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203670 – Multilinguismo no Ciberespaço Aula de 13 de abril de 2015 1. Elaboração de recursos linguísticos “Uma inscrição de hieróglifos apresenta o aspecto de um verdadeiro caos; nada está no seu lugar; falta lógica em tudo; os objetos os mais opostos na natureza se encontram em contato imediato e produzem alianças monstruosas: no entanto, regras invariáveis, combinações bem pensadas, uma marcha calculada e sistemática incontestavelmente dirigiram a mão que traçou esse quadro, aparentemente tão desordenado; esses caracteres tão diversificados nas suas formas, frequentemente tão 1

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203670 – Multilinguismo no Ciberespaço

Aula de 13 de abril de 2015

1. Elaboração de recursos linguísticos

“Uma inscrição de hieróglifos

apresenta o aspecto de um

verdadeiro caos; nada está no

seu lugar; falta lógica em tudo;

os objetos os mais opostos na

natureza se encontram em

contato imediato e produzem

alianças monstruosas: no

entanto, regras invariáveis,

combinações bem pensadas,

uma marcha calculada e

sistemática incontestavelmente

dirigiram a mão que traçou esse

quadro, aparentemente tão

desordenado; esses caracteres

tão diversificados nas suas

formas, frequentemente tão

contrários na sua expressão

material, são nada menos que os

sinais que servem para anotar

um sentido regular de idéias,

exprimem um sentido fixo,

seguido, e constituem assim um

verdadeiro sistema de escrita”

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(J. F. Champollion, Precisões do

sistema hieróglifo dos antigos

Egípcios, 1824).

5. 1.1.5. Elaboração de uma ortografia

A noção de ortografia está intimamente ligada ao conceito

de sistema de escrita (“writing systems”, “écriture”).

De acordo com o dicionário francês “Le Petit Robert”, um

sistema de escrita é uma “representação da palavra e do

pensamento por meio de sinais”, definição que se pode considerar

particularmente geral.

Uma definição um pouco mais abrangente nos é dada por

“representação visual da linguagem por um sistema de sinais

gráficos”, conforme figura no livro “L´Aventure des écritures:

naissances”, publicado pela Biblioteca Nacional da França, em

1997. Essa definição tem o mérito de não limitar os sistemas de

escrita, como ocorre muito frequentemente, aos sistemas a base de

letras ou de figuras (“pictogramas”). E introduz uma noção que

será encontrada frequentemente, a noção de “sinal gráfico”, e da

sua materialização em suportes os mais variados: pedra, terra seca

ou cozida, papiro, papel, microfilme e mais recentemente suportes

óticos ou magnéticos.

É a invenção dos sistemas de escrita que marca a passagem

da pré-história à história. Desnecessário sublinhar a importância

cultural dessa invenção fundamental.

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A título de cultura geral, vale observar que os primeiros

sistemas de escrita nasceram quase que simultâneamente na

Mesopotâmia (em torno de 3400 A. C.) e no Egito (em torno de

3200 A. C.). Os habitantes da Mesopotâmia adotaram uma

escritura cuneiforme e os egípcios estabeleceram um complexo

sistema de hieróglifos (os mais usuais comportando mais de 700

símbolos), que será decifrado somente no início do século XIX

por Jean-François Champollion. Há, na literatura, textos muito

interessantes sobre a história e os distintos sistemas de escritura.

De uma forma esquemática, podemos considerar que há 3 tipos de

sistemas de escritura: os sistemas ideográficos, os sistemas

silábicos e os sistemas alfabéticos. Na prática, são encontrados

muitos exemplos de combinação desses 3 sistemas.

Nos sistemas ideográficos, “cada sinal representa um objeto

(pictograma) ou uma idéia (ideograma)”. Em teoria (e pela sua

própria função), um pictograma ou um ideograma pode ser

compreendido por pessoas que não falem a mesma língua e que

“traduzirão” cada sinal na sua própria língua. No entanto, essa

afirmação supõe que haja pelo menos uma parte da cultura em

comum.

