Atraves da Sala Escura - Espacos de Exib

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  • Atravs da Sala Escuraespaos de exibiocinematogrfica e VJing

  • Gabriel Menotti

    Atravs da Sala Escuraespaos de exibiocinematogrfica e VJing

  • Editora IntermeiosRua Lus Murat, 40 Vila Madalena

    CEP 05436-050 So Paulo SP BrasilFone: 2338-8851 www.intermeioscultural.com.br

    ATRAVS DA SALA ESCURA:

    ESPAOS DE EXIBIO CINEMATOGRFICA E V JING

    Gabriel Menotti Miglio Pinto Gonring

    1 edio: setembro de 2012

    Editorao eletrnica, produo, capa Intermeios Casa de Artes e Livros Imagem da capa Gabriel Menotti sobre fotos de Ignez Capovilla Coproduo Rossana Miglio Pinto Gonring Reviso Jos Irmo Gonring Foto do autor Hervan Rossi

    CONSELHO EDITORIAL

    Vincent M. Colapietro (Penn State University)Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)

    Lucrcia DAlessio Ferrara (PUCSP)Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)

    Amlio Pinheiro (PUCSP)Josette Monzani (UFSCar)

    Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)Ilana Wainer (USP)

    Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)Izabel Ramos de Abreu Kisil

    Jacqueline Ramos (UFS)Celso Cruz (UFS)

    Alessandra Paola Caramori (UFBA)Claudia Dornbusch (USP)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao CIP

    M534 Menotti, Gabriel Atravsdasalaescura:espaosdeexibiocinematogrficaeVJing./ Gabriel Menotti. So Paulo: Intermeios; Vitria, ES: Prefeitura Municipal de Vitria, 2012. 105 p. ; 14 x 21 cm. ISBN 978-85-64586-26-0 1.Cinema. 2. ProjeoCinematogrfica. 3.EspaoCinematogrfico. 4.CinemaDigital.5. ImagemDigital.6.VJing.7. IndstriaCinematogrfica.8. Espectador. 9. Histria do Cinema. I. Ttulo. II. Espaos de projeo cinematogrficaeVJing.III.Olugardofilme.IV.ArquiteturadaEspectao.IV. Intermeios Casa de Artes e Livros.

    CDU 791.4CDD 791.4

    Catalogao elaborada por Ruth Simo Paulino

    Essa obra licenciada em Creative Commons (CC BY-SA 3.0).creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/deed.pt_BR

  • Cinema quando a imagem se torna um problema arquitetnico.

    Robert Hadaway

  • We will always choose a large amount of halfass solutions over the one totalizing master plan. There are techno-cultural complexities beyond our human capacity to compute

    Rasmus Fleischer

  • Sumrio

    11 Apresentao

    13 Captulo 1. O Lugar do Filme

    27 Captulo 2. Arquitetura da Espectao29 O ''Primeiro Cinema''34 Nickelodeons: fixando um lugar e agregando pblico40 Movie Palaces: sofisticao do consumo e verticalizao da indstria45 Grandes transies: desvalorizao da experincia e valorizao do produto51 4:3 mono versus 19:6 surround: a experincia em favor do produto54 Blockbusters, multiplexes e o aftermarket

    63 Captulo 3. O Contrrio do Cinema64 Tecnologias e constrangimentos do espao 66 O cinema como possibilidade de dispositivo e arquitetura70 Chelsea Girls (Andy Warhol, 1966)75 Cosmococas: Programa in Progress (Hlio Oiticica e Neville D'Almeida, 1973)

  • 79 The Tulse Luper Suitcases (Peter Greenaway, 2003-)

    89 Captulo 4. Entre Circuitos de Baixa Impedncia

    97 Referncias

  • Apresentao

    Este livro surge do descontentamento com os rumos tomados pela discusso sobre cinema digital, particularmente obcecada com a natureza da imagem gerada por computador, sua resoluo visual e circulao no autorizada. Essas preocupaes que parecem decorrer de um entendimento superficial do que seria o progresso tecnolgico nos fazem perder de vista algumas das consequncias mais expressivas que as redes telemticas podem trazer ao meio cinematogrfico.

    para fazer justia a essas outras possibilidades de dispositivo e arquitetura que venho contornar a questo da imagem e me debruar sobre as conjunturas sociotcnicas das quais ela no pode ser isolada. A partir de um exame da construo histrica da sala de projeo, busquei investigar os lugares do filme e o modo como eles se relacionam com instalaes de arte e as recentes prticas de VJing.

    A anlise dessas estruturas aparentemente neutras trouxe tona a sua influncia no carter da experincia cinematogrfica, apontando para um circuito condicionado por mltiplas materialidades, onde os meios se encontram em contnuo desenvolvimento.

