estudos? Se tivssemosconversado, pai, eu lhe provaria que no sou viciado.., no sou, pai! No precisava me trazerpara c. Por que no conversamos, pai? Por que no conversamos, porra?! O mdico nem sequerme olhou direito, vo me tratar do qu?Eu no quero ficar aqui. Eu vou fugir. O muro alto demais, somos mais de vinte, seria fcil

    dominar aquele bundo, mais uns trs e seria... Aquele cara com um gibi parece normal, talvezele tope...E a, tudo bem? perguntei imaginando qual seria sua reao, pois todos que estointernados eram loucos!Tudo bem, senta a! falou com o gibi levantado para tapar o sol.T aqui h muito tempo?Dessa vez, faz cinco meses.Cinco meses, aqui dentro? Como que voc agenta? Isso me pareceu umaeternidade.S penso em ir embora desse inferno! J no d mais pra agentar esses internamentos.Quantas vezes voc j foi internado?J perdi at as contas abaixando a cabea.Meu nome Austry, e o seu?58

    Rogrio.Voc t sacudo de ficar aqui dentro, eu t s h um dia e pouco e j no agento. S tem umvigia aqui no ptio, com mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em doistoques...Ns s chegaramos parte interna do pavilho!Por qu?Ele s tem a chave daquela porta. As outras chaves ficam com os outros enfermeiros. Isso aquificaria em pouco tempo cheio desses gorilas... bobeira!Bobeira ficar aqui dentro! Eu no estou agentando...Cara, se acalme!... seno voc vai pra Tortulina.Tortulina, o que que isso? uma injeo de Haloperidol que lhe aplicam no msculo. Voc fica igual quele cara grando,l no canto: babando e revirando a cabea. A porra dessa injeo repuxa todos os nervos. comongua dando em vrios nervos ao mesmo tempo, cara.., O efeito dessa injeo retorce todo ocorpo. Di pra diabo essa droga do capeta! Eles aplicam nos pacientes que esto exaltados,

    uma forma de control-los, pois ficam completamente sem ao fsica. Por isso, se acalme devez... seno, te levam pra enfermaria e te aplicam a droga.Ento!... por isso o enfermeiro falou daquele jeito...Esses caras aqui dentro no querem ser incomodados. Quem os incomoda, logo eles do umeito do cara entrar numa por bem ou por drogas.Deu pra perceber, no tem meio-termo...Tem o que eles querem. Voc chegou ontem, nunca esteve internado antes?Nunca e at agora no aceitei que estou aqui.Cara, isto aqui pior que uma priso de verdade. , em muitos sentidos, to ou mais perigoso.Essas drogas que somos obrigados a tomar so um veneno que nos mata em pouco anos.59

    At agora s tomei uma injeo do tamanho de uma cavala e dormi at hoje.Voc tomou a trs por um, como ns chamamos. Por que te internaram?Meu velho pensa que sou viciado.

    E voc ?Pelo que entendo, viciado aquele que quando o organismo est sem droga, parece sentiruma sede danada. Isso ser viciado. O meu caso era apenas uns peguinhas na maconha e umasbolas, mas no tenho dependncia nenhuma. Podem fazer os exames que quiserem.Cara, teu velho um mal informado. Se ele queria evitar que voc tomasse realmente drogas,ele te trouxe ao lugar mais errado do mundo, pois aqui dentro ns somos drogados diariamente.A sedao aqui feita em massa. Tomamos mais de vinte comprimidos dirios.At agora no tomei nenhum comprimido.Mas no fique impaciente, aqui voc come comprimidos. Ns acordamos tomando essas drogase dormimos tomando essas drogas.Esse mdico... quem ?Esse mdico um verdadeiro psicopata. Chama-se Dr. Al Guimares, catedrticoem Psiquiatria, professor em universidades, um dos diretores deste laboratrio chamadoSanatrio Bom Retiro. Tem setenta e dois anos e se voc cair na mo dele, xar, ele com certezair te queimar todos os chifres... o maior sdico que tive o desprazer de conhecer.Cara, voc f dessa figura... O que queimar os chifres?

