Aula de 16-09 - Monica Caggiano - é Possível Reinventar o Partido

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É possível reinventar o Partido? O Partido Político no século XXI Monica Herman Caggiano Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1995-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996). Sumário : Nota Introdutória. I.- O Partido e o processo político decisional. A posição do partido no cenário da tomada da decisão em ambientes democráticos. II.- Origem e Evolução do partido político. II. 1. - Processo de Constitucionalização do Partido. III.- O Partido e suas funções. IV.- Partidos. Tipos e sistemas. A interface com sistemas eleitorais e sistemas de governo. V.- O Partido e o fenômeno da corrupção. VI.- É possível reinventar o Partido? Nota Introdutória A escolha do tema recaiu sobre a questão partidária, em razão de ter sido exatamente este espinhoso escaninho do cenário da competição pelo poder político o primeiro a ser enfrentado e tratado pelo Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Isto sob a sua peculiar lente jurídica, na já clássica obra Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas 1 . Este estudo, aliás, serviu de inspiração e me encorajou a abordar - anos depois e sob a firme e erudita orientação do eminente mestre do Direito Constitucional – outras facetas do enigma partido, um exótico e sofisticado território, sempre encoberto pelas brumas. Em verdade, no conturbado panorama dos anos 50 e 60 do século passado, um período de reconstrução após as devastadoras conseqüências do segundo conflito bélico mundial, agitado pela guerra fria, uma ameaça permanente à 1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas, Ed. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1966, 1

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É possível reinventar o Partido?O Partido Político no século XXI

Monica Herman CaggianoProfessora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1995-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996).

Sumário: Nota Introdutória. I.- O Partido e o processo político decisional. A posição do partido no cenário da tomada da decisão em ambientes democráticos. II.- Origem e Evolução do partido político. II. 1. - Processo de Constitucionalização do Partido. III.- O Partido e suas funções. IV.- Partidos. Tipos e sistemas. A interface com sistemas eleitorais e sistemas de governo. V.- O Partido e o fenômeno da corrupção. VI.- É possível reinventar o Partido?

Nota Introdutória

A escolha do tema recaiu sobre a questão partidária, em razão de ter sido exatamente este espinhoso escaninho do cenário da competição pelo poder político o primeiro a ser enfrentado e tratado pelo Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Isto sob a sua peculiar lente jurídica, na já clássica obra Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas1. Este estudo, aliás, serviu de inspiração e me encorajou a abordar - anos depois e sob a firme e erudita orientação do eminente mestre do Direito Constitucional – outras facetas do enigma partido, um exótico e sofisticado território, sempre encoberto pelas brumas.

Em verdade, no conturbado panorama dos anos 50 e 60 do século passado, um período de reconstrução após as devastadoras conseqüências do segundo conflito bélico mundial, agitado pela guerra fria, uma ameaça permanente à democracia que se instalava no ocidente, a figura do partido político, embora dura e severamente criticada e antagonizada, impactava o mundo político e jurídico demonstrando seus poderosos efeitos quanto à preservação e desenvolvimento da própria democracia.

A crescente presença da figura do partido, pois, ocasionou uma florescência de obras a cuidar do peculiar e temido fenômeno, até – ou principalmente – em área jurídica. Abandonando a postura refratária e o silêncio que dominou o século XIX e início do século XX, a doutrina iniciava um verdadeiro esforço de anatomia quanto ao partido político, dissecando-o e demonstrando sua aptidão à promoção do desenvolvimento democrático e da legitimação do poder pela via eleitoral.

Na França, a obra de Maurice Duverger (Os Partidos Políticos) passa a ser encarada como verdadeira bíblia na matéria. Fala-se até nas “leis de Duverger” sobre as agremiações político partidárias – os partidos. Ainda na Europa, Kelsen, nos anos 20 inova com a incendiária idéia de Estado de Partidos, porquanto entendia o célebre 1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas, Ed. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1966,

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chefe da Escola de Viena que a própria democracia conduz, inevitavelmente, a reconhecer o partido como o centro do sistema político. Gerard Leibholz e Karl Loewenstein, já na segunda metade do século XX, acolhiam a nova posição sobranceira do partido no âmbito da teoria constitucional européia e ibero-americana, consagrando e consolidando a visão kelseniana. E nos Estados Unidos da América, V.O.Key Jr., Francis R. Valeo e Herbert E. Alexander debruçavam-se sobre a agremiação político-partidária e o financiamento de suas atividades, suas relações com os grupos de pressão e a impositiva necessidade de uma adequada regulamentação com o escopo de zelar pela preservação de um equilíbrio na disputa pelo poder, espaço em que, invariavelmente estariam se digladiando os partidos.

Esta renovada visão acerca do partido e do seu potencial para a concretização da democracia, suportada em eleições competitivas, não deixou de sensibilizar o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, ao longo de diversos estudos e trabalhos publicados, aceitou o desafio de examinar a fundo a figura do partido, enfrentando polêmicas, a exemplo da questão da fidelidade partidária, propondo um modelo – o partido pasteurizado – indicando um receituário a imunizar o partido, minimizando as conseqüências perversas de uma fenomenologia patológica que invariavelmente o ataca.

É ao partido político ancorado no século XXI, sob o impacto de uma democracia expandida, que traz por reflexo imediato a imposição de elevado grau de transparência e a utilização de potentes meios de comunicação e informação, altamente céleres, alimentados por tecnologia avançada e de eficiência comprovada, que pretendemos dedicar neste artigo, homenageando o jurista brasileiro que na segunda década do século XX já fazia pressentir a relevância do fenômeno, reclamando por um disciplinamento legal que ajustasse a execução de suas funções e condições de operabilidade ao mundo contemporâneo e à expectativa democrática.

I.- O Partido e o processo político decisional. A posição do partido no cenário da tomada da decisão em ambientes democráticos.

Parece lugar comum. Mas a verdade é que o ser humano, por sua própria natureza, apresenta a sociabilidade como qualidade própria e peculiar. A vida em sociedade é indispensável para o seu progresso e ilusória se afigura a possibilidade do isolamento, como na fantástica e lendária ilha de Robinson Crusoé.

A comunidade, no entanto, reclama decisões. Quem tem o direito de decidir e como constitui e constituiu, em todos os tempos, a questão a ser resolvida para, diante do poder, presente em qualquer organização social2, restar preservada a liberdade do ser humano, sua eterna expectativa.

2 Neste sentido, ver o magistério de AGESTA, Luis Sanches, Encontramos organizações de poder e fenômenos de poder em todos os países e em todos os tempos. A história e a antropologia constatam este fato. Da mesma maneira, em uma tribo africana e na história do povo de Israel ou em Atenas e Esparta ou no feudalismo medieval, tratamos sempre de fenômenos do poder organizado. Esta universalidade dos fenômenos do poder e da organização do poder parece comprovar o fato de que estes correspondem a uma exigência da natureza humana e por isto os denominamos de fato natural (hecho natural). Princípios de Teoria Política, Madrid, Editora Nacional, sétima edição, 1983, p 72.

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O homem, um ente detentor de zoon politikon3, vem, ao longo da sua história, desenvolvendo fórmulas que, organizando o poder e a tomada das decisões políticas, busquem exatamente a salvaguarda de sua liberdade. Nessa trilha e no extenso arsenal de receitas e combinações de elementos políticos que o mundo conheceu, emerge a democracia como o modelo que mais se aproxima da perspectiva de resguardo da liberdade. Isto porque na sua formulação, a decisão política encontra sua origem genética nos destinatários do poder, no povo. De fato, adotando a mais simples e famosa das definições, a democracia viria a traduzir o governo do povo, pelo povo e para o povo, como proclamado por Abraham Lincoln no discurso de Gettysburg, de 19 de novembro de 18634. Consagra, em verdade, os contornos de uma fórmula política especialíssima, a impor a indisponibilidade do pluralismo político e a livre manifestação das opções políticas, de sorte que o polo da tomada das decisões venha a espelhar as perspectivas da comunidade.

E, nos diversos níveis de influência a conformar a confecção da decisão política, a agremiação político-partidária avulta como um de seus principais elementos, quer integrando o microcosmos competitivo a albergar as forças políticas concorrentes, quer investida da tarefa de incentivar a participação política e a formação da opinião pública5, entendida esta como decorrente da discussão livre, na formulação exposta por Zippelius6.

Mas, advertia Gianfranco Pasquino7 em 1997: a democracia é exigente. Requer, de fato, para a legitimação do poder político o suporte da opinião pública. Esta não apenas atua legitimando o seu exercício, como, ainda, age na plataforma do controle incidente sobre este mesmo poder e a imposição de seus limites8. E este é o papel da oposição, sem a qual não há democracia9.

Em verdade, foi Robert Dahl a apontar a relevância dos fatores participação e oposição na configuração democrática10. Ressalta à evidência que a mera participação se afigura insuficiente. Esta não conduz necessariamente a um regime democrático, podendo, ao invés, implicar na instalação do populismo e não há que ignorar, também, que a mobilização de massas é tática característica do totalitarismo.11 Demanda-se, assim, como contraponto, a livre atividade da oposição, porquanto só assim estará

3 A idéia do homo politicus vem bem definida ainda na obra de Robert Dahl, (Análise Política Moderna, Ed. Universidade de Brasília, 1981, p. 12) afirmando: Virtualmente ninguém está fora do alcance de algum sistema político. A política é um fato inevitável na vida do homem. Não há quem não se envolva em algum momento em algum tipo de sistema político.4 Gettysburg Address, in HOFSTADTER, Richard, Great Issues in American History, New York, Vintage Books, 1958, p. 414.5 AGESTA anota a presença do partido no tecido social a produzir a decisão política, expondo que: Até que a decisão venha a assumir a natureza de ato jurídico, devemos falar de atos políticos, dos quais participam os partidos, os grupos de pressão, as correntes de opinião e os próprios cidadãos que nas eleições periódicas aprovam programas partidários e designam representantes ... que realizem estes programas. – op. cit. supra, p. 396. 6 ZIPPELIUS, Reinhold, Teoria Geral do Estado, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1971, p. 126.7 La democrazia esigente, Bologna, Itália, Il Mulino, 1997.8 Ver ainda sobre as funções da opinião pública ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit. supra, p. 124 e seguintes.9 Sobre o papel da oposição, ver o nosso Oposição na Política, São Paulo, Editora Angelotti Ltda., 1995. 10 DAHL, Robert, Polyarchy – Participation and Opposition, EUA, Yale University Press, 1973. Ver, ainda, o nosso Oposição na Política, op. cit.11 LINZ, Juan J., Totalitarian and Authoritarian Regimes, in Handbook of Political Science, v. 3, Addison – Wesley Publishing Company, 1965.

