Aula 2 - Mucchielli, L. O Nascimento Da Sociologia Universidade Francesa

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“Há quase trinta anos, nos países anglo-saxões, mais recentemente na França, a oposição às insuficiências da história das ideias é reivindicada pela sociologia das ciências.” (p. 36). Diferença metodológica em relação aos fatos históricos a serem considerados. “Por certo, o princípio segundo o qual toda a produção intelectual deve ser considerada no seu contexto social de produção constitui algo já assentado. [...] Nos Estados Unidos, os sociólogos e os historiadores das ciências, defendem esse princípio desde os anos 1950, em torno notadamente das noções de comunidade e de mercado científicos. Na França, é a noção de campo científico, proposta nos anos 1970 por Bourdieu, que teve durante muito tempo maior êxito.” (p. 36). São desta época também as críticas sobre observar o campo científico como simplesmente um mercado onde os cientistas agem de forma utilitarista para maximizar seus ganhos simbólicos. Isto existe, mas não esgota os problemas de pesquisa. A vida intelectual também não é apenas reflexo da vida institucional. “Na realidade, se as estratégias individuais são importantes (mas não redutíveis a uma simples busca de prestígio) e se os quadros gerais da atividade social exercem múltiplas imposições gerais, a dinâmica da atividade científica é antes de tudo devida a pequenas coletividades que se situam num plano de análise intermediário entre os indivíduos e as instituições. Entre esses, existem grupos sociais intermediários cujo peso é capital: são as redes. Não importa a denominação (rede, grupo, equipe, círculo, laboratório, escola, colégio invisível, etc.), existe aí um objeto fundamental para o historiador e o sociólogo das ciências (conforme Mullins, Clark, Crane, Geison, etc.).” (p. 37). Indivíduos que são chefes de escola e possuem discípulos ou colaboradores que ajudam a legitimar e difundir suas ideias, como Freud ou Durkheim, conseguem uma consagração singular. Por muito tempo não existiam barreiras concretas entre as disciplinas, isto é uma invenção de meados do século XX. “Durante longo tempo a lógica do objeto (ou lógica da aproximação do objeto) prevaleceu sobre a lógica disciplinar (ou lógica da especialidade).” (p. 38). Portanto, escrever a história de uma disciplina se constitui em um problema, e somente podemos escrever sobre o “processo de disciplinarização” (p. 38). No entanto, o autor fala da problemática da reconstrução a partir do presente da genealogia de um conceito, teoria, disciplina, etc. Chega-se então a esta postura metodológica que se chama, após Georges Stocking, o presentismo. A ilusão de isolamento e de gênio criativo do "pai fundador", a comparação "sob forma de aproximação ou de oposição" de conceitos e de métodos elaborados, entretanto, em lugares diferentes, em face de interlocutores diferentes e com objetivos diversos, a continuidade posta em evidência entre autores separados por várias décadas até mesmo por mais de um século, porque

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Fichamento.

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H quase trinta anos, nos pases anglo-saxes, mais recentemente na Frana, a oposio s insuficincias da histria das ideias reivindicada pela sociologia das cincias. (p. 36). Diferena metodolgica em relao aos fatos histricos a serem considerados. Por certo, o princpio segundo o qual toda a produo intelectual deve ser considerada no seu contexto social de produo constitui algo j assentado. [...] Nos Estados Unidos, os socilogos e os historiadores das cincias, defendem esse princpio desde os anos 1950, em torno notadamente das noes de comunidade e de mercado cientficos. Na Frana, a noo de campo cientfico, proposta nos anos 1970 por Bourdieu, que teve durante muito tempo maior xito. (p. 36). So desta poca tambm as crticas sobre observar o campo cientfico como simplesmente um mercado onde os cientistas agem de forma utilitarista para maximizar seus ganhos simblicos. Isto existe, mas no esgota os problemas de pesquisa. A vida intelectual tambm no apenas reflexo da vida institucional.

