Aula Mimese

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GOVERNO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS Faculdade de Letras Prof. Dr. Jamesson Buarque CORTE #4: “Cambises (…) durante sua estada em Mênfis abriu sarcófagos antigos e examinou os cadáveres. Ele também penetrou no tempo de Hefaístos, que se assemelha muito aos Petaícos dos fenícios, postos por eles na proa de seus trirremes. Vou descrevê-los para quem ainda não os viu: eles são imitação de um pigmeu [í í í]” (HERÔDOTOS. História (Vol. 3). Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1998. p. 78). CORTE #5: “A representação das aparências, ações e/ou expressões de animais e falas [das pessoas], canção ou dança, isto é, um tipo de simulação como a dos î (apresentações, exposições, performances); imitação de ações de uma pessoa por outra, sem mimo; réplica, imagem ou efígie de uma pessoa ou coisa através de algo, isto é, í” (ELSE, Gerard F. “Imitation in Fifth Centry”. Classical Philology, vol. 53, n. 2, April, 1958. p. 87). Embora, em geral, Heródotos, o primeiro ocidental formulador de uma descrição histórica racional, em História, processe mimese como “aquilo que se parece com, que se assemelha a”, Platão, o primeiro ocidental tratadista da mimese processa esta como apresentação de um (imagem), no qual nada se apresenta em si. Já Aristóteles, que não trata de mimese em sentido trivial nem em sentido dialético, mas específico, especializado, orientado a uma arte em particular, à poiesis (arte da representação narrativa e dramática de um ú (intriga, enredo). Nesse sentido, a mimese tem caráter simulativo. Em Heródotos, a mimese não constitui nada que possa dizer respeito em específico à poesia, à Literatura. Em Platão, sim, pois chega-se a tratar-se um terceiro nível de distância da verdade, de uma cópia falsa da forma mesma, mas que se exprime especificamente na tragédia (e na comédia) e parcialmente na epopeia. Como em Aristóteles a mimese acontece a partir da poiesis, ela somente se efetiva nos modos

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  • GOVERNO FEDERAL MINISTRIO DA EDUCAO

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    Faculdade de Letras

    Prof. Dr. Jamesson Buarque

    CORTE #4: Cambises () durante sua estada em Mnfis abriu sarcfagos antigos e

    examinou os cadveres. Ele tambm penetrou no tempo de Hefastos, que se assemelha

    muito aos Petacos dos fencios, postos por eles na proa de seus trirremes. Vou

    descrev-los para quem ainda no os viu: eles so imitao de um pigmeu

    [] (HERDOTOS. Histria (Vol. 3). Trad. Mrio da

    Gama Kury. Braslia: UnB, 1998. p. 78).

    CORTE #5: A representao das aparncias, aes e/ou expresses de animais e falas

    [das pessoas], cano ou dana, isto , um tipo de simulao como a dos

    (apresentaes, exposies, performances); imitao de aes de uma pessoa por outra,

    sem mimo; rplica, imagem ou efgie de uma pessoa ou coisa atravs de algo, isto ,

    (ELSE, Gerard F. Imitation in Fifth Centry. Classical Philology, vol. 53, n.

    2, April, 1958. p. 87).

    Embora, em geral, Herdotos, o primeiro ocidental formulador de uma descrio

    histrica racional, em Histria, processe mimese como aquilo que se parece com, que

    se assemelha a, Plato, o primeiro ocidental tratadista da mimese processa esta como

    apresentao de um (imagem), no qual nada se apresenta em si. J Aristteles,

    que no trata de mimese em sentido trivial nem em sentido dialtico, mas especfico,

    especializado, orientado a uma arte em particular, poiesis (arte da representao

    narrativa e dramtica de um (intriga, enredo). Nesse sentido, a mimese tem

    carter simulativo. Em Herdotos, a mimese no constitui nada que possa dizer respeito

    em especfico poesia, Literatura. Em Plato, sim, pois chega-se a tratar-se um

    terceiro nvel de distncia da verdade, de uma cpia falsa da forma mesma, mas que se

    exprime especificamente na tragdia (e na comdia) e parcialmente na epopeia. Como

    em Aristteles a mimese acontece a partir da poiesis, ela somente se efetiva nos modos

  • pico e dramtico, ou seja, da narrativa e da encenao. Logo, se se trata de obra sem

    intriga, no h mimese.