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assegurada interveniência no cenário decisório às maiorias e às minorias12, estas inexpulsáveis da plataforma política em ambientes democráticos.

Nessa estrutura da democracia, destarte, passa o partido político a ocupar posição destacada. Este opera e interfere na formação da opinião pública, apresenta-se como potente instrumento de participação e de atuação opositora e, certamente, se oferece como mecanismo apto a promover o enquadramento dos atores que se movimentam em cena no momento eleitoral, o processo de seleção dos representantes/governantes, detentores do poder político, que por mais de dois séculos é reconhecido como fator de legitimação da vida democrática.

Com efeito, o sufrágio universal, uma expressiva conquista das sociedades contemporâneas, erigiu o processo eleitoral à fonte de legitimação do poder nas democracias e, portanto, a um dos elementos indispensáveis à prática democrática. E, ainda, sob este especial enfoque, emerge a agremiação político-partidária como um de seus instrumentos de execução. Daí o robustecimento deste ente que passa a assumir funções significativas e desempenhar papel central na consolidação do ideal democrático. Importa advertir, contudo, que nos últimos 30 (trinta) anos os cidadãos não mais se satisfazem com o ato de votar; exigem mais canais de participação e de oposição política, notadamente em proveito das minorias.

O controle da atuação governamental e novos meios de ingerência no polo do poder13, ou seja, no pedestal da decisão político-fundamental, atingem, a seu turno, o partido político que, diante das novas demandas sociais, tecnicidade e sofisticação dos meios de comunicação, passa a ter que repensar sua mecânica de ação e se conformar a uma reorientação quanto a suas atividades, sob pena de exclusão da textura social que toma decisões políticas.

II.- Origem e Evolução do partido político.

O fenômeno partidário, que se manifesta, efetiva e concretamente, como realidade social, oferece uma interessante trajetória histórica. Conhecê-la conduz o analista a compreender até que ponto o partido foi relevante para o desenvolvimento da democracia. Poder-se-ia assinalar, até, que sem democracia, é provável que não tenha havido espaço para o desenvolvimento e reconhecimento dos partidos, porquanto foi em clima democrático e concomitantemente à democracia que esta figura se expandiu. De se notar – como exposto no nosso Finanças Partidárias14 – que, embora o partido institucionalizado de hoje se consubstancie numa criação recente, com origem na Europa continental do século XIX, sua presença – ou a presença de alguns caracteres que lhe são próprios – já era detectada nas facções que dividiam as antigas repúblicas e as clãs que se agrupavam em torno do condottiere na Itália renascentista.

12 Ver sobre a presença das maiorias e minorias no cenário da tomada da decisão política e sobre o tema da participação o nosso Oposição na Política, op. cit. supra.

13 Sobre os meios de participação política, numa linha paralela aos partidos, ver o nosso Oposição na Política, op. cit. 14 CAGGIANO, Mônica Herman S., Finanças Partidárias, Brasília, Gráfica do Senado Federal, 1983.

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Contudo, em sua fase embrionária, a configuração partidária pode ser identificada a partir dos grupos de parlamentares, reunidos por compartilharem de tendências políticas similares ou em função da proximidade das regiões de origem ou, ainda, agrupados em torno de comitês eleitorais organizados com o escopo de arrecadar fundos para a realização das campanhas políticas. Seu desenvolvimento e fortalecimento, porém, derivam e acompanham o percurso da mecânica representativa. Nesta trilha, a lição de Duverger, no sentido de que sem o partido, o funcionamento da representação política (...) é impossível15. Desde os seus primórdios repudiado e hostilizado, esbarrou numa sinuosa linha evolutiva. Oportuno, pois, o registro de Roberto L. Blanco Valdés que, buscando respaldo na obra de Heinrich Triepel, apresenta um quadro, ordenando e sistematizando as diferentes fases percorridas pelo partido, distinguindo 4 (quatro) diferentes etapas, cada qual com as suas características. Assim, examinando a relação Estado – Partidos políticos16, identifica os seguintes momentos:

1.- Um primeiro, de franca oposição;2.- Uma fase seqüencial em que o tratamento dado ao partido é de ignorância / desconhecimento;3.- No avanço, medidas de legalização;4.- E, finalmente, a incorporação à ordem jurídica estatal.

Pois bem, são estes os marcos da história dos partidos e denotam um sinuoso percurso, como, aliás, decorre das observações lançadas por Valdés e Triepel. Com efeito, a filosofia liberal iluminista lhe reservava o silêncio e a clara aversão. Herança da hostilidade do Ancién Régime pelos corpos intermediários. Considerado facção perniciosa, como explicita Karl Loewenstein17, o partido foi repelido e não encontrou acolhida nas constituições revolucionárias, quer em território francês, quer no americano. E na Inglaterra, inobstante a presença marcante do Whigs e do Torries, permaneceu dominante a refratária postura de Burke, que defendia uma concepção liberal da representação, proclamando: O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diversos e hostis (...) O Parlamento é uma assembléia deliberativa de uma nação, com um só interesse – o da comunidade, donde não devem ser as intenções e prejuízos locais que devem guiar as decisões, mas o bem comum que nasce da razão geral18. Este entendimento, na realidade, era defendido já por Bolingbroke que se postava contra os partidos e por David Hume que, numa linha mais amena, no seu Essay on Parties de 1760, aceitava os partidos como uma conseqüência desagradável e tão só como condição do governo livre.

Na seqüência evolutiva, é no panorama norte-americano que ao analista é dado verificar as pioneiras medidas direcionadas ao reconhecimento legal da agremiação política. Isto tanto em esfera estadual como na federal. Ainda no século XIX (1886), os Estados de Califórnia e de Nova York aprovavam as primeiras normas sobre partidos, concernentes, basicamente, à seleção dos candidatos em pleitos eletivos e designação

15 DUVERGER, Maurice, Os Partidos Políticos, trad. de Cristiano Monteiro Oititica, Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1970.16 VALDÉS, Roberto L. Blanco, Los Partidos Políticos, Madrid, Tecnos, 1997, p. 33. Valdés retira as fases de evolução dos partidos políticos da obra Die Staatsverfassung und die politischen Parteien, Berlin, 1927.17 LOEWENSTEIN, Karl, Teoria de la Constitución, Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona, Ed. Ariel, 1976.18 É célebre e reiteradamente registrado pela doutrina o Discurso aos eleitores de Bristol, de Edmund Burke, em 1777.

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para cargos. No primeiro caso, eram textos de aplicação facultativa, no segundo normas obrigatórias. E, no século XX, o Estado de Wisconsin introduzia, pela primeira vez, a obrigatoriedade se proceder à eleição de candidaturas para os cargos públicos, inaugurando a técnica das primárias19.

A experiência francesa, no que concerne ao fenômeno partidário, é de permanente ignorância e repulsa. Mesmo após a edição da lei que regulamentava a ação das associações, de 1901, manteve-se a rudez da legislação penal de enquadramento destas entidades. E, somente em julho de 1910, abriu-se um tímido espaço de reconhecimento legal da figura partidária, por intermédio de sua inclusão no Regimento da Assembléia20.

Não muito distante do tratamento francês, a paisagem espanhola revela uma repugnância frontal à entidade político-partidária, apesar da tênue menção com que foi contemplada nas Cortes de Cádiz21. É verdade que, no período compreendido entre 1837 e 1869, em razão da realização de eleições gerais, formaram-se grupos parlamentares e comitês eleitorais, havendo alusões a chefes informais de partidos, sendo que a estes passou a ser reconhecida uma função política própria. Concretamente, na plataforma jurídica espanhola, o partido estréia com o Regimento das Câmaras de 1931 e, de modo mais expressivo, no de 1934, documentos que potencializam a relevância parlamentar dos partidos, atribuindo-lhes participação na seleção dos deputados e na composição da Comissão de revisão constitucional. E mais até, lhes resta concedida (a grupos e facções) uma série de prerrogativas exclusivas, não extensíveis a parlamentares independentes22. Merece registro a estréia do partido em patamar constitucional espanhol, com o preceito que o artigo 62, da Constituição de 1933, estampava. Embora sem referência expressa ao partido político, o documento assinalava:

Art. 62 - O Congresso designará dentre seus membros uma Bancada de deputados permanente das Cortes, composta, com o máximo de 21 representantes das distintas facções políticas em proporção a sua força numérica.

A figura do partido marca presença também em cenário latino-americano23 - espaço pouco explorado na história dos partidos - na medida em que o final do século XIX e o início do XX denotam uma certa “ocidentalização”, a partir da influência européia e incentivada por uma perspectiva de abandono das práticas caudilistas e das guerras civis.