É por isso que os hieróglifos puderam ser utilizados por

outras civilizações além da egípcia e os chineses “impuseram”

uma parte do seu sistema de escrita a outros povos por eles

colonizados. Para tomar em conta a necessidade de transcrever

cada vez mais palavras, esses sistemas de escrita evoluiram em 3

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um sentido fonético: utilizam-se ideogramas de palavras

existentes para exprimir sons (e não mais a significação) das

novas palavras.

Nos sistemas silábicos, “cada sinal representa um som”. Um

sistema de escrita silábica compreende em média 80 a 120 sinais.

Os sistemas puramente silábicos são raros: podemos citar nessa

categoria o inuit ou cherokee, mas também os kana, um dos

sistemas de escrita do japonês.

Um alfabeto é uma coleção de sinais gráficos que

representam sons vocais em uma língua ou grupo de línguas. Dito

de outra forma, “cada sinal representa um som decomposto” e

vários sinais (letras ou caracteres) são necessários para

representar um som. Os principais alfabetos compreendem uma

trentena de sinais, o que representa um desempenho incrível

quando se imagina a diversidade de línguas e, além disso, das

idéias e emoções que podem ser expressas a partir deles.

Mesmo que não tenhamos muita consciência, os sistemas de

escrita alfabéticos necessitam também de uma representação

visual quando se quer distinguir, por exemplo, os homônimos

(palavras de pronúncia idêntica, mas de sentido diferente); desse

modo, em francês “vers, vert, verre, vair” não se distinguem pela

grafia – que não é portanto simplesmente a ‘representação de um

som composto”, mas também um meio de distinção de

significado.

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Embora certo número de línguas possa partilhar o mesmo

alfabeto, elas podem utilizar certos sinais de forma diferente, por

exemplo, através de pronúncia diferente (“u” em francês ou em

inglês), sem falar das inúmeras variantes permitidas pelo

acréscimo de sinais específicos (diacríticos) que modificam a

pronúncia de uma letra ou grupo de letras. Não devemos também

esquecer - por ser evidente demais – que um bom número de

palavras não é escrito como elas são pronunciadas.

Para muitos, os sistemas de escrita alfabéticos são

considerados o ápice da evolução da escrita: em se “liberando” da

escrita por pictogramas ou ideogramas, as civilizações indo-

européias aparecem como civilizações do conceito, em oposição

às civilizações simbólicas ou emblemáticas do Extremo Oriente.

Jean-Jacques Rousseau escreveu que “estas três maneiras de

escrever respondem exatamente aos três diversos estados sob os

quais se podem considerar os homens reunidos em uma nação. A

pintura de objetos conviria aos povos selvagens; os sinais de

palavras e de preposições aos povos bárbaros e o alfabeto aos

povos policiados”. Pode-se discordar de Rousseau, é claro.

1. 1.1.5.1. Unidades fundamentais de um sistema de escrita

Os grafemas são a unidade fundamental de um

dado sistema de escrita. Segundo o tipo de sistema, o grafema se

realiza visualmente ou foneticamente de diversas maneiras que

podem ser resumidas como segue:

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Alfabeticos: um grafema = uma letra.

Silábicos: um grafema = uma sílaba

Ideogramas: um grafema = um caracter = uma idéia, uma

palavra, um composto ideo-fonético, etc.

5. 1.1.6. Características dos sistemas de escrita

1. 1.1.6.1. Sentido

Mesmo que nos pareça incongruente, habituados que

estamos a escrever da esquerda para a direita e horizontalmente,

todos os sistemas de escritura não operam dessa maneira. O árabe,

por exemplo, se escreve da direita para a esquerda e o chinês pode

ser escrito horizontal ou verticalmente. No entanto, a linha reta,

horizontal ou vertical, é a norma, o que simplifica muito o

trabalho dos programadores, tanto para a saída de dados como

para a sua exibição em tela.