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    Eletrochoque. Choque, meu irmo!J ouvi falar nesse troo, mas isso pra louco...E o que voc acha que somos? Esse filho de uma cadela pesteada vive com a maquininha deeletrochoque na mo. Acho .e ele at dorme com ela.Mas eu no sou louco.60

    T aqui dentro! Pra todo mundo l fora voc no passa de um louco... Isto aqui um hospcio,

    cara! E comea com esses interesseiros que dizem tratar da gente.Por que voc diz isso? E voc t aqui por qu?Cara, estou aqui porque sou dependente. Tomo e vou continuar tomando cocana. Esses carasaqui no curam nem bbado. Nunca viram nem uma quina de maconha, no entendem nadasobre vcio, tanto que voc est aqui dentro... Agora, no meu caso, t certo. Eu preciso de umverdadeiro tratamento, no o que eles fazem aqui dentro. Enchem-me de barbitricos e queimamos meus chifres com eletrochoque. Cara, que tratamento esse?Eletrochoque em viciado?Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Al pegar a tua ficha, voc vai entrar nessa na certa.Como, se ele nem falou comigo ainda?O que voc est esperando? Que ele v conversar contigo? Voc realmente t louco!No t entendendo... como assim?Cara, voc tem visto muita televiso. Essa de div pra voc deitar e falar, s em filmes ou emclnica particular, que so uma verdadeira sute de hotel cinco estrelas. Aqui voc no passa de

    uma ficha, e sua entrevista, a consulta com o psiquiatra, voc j fez. Foi quando ele visitou optio. Aquela foi a sua consulta. O tratamento vem atravs da tua ficha.Mas que tratamento esse? o que o teu dinheiro pode comprar. Se voc tivesse grana, voc estaria numaclnica particular.Mas como um mdico psiquiatra pode medicar sem, ao menos, conversar com o paciente?Caiu aqui dentro, voc no mais dono de si. Fazem o que quiserem contigo, tua ficha j tcheia de informaes que teu pai preencheu. Est como viciado. S vo examinar o teu corao ederreter os teus chifres. E foda!61

    A, cara, vou rodar um pouco.Rogrio no estava sendo nada agradvel com esse papo. Ao contrrio, estava me deixando

    cabreiro. Ele j podia ser considerado um fregus de hospcio. Saa e voltava. Mas era uma fontede informaes. Verdicas? O tempo diria...

    - Cara, e os exames? Eles no vo fazer pra saber se sou dependente?Exame! pra ver se voc dependente de maconha? Isso papo furado. No existe tal exame.E o cara que disser que viciado em maconha, eu mando ele ir caar marido, e dar at o ziocego ficar rosinha. Maconha no vicia ningum, xar. A nica coisa que ela faz deixar vocfissurado pra querer entrar na onda que ela causa. Agora, se no pintar, tu toma uns conhaquese faz a cabea do mesmo jeito. diferente de quem viciado em coca, no tem outra coisa quete faa a cabea. Tem que ser somente o p-de-anjo. S ele acaba com a violenta fissura. muito diferente. E as porras desses caretas no enxergam essa tremenda diferena. Pra eles tudo viciado.Como que voc tem tanta certeza?Cara, teve poca em que eu tinha pacotera de maconha. Fumava direto. Um baseado a cadameia hora. Cheguei a empapuar de tanto fumar essa droga. Fiquei com uma averso ao cheiroda maconha, que hoje me faz vomitar. No suporto nem mais o cheiro da maldita.Ento a maconha no te fazia mais a cabea, e voc partiu pra drogas mais fortes, foi isso?

    Cara, ningum toma cocana porque a maconha deixou ou no deixou de fazer acabea. Esse outro papo furado, outro tabu da ignorncia das pessoas que no entendem nadasobre maconha ou cocana. Esse papo de que se comea com a maconha e depois tem que serecorrer a drogas mais fortes pura fantasia. O lance de querer uma droga mais forte umaquesto de cabea e conhecimento do assunto...Ento, por que voc comeou com o pico?62

    Comecei com dezesseis anos a tomar pico. No porque algum me obrigasse ou tenha viciado.E sim porque essa a fase mais carente, por insegurana, por fuga, por angstia daadolescncia. E tambm por ingenuidade e falta de real conhecimento do que a coca e dos seusefeitos. Esses so os verdadeiros motivos que nos levam ao vcio. Tudo o mais papo furado.Voc falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze anos, tive oportunidadede tomar pico e no tomei!Cara, eu t com vinte e dois anos. H seis anos as coisas eram diferentes. Hoje, 1974, aindano existe em todo o Brasil um hospital especializado em tratamento de viciado. E se voc quersaber, vo mais trinta anos. A ignorncia sobre as drogas ir continuar, porque este pas atrasado e manipulado. O governo o maior cmplice do vcio. De repente, o pessoal do governo

  • 8/12/2019 Austregsilo Carrano - Canto Dos Malditos

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    no quer que o vcio acabe. No existe a liberdade de se falar abertamente sobre as drogas.Mas o combate s drogas violento. Trafica pega uma cana federal.Cara, voc no est entendendo o que eu estou dizendo! Quanto mais mistrios fizerem sobreas drogas mais o baseado se torna uma coisa misteriosa e sedutora. E o pico de cocana, o xtasedos xtases. E as grandes manchetes sobre apreenso de drogas mais admiradores atraem, emais trafica na rea criam.Ento, como e o que fazer?