Na Argentina, por exemplo, a União Cívica Radical (UCR) surgiu em 1890, a partir dos reclamos das classes médias em ascensão no sentido de participar do polo do poder. E a disputa política continuou entre este e o PAN. O quadro partidário, aliás, já apresentava caracteres populistas, elemento que passou a caracterizar o cenário argentino. Neste

19 Ver mais, neste sentido, VALDÉS, Roberto L. Blanco, Los Partidos Políticos, op. Cit. Supra, p. 33 e seguintes. 20 Idem, ibidem. 21 Ver nesta linha, AGESTA, op. cit. supra, p. 223. 22 VALDÉS, Roberto L. Blanco, op. cit. supra, p. 39.23 Ver sobre a realidade partidária latinoamericana: TELLA, Torcuato S., História de los Partidos Políticos em América Latina, siglo XX, México, Fondo de Cultura Econômica, 1994 e ALCÁNTARA, Manuel e FREIDENBERG, Flavia (coordenadores), Partidos políticos de América Latina, Cono Sur, México, Instituto Federal Electoral e Fondo de Cultura Econômica, 2003.

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panorama, somente com a reforma da Constituição Nacional, de 1994, a instituição partidária logrou status constitucional, com previsão no artigo 38.

Detecta-se a figura do partido político também no Chile, no século XIX. Relata Torcuato S. di Tella que “...en el siglo XIX se dio una bipolaridad liberal-conservadora, pero con predomínio conservador, o <polución>, desde la derrota de la facción liberal…”. E aduz mais: “ …la madurez relativa de esta sociedad, facilitaron la formación de partidos políticos sobre la base de una participación más amplia de sectores populares, especialmente el Partido Radical, fundado en Copiapó, (…) en 1863, donde consagró cinco diputados”24. E, no México, já no século XIX indentificava-se o sistema de partido único, como registra Torcuato S. di Tella25, situação que, por longo período foi conotação básica, transformado-se este quadro em um sistema de partido dominante.

No Peru, em 1872 já se conhecia o Partido Civilista e, em 1895, surge o Partido Democrático de Piérola que, em 1912, conquistou o poder com forte apoio popular.26 E, em Cuba, também, há registros sobre a atuação de partidos já desde o século XIX, estabelecendo-se um sistema bipartidário, em alternância no polo do poder até a Guerra da Independência de 1868 a 1878. Consta da história, ainda, que em 1895 foi o Partido Revolucionário Cubano a dar ensejo e alimentar um novo conflito separatista. Hoje, em Cuba, sobrevive de forma isolada, remanescente de experiência política superada, o partido único , de natureza comunista, que reclama para si e mantém centralizado, pela força e terror instalado na população, o poder da decisão política.

No Brasil, o percurso evolutivo do partido remonta ao período colonial. Aliás, em pesquisa elaborada por Pedro Rubez Jeha para o seu doutoramento, há registro acerca da “gênese próxima dos partidos políticos imperiais – identificada – na dinâmica do funcionamento das facções que atuaram (...) até a dissolução da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa convocada em 1822” e aponta “dois grandes grupos que se opunham nos debates relativos à definição dos limites dos poderes da Coroa. De um lado, os denominados monarquistas, que defendiam a instauração de uma monarquia constitucional sob o comando do Imperador D. Pedro e (...) de outro os defensores do fortalecimento dos poderes locais e provinciais. Estes se dividiam em duas correntes. – relata o autor – os exaltados e os moderados ou independentes”27.

Tradicional a presença, entre nós, dos grupos antagônicos – Conservadores e Liberais – a dominar toda a era monárquica. Estes consolidaram-se como partidos a partir de 1831, quando surge o Partido Liberal e, com a renúncia do Regente Feijó, em 1937, é formado o Partido Conservador. Nesta perspectiva é que anota, ainda, Pedro Rubez Jeha: “após a abdicação de D. Pedro I é que os partidos políticos brasileiros começaram a se estruturar de forma mais sólida”28. A partir da proclamação da república, verificou-se a instalação de um sistema de partido dominante, com a preponderância do Partido Republicano que, a partir de 1894, por longo tempo comandou o cenário político. A política do “café com leite”, deu outro colorido ao quadro político-partidário,

24 TELLA, Torcuato S., História de los Partidos Políticos em América Latina, siglo XX, México, Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 3025 Op. cit. supra, p. 10.26 Op. cit. supra, p. 25. 27 JEHÁ, Pedro Rubez, O Processo de Degeneração dos Partidos Políticos no Brasil, tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, p. 39.28 Id. p. 40. Ver também na tese de Pedro Rubez Jehá o desenvolvimento do partido brasileiro, as fases e sua atuação.

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introduzindo uma alternância que se processava não tanto entre partidos, mas entre potências econômicas: o Estado de Minas Gerais e o de São Paulo. O início da era Vargas e o fim do ciclo café com leite, foi marcado, a seu turno, pela presença de partidos políticos atuando no conflito. O Partido Republicano, sustentando a tomada do poder por Getúlio Vargas, contra o posicionamento dos partidos Democrata de São Paulo e o Libertador do Rio Grande do Sul.

O trajeto dos partidos entre nós, contudo, tem na lição do mestre – Manoel Gonçalves Ferreira Filho – o seu ponto inicial nos “últimos movimentos do Governo Vargas em 1945”. Antes disso, aponta o ilustre constitucionalista, às agremiações que pretendiam exercitar o papel dos partidos, “faltava-lhes a organização estável”. Encontravam-se marcadas pelas conotações de “descontinuidade e falta de estabilidade”29.

Fato é que, mesmo no período autoritário mantido sob os governos militares, entre 1964 e 1979, havia partidos, enquadrados num sistema bipartidário a albergar uma agremiação de sustentação governamental e outro oposicionista – de oposição confiável30. E, desde 1979, marco de retorno, no panorama brasileiro, ao pluripartidarismo, e, ao longo destes 30 anos de história, o quadro partidário doméstico vem timbrado por intensa flutuação, resultante, de fato, de um processo de proliferação que é natural ao momento de redemocratização e abertura política. Interessante, a este passo, a observação de Cláudio Lembo a respeito da pulverização do espectro partidário brasileiro, antevendo uma estabilização futura: “É plausível admitir que, findo o processo de redemocratização, os partidos políticos conseqüentes tornar-se-ão atores estáveis, contando com arcabouços bem elaborados e, assim, democraticamente atuantes, poderão se converter em agentes de efetiva participação dentro do Sistema de Partidos.”31

Mas, a florescência de partidos, dos mais variados quanto à cor política, ideologia e grandeza, passou a ser considerada como um dos caracteres de identificação do espectro partidário em território brasileiro, que chegou a contar com cerca de 130 agremiações. Desse total, ao longo dos anos, no entanto, 53 partidos foram extintos e 34 sequer lograram o registro provisório junto à Justiça Eleitoral. O último momento deste período de explosão partidária posiciona-se no ano de 1989, quando, diante do movimento dos grandes partidos no sentido de impedir o ingresso de novos “nanicos”, presenciou-se ao registro de 22 siglas. Hoje se convive com 27 partidos, sendo 7 (sete) de grande e médio porte e o restante inseridos sob o rótulo de nanicos.

II. 1. - Processo de Constitucionalização do Partido

Em verdade, a espinhosa e longa trajetória percorrida pelo partido denota que foi difícil a conquista de espaço no Direito. A vitória – se é de vitória que se pode falar – resultou da necessidade de regulação dos processos eletivos e da exigência de disciplinamento dos trabalhos parlamentares. Por intermédio, pois, basicamente de leis eleitorais e de regimentos a preordenar a atuação dos blocos e forças políticas no cotidiano

29 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, A Reconstrução da Democracia, São Paulo, Saraiva, 1979, p 113. 30 Trata-se da ARENA e MDB. 31 “Participação Política e Assistência Simples”, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991, p. 70.

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parlamentar, lenta e progressivamente a agremiação partidária penetra no mundo jurídico e atinge, em alguns casos, reconhecimento constitucional. Mas, como anota Valdés32, sua plasmação efetiva no território legal se opera a partir dos últimos trinta anos do século XIX, com a emergência das primeiras organizações socialistas na Europa. Nesta direção, também, a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Os primeiros partidos, nesse sentido do termo (realizar ações políticas pela adesão da maioria e não pela coação) foram de orientação socialista (...) Destinavam-se a enquadrar as massas despreparadas que ganhavam o voto, dar-lhes comando e disciplina para que pudessem tirar todo o proveito de sua grande força, a força do número.”33

Com efeito, costuma-se creditar ao Partido Social Democrata Alemão o papel de matriz inspiradora do novo padrão partidário, o partido de massas que, apresentando uma inovadora proposta quanto à estrutura e ação – em contraposição ao antigo modelo de partido de quadros – serviu de suporte à organização da entidade partido na contemporaneidade. Na sua nova configuração, o partido político assume caracteres peculiares, herdados da matriz germânica, e que passam a acompanhar esta figura, consolidando um modelo que reclama um corpo organizado, estrutura própria, disciplina e permanência no cenário político. O Partido político de hoje, portanto, consagra uma fórmula que impõe:

Uma máquina organizatória + Um programa articulado e dotado de estrutura

Demais disso, adota como regras:

a) Distinção clara entre membros (filiados ao partido) e meros eleitores simpatizantes;

b) Disciplina interna, fundamental ao funcionamento do partido no âmbito interno e externo;

c) Natureza individual da filiação. Expressão de vontade individual, o ato de filiação não pode sofrer intermediação. A adesão, destarte, deve se processar diretamente e junto à organização partidária e não por meio de outra entidade;

d) Existência de uma estrutura organizacional estável, formada por funcionários do partido e dotada de meios materiais (recursos humanos e materiais).