1. 1.1.6.2. Presença de diacríticos

De acordo com o “Petit Robert”, define-se

diacrítico como “um sinal gráfico (ponto, acento, cedilha) atuando

sobre uma letra ou sinal fonético, e destinado a modificar seu

valor ou a impedir a confusão entre homógrafos”. Em francês, os

acentos das palavras “à”, “dû”, “où” são os sinais diacríticos nos

quais se pensa, mas há muitos outros diacríticos de outros

sistemas de escrita. Se, no alfabeto latino, os sinais diacriticos são

frequentemente colocados sobre a letra que eles qualificam, pode-

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se também, noutros sistemas de escrita, encontrá-los embaixo ou

ao lado da letra, havendo casos em que pode ter diversos

diacríticos ao mesmo tempo embaixo e acima do caracter.

Nos jogos de caracteres, os diacríticos serão definidos “com

ou sem espaço”, dependendo do seu uso em combinação com

outro caractere (geralmente digitado depois) ou não. Noutros

termos, deve-se representar separadamente os diacríticos e os

caracteres aos quais eles se aplicam ou deve-se representar o

conjunto caracter + diacrítico? Não há uma resposta única, e

certas normas interditam frequentemente a utilização combinada

de caracteres “com espaço” (ou seja, a tendência é pela

representação do conjunto caracter + diacrítico). De aparência

menor, este problema não deve ser subestimado. Unicode por

exemplo, jogo de caracteres universal, não quis disciplinar os

códigos separados dos diacríticos de um lado, de caracteres de

outro e aqueles que preferem codificar as letras com o(s) seu(s)

diacrítico(s) que podem ser acrescentados, e oferecer várias

soluções e vários níveis de utilização segundo escolhas feitas em

uma implementação. Dito isto, a razão histórica para esse “não

engajamento” (assegurar a compatibilidade entre Unicode e certos

jogos de caracteres que o precederam) não tem mais sentido hoje.

1. 1.1.6.3. Ligaduras e outras características

Embora possamos deixar aos puristas de

tipografia o cuidado de dissertar sobre a ausência de pequenas

maiúsculas acentuadas ou de meio-espaço na maioria dos jogos de 7

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caracteres, o problema de ligaduras não deve ser subestimado. A

ligadura consiste por ocasião da impressão de certos caracteres,

em fazer uma ligação entre tais caracteres. Em francês, por

exemplo, pode-se usar a ligadura em “fi”, em “ffi” ou em “ct”. No

entanto, as ligaduras não podem ser consideradas como caracteres

integrais. É preciso simplesmente que o software que manipula

caracteres possa associar duas letras sucessivas de modo a que o

glyphe dessa associação seja único (e não a simples combinação

de dois glyphes correspondendo às letras indicadas).

Enfim, certos sistemas de escrita compreendem letras maiúsculas

e minúsculas (como no alfabeto latino) enquanto que outros –

ditos monocamerais – ignoram essa noção, como de certa

maneira, o alfabeto árabe.

1. 1.1.6.4. Características de transcrição das línguas

A transcrição de linguas é um ponto

particularmente espinhoso, porque torna a utilização dos jogos de

caracteres ainda mais complexa. Em certas línguas, não se

imprime vogais, ou quando se faz isso serve para dar um sentido

específico ao texto transcrito (um valor poético no caso do

hebreu, por exemplo). Em outros sistemas, o sentido de um

ideograma varia de acordo com a língua (como ocorre com o tripé

chinês-japonês-coreano), o que causa problemas os mais diversos.

