Atwood Se Perde Em Panfleto Feminista

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Atwood se perde em panfleto feminista Marilene Felinto - Da Equipe de Articulistas Margaret Atwood, 56, é uma escritora canadense famosa por sua literatura de tom feminista. No Brasil, é mais conhecida pelo romance "A mulher Comestível" (Ed. Globo). Já publicou 25 livros entre poesia, prosa e não-ficção. "A Noiva Ladra" é seu oitavo romance. O livro começa com uma página inteira de agradecimentos, procedimento normal em teses acadêmicas, mas não em romances. Lembra também aqueles discursos que autores de cinema fazem depois de receber o Oscar. A escritora agradece desde aos livros sobre guerra, que consultou para construir o "pano de fundo" de seu texto, até a uma parente, Lenore Atwood, de quem tomou emprestada a (original? significativa?) expressão "meleca cerebral". Feitos os agradecimentos e dadas as instruções, começam as quase 500 páginas que poderiam, sem qualquer problema, ser reduzidas a 150. Pouparia precioso tempo ao leitor bocejante. É a história de três amigas, Tony, Roz e Charis, cinquentonas que vivem infernizadas pela presença (em "flashback") de outra amiga, Zenia, a noiva ladra, inescrupulosa "femme fatale" que vive roubando os homens das outras. Vilã meio inverossímil - ao contrário das demais personagens, construídas com certa solidez -, a antagonista Zenia não se sustenta, sua maldade não convence, sua história não emociona. A narrativa desmorona, portanto, a partir desse defeito central. Zenia funcionaria como superego das outras, imagem do que elas gostariam de ser, mas não conseguiram, reflexo de seus questionamentos internos - eis a leitura mais profunda que se pode fazer desse romance nada surpreendente e muito óbvio no seu propósito. Segundo a própria Atwood, o propósito era construir, com Zenia, uma personagem mulher "fora-da-lei", porque "há poucas personagens mulheres fora-da-lei". As intervenções do discurso feminista são claras, panfletárias, disfarçadas de ironia e humor capengas. A personagem Tony, por exemplo, tem nome de homem (é apelido para Antônia) e é professora de história, especialista em guerras e obcecada por elas, assunto de homens: "Historiadores homens acham que ela está invadindo o território deles, e deveria deixar as lanças, flechas, catapultas, fuzis, aviões e bombas em paz". Outras alusões feministas parecem colocadas ali para provocar riso, mas soam apenas ingênuas: "Há só uma coisa que eu gostaria que você lembrasse. Sabe essa química que afeta as mulheres quando estão com TPM? Bem, os homens têm essa química o tempo todo". Ou então, a mensagem rabiscada na parede do banheiro: "Herstory Not History", trocadilho que indicaria o machismo explícito na palavra "História", porque em inglês a palavra pode ser desmembrada em duas outras, "his" (dele) e story (história). A sugestão contida no trocadilho é a de que se altere o "his" para "her" (dela). As histórias individuais de cada personagem são o costumeiro amontoado de fatos cotidianos, almoços, jantares, trabalho, casamento e muita "reflexão feminina" sobre a infância, o amor, etc. Tudo isso narrado da forma mais achatada possível, sem maiores sobressaltos, a não ser talvez na descrição do interesse da personagem Tony pelas guerras. Mesmo aí, prevalecem as artificiais inserções de fundo histórico, sem pé nem cabeça, no meio do texto ficcional, efeito da pesquisa que a escritora - em tom cerimonioso na página de agradecimentos - se orgulha de ter realizado. A vida pulsa em ‘Sete Caixas’, thriller que se passa no Paraguai Ambientado em um mercado popular, filme é falado em dialeto, o que exigiu legendas mesmo em seu país de origem Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo Sete Caixas já foi chamado de Cidade de Deus paraguaio. Mas a comparação é um pouco forçada. Verdade que, como o filme brasileiro, fala de garotos desassistidos, tráfico de drogas e corrupção. Mas o ponto de vista é outro e a proposta estética dos diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, embora frenética, difere da de Fernando Meirelles em sua adaptação do romance de Paulo Lins. O viés adotado pelos paraguaios não é a de alguém metido com o tráfico, mas o de um garoto que sobrevive num mercado de Assunção de pequenos transportes realizados com sua carreta de mão. Ele faz o mesmo que outros garotos e ganha uns trocados. Insuficientes para comprar o celular com que sonha. Um dia aparece uma proposta tentadora – a de transportar e esconder as tais sete caixas, das quais ele desconhece o conteúdo e valor. Ele e o espectador. Esse será o mistério. Victor e suas caixas, atrás das quais muita gente corre em uma Assunção de pesadelo, cheia de vielas sujas, tipos mal-encarados e intenções duvidosas. A proposta é clara: atrair a simpatia do espectador para Victor e suas dificuldades em cumprir a missão. Que consiste em ocultar as caixas, depois entregá-las em determinado endereço e jamais tentar saber o que elas contêm. Uma alavanca narrativa desse tipo de história consiste nas dificuldades da missão, pela qual o garoto recebeu metade de uma nota de cem dólares; a outra metade virá depois da tarefa cumprida. O charme meio sujo do filme consiste na naturalidade com que o cotidiano do tal Mercado 4 é mostrado. Aquilo pode ser uma selva, porém habitada por seres humanos reais, matizados, contraditórios, cheios de defeitos e qualidades – e

