Atualidade em foco N Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A Foto...

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210 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #59 Atualidade em foco N ’Os Sertões, Euclides da Cunha nos trouxe as palavras que apontavam o “homem”, a “terra” e a “luta”. Nas fotos que seguem, o trinômio euclidiano continua valendo. No entanto, há tempos que a imagem deixou de valer mil palavras. A imagem é dura. A fotografia – independente do bem ou do mal – apenas reflete aquilo que o seu autor busca através do clique de sua máquina. Sempre disseram que a foto é o resultado de estar no lugar certo na hora certa... E com o talento certo. O Brasil dos últimos anos produziu esses momentos “certos”, aqueles segundos que não nos deixam saudades, mas lembranças de um período de lutas e sofrimento. Momentos que nos tiraram da zona de conforto. O que seriam apenas as palavras para descrever a tragédia da barragem de Mariana (MG)? Como poderíamos, com palavras, nos aproximarmos da angústia, do medo e da tristeza daquela ocasião? O que seriam as palavras, Tragédia de Mariana, em Minas Gerais Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A Foto Coletivo

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N’Os Sertões, Euclides da Cunha nos trouxe as palavras que apontavam o “homem”, a “terra” e a “luta”. Nas fotos que seguem, o trinômio euclidiano continua valendo. No entanto, há tempos que a imagem deixou de valer mil palavras. A imagem é dura.

A fotografia – independente do bem ou do mal – apenas reflete aquilo que o seu autor busca através do clique de sua máquina. Sempre disseram que a foto é o resultado de estar no lugar certo na hora certa... E com o talento certo. O Brasil dos últimos anos produziu esses momentos “certos”, aqueles segundos que não nos deixam saudades, mas lembranças de um período de lutas e sofrimento. Momentos que nos tiraram da zona de conforto. O que seriam apenas as palavras para descrever a tragédia da barragem de Mariana (MG)? Como poderíamos, com palavras, nos aproximarmos da angústia, do medo e da tristeza daquela ocasião? O que seriam as palavras,

Tragédia de Mariana, em Minas Gerais

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Jovem indígena Xikrin passa por muro com pichação contra a

hidrelétrica de Belo Monte

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Grafite na cidade de Altamira, em protesto contra a Norte Energia,

empresa administradora das obras da hidrelétrica de Belo Monte

Homem tenta recuperar o que sobrou de sua casa, após deslizameto de terra

durante forte chuva em Altamira; uma das medidas de compensação dos impactos

causados pelas obras de Belo Monte seria a remoção das famílias que vivem

em áreas de risco; parte das famílias não recebeu nenhuma indenização

e nem foi realocada

Pescadores bloqueiam a rodovia Transamazônica em protesto contra a

falta de transparência da Norte Energia com relação à pesca na região

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meras reflexões de algo que a fotografia nos mostra? Um fotógrafo, saído do céu e abençoado pelos deuses, nos traz aos olhos a lama que sepultou 19 pessoas e destruiu um patrimônio que pertence à humanidade. O que seria dessa tragédia se não fossem aquelas imagens, que encheram de revolta os brasileiros contra a ganância de uma empresa mineradora? Não houve qualquer avanço na recuperação daquelas áreas, mas a imagem ficará para sempre nos nossos corações. Não é apenas a informação que nos interessa, mas a lembrança daquilo que nos foi tirado. Vimos a morte de um rio, vimos a lama sepultar uma das mais belas regiões do nosso país... Vimos a impunidade prevalecer no atendimento dos culpados.

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Imagem da primeira etapa das obras da hidrelétrica de Belo Monte, o sítio Belo Monte, onde hoje está o lago formado para a geração de energia

Gavião sobrevoa ilha desmatada na região da volta grande do Xingu; com a permanente cheia do rio após a consolidação da hidrelétrica de Belo Monte, as ilhas ficaram submersas e, para evitar a emissão de metano com o apodrecimento das árvores, todas as ilhas foram desmatadas

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Fogo em mata de uma das ilhas nas proximidades do canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte

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Novamente, vimos uma natureza assustada pela agressão humana, animais lutando pela vida contra uma onda devastadora, líquida e grossa... De novo! E o lucro novamente se mostra na destruição, contra os índios retirados de terras ancestrais para dar espaço a uma outra barragem: a de Belo Monte. Saberíamos ou nos importaríamos com os indígenas se apenas palavras chegassem aos nossos ouvidos? O que são essas imagens que nos incomodam, que nos mostram iguais, desesperados com a orfandade do Estado que devia protegê-los? Enxergamos o branco de seus olhos e não apenas ouvimos a palavra “horror”...

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Capivara no lixo do rio Pinheiros, São Paulo

Barco no estuário da Ilha do Cardoso, município de Cananeia, São Paulo

Rio São Francisco, município de Paratinga, Bahia

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Quem se lembraria de agricultores abandonados e perdidos pelas estradas se apenas se ouvissem sobre sua existência? Agora, as fotos mostram rostos, mostram sentimentos expressos nas faces... Distantes de nós? Talvez não. Não seria uma boa resistência a capivara que luta para sobreviver nas águas de um rio extremamente poluído na cidade de São Paulo? Não é um alento a indígena que se banha nas águas de uma usina ou a existência de pescadores que ainda tentam a sorte no Rio Xingu?

Lavadeira no rio São Francisco, quilombo Mangal e Barro Vermelho,

município de Sítio do Mato, Bahia

Plantação de banana orgânica, quilombo Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, município de Eldorado, São Paulo

Estiagem no rio São Francisco - captação de água com uso de bomba, quilombo Mangal e Barro Vermelho, município de Sítio do Mato, Bahia

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suLixo no rio Pinheiros, São Paulo

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Luis Gonzaga Gêge, do Movimento Moradia na Cidade, líder no combate pela moradia e justiça habitacional; coincidentemente, as bandeiras formam uma grande

letra V de VIDA, São Paulo

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Jovem durante Ato das Centrais Sindicais, Praça da República, São Paulo

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Morador de rua na Avenida Angélica, São Paulo

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Cada fotografia equivale a segundos cercados por histórias, por vidas. Sem as fotografias, esses momentos estariam fadados a serem cobertos pela fumaça da cumplicidade, pela omissão na defesa da vida.

Em pleno mundo consciente da importância daquilo que a natureza nos traz, a motosserra ainda é o instrumento que martela nossos ouvidos. Nunca se derrubou tanta árvore como agora... Nunca a natureza esteve tão ameaçada, nunca estivemos tão próximos do caos, nunca estivemos tão perto de perdermos aquilo que nos identifica como tripulantes de uma nave chamada Terra.

Existe muita poesia nas imagens, mesmo essas que nos machucam... As rimas combinam homem, consciência e luta. Nas páginas que se seguem, os fotógrafos nos mostram aquilo que seus olhos viram. E que nos dizem, entre lama, sofrimento e morte: “estamos lutando...”.Que não irão nos sobrepujar nunca. E que o homem, antes de tudo, é um bravo.

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Estudantes e PM em passeata em São Paulo

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