    Conscientizar os jovens. aquele lance. Vou falar sobre cocana, que o que realmente vicia.Quem t dentro quer sair e quem t fora, por curiosidade e falta de conhecimento dos efeitos dacocana, quer entrar. Por acaso voc sabia que a maioria dos bolivianos que transam com cocanano tomam pico? Porque eles conhecem o efeito da droga. Cheiram de vez em quando, masnunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos da droga. O que no acontece com a nossauventude, que se empolga simplesmente pelo barato que ela causa. O fabricante bolivianoensina at s crianas os efeitos da cocana, mostra os efeitos.63

    E isso que se tem que fazer...Concordo com voc. Eu s no tomei umas picadas porque tive medo. Conheci umamochileira da Bahia. A gata s tinha as duas presas na boca: a coca j tinha feito cair todos osdentes dela. S sobraram as duas presas. Ela s tinha dezoito anos. E os braos eram uma feridas. por a... Tire uma foto da boca dela, faa uns outdoors e espalhe pela cidade com letreiros

    assim: TOME COCANA, ENCOMENDE SUA DENTADURA. Esse seriao verdadeiro combate s drogas. Talvez algum tenha essa idia, tambm mostrando os braos.Rimos. Mas o Rogrio tinha razo. Para muitos da minha idade a empolgao diminuiria com

    certeza. Eu, se fosse presidente, faria isso: liberaria a maconha e faria os outdoors.Concordo com voc. Liberar a maconha e fazer os outdoors.Pensando s em voc! Maconha o mesmo que o fumo de cigarro comum, os efeitos so osmesmos ao longo do tempo ou at maiores para quem fuma cigarros comuns. Essas pessoas tmmais facilidades de ficar com certas doenas do que os que no fumam.Isso deveria aparecer na televiso. Com pessoas que transam essas drogas, ns, os usurios.Muito se poderia esclarecer. Mas deixam tudo s escondidas.Isso, meu chapa, s daqui a cem anos! Essa de colocarem nas ruas o assunto, vai ser difcil.Preferem nos jogar dentro de hospcios ou em prises. Eu j estou cansado disso, qualquer diaacabo com esse martrio, de entrar e sair desses hospcios. Tomo uma over e fim. Aqui dentro, sudiam, graas ignorncia. melhor uma over e ponto final.Aquelas palavras doeram l no meu ntimo. Rogrio estava cansado, vinte e dois anos que

    pareciam trinta. O que ele j tinha sofrido, s ele sabia. Abaixou a cabea, j com sinais decalvcie, rosto redondo, moreno claro, bigode preto ralo, e entreteve-se em seu ser sofrido.64

    Nada falei, calei olhando aquele canto. Fomos interrompidos por um grito.Cambada! os remdios! gritou o enfermeiro bundo.Trazia uma caixa com divisrias, colocou-a em cima da cadeira.Alguns internos o rodearam, enquanto ele ia tirando copinhos plsticos com os comprimidos.

    Chamava o nome e os virava na palma da mo do sujeito. Alguns, j com canecas de alumnioamassadas e com gua, tomavam e passavam a caneca ao seguinte. Esvaziadas as canecas, iambuscar mais gua naquele canto. Num relmpago, enchiam as canecas. Os indiferentes daquelecanto se perturbavam com as presenas, mas logo se entregavam s suas fantasias. Surpresa foia hora em que o enfermeiro, gaguejando, chamou pelo meu nome. Um a zero para o Rogrio...sem ao menos um ol do famoso psiquiatra, eu j estava sendo medicado. Talvez essespsiquiatras sejam tambm algum tipo de bruxo e tenham uma bola de cristal...

    Peguei os comprimidos: ao todo eram cinco e uma cpsula vermelha. No resto de gua eu osengoli. Aps o grupo dissolver-se o enfermeiro tentou dar para alguns daquele canto oscomprimidos. Uns os apanhavam sem problemas, a outros nem foramoferecidos e alguns recusavam. Os comprimidos que sobraram foram pisados pelo enfermeiro.Achei um absurdo aquele desperdcio, mas talvez mudasse de idia!Pouco depois dos comprimidos, a porta que dava acesso ao interior do pavilho foi aberta. Devia

    ser umas onze horas. Chamada para o almoo.Entraram, atropelando-se pela porta. Fui um dos ltimos. Dentro, nas mesas compridas, pratos