Na realidade, se as estratgias individuais so importantes (mas no redutveis a uma simples busca de prestgio) e se os quadros gerais da atividade social exercem mltiplas imposies gerais, a dinmica da atividade cientfica antes de tudo devida a pequenas coletividades que se situam num plano de anlise intermedirio entre os indivduos e as instituies. Entre esses, existem grupos sociais intermedirios cujo peso capital: so as redes. No importa a denominao (rede, grupo, equipe, crculo, laboratrio, escola, colgio invisvel, etc.), existe a um objeto fundamental para o historiador e o socilogo das cincias (conforme Mullins, Clark, Crane, Geison, etc.). (p. 37). Indivduos que so chefes de escola e possuem discpulos ou colaboradores que ajudam a legitimar e difundir suas ideias, como Freud ou Durkheim, conseguem uma consagrao singular.

Por muito tempo no existiam barreiras concretas entre as disciplinas, isto uma inveno de meados do sculo XX. Durante longo tempo a lgica do objeto (ou lgica da aproximao do objeto) prevaleceu sobre a lgica disciplinar (ou lgica da especialidade). (p. 38). Portanto, escrever a histria de uma disciplina se constitui em um problema, e somente podemos escrever sobre o processo de disciplinarizao (p. 38). No entanto, o autor fala da problemtica da reconstruo a partir do presente da genealogia de um conceito, teoria, disciplina, etc.

Chega-se ento a esta postura metodolgica que se chama, aps Georges Stocking, o presentismo. A iluso de isolamento e de gnio criativo do "pai fundador", a comparao "sob forma de aproximao ou de oposio" de conceitos e de mtodos elaborados, entretanto, em lugares diferentes, em face de interlocutores diferentes e com objetivos diversos, a continuidade posta em evidncia entre autores separados por vrias dcadas at mesmo por mais de um sculo, porque empregam os mesmos conceitos (mas cuja semntica e lugar no conjunto do aparato conceptual podem ser bastante diferentes), tais so os vieses metodolgicos os mais recorrentes do presentismo. [...]Inversamente, ser historicista, ou simplesmente historiador, compreender que os textos tm contextos, que os discursos foram pensados e pronunciados direcionados para um auditrio, que os artigos e os livros foram pensados e escritos direcionados para um pblico leitor, que os grandes homens, sem exceo, tiveram professores e no inventaram tudo, reproduziram como os outros os preconceitos e os esteretipos culturais os mais gerais de sua poca, tiveram as mesmas fraquezas narcsicas (muitas vezes mais do que os outros!), em suma, foram simplesmente homens e, mais ainda, homens de seu tempo. (p. 39).

Entre 1880 e 1900 foi um momento decisivo que surgiram na Frana grupos que se denominavam socilogos e que queriam se separar das abordagens anteriores e inserir a sociologia na universidade. Por certo, o princpio da existncia de uma nova cincia batizada de Sociologia foi estabelecido j em 1856 por Auguste Comte, na 47Lio doCurso de Filosofia Positiva.Do mesmo modo, a primeira Sociedade de Sociologia foi fundada em 1872 por mile Littr, o lder dos discpulos no-religiosos deComte3. Essa sociedade contava com mdicos, juristas e filsofos. Porm, periclitou muito rapidamente, por falta de participantes e tambm de algum tipo de consenso sobre a definio, o programa e os mtodos desta nova cincia. De um modo geral, a influncia universitria do positivismo declinou na Frana aps a morte de Littr (1881) e o desaparecimento de sua revistaLa philosophie positive. (p. 40). O autor lista motivos polticos, sociais e culturais que esto envolvidos:

1) A autonomizao paradigmtica das cincias humanas foi amplamente facilitada pela autonomizao universitria destessaberes. (p. 40). Cursos de psicologia, letras, cincias histricas e filolgicas, bolsas. Este movimento de crescimento e diversificao institucionais induziu rapidamente um movimento de profissionalizao que se traduziu em particular pelo surgimento de novas revistas. (p. 41).2) Quando se afirma que a sociologia nasceu na Frana em torno de 1880-1900, difcil no perceber que se trata muito exatamente dos anos de fundao da Terceira Repblica e, em seguida, da instalao do que hoje chamado o Estado debem-estar. Por isso, importante interrogar-se sobre o contedo da ideologia republicana desta poca, sobre as idias, os valores partilhados pela gerao que acompanha este evento poltico de importncia considervel. (p. 41). Ideias de transformao da sociedade, solidarismo, fortalecimento do socialismo, caso Dreyfus.3) Nas dcadas que precederam o nascimento da sociologia universitria, o estudo cientfico das condutas humanas era sobretudo tarefa das cincias biomdicas: antropologia, psiquiatria, psicofisiologia. Globalmente, estas cincias funcionavam no quadro de um paradigma naturalista, explicando os comportamentos sociais pela natureza biopsicolgica dos indivduos e dos grupos de indivduos. As noes de raa, hereditariedade, constituio cerebral, so centrais nestas abordagens que consideram as sociedades como somas de indivduos. Os anos 1860-1890 foram o momento de apogeu destes modelos naturalistas aplicados s cincias sociais. (p. 43). Entretanto, a partir de meados dos anos 1880, em funo do conjunto de razes sociais, polticas, culturais e filosficas, apareceram novas abordagens que romperam amplamente com o biologismo. A primeira grande reao foi a de Gabriel Tarde (1843-1904), que criticou fortemente os evolucionistas, darwinistas sociais e biocriminlogos italianos, desenvolvendo por sua vez uma "interpsicologia" fundada sobre o modelo psicolgico da hipnose que chamou de"imitao"18. A segunda reao foi a de mile Durkheim (1858-1917), que pretendeu romper mais radicalmente ainda com o conjunto das abordagens tradicionais e instituir uma sociologia que repousava tambm sobre uma filosofia e uma psicologia do homem em sociedade. A associao dos homens em sociedade produz, segundo ele, fenmenos novos, fenmenos propriamente sociais que reclamam instrumentos de anlise e de interpretao especficos. No nterim, surgiu todavia uma terceira personagem Rene Worms (1867-1956) , que tentou adiantar-se a todos dotando a sociologia de suas primeirasinstituies. Mas ele tambm cria na possibilidade de reativar a velha teoria do organicismo, deixando de efetuar portanto a ruptura com o paradigma naturalista. No essencial, nesta luta a trs se deu a conquista da liderana da nova sociologia. (p. 44).

Worms foi o primeiro a criar uma instituio, a Sociedade de Sociologia de Paris, publicou uma revista e fazia conferncias anuais. Congregou vrios socilogos eminentes do perodo. Tarde, por sua vez, teve prestgio solitrio por sua oposio Lombroso e importou para a sociologia a hipnose e a sugesto. Embora no procurasse promover a sociologia na universidade, foi um intelectual de renome. Durkheim foi o ltimo a chegar nesta histria. A sociologia era para ele uma vocao pessoal e uma misso poltica no sentido mais nobre, a cincia que iria permitir a compreenso da crise social e moral da sociedade francesa e indicar os remdios para restabelecer a solidariedade entre os membros da sociedade, a cincia do Homem por excelncia. [...]Em sua tese sobre aDiviso do trabalho social(1893), Durkheim se posicionou antes de tudo contra Spencer, contra o individualismo e o naturalismo. O homem homem porque um animal social, sua natureza humana constituda de tudo o que apreende da sociedade que o educa. (p. 46).