O rompimento do tabu que pairava sobre a esfera partidária, em parte, pode ser creditado à doutrina de Hans Kelsen, dirigente da Escola de Viena, que passa a enaltecer e divulgar a idéia de um Estado de partidos, como exigência da democracia. Reclama, pois, a consagração jurídico-constitucional dos partidos, advertindo para o fato de que:

A democracia moderna assenta-se sobre os partidos políticos, cuja relevância cresce com o fortalecimento progressivo do princípio democrático. Só por força de processo de ofuscação ou dolo pode vir a se sustentar a democracia sem partidos. A democracia necessária e inevitavelmente requer um Estado de Partidos .

32 Idem, p. 40.33 A Reconstrução da Democracia, São Paulo, Saraiva, 1979, p. 112.

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Trilhando esta mesma orientação, Loewenstein reforça a concepção, aduzindo que: A teoria constitucional eurpeia e ibero-americana tem plena consciência do fato de que o Estado do século XX é um Estado de partidos e de que a posição da soberania popular foi ocupada praticamente pela soberania dos partidos34. E Carl J. Freidrich, partindo de observação lançada por Lord Bryce, frisa a inevitável sobrepujança dos partidos, como peças inevitáveis35.

Merecedoras de registro as ponderações de Manuel Garcia Pelayo, que posiciona a estréia do padrão estado de partidos no contexto histórico de Weimar, quando cunhada a expressão com a intenção de qualificar uma realidade política plasmada na democracia pelos partidos36. A partir deste momento é que parcela da doutrina iniciou a caminhada pela constitucionalização destas agremiações. E, entre nós, a lição do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, progredindo na análise, examina o novo modelo de democracia, a democracia pelos partidos, reconhecendo esta como uma receita democrática que representaria um aperfeiçoamento se (...) os partidos pudessem estabelecer programas suficientemente precisos para que sirvam de guia à ação governamental37.

Do clima de hostilidade e repugnância vivenciado pelos partidos políticos, aporta-se no século XX e se adentra no XXI com uma a impressão de inevitabilidade quanto à ação partidária no espaço político. E mais, vai se patenteando a imposição de adequado tratamento jurídico, até em nível constitucional, porquanto já que sua atuação se apresenta imprescindível para a democracia, é mister que se adotem medidas para depurar os vícios e evitar a corrosão da própria democracia. Uma adequada regulamentação traria como vantagens:

a inserção de mecanismos corretivos quanto a deficiências e fragilidades; viabilizaria a democratização da formação da decisão coletiva no âmbito de sua própria esfera – no seio do próprio partido. evitaria a permanência do partido na categoria de um corpo estranho ao mundo do Direito positivo – como Triepel pretendia demonstrar.

Dessa forma, no 2º pós-guerra, verificou-se a edição de novas constituições contemplando os partidos e o advento de inúmeras legislações a lhe conferir disciplinamento, principalmente no tocante a sua atuação eleitoral, abordando questões sensíveis, a exemplo do financiamento e da propaganda político-partidária. Absorvendo o novo modelo, a contemplar a figura da agremiação político partidária, dentre outras, poderíamos arrolar:

Constituição italiana de 1947 (art. 49) “associar-se livremente”Constituição alemã de 1949(Lei Fundamental) (art.21) partidosConstituição francesa 1958 (art. 4º) partidos e grupos políticos

Constituição grega 1975 (art. 29. I) partidos

34 LOEWENSTEIN, op. cit. Supra, p. 451. Ver também o nosso Finanças Partidárias, op. cit. supra. 35 FRIEDRICH, Carl J., Gobierno Constitucional & Democracia, tradução de Agustín Gil Lasierra, Madrid, S.A. Editorial Graficas Espejo, 1975. De se acentuar que em nota do tradutor, restou registrado que a referência fora feira a James Bryce, Visconde de Bryce, historiador e jurista britânico (1838 – 1922). 36 PELAYO, Manuel Garcia, El Estado de partidos, Madrid, 1986, p. 29. 37 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2008, 34ª edição, p. 95

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Constituição portuguesa 1976 (art. 117.I)Constituição espanhola 1978 (art. 6º)

Constituição brasileira de 1988 (art. 17)Constituição argentina (reforma de 1994) (art. 38)

III.- O Partido e suas funções

O fortalecimento dos partidos políticos, de fato, pode ser considerado reflexo da nova concepção de Estado, sob a influência dos ideais revolucionários do século XVIII que inauguram a idéia de Estado liberal, com um novo conceito de soberania, sendo esta atribuída ao POVO.

O novo soberano – o povo – apresentava caracteres diferenciados: difuso, temporal, composto, variável e com mandato revogável. E esta configuração demandava mecanismos próprios, apresentando-se o partido como instrumento apto à concreção do novo modelo estatal, em especial pelas funções que passou a executar no ambiente deste cenário marcado pelo clima de permanente competição pelo poder político.

Do mesmo sentir, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, sublinhando: ”... somente no curso do século XIX, com a difusão do governo representativo, que trouxe a freqüência das eleições, é que a função destes (partidos) se tornou visível.( ...) a prática mostrou a necessidade de uma institucionalização ... do grupo político proposto a disputar eleições, a atuar nas assembléias, para governar ou partilhar o poder. ...”38

O Estado Liberal, na nova perspectiva, passa a depender dos partidos e isto porque a agremiação político-partidária se mostra extremamente útil (1) para o recrutamento de candidatos e de governantes; (2) como canal de comunicação entre governantes e governados; (3) como locus de participação política; (4) como mecanismo de frenagem e amortização das tensões sociais no momento eleitoral.

E mais, estas qualificações, ao longo da trajetória da agremiação, foram se amoldando às exigências da visão democrática e ganharam potencial democrático, passando a concorrer para: (1) assegurar a disputa na política e eleições diputadas; (2) o adequado e possível enquadramento dos eleitores; (3) o enquadramento dos eleitos; (4) a estruturação das opções político eleitorais; (5) o enquadramento: governo e oposição; (6) a socialização política.

Depreende-se, pois, que o robustecimento e a afirmação do partido político foram resultado direto das tarefas que este passou a cumprir e que desde o impacto da idéia de representação política e a explosão democrática nenhum outro mecanismo foi idealizado para o atendimento destas atribuições.

Daí decorre a relevância da identificação das funções próprias do partido que, de modo sintético, poderíamos sistematizar na conformidade dos registros constantes do quadro abaixo. Este não apenas indica as atribuições; fornece, outrossim, a exata medida da posição desta figura em cenário político no período pós-guerra: 38 Id., Princípios Fundamentais do Direito constitucional, São Paulo, Saraiva, 2010, 2ª edição, p. 65.

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PARTIDOS POLÍTICOSCAUSAS DE FORTALECIMENTO

asseguram uma seleção , ainda que ilusória, entre diferentes alternativas; uma certa organicidade na administração do Estado; aptos para sondagens responsáveis do eleitorado; reduzem a complexidade da escolha entre as diversas opções eleitorais; atuam como mediadores na política;

Fortalecimento no Pós-Guerraa) único instrumento (quase) por intermédio do qual os cidadãos

participam da vida política;b) instrumento vertebral para a eficiente plasmação do princípio

democrático;c) sujeitos políticos – únicos protagonistas – de um processo de

redemocratização. d) conseqüência : processo de Constitucionalização ou de

Reconhecimento constitucional

IV.- Partidos. Tipos e sistemas. A interface com sistemas eleitorais e sistemas de governo

Admitida a presença partidária no cenário do poder, como já mencionado, uma rica literatura jurídica iniciou o seu percurso. Na verdade, a figura do partido político começou a ser examinada sob uma multiplicidade de facetas. Neste tópico tentaremos oferecer um quadro das interferências recíprocas, constatadas no que tange à ação do tipo ou do sistema de partidos adotados sobre outras questões relacionadas à organização do poder no âmbito do Estado ou mecanismos utilizados para a sua estruturação.

O primeiro passo é lembrar a clássica tipologia elaborada por Duverger39, que cataloga os partidos segundo o critério genético, da sua formação. Daí poderem ser rotulados como: (1) de origem parlamentar, constituídos a partir de bancadas parlamentares e (2) extraparlamentar, criados a partir de organizações externas ao parlamento, a exemplo do PT brasileiro (Partido dos Trabalhadores), oriundo do movimento sindical, principalmente dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Como o próprio Duverger assinala – consubstanciando-se numa de suas leis – no âmbito da agremiação de origem parlamentar, os deputados e senadores, enfim o Parlamento tem uma acentuada influência sobre a atuação do partido; o outro tipo (extraparlamentar) assegura maior 39 Op. cit., supra, p. 20 e seguintes.

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liberdade de ação ao próprio partido e a seus membros, deixando de impor subserviência aos detentores de mandato político. Considerando sua fórmula de criação, outros reflexos são ainda conhecidos. Restam apontados no quadro a seguir oferecido:

Tipos de Partidos Critério origem / efeitos

Tipo de partido/origem Parlamentar Extraparlamentar

Liderança Oligárquica, comandada pela bancada parlamentar

Proveniente das bases partidárias, ou de suas lideranças

Estrutura De quadros De massas/ ou quadrosElites Os parlamentares Desenvolvidas no âmbito

partidárioDuração das atividades Ocasionais, principalmente em

períodos eleitoraisTodo o ano ; maior continuidade e tendência à perenidade.

Financiamento Vultosas contribuições de poucos Os dois sistemas. Pequenas contribuições de muitos e significativas doações de poucos.