De fato, esquecemos frequentemente que a transcrição de

uma língua não é uma simples operação fonética, mas também um

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processo intelectual (que explica, por exemplo. a existência de

homônimos). Depois do surgimento da etimologia, ciência que se

interessa às origens e à evolução das palavras, numerosas

tentativas foram feitas para fabricar alfabetos fonéticos

internacionais, que se apoiariam unicamente sobre os sons

fisicamente emitidos para transcrever os sistemas de escrita. Mas

essas transcrições puramente fonéticas são reservadas aos

especialistas, mesmo se algumas são codificadas e representadas

por jogos de caracteres específicos! Voltaremos a esse assunto em

outro momento.

Os estudos fonológicos e tonológicos conduzem a um

sistema de transcrição da língua que representa correctamente os

sons úteis, e isto da maneira mais econômica possível. Permite

escrever até 90 % o que se pronuncia, sem refinamento fonético, o

suficiente para ter a tentação de se privilegiar apenas a notação

fonológica, passando-se assim por cima de estudos ortográficos.

No entanto, estes últimos tornam-se verdadeiramente

indispensáveis para dotar uma lígua de um sistema convencional,

capaz de ter em conta o conjunto das necessidades de expressão

escrita dos falantes. Com efeito, contrariamente à notação

fonológica (que reflete apenas os sons úteis da língua) uma

ortografia bem concebida deverá também incluir as notações das

relações gramaticais e das idéias. Consideremos, para o francês,

os seguintes exemplos:

a) /ɛǀ ʃăt/

b) elle chante (ela canta)

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c) elles chantent (elas cantam)

A frase (a) apresenta a notação fonológica que corresponde

tanto à frase (b) como à frase (c). Se o francês se escrevesse

unicamente com uma notação fonológica, não haveria nenhuma

maneira de distinguir aqui o singular do plural, tal como o permite

a convenção ortográfica.

Consideremos outro exemplo em sango, uma língua que

distingue um tom alto, um tom médio e um tom baixo. Numa

notação fonológica, estes tons são respectivamente notados com

um acento agudo [á], um mácron [ā] e um acento grave [à], mas

estes acentos não se encontram nos equipamentos correntes na

África Central. Uma ortografia destina-se, no entanto, ao uso de

um vasto público, e a língua deve poder ser escrita tanto à mão

como à máquina, ou no computador. É por esta razão que é

necessário elaborar uma convenção ortográfica que comporte um

conjunto de regras que permitam escrever a língua de maneira

mais prátiica.

O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à

elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua,

neste caso para o sango:

É de notar que a transcrição fonética reflete a pronúncia das

palavras tal como elas são registradas no gravador. Ela é,

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portanto, própria à investigação linguística, mas demasiado

minuciosa para servir de base a uma ortografia corrente, destinada

ao grande público. A notação fonológica da segunda coluna só

retém os sons úteis, os fonemas e, desta forma, torna-se mais

propícia para servir de base a uma ortografia corrente. Mas, a

marcação de todos os tons constitui um obstáculo para uma

escrita prática e uma leitura rápida. Além disso, os símbolos

diacríticos utilizados para diferenciar os tons (acento agudo,

mácron e acento grave) não estão disponíveis em todas as

máquinas e só podem ser correctamente escritos no computador,

fato que não está ao alcance de todos os utilizadores de uma

língua menos favorecida. A convenção ortográfica da terceira

coluna permite economizar 47% da freqüência dos tons e escrevê-

los com o trema e o acento circunflexo, dois símbolos que

figuram na tecla livre na maioria dos teclados ocidentais das

máquinas de escrever e dos computadores utilizados na África

Central. Apesar disto, com esta convenção subsistem 53 % da

frequência dos tons para transcrever com acentos. Para reduzir

ainda mais a taxa de frequência, efetuamos uma reforma

ortográfica cujos resultados se encontram na quarta coluna.

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O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à

elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua,

neste caso para o sango:

Esta nova convenção permite economizar 53% da

frequência dos tons num texto. Nessa fase, podemos dizer que o

sango (ou sahngo) está finalmente dotado de uma ortografia

otimizada e estável.

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