    Por que o seguinte poema de Charles Baudelaire, traduzido por Guilherme de Almeida,

    no seria mimtico, conforme o princpio platnico e aristotlico? Responda o mesmo a

    respeito do excerto do conto Os mortos, de James Joyce, logo em seguida.

    A UMA PASSANTE

    A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.

    Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

    Uma mulher passou, com sua mo vaidosa

    Erguendo e balanando a barra alva da saia;

    Pernas de esttua, era fidalga, gil e fina.

    Eu bebia, como um basbaque extravagante,

    No tempestuoso cu do seu olhar distante,

    A doura que encanta e o prazer que assassina.

    Brilho e a noite depois! Fugitiva beldade De um olhar que me fez nascer segunda vez,

    No mais te hei de rever seno na eternidade?

    Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! Pois no sabes de mim, no sei que fim levaste,

    Tu que eu teria amado, tu que o adivinhaste!

    _____________________________________________

    Gabriel olhou para o teto que tremia com o arrastar e bater de ps no andar de cima.

    Ouviu por um momento o som do piano e voltou-se novamente para a jovem que, com muito

    cuidado, dobrava e guardava o seu casaco no alto de uma prateleira.

    Diga-me Lily perguntou em tom amvel voc ainda vai escola?

    , no, senhor! Deixei de estudar h mais de um ano.

    Suponho ento acrescentou Gabriel, brincando que um dia desses iremos ao seu

    casamento?

    A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:

    Os homens de hoje so todos uns aproveitadores bons de conversa.

  • Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as

    galochas e esfregou vigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz.

    Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suas faces subia at a testa onde

    se atenuava em manchas informes e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as

    lentes e os aros dourados dos culos que lhe cobriam os olhos delicados e inquietos. Os cabelos,

    negros e lustrosos, eram repartidos no meio e penteados numa longa curva atrs das orelhas,

    onde se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapu.

    Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, ajustou o palet em seu corpo

    robusto e, afobadamente, tirou uma moeda do bolso:

    Lily disse ele, colocando a moeda em sua mo. Estamos no Natal, no ? Tome

    uma pequena

    Apressou-se em direo porta.

    Oh no! exclamou a moa, saindo atrs dele No posso aceitar.

    Natal! Natal! disse Gabriel, quase correndo para a escada e agitando a mo num

    gesto de desculpa.

    Vendo-o subir a escada, Lily gritou:

    Ento muito obrigada, senhor Conroy.

    Gabriel esperou, junto porta do salo, que a valsa terminasse, ouvindo vestidos

    roarem contra ela e o rumor de ps que se arrastavam no assoalho. Estava ainda perturbado

    pela resposta brusca e rude da jovem. O incidente lanara uma sombra sobre ele, que agora

    tentava dissip-la ajustando os punhos da camisa e o n da gravata. Tirou um pedao de papel

    do bolso do colete e leu os tpicos que anotara para o seu discurso. Continuava indeciso quanto

    citao dos versos de Robert Browning, pois temia que estivesse acima da compreenso dos

    ouvintes. Talvez fossem melhor alguns versos de Shakespeare ou das Melodias de Thomas

    Moore. A forma grosseira como os homens batiam os ps e arrastavam os sapatos no cho

    recordou-lhe a diferena de cultura que os separava. Faria um papel ridculo, citando-lhes poesia

    que no podiam compreender. Pensariam que fazia alarde de sua superioridade. Erraria com eles

    como errara com a jovem l embaixo. Escolhera um tom falso. O discurso todo era um

    equvoco, um completo fracasso.

    (Os mortos, de James Joyce, em Os dublinenses)

    O conceito aristotlico de mimese diz respeito a uma unidade, pois corresponde ao

    imitar aes pela linguagem consoante ao ritmo e harmonia pela narrativa e pela

  • atuao em cena. Para Auerbach, contudo, a mimese representao e, por isso, no

    corresponde a uma unidade, mas s mltiplas feies que a realidade pode assumir em

    uma narrativa. O mundo, a realidade mesma, para a narrativa, , em Auerbach, algo que

    uma prefigurao mediante aquilo que se diz em uma epopeia, um romance, uma

    novela, um conto, um drama.