Ainda é na obra de Maurice Duverger que se identifica uma tipologia pautada na estrutura organizacional, comparecendo as tradicionais categorias: (1) de quadros, refletindo as primeiras formações partidárias, preocupadas com a presença de notáveis e pessoas ilustres na sua composição; (2) de massa – uma espécie que surge com o Partido Social Democrata Alemão, conforme acima anotado – buscando conquistar o maior número de simpatizantes possíveis na condição de filiados40. A essas duas categorias, mais recentemente vem se alinhando uma terceira: o partido de militantes. E o que atrai a atenção do analista é a diversidade quanto ao comportamento destas agremiações em relação a fatores dos mais variados. O quadro, abaixo, traz as informações:

Tipos de Partidos Estrutura organizacional

Critério orgânico/ caracteres:

Tipo de partido Partido de quadros Partido de massas Partido de militantes

Unidade organizacional básica

Convenção Seção Célula milícia

Natureza e classe de seus membros

Média Trabalhadora Média +trabalhadora

Ideologia/tendência Conservadora/centro

Socialista Comunista/fascista/nazista/religiosa

Articulação Fraca Forte Muito forteCentralização (interna Fraca Forte Muito forte

40 Op. cit. supra, p. 99.

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corporis)Disciplina Fraca Forte Muito forteLiderança Oligárquica Forte oligarquia Autoritária

Elites Tradicionais Desenvolvidas pelo partido

Desenvolvidas pelo partido

Nº de membros Reduzido Muito grande Grande

Entusiasmo dos membros

Pequeno Grande Muito grande

Atividades Políticas Políticas e comunitárias

Política, pessoal e comunitária/religiosas

Periodicidade das atividades

Eleitorais O ano todo/permanentes

O ano todo/permanentes

Importância da doutrina

Reduzida Acentuada Muito reduzida

Não apenas o tipo de partido concebido produz efeitos sobre as instituições. O sistema desenvolvido, de sua parte, apresenta reflexos sobre segmentos vitais do arranjo institucional. No seu inter-relacionamento, captam-se conseqüências incidentes sobre o sistema eleitoral, sobre o sistema de governo e, até mesmo, sobre o grau e a qualidade da democracia praticada.

Pois bem, por sistema de partidos concebe-se a composição estrutural do quadro a abarcar o número total de partidos em um determinado Estado e seus elementos, a exemplo do número que o compõe; a grandeza do partido, a organização e sua estrutura; sua interface com os grupos sociais; sua postura diante do sistema político. Nesta direção aponta a lição de Duverger, no seu clássico Os Partidos Políticos, ressaltando: “as formas e as modalidades dessa coexistência (dos partidos) definem o <sistema de partidos> do país considerado”. E acrescenta: “Duas séries de elementos compõem essa definição. Inicialmente, as similitudes e disparidades que se podem observar, (...) distinguindo-se os sistemas de partidos centralizados, de partidos descentralizados, de partidos totalitários e de partidos especializados, de partidos maleáveis e de partidos rígidos, etc. Em segundo lugar, a comparação de diversos partidos permite determinar novos elementos de análise, inexistentes para cada comunidade partidária isolada: o número, as dimensões, as aliança, a localização geográfica, a distribuição política”. Conclui: “Um sistema de partido é definido por certa relação entre todos esses caracteres.”41

De sua parte, Sartori examina e tipifica os sistemas partidários, sob o critério numérico. Atento à realidade fática e examinando os principais tipos desenvolvidos no século XX, afasta-se do tradicional catálogo a englobar os sistemas bipartidários, os multipartidários e os de partido único para distinguir 5 (cinco) categorias:

Classificação de Sartori, tendo por critério o número de partidos e

a dinâmica da ação partidária . (dominação do cenário políticos)

41 Op. cit. supra, p. 239.

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1.- Sistema de partido único (Antiga URSS)2.- Sistema de partido hegemônico (México)

3.- Sistema de partido dominante (India e Japão)4.- Sistema bipartidista (EUA, Grã Bretanha)

5.- Pluralismo moderado ( Países Baixos, Suiça, Bélgica, Alemanha)

6.- Pluralismo polarizado ( Itália, Finlândia, Brasil)

O cientista avança no exame e apresenta, também, registros relativos ao nível de fragmentação partidária, bem assim o resultado produzido no tocante ao grau de polarização e à dinâmica interna das agremiações:

Sistema de Partidos (fragmentação) Nº de Partidos

Sist. De Partidos (fragmentação)

Grau de polarização Dinámica interna

Bipartidismo zero centrípetaMultipartidismo baixo centrípetaPluripartidismo forte centrífuga

O sistema de partidos atua, de fato, sobre pontos cruciais do complexo cenário em que se disputa e se exerce o poder. Esta peculiaridade não deixou de ser observada por Duverger que, neste panorama lança conceitos tidos por verdadeiras leis. Assim é que nos moldes preconizados pelo ilustre autor, os sistemas bipartidários, de matriz anglo-saxônica, convivem bem com sistemas majoritários de um só turno42. Conduzem, de outra parte, à reduzida sensibilidade ante à opinião pública, a certa distorção da opinião eleitoral em termos de legislativo e raras alianças; o grau de demagogia, no entanto, é baixo. Com efeito, catastrófico é o efeito da técnica majoritária pura sobre as agremiações político-partidárias. A tendência é aniquilar as organizações mais frágeis, importando quase que em uma exigência a instalação do bipartidarismo. Quando praticado a técnica do “ballotage”, autorizado um segundo turno, é amenizado o seu efeito paralizante, podendo advir um multipartidarismo suave.

O multipartidarismo, de outra parte, adapta-se perfeitamente ao escrutínio proporcional43, apresenta-se sensível à opinião pública, se mostra receptível às alianças, favorece os partidos pequenos e lhes incentiva a criação, reforça a ingerência do partido sobre a seleção dos candidatos; porém, abre o panorama do poder para condutas de elevado potencial demagógico e pode culminar com uma pulverização perversa do quadro político44, abrindo as portas para o fenômeno da ingovernabilidade.

42 Op. cit. supra, p. 253. 43 Op. cti. Supra, p. 274.44 Ver a respeito a obra de Duverger, op. cit. supra, p. 277.

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V.- O Partido e o fenômeno da corrupção

Não há como deixar de retomar o tema corrupção em se tratando da figura do partido político. A fenomenologia da corrupção, na verdade, lhe é extremamente familiar, porquanto o partido constitui uma peça de combate, desempenhando uma atividade política consubstanciada em permanente luta pela conquista do poder. Uma atuação que se revela dispendiosa45 e, já que contribuir para atividades político - eleitorais e partidos não vem sendo considerada: “as honorable in motive as alms giving”, clássica observação de V. O Key Jr., cabe às agremiações, na batalha que se trava pelo poder ou em busca do prestígio, obter os recursos necessários para enfrentar uma demanda cada vez mais elevada. E, dúvida não resta acerca do processo de arrecadação e as dádivas que têm sido encarados com bastante reserva em virtude do lastro de dependência que possam originar, como também em face do iminente perigo de desfiguração da vontade popular expressa pelo sufrágio.46 É verdade que o dinheiro, neste ambiente, comparece como algo instrumental, o meio que viabiliza alcançar o poder, o prestígio ou outros objetivos perseguidos. Neste sentido a advertência de HERBERT E. ALEXANDER: “...money also is a tracer element in the study of political power. Light thrown upon transactions involving money illuminates political processes and behavior and improves understanding of the flow of influence and power.”47 Mas certo é também que, exatamente, nesse espaço que, descortina-se a emergência do fenômeno da corrupção, próprio ao campo da patologia partidária, e atinge, preferentemente, o espectro financeiro das campanhas, de extrema permeabilidade e, ao que tudo indica, de difícil imunização.

A corrupção, convém registrar, no entanto, não pode ser entendida como um estigma peculiar e particular ao campo político-partidário. Não há de ser, ainda, considerada como fenômeno isolado. Evidente restou em anteriores trabalhos48 que vem ela 45 No Brasil, as eleições municipais de 2008, embora sob a regência de rígida e restritiva legislação quanto às possibilidades de dispêndios e publicidade, apresentaram gastos por parte dos candidatos que superaram em 70% o custo das campanhas anteriores, de 2004. Os quase 380 mil candidatos a prefeitos e vereadores gastaram cerca de R$ 2,2 bilhões nas eleições deste ano, segundo o TSE. Foram R$ 17 por eleitor . As campanhas vitoriosas nas 26 capitais brasileiras somaram um total de R$ 115,8 milhões, enquanto que os números de 2004 mostram um dispêndio de R$ 67,8 milhões. De 26 capitais, só em 7 o vencedor não estava disputando um segundo mandato consecutivo -e, nessas sete, nenhum deles conseguiu fazer campanhas mais baratas que a dos ganhadores de 2004. Das 5 candidaturas que mais aumentaram os gastos em relação a 2004, 4 não disputavam reeleição: Amazonino Mendes (PTB, Manaus), Roberto Góes (PDT, Macapá), Eduardo Paes (PMDB, Rio) e Marcio Lacerda (PSB, Belo Horizonte). A exceção na lista é a petista Luizianne Lins, reeleita em Fortaleza. Suas despesas cresceram 267% em relação a 2004 -salto de R$ 1,2 milhão para R$ 4,7 milhões. Reportagem de Breno Costa da Agência Folha - Gasto de eleitos nas capitais cresce 70%.

46 Ver neste sentido e sobre o tema corrupção, o nosso Finanças Partidárias, Brasília, Senado Federal, 1980 e Corrupção e Financiamento das Campanhas Eleitorais, in O Regime Democrático e a Questão da Corrupção Política, São Paulo, Atlas, 2004, p. 116 a 146.