Alm disso, importante frisar que ao contrrio de Worms, Durkheim no procurou oferecer uma tribuna de expresso doutrinal a todos os que apelavam para a sociologia. Ele criou uma revista constituda essencialmente pelas anlises bibliogrficas crticas. Tratava-se de utilizar as pesquisas histricas, geogrficas, psicolgicas, etc., para criticar do ponto de vista da sociologia, do ponto de vista de um mtodo sociolgico, promovendo um "esprito sociolgico", uma maneira de pensar, de raciocinar, que se pretendia original e estritamente cientfica. Segundo a frmula de Durkheim, o procedimento seria "explicar o social pelo social", isto , explicar os fenmenos sociais com a ajuda de instrumentos tericos e metodolgicos propriamente sociolgicos. [...] Todos conhecem o resultado da luta, intil fazer durar o suspense: foi Durkheim quem se imps. As razes dessa vitria s podem ser compreendidas, sem arriscar reduzir demais a realidade histrica, combinao de quatro fatores: o intelectual, o institucional, o poltico e a dinmica de grupo.Foi sobretudo a fora intelectual e a dinmica de grupo que faltaram a Worms, que no possua programa pessoal ou coletivo. Sua revista e seus congressos refletem as tendncias do momento, e neles cada autor apresentava seus pontos de vista pessoais em reunies mundanas onde se aplaudia cortesmente. As simpatias tericas pessoais de Worms iam em direo a um organicismo estrito e maximalista, que interpretava a sociedade como dotada de rgos, funes, necessidades, doenas, exatamente como um organismo biolgico individual (Organisme et socit, 1896). Em meados dos anos 1890, essa foi uma teoria que passou da moda, ela fazia lembrar Spencer e era muito criticada. (p. 47-48).

A institucionalizao da escola de Durkheim teve muitas conseqncias para a sociologia. A primeira delas que, contrariamente ao que desejava Worms, foi nas faculdades de Letras (e no de Direito) que a sociologia se desenvolveu. Por seu prprio percurso e por sua prpria zona de influncia, Durkheim claramente ancorou a sociologia nos cursos universitrios ao lado dafilosofiae, embora permanecesse sempre muito limitada, essa ancoragem no se desfar na Frana. Foi no interior da filosofia que a sociologia conquistou uma autonomia parcial e relativa pelo vis de um certificado de moral e de sociologia (1920); somente emancipando-se da filosofia, a sociologia pde adquirir enfim, a partir dos anos 1950, sua autonomia universitria completa.O grupo de Durkheim, tendo investido massivamente na anlise das representaes coletivas e das categorias de pensamento atravs da histria dos mitos e das religies, manteve desde sua origem laos muito estreitos com a seo histrica e sobretudo com a seo das cincias religiosas da EPHE. Esta instituio constituiu para os durkheimianos uma via de legitimao institucional de primeira importncia e parte de uma fonte de recrutamento e zona de influncia no menosimportante (p. 50).

preciso ainda insistir no papel infeliz do acaso no processo de institucionalizao da sociologia na Frana. O acaso est aqui representado pelo incio da Primeira Guerra Mundial, desastrosa para o conjunto da juventude intelectual francesa, mas que parece ter atingido mais particularmente os socilogos franceses e seus aliados mais prximos. No conjunto dos alunos de Durkheim, Mauss e Hubert, uma dezena de jovens pesquisadores promissores so mortos nos campos de batalha. Entre eles, o prprio filho de Durkheim desaparece, arrastando (por desgosto) morte o chefe da sociologia francesa com 59 anos de idade. Afinal de contas, uma hecatombe que a sociologia durkheimiana ter dificuldade em superar. De fato, no entreguerras, apesar da consagrao de certos grandes autores como Mauss, Halbwachs, Granet ou ainda Simiand, apesar da importncia do posto de Bougl cole Pratique des Hautes tudes, a sociologia perder igualmente a fora conquistadora que possua antes da guerra. Para o essencial, ela manter suas posies mas, com exceo de uma ctedra na nova faculdade de Letras de Strasbourg, em 1919, ela no progredir no seio da universidade francesa. (p. 51).