    A mimese produz, procede, encena por diferena, embora se imponha segundo um

    horizonte de expectativa.

    COSTA LIMA, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

    ______. O fingidor e o senso no Antigo Regime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 1988.

    ______. O controle do imaginrio: razo e imaginao nos tempos modernos. 2. ed. Rio

    de Janeiro: Forense Universitria, 1989.

    ______. Mimesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

    ______. A fico e o poema. So Paulo: Companhia das Letras, 2012.

    A mimese (ou mmesis) no um fenmeno prprio da linguagem verbal, e muito

    menos da Literatura. Para que seja literria, alm de realizar-se via linguagem verbal,

    preciso que haja investimento esttico, que somente acontece quando certo acabamento

    da realidade operado para que se constitua outro mundo, um universo doxstico, quer

    dizer, um mundo em que outro modo de ver (de sentir, de sofrer, de perceber) se

    constitui em si mesmo na linguagem verbal e se volta para a realidade, ampliando o

    entendimento de que desta tm-se, temos. A mimese representa, apresenta em outro

    mundo, estados de existncia e modos de conduta. De partida, diante de uma pea

    literria qualquer, pode-se entender que a mimese realizada como imitao, com mimo

    ou figura (imagem) seja ou no seja por cfrase , contudo, pelo enredo (no caso da

    narrativa literria, seja como romance, novela, conto, poema, drama) ou pela metfora

    que se alegoriza (no caso da poesia em geral), mimese se realiza como representao.

    Considere-se a exposio apresenta para a leitura do seguinte poema:

  • O AMANTE DE PORFRIA

    (Robert Browning)

    Chegou ligeira a chuva noite,

    E alou-se logo o triste vento,

    Que os olmos pune em seu aoite

    E vexa o lago com contento:

    Eu escutava em desalento.

    Foi quando entrou Porfria; logo

    Botando fora a chuva e o frio,

    Aquece o chal com o fogo

    Que aviva, ajoelhada e gentil;

    Depois, pondo-se em p, despiu

    As luvas sujas, a sua capa

    E o xale ento encharcado;

    Do chapu seu cabelo escapa,

    E enfim sentou-se ao meu lado

    E me chamou. Quando o chamado

    No respondi, meu brao ps

    Em seu quadril, o ombro nu em pelo,

    E a loura coma ela disps,

    E ali me ps, como um apelo,

    E espalhou seu louro cabelo,

    Murmurando que me amava To fraca, queria somente

    Livrar do peito, que lutava,

    Do vo orgulho que se sente,

    E dar-se a mim eternamente.

    E s vezes a paixo domina,

    E o festim desta noite bela

    No freia a ideia repentina

    De algum palente de amor: ela,

    Pois,viera sob vento e procela.

    Certo que em seu olho eu olhava

    Feliz e orgulhoso; pois vi

    Que Porfria me idolatrava:

    Coo choque, o corao, senti, Crescia, e eu me decidi.

    Perfeita e pura: no momento,

    Pois, ela era minha, minha,

    E o seu cabelo, em meu intento

    Passei em uma urea linha

    Trs vezes por sua gargantinha,

    E a estrangulei. Foi indolor;

    Foi indolor, disso estou certo.

    Como uma abelha presa em flor,

    Abri os olhos azuis de perto:

  • E riram, puros e abertos.

    Soltei do pescoo a trana

    E a face outra vez corava,

    Rubente ao meu beijo em nsia:

    Eu a ergui como costumava,

    S que meu ombro segurava

    Sua cabecinha ainda pendente:

    Feliz coo desejo cumprido, A fronte rsea e sorridente,

    Que o que desprezava fugido,

    E eu, seu amor, possudo!

    O amor de Porfria: insciente

    De sua vontade realizada.

    E assim sentamos juntos, rente,

    E eis-nos quietos na madrugada,

    E ainda Deus no disse nada!

    (Traduo de Adriano Scandolara)