47 ALEXANDER, Herbert E., “Financing Politics-Money Elections and Political Reform”, Washington,DC, Congressional Quartely Press, Foreword, Fourth Edition, 1992, p. 3 Tradução nossa: “... o dinheiro constitui traço elementar ao estudo do poder político. Conhecer as transações que envolvem dinheiro coloca à luz os processos políticos e o comportamento e implementa o entendimento acerca das ondas de flutuação das influências e do poder” 48 Ver a respeito o nosso “Legalidade, Legitimidade e Corrupção em Campanhas Eleitorais”, in Cadernos Liberais, São Paulo, CEPS, Série Alfabética.

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acompanhando a própria evolução do mundo. A Bíblia Sagrada não a ignorava, apresentando-se de elevada sensibilidade a passagem que recomenda: “Não receberás dádiva, porque a dádiva cega aos que a vêm e perverte as palavras justas.” (Êxodo, XXIII – 8).

Manoel Gonçalvez Ferreira Filho, em 197949 já enfrentava o que denominava de “epifenômeno indesejável que acompanha o desenvolvimento”, a corrupção, fator que, recorrendo à análise promovida por Huntington50 apresenta-se freqüente em “períodos de rápida modernização”, quando é possível constatar “comportamento de autoridades públicas que se desviam das normas aceitas a fim de servir a interesses particulares”. E, hoje, vê-se o mundo abalado por um processo de corrupção globalizado, notadamente, em razão da acelerada linha de integração do comércio e dos mercados financeiros, fatores de elevada ingerência e produtores de corrupção, fato a impor aos analistas posturas inovadoras, na busca de instrumentos mais adequados ao seu combate, agora, em nível internacional.51

Na realidade, no jogo democrático, aos partidos políticos é atribuída a responsabilidade maior pela produção deste epifenômeno – a corrupção – até porque sua patologia é propícia a esse tipo de incidente. A respeito, relevante se oferece o estudo de Pedro Rubez Jehá, que adentra o espectro patológico da agremiação partidária, indigitando as deficiências e fragilidades que o tornam amplamente permeável à disseminação da sua perversa ação52. A seu turno, Bruno César Lorencini, em dissertação de mestrado, examina a questão do financiamento eleitoral e reclama transparência, porquanto a democracia, lembra o autor, importa no “autogoverno do povo”. E o aporte de recursos financeiros nas campanhas político-partidárias, em momentos eleitorais, induzem os eleitores a questionar “quem irá governar”53?

Nesta esteira, oportuno reapontar entendimento assente, por nós, em Finanças Partidárias, um livro datado de 198354. Já naquela oportunidade, restou evidenciado que no star system descrito por Schwartzenberg55, a força do dinheiro assume vital relevância na consecução dos objetivos partidários e no desenvolvimento do fenômeno da personalização do poder político, o que, a par de envolvente, se afigura dispendioso. Assim, o setor financeiro do partido é que descortina um vasto campo de influência perniciosa, de flagrante manipulação, produzindo um desvio das tarefas e das finalidades dos partidos e, consequentemente, um campo aberto à corrupção. Não é por outra razão a numerosa vala das ações de perda do mandado parlamentar, cassação de deputados e vereadores e até mesmo o afastamento de governadores do seu respectivo posto56.

49 Veja-se do autor A Reconstrução da Democracia, op. cit.. supra, p. 102. 50 Veja-se HUNTINGTON, Samuel P., A Ordem Política nas sociedades em mudança, Rio de Janeiro, Forense, 1975.51 SCHÖNBOHM, Horst, in La Corrupción en el derecho comparado, Argentina, Konrad Adenauer Stiftung e.V.52 Op.cit. supra, Capítulo 2, p.103 e seguintes. 53 LORENCINI, Bruno, O Regime Jurídico do Financiamento Eleitoral Brasileiro e seu Controle por via da Transparência . Um Estudo Comparado, dissertação apresentada para a conquista do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 54 CAGGIANO, Monica Herman S., Finanças Partidárias, Brasília, Gráfica do Senado Federal, 1983. 55 SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard, L’État Spectacle, Paris, Flammarion, 1977.56 O Brasil apresenta uma abundante lista de histórias de horror retiradas do cotidiano político. Como descrito no nosso Direito Parlamentar e Direito Eleitoral, Barueri, Manole, 2004, p 29, notórios se oferecem os processos de cassação do mandato de um deputado estadual que, em razão de atos de corrupção praticados na condição de vereador junto à Câmara Municipal do Município de São Paulo, sofreu perda do seu mandato parlamentar junto à

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Ora, mas o que é corrupção? E por que se apresenta de tão árdua consecução a imunização do partido?

Consultando o verbete no Dicionário Aurélio, verifica-se: “corrupção – (do lat. corruptione) – S. f. 1.Ato ou efeito de corromper, decomposição, putrefação. 2. Devassidão, depravação, perversão. 3. Suborno, peita..57.

Similares são as definições contidas no Black´s Law Dictionary, in verbis: “Corrupt – Spoiled; tainted; vitiated; depraved; debassed; moraly degenerate. As used as a verb, to change ones morals and principles from good to bad. ... Corruption – An act done with an intend to give some advantage inconsistent with official duty and the rights of others. The act of an official or fiduciary person who unlawfully and wrongfully uses his station or character to procure some benefit for himself or for another person, contrary to duty and the rights of others. See Bribe; Extortion”.58

PHILIPPE ARDANT, a seu turno, pronuncia-se no sentido de alinhar à idéia de corrupção “às situações e os meios de pressão ilícita e oculta utilizados para a obtenção de resultados que os procedimentos legais não garantam”59.

Cláudio Lembo, na sua coluna seminal do Terra Magazine60, define “o corrupto é aquele que está podre. Degenerado. Perdeu-se moralmente. Perverte os valores morais. É o venal, excrescência no interior da sociedade. Figura indigna de conviver com os demais. E prossegue, examinando o quadro doméstico, brasileiro: “O corrupto, sob diferentes mantos, persegue a cronologia brasileira. Desde a chegada dos colonizadores, ele está presente. As técnicas podem se diferenciar. O conteúdo, o mesmo de sempre. Levar vantagem em tudo. Começou em 1500 com ato puro de nepotismo. Escrivão da armada, o conhecido Pero Vaz de Caminha pede em favor de seu genro. Uma simples transferência para a Corte”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em palestras proferidas sobre o tema, associa o sentido genérico do elemento corrupção a “tudo o que for condenável”, frisando o sentido metafórico do vocábulo – “a podridão interna de um fruto que vez ou outra arrebenta”.

Forçoso reconhecer, portanto, que, sob nuanças e coloridos diferenciados, o fenômeno atua nos mais variados setores. Dotado de acentuada flexibilidade e com potencial

Assembléia Legislativa do Estado logo após sua eleição. E, basta uma breve incursão na história do Legislativo paulistano para identificar, na legislatura que se findou em 2000, uma série de processos de cassação envolvendo seus membros, vereadores. Hoje, em 2010, só para abordar alguns escandolosos episódios dos últimos anos, basta recordar o denominado “mensalão”, esquema de arrecadação de recursos, principalmente por parte do PT, para enfrentar as eleições municipais de 2004; a cassação dos mandatos dos Governadores da Paraíba e do Maranhão, em razão do abuso do poder econômico no pleito de 2006; a cassação dos mandatos de 28 dos vereadores de São Paulo, eleitos no pleito de 2008, por recebimento de doações ilegais, processos ainda em curso. E não poderia deixar de ser mencionado o episódio envolvendo a prisão do Governador de Brasília (DF), José Roberto Arruda, abrindo o debate até mesmo sobre a questão da intervenção federal na entidade federativa. 57 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2a ed., Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, p. 48658 BLACK, Henry Campbell, M. A ., Black´s Law Dictionary, St. Paul Mn, EUA, West Publishing Co. 1990, p. 345. 59 ARDANT, Philippe, La Corruption, in Pouvoirs, n. 31, Paris, PUF, 1984.60 www.terra magazine, artigo de 7 de dezembro de 2009, sob o título: Conhecer para Fiscalizar.

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mutante, lhe resta assegurada aclimatação a distintas situações. Sua manifestação no ambiente partidário, contudo, acaba contaminando a própria democracia, porquanto – recordando observações acima lançadas – o partido passou a se impor como peça irresistível à democracia representativa, mantendo-se intimamente a esta entrelaçado.61

Em verdade, foi Robert Michels que, sob a inspiração da primeira obra a tratar do partido moderno, lançada por Ostrogorski em 1903 com o título “A Democracia e a Organização dos Partidos Políticos”62, oferece os seus apontamentos ressaltando os pontos falhos ou deficientes desses entes, indicadores hoje examinados sob a lente da patologia partidária. De fato, Michels inaugura o exame sistêmico quanto ao comportamento e estrutura orgânica das agremiações partidárias, demonstrando – logo no início de sua obra – o inevitável fenômeno da oligarquização – a lei de bronze de Michels63.

“The few always dominate”64 adverte o especialista alemão e, partindo desta premissa, passa a explanar o processo intra-partidário que, fatalmente, conduz a esta realidade. Com efeito, na visão de Michels, o analista deve iniciar o exame pela própria acepção do vocábulo partido que significa parte (pars) e, portanto, importa em uma parcela da população, um grupo, que se organiza para assumir o poder político. A organização é elemento intrínseco da figura do partido e esta mesma organização se revela como fator de oligarquização, pois o partido que tem a pretensão de, em alcançando o pólo do poder, decidir por todos, passa a adotar decisões isoladas, emanadas de sua cúpula, constituída, naturalmente, pelas técnicas de atuação peculiares às agremiações. Com efeito, o partido – em razão de seus objetivos – é montado como verdadeira máquina de combate, tem como instrumento de ação a propagação das figuras de seus próprios líderes e, para tanto, deve formar estas lideranças. Mas consolidadas as lideranças, estas passam a dominar o partido, enclausurando as decisões no âmbito da classe dirigente que passa a ser constituída por estes mesmo líderes que a engrenagem do partido formatou.