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Atwood se perde em panfleto feminista Marilene Felinto - Da Equipe de Articulistas

Margaret Atwood, 56, é uma escritora canadense famosa por sua literatura de tom feminista. No Brasil, é mais conhecida pelo romance "A mulher Comestível" (Ed. Globo). Já publicou 25 livros entre poesia, prosa e não-ficção. "A Noiva Ladra" é seu oitavo romance. O livro começa com uma página inteira de agradecimentos, procedimento normal em teses acadêmicas, mas não em romances. Lembra também aqueles discursos que autores de cinema fazem depois de receber o Oscar. A escritora agradece desde aos livros sobre guerra, que consultou para construir o "pano de fundo" de seu texto, até a uma parente, Lenore Atwood, de quem tomou emprestada a (original? significativa?) expressão "meleca cerebral". Feitos os agradecimentos e dadas as instruções, começam as quase 500 páginas que poderiam, sem qualquer problema, ser reduzidas a 150. Pouparia precioso tempo ao leitor bocejante. É a história de três amigas, Tony, Roz e Charis, cinquentonas que vivem infernizadas pela presença (em "flashback") de outra amiga, Zenia, a noiva ladra, inescrupulosa "femme fatale" que vive roubando os homens das outras. Vilã meio inverossímil - ao contrário das demais personagens, construídas com certa solidez -, a antagonista Zenia não se sustenta, sua maldade não convence, sua história não emociona. A narrativa desmorona, portanto, a partir desse defeito central. Zenia funcionaria como superego das outras, imagem do que elas gostariam de ser, mas não conseguiram, reflexo de seus questionamentos internos - eis a leitura mais profunda que se pode fazer desse romance nada surpreendente e muito óbvio no seu propósito. Segundo a própria Atwood, o propósito era construir, com Zenia, uma personagem mulher "fora-da-lei", porque "há poucas personagens mulheres fora-da-lei". As intervenções do discurso feminista são claras, panfletárias, disfarçadas de ironia e humor capengas. A personagem Tony, por exemplo, tem nome de homem (é apelido para Antônia) e é professora de história, especialista em guerras e obcecada por elas, assunto de homens: "Historiadores homens acham que ela está invadindo o território deles, e deveria deixar as lanças, flechas, catapultas, fuzis, aviões e bombas em paz". Outras alusões feministas parecem colocadas ali para provocar riso, mas soam apenas ingênuas: "Há só uma coisa que eu gostaria que você lembrasse. Sabe essa química que afeta as mulheres quando estão com TPM? Bem, os homens têm essa química o tempo todo". Ou então, a mensagem rabiscada na parede do banheiro: "Herstory Not History", trocadilho que indicaria o machismo explícito na palavra "História", porque em inglês a palavra pode ser desmembrada em duas outras, "his" (dele) e story (história). A sugestão contida no trocadilho é a de que se altere o "his" para "her" (dela). As histórias individuais de cada personagem são o costumeiro amontoado de fatos cotidianos, almoços, jantares, trabalho, casamento e muita "reflexão feminina" sobre a infância, o amor, etc. Tudo isso narrado da forma mais achatada possível, sem maiores sobressaltos, a não ser talvez na descrição do interesse da personagem Tony pelas guerras. Mesmo aí, prevalecem as artificiais inserções de fundo histórico, sem pé nem cabeça, no meio do texto ficcional, efeito da pesquisa que a escritora - em tom cerimonioso na página de agradecimentos - se orgulha de ter realizado. A vida pulsa em ‘Sete Caixas’, thriller que se passa no Paraguai Ambientado em um mercado popular, filme é falado em dialeto, o que exigiu legendas mesmo em seu país de origem

Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo Sete Caixas já foi chamado de Cidade de Deus paraguaio. Mas a comparação é um pouco forçada. Verdade que, como o filme brasileiro, fala de garotos desassistidos, tráfico de drogas e corrupção. Mas o ponto de vista é outro e a proposta estética dos diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, embora frenética, difere da de Fernando Meirelles em sua adaptação do romance de Paulo Lins. O viés adotado pelos paraguaios não é a de alguém metido com o tráfico, mas o de um garoto que sobrevive num mercado de Assunção de pequenos transportes realizados com sua carreta de mão. Ele faz o mesmo que outros garotos e ganha uns trocados. Insuficientes para comprar o celular com que sonha. Um dia aparece uma proposta tentadora – a de transportar e esconder as tais sete caixas, das quais ele desconhece o conteúdo e valor. Ele e o espectador. Esse será o mistério. Victor e suas caixas, atrás das quais muita gente corre em uma Assunção de pesadelo, cheia de vielas sujas, tipos mal-encarados e intenções duvidosas. A proposta é clara: atrair a simpatia do espectador para Victor e suas dificuldades em cumprir a missão. Que consiste em ocultar as caixas, depois entregá-las em determinado endereço e jamais tentar saber o que elas contêm. Uma alavanca narrativa desse tipo de história consiste nas dificuldades da missão, pela qual o garoto recebeu metade de uma nota de cem dólares; a outra metade virá depois da tarefa cumprida. O charme meio sujo do filme consiste na naturalidade com que o cotidiano do tal Mercado 4 é mostrado. Aquilo pode ser uma selva, porém habitada por seres humanos reais, matizados, contraditórios, cheios de defeitos e qualidades – e

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muito empenhados em sobreviver. Nessas condições, para permanecer à tona é preciso evitar vacilos. Uma falha e pode ser o fim. Em especial quando se convive com gente perigosa, para quem a vida humana não vale um guarani. Aliás, o filme busca a naturalidade da "vida como ela é". Com pouca preocupação em ser formalmente elegante, reproduz diálogos como eles se dão de verdade. Por isso, as falas são mescla de espanhol e guarani, num rápido dialeto que exigiu legendagem mesmo para as cópias exibidas no Paraguai. Apesar de deslizes (como alguns personagens francamente caricatos), Sete Caixas exibe um frescor e dinâmica exemplares. A poluição visual que se projeta na tela é aquela mesma do ambienta caótico do Mercado 4, onde a história foi filmada. A vida pulsa por si, e não tem necessidade de ser bonitinha para exibir sua força e plenitude.