Nesta perspectiva a anotação de Michels: “O processo que começa com a diferenciação das tarefas, vai-se completando por intermédio de uma série de características que o dirigente adquire por via do seu afastamento em relação às massas. Os dirigentes, que numa fase inicial surgem espontaneamente e desenvolvem as suas actividades sem salário e paralelamente à sua vida profissional, tornam-se funcionários. A este primeiro passo segue-se o segundo, já que a criação de uma liderança profissionalizada é apenas o prelúdio para o aparecimento de uma classe dirigente estável e inamovível.”65 E logo após conclui: “A organização é a mãe da dominação dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatados sobre os que lhes conferem o mandato, dos delegados sobre os que neles delegam.”66

Evidente resulta o repúdio à figura do partido político tanto por parte de Ostrogorski, quanto do lado de Michels, hostilidade também detectada na remarcável obra de Max 61 Ver nesta linha o prefácio subscrito por Pierre Avril à edição de 1993 da obra de Moisei Ostrogorski, La démocratie et les Partis Politiques, Paris, Fayard, 1993.62 A obra de Moisei Ostrogorski, La démocratie et les Partis Politiques, Paris, Fayard, 1993, acima indicada, corresponde à versão publicada em 1912, sob o título A Democracia e os Partidos Políticos. 63 MICHELS, Robert, Para uma Sociologia dos Partidos Políticos na Democracia Moderna, tradução de José M. Justo, Lisboa, Antígona, Editores Refractários, junho/2001.64 Quem domina é sempre a minoria (tradução).65 Op. cit. supra, p. 422. 66 Idem, ibidem.

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Weber que rotula o partido de “empresa política”67. No entanto, não há como ignorar que relevantes fatores da patologia partidária estão presentes tanto na obra de Michels como na de Ostrogorski. Não só a personificação do poder, fenômeno que cria verdadeiros proprietários das legendas partidárias, encontra seus elementos embrionários descritos nesses estudos, como, ainda, a delicada questão da fidelidade partidária – traição à bandeira68 – a homogeneização das propostas e programas, em face da necessidade de conquistar as massas de interesses e perspectivas diversas, a interferência do poder financeiro, introduzindo a influência plutocrática de militantes abastados e o próprio financiamento como recurso de centralização do poder por parte dos chefes, enfim a ausência de democracia no campo interna corporis, importando esta na edição da infalível e famosa lei de bronze de Michels, no sentido de que “o poder decisivo e dirigente é inversamente proporcional ao número de filiados”69.

Cabe lembrar que diante do mais breve exercício ou tentativa de investigar esses efeitos colaterais, decorrentes da organização e desenvolvimento dos partidos políticos, no quadro brasileiro, irão, de imediato, transbordar casos ilustrativos destas anomalias, a exemplo do PT, partido tipicamente de massa, hoje sob a dominação de uma cúpula partidária e mais que isto com proprietário legítimo, ou do PSDB, uma organização de quadros com uma elite dirigente constituída já desde a sua criação, hoje solidificada.

Demais disso, clássica se oferece a tendência à colonização das instituições pelo partido que conquista o poder e em se instalando acaba por produzir um efeito peculiar ao assentamento no locus do poder, extraindo tudo que for possível em matéria de benesses. Desta conclusão compartilha Pasquino, apontando o caso italiano “onde os partidos consolidam o seu poder, e não sua representatividade, utilizando recursos públicos”.70 Mais ainda, reflexo desta patologia partidária, a redução do papel do próprio Parlamento, porquanto o partido, robustecido pelo poder que acumula, acaba impondo os seus dirigentes e a vontade destes é que assume a elevada condição de decisão política. A estes fenômenos perversos e patológicos deve se alinhar a não menos nefasta ingerência dos grupos de pressão, do lobby - um organismo que atua a partir dos bastidores, influenciam a ação partidária para obter vantagens pessoais e não assumem qualquer responsabilidade pelos resultados71.

No Brasil, de certa forma, o legislador, inspirado e conduzido pelo tom democrático da Constituição de 5 de outubro de 1988, buscou mecanismos para eliminar ou, ao menos atenuar estes delicados campos da atividade partidária. A Lei federal n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, foi editada como marco regulatório do processo eleitoral, tanto em esfera nacional, eleições gerais, como, também, em cenário municipal. Em 2006, no entanto, sob o impacto do escândalo do mensalão72, o diploma sofreu alterações, no 67 WEBER, Max, L68 Op. cit. supra, p. 139-146.69 Op. cit. supra, p. 8370 PASQUINO, Gianfranco, Crisi dei partiti e governabilitá, Bolonha, Il Mulino, 1980, p. 51.71 Ver a respeito, dentre outras obras, o nosso Finanças Partidárias, op. cit. supra. 72 Trecho extraído da denúncia promovida pelo Procurador Geral de Justiça, nos autos do inquérito 2245, peça apresentada ao Ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal, e que explicita o conteúdo do escândalo do mensalão : “Em conclusão, pode-se afirmar que o esquema embrião do que atualmente é chamado de “Mensalão” destinou-se ao financiamento da campanha política do candidato ao Governo do Estado de Minas Gerais Eduardo Azeredo, encontrando-se, como já foi afirmado, sob apuração no inquérito 2280, que também tramita perante essa Corte. Do financiamento de campanha com a utilização de recursos não contabilizados e também de origem não declarada que se iniciou na candidatura do atual Senador Eduardo Azeredo ao Governo de Minas Gerais em 1998, Marcos Valério e seu grupo evoluíram, a partir do início de 2003, em conluio com José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno, Sílvio Pereira e outros, para a compra de apoio político de parlamentares.

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sentido de inibir gastos de campanha e, portanto, foram introduzidas sérias e drásticas limitações aos mecanismos publicitários (Lei federal n. 11.300, de 10 de maio de 2006), situação que foi abrandada pela Lei federal n. 12.034, de 29 de setembro de 2009, que liberou a internet.

A nova norma deu margem, contudo, a sérios debates sobre as doações a partidos políticos, podendo estes promover a distribuição dos recursos aos candidatos. Sob o rótulo de “doações ocultas”, esta tática – reclama parte dos analistas – viria a lesar a transparência necessária nos domínios democráticos. O eleitor não restaria ciente da origem dos recursos a suportar a campanha do seu candidato e quais os interesses a que este teria que atender ao longo do mandato, se vencedor no pleito.

Forçoso reconhecer, porém, que após o estabelecimento da “fidelidade partidária”73 – é certo que por via judicial – o partido fortaleceu-se e é ele, partido, que entra em cena de combate eleitoral. Na democracia pelos partidos, plasmada pela nova regulação, impeditiva da mudança de partido após a realização do pleito em que o parlamentar foi eleito, a agremiação política é que passa a ser protagonista do jogo eleitoral e não mais o candidato. Portanto, a nosso ver, será em relação à figura partidária que deverão se voltar técnicos e analistas para identificar a quem devem o suporte financeiro74.

Outra tendência presente em cena político-partidária e difundida entre nós consiste na dominação do clã familiar em espaços geográficos definidos. Não é ignorado o comando político de certas famílias no norte e nordeste do país75. Mas, recente estudo elaborado pelo CEPAM76 evidencia que, em território municipal do Estado de São Paulo, de sua parte, há uma expansão do costume de transformar a política em negócio de família. Assim, os postos executivos ou cadeiras parlamentares passam para cônjuges, filhos e irmãos numa progressividade assustadora. Nem mesmo os óbices

As provas colhidas no curso do Inquérito demonstram exatamente a existência de uma complexa organização criminosa, dividida em três partes distintas, embora interligadas em sucessivas operações: a) núcleo central: José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira; b) núcleo operacional e financeiro, a cargo do esquema publicitário: Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos e Geiza Dias; e c) núcleo operacional e financeiro: José Augusto Dumont (falecido), a cargo da alta direção do Banco Rural: Vice-Presidente, José Roberto Salgado, Vice-Presidente Operacional, Ayanna Tenório, Vice- Presidente, Vinícius Samarane, Diretor Estatutário e Kátia Rabello, Presidente. Ante o teor dos elementos de convicção angariados na fase pré-processual, não remanesce qualquer dúvida de que os denunciados Denúncia no Inquérito nº 2245 16 José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno Sílvio Pereira, objetivando a compra de apoio político de outros Partidos Políticos e o financiamento futuro e pretérito (pagamento de dívidas) das suas próprias campanhas eleitorais, associaram-se de forma estável e ermanente aos denunciados Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos, Geiza Dias (núcleo publicitário), e a José Augusto Dumont (falecido), José Roberto Salgado, Ayanna Tenório, Vinícius amarane e Kátia Rabello (núcleo Banco Rural), para o cometimento reiterado dos graves crimes descritos na presente denúncia.73 Sobre o fim do tabu da “fidelidade partidária”, ver também o nosso trabalho sobre o tema, A Fenomenologia dos trânsfugas no cenário político-eleitoral brasileiro, in O Voto nas Américas, obra coletiva sob a coordenação de Cláudio Lembo, Barueri, Manole e CEPES - Centro de Estudos Políticos e Sociais, 2008.74 A perspectiva atual é a de que, por via de Resolução a ser editada pelo TSE, seja fixada a obrigatoriedade de indicar os candidatos beneficiados com doações recebidas pelos partidos, declarando-se, inclusive, os respectivos valores. (ver no site do TSE proposta de resolução)75 Segundo notícia publicada em 24/07/2008 - 11h52 (www.uol. Últimas notícias), o Ministério Público do Estado de Alagoas, pediu a impugnação de prefeitos profissionais acatando solicitação da Procuradoria Regional Eleitoral do Estado, ou seja detentores de mandatos políticos que exercem o cargo por 12, até 16 anos. Nesta esteira, o comentário do Presidente da OAB do Estado que iniciou o movimento: "Há candidatos em Alagoas tentando o quarto mandato consecutivo". A Constituição Federal permite apenas uma reeleição consecutiva para ocupantes de cargos do Executivo. Os candidatos, no entanto, se valem do Código Eleitoral que permite a partir de um terceiro mandato, desde que em uma cidade diferente.76 Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM, Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal, Perfil dos Prefeitos do Estado de São Paulo, São Paulo, 2009.

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introduzidos pela Lei complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, lograram impedir a reiteração desta prática77.

VI.- É possível reinventar o Partido?

Foi Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, ainda nos anos 70 do século XX, oferecia a receita do partido pasteurizado. A agremiação a portar “estrutura democrática, escolhidos pelas bases os seus dirigentes, (...) limpo de corrupção, com fontes puras de financiamento”78. De atuação permanente, ideais democráticos, respeitoso em relação aos demais partidos e devotado à tutela dos direitos fundamentais, este seria o ente partidário a atender as exigências democráticas.

Difícil e árduo por parte da organização partidária atender a este complexo de requisitos, principalmente diante do seu “modus operandi” que lhe confere – como acima verificado – a natureza e os caracteres de um aparelhamento pronto para um enfrentamento bélico. Daí a persistência em se irrogar aos partidos políticos as mazelas, vicissitudes e crises da democracia. Mas, considerando que, no ambiente político atual, esta figura assumiu posição de irrenunciável elemento das práticas democráticas, comparece como função do legislador atenuar e mesmo aniquilar tais efeitos prejudiciais. Isto enquanto não se identificar outro mecanismo que possa desempenhar adequadamente as tarefas partidárias.

Em verdade, no mundo que o século XXI descortina, um cenário marcado pela avançada tecnologia das comunicações e pela introdução de expandidos e sofisticados instrumentos de controle, o voto – ou a participação do cidadão na produção final da decisão política por via eleitoral – deixou de representar o ponto de maior respaldo da democracia. Esta se realiza e vem sendo aprimorada por intermédio de outros meios e dentre estes, emergem as ONG’s e associações constituídas para manter vigilância sobre a atividade dos detentores do poder político, dos representantes.

No tocante à atividade desenvolvida pelas ONG’s e associações, relevante o registro de decisão de impacto, proferida pelo Supremo norte-americano, no último dia 21 de janeiro do corrente ano de 2009, no caso conhecido como CITIZENS UNITED v. COMISSÃO ELEITORAL FEDERAL (USSC: United States Supreme Court - BCRA: Bipartisan Campaign Reform Act 2002 - CEF: Comissão Eleitoral Federal). Na hipótese em apreço, foi impugnada propaganda negativa, depreciativa quanto à figura da então Senadora Hillary Clinton, constante de documentário preparado e editado pelo grupo Citizens United e que pretendia ser divulgado por ocasião das primárias. A Suprema Corte, por maioria de 5-4, entendeu, no entanto, que, diante da liberdade assegurada pela 1ª Emenda, restava vedada qualquer limitação quanto à liberdade de manifestação e de imprensa em relação a corporações, associações e sindicatos, sendo a estes, portanto, assegurada a possibilidade de atuar - e de concorrer com recursos financeiros – em prol ou contra candidaturas. Coibir ou limitar esta atividade, no pronunciamento da Corte, representaria uma ofensa à 1ª Emenda, porquanto 77 A polêmica girando em torno do domínio familiar, preocupante notadamente nos pleitos municipais, vem sendo alvo de exame também em sede judicial, multiplicando-se os pronunciamentos restritivos por parte do Tribunal Superior Eleitoral. Vejam-se os apontamentos no nosso Direito Parlamentar e Direito Eleitoral, op. cit. supra, p. 88. 78 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Sete Vezes Democracia, São Paulo, Convívio, 1977.

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configuraria uma inibição quanto à possibilidade, mesmo, de atingir as finalidades próprias destes entes, a de participar do cenário político.

Restou assente, nesse julgamento que a manifestação de opiniões políticas é elemento essencial do processo de decision-making em uma democracia, e isso não é menos verdadeiro em se tratando de uma Associação, ou mesmo de uma Corporação. Caso contrário, por exemplo, corporações midiáticas poderiam ser proibidas de expressar suas visões acerca do processo político,o que seria uma flagrante violação às garantias da Primeira Emenda.

Mais que isto, com a decisão proferida, favorável à Citizens United, a Corte superou uma questão anterior, tornando a viabilizar que entes integrantes da sociedade civil organizada possam investir em campanhas políticas, ainda que de forma independente dos candidatos, sem que este fato seja gerador de corrupção e nem a sua prática rotulada de suspeita. Nessa linha o pronunciamento da Corte: “o simples fato de se estabelecer – por intermédio de tais gastos - uma relação de acesso entre os doadores e os agentes governamentais eleitos, não é uma prática por si só condenável, nem os torna corruptos. Da mesma forma, estas práticas não tem o condão de minar a confiança do eleitorado no processo democrático”. (tradução nossa) A seu turno, são merecedores de nota, neste novo espaço de atuação democrática, a presença do Ministério Público como “fiscal da lei” e a produção do Judiciário que, em avançado processo de politização da justiça ou judicialização da política, interfere com potencial cada vez mais agressivo no estabelecimento das políticas públicas e sua respectiva implementação. O Poder Judiciário, hoje, por via das técnicas de controle de constitucionalidade, sofreu sensível transmutação do papel que lhe era atribuído e, de um perfil defensivo, passa a operar com a tarefa de orientação constitucional79.

A título ilustrativo, oportuno lembrar a atuação alongada do Poder Judiciário ao realizar e concretizar – por via jurisdicional – várias das medidas previstas na lendária reforma política brasileira. Assim, em 2002, determinou, por via de Resolução, a denominada verticalização que perdurou até o advento da E.C. n. 52/2006, sendo que esta só encontrará aplicação em 2010. Em 2004 fixou – também por Resolução – o número máximo de vereadores às Câmaras Municipais, reduzindo drasticamente as cadeiras de vereança. Em 2006, extirpou do texto eleitoral a cláusula de bloqueio ou desempenho, declarando a inconstitucionalidade do preceito contido no artigo 13 da lei partidária. E, em 2007, deu solução ao fenômeno dos trânsfugas, ou seja, ao turismo interpartidário mediante o abandono do partido que sustentou a respectiva candidatura, estabelecendo a desfiliação do partido, por parte do detentor de mandato político, como causa de perda da cadeira parlamentar ou do posto executivo conquistados nas urnas80.

Esta nova realidade, pois, introduz mecanismos que podem concorrer para minimizar os efeitos perversos resultantes da atuação político-partidária, quer por abrirem outros espaços para a participação política, impondo aos partidos mais atenção e melhoria do desempenho – o caso das ONG’s e outros entes associativos – quer por autorizarem maior e mais efetivo controle sobre os governantes e, por via reflexa, sobre a atividade 79 Veja-se o nosso A Emergência do Poder Judiciário como Contraponto ao bloco monocolor Legislativo/Executivo, in Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil, Coordenação de Alexandre de Moraes, São Paulo, Atlas, 2009, p. 99.80 Ver sobre a matéria A Fenomenologia dos trânsfugas no cenário político-eleitoral brasileiro, op.cit. supra.

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dos partidos. E em qualquer destas hipóteses não há exterminação dos partidos; ao invés, advém a obrigação de manter fidelidade às tarefas que lhes são próprias e de permanecer atentos à exigência do seu cumprimento.

Expressão deste quadro, que desvenda ao analista inovadores instrumentos para a prática democrática, constituem as pesquisas que se processam no meio acadêmico, buscando investigar, a par de fórmulas alinhadas às demandas atuais da sociedade, a exemplo do trabalho, em nível de mestrado, que aborda a E.Democracia81, também, outros a averiguar a intensidade e os limites de controle a cargo do Ministério Público ou do Judiciário82, bem assim a responsabilidade do detentor do poder político no tocante à execução do programa proposto83.

Fato é que a sociedade contemporânea mudou e a complexidade que a qualifica, hoje, importa numa mutação até mesmo da idéia de povo que não mais deve ser compreendido como um bloco concentrado e monocolor, mas como uma série – uma soma – de interesses e situações específicas e em constante evolução. Há, pois, uma profunda alteração da expectativa em relação a uma “boa representação política”. Para tanto, impõe-se a constante interface entre o poder e a sociedade. E este deverá ser o lema do futuro partido, se este estiver disposto a permanecer no cenário que envolve o poder e a luta pela sua conquista.

Considerando que o veredicto das urnas não mais desponta como único fator de legitimação do poder, cabe ao partido do século XXI demonstrar sua aptidão de manter a função de agente que concorre para a formação da vontade política, adaptando-se às imposições de uma sociedade que prestigia e persegue o aprimoramento democrático, uma tarefa extremamente exigente.

São Paulo, março de 2010

81 CASTANHO, Maria Augusta Ferreira Da Silva, dissertação de mestrado junto ao Programa do Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob o título “E-Democracia. A Democracia do Futuro?”.82 A exemplo do livro – obra coletiva - O Voto nas Américas, obra coletiva sob a coordenação de Cláudio Lembo, Barueri, Manole e CEPES - Centro de Estudos Políticos e Sociais, 2008.83 TONELLI, Helena Cecília Diniz Teixeira Calado, dissertação de mestrado, junto ao Programa do Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob o título “ A Boa Governança. A Responsabilidade Política do Chefe do Poder Executivo. A questão da Omissão do Governante eleito na divulgação e implementação do plano de governo.”.

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