    Embora possa no estar explcito, esta investigao foi inspirada pelas atividades do Cine Falcatrua (2003-2008), e se deu em grande

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    parte por meio das mostras experimentais organizadas pelo grupo. O corpo do texto foi desenvolvido durante uma pesquisa de mestrado no programa de Comunicao e Semitica da PUC-SP, e no teria sido possvel sem a inspiradora orientao de Nelson Brissac Peixoto e os comentrios dos demais professores que contriburam na sua avaliao: Arlindo Machado, Giselle Beiguelman e Christine Mello.

    Para a presente publicao, tambm foram feitas algumas revises que atualizam o trabalho e o tornam mais acessvel. Nesse sentido, no posso deixar de mencionar os amigos que ajudaram a dar nova vida a esse material: Jos irmo, Rossana Miglio, Cecllia Salles, Rafael Henriques, Patrcia Bragatto, Ignez Capovilla, Tiago Gonalves, Rafael Trindade, Elosa Hiutwig, Isabela Bimbatto e Hervan Rossi.

    A todos, meu agradecimento.

  • Captulo 1:

    O lugar do filme

    1995, e estamos em um restaurante de hotel. As janelas esto abertas luz de uma tarde difusa. Ao redor, turistas se deliciam em silncio com croissants, quiches e outros petiscos folclricos. O marulhar da sua alimentao, filtrado por um poderoso microfone direcional, se transforma no rudo puramente imagtico que serve de fundo para a figura de Michel Piccoli.

    O ator est sentado mesa mais prxima. Sua fisionomia descontrada ocupa quase todo o quadro, mas no o domina. Em primeiro plano, de costas para ns, se insinua Jean-Luc Godard. Quem visse de longe, poderia tomar por um feliz reencontro entre o criador e a criatura que O Desprezo (Le Mpris, 1963) teria revelado ao mundo.

    Mas a imagem nos atinge enquadrada; o almoo no casual. Foi arranjado pelo cineasta, a propsito das comemoraes do centenrio do Cinema, presididas por Piccoli. A cmera apontada para o ator est gravando 2 x 50 Ans du Cinma Franais, documentrio para uma srie do British Film Institute.1

    1 A srie, chamada The Century of Cinema, compreende documentrios realizados por diretores clebres sobre o cinema de seus pases.

  • Piccoli parece ter atendido desarmado ao convite de Godard. Estrela decana dos estdios franceses, seu trabalho frente das solenidades menos diplomtico do que publicitrio. Tal como uma efgie numismtica, ele sequer representa um valor, somente o ilustra. Deveria estar esperando uma refeio repleta de causos e brindes. Nem imaginava que algum pudesse questionar as comemoraes. Que viesse perguntar, como ento perguntava o cineasta: por que agora?Mas se agora que se completam os 100 anos da exibio no Salon Indien, responde Piccoli, oferecendo as palmas com indisfarvel desconforto. A primeira exibio de cinema!

    A rplica do cineasta imediata e implacvel: Mas por que no a data de criao da cmera? Por que comemoramos a explorao comercial do cinema, e no a inveno de sua produo?.

    Antes que os questionamentos de Godard se aprofundem em tpicos especficos do cinema francs, vamos pausar o filme e ponderar em cima dessa questo, que interessa especialmente a este trabalho.

    Com efeito, diversos anos poderiam ter sido escolhidos para marcar o surgimento do cinema. Por que no 1659, quando Christiaan Huygens fez a primeira placa animada para projeo de lanterna mgica? Ou 1832, data da criao do fenaquistiscpio de Joseph Plateau, um dispositivo que reconstitua movimentos contnuos a partir de imagens discretas? Ou 1890, ano em que tienne-Jules Marey usou sua cmera cronofotogrfica para registrar uma cena animada em pelcula de celulide? O prprio quinetoscpio de Thomas Edison existe desde 1891, e comeou a ser usado em exibies pblicas um ano antes da projeo dos Lumire. A bem da verdade, os prprios Lumire j haviam apresentado seu cinematgrafo (ento tambm chamado de quinetoscpio) no comeo de 1895, na Socit dEncouragement pour lIndustrie Nationale, em Paris, quando algumas dezenas de convidados viram La sortie des Usines Lumire.

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  • Portanto, o que havia de indito na projeo de 28 de Dezembro 1895, realizada no Salon Indien du Grade Caf, quando Auguste Lumire (o pai) e o fotgrafo Clment-Maurice apresentaram dez filmes para trinta e dois curiosos (MANNONI, p. 447)? Qual a caracterstica especial que faz daquela ocasio o momento inaugural do cinema?

    Parece que o cinema, mais do que qualquer outra mdia, surgiu aos pedaos. Diversas tcnicas e materiais, criados de maneira independente, vieram se articulando atravs de sculos at que se solidificaram em um circuito mais ou menos coeso de produo e consumo. O elemento-chave dessa coeso est presente na exibio do Salon Indien: o germe do que, na falta de termo melhor, podemos chamar de moviegoing, o ir ao cinema.

    A exibio do Salon Indien foi a primeira pblica e pagante.2 Pblica em dois sentidos: em primeiro lugar, ao contrrio do que acontecia com o quinetoscpio de Edison, feito para ser utilizado por apenas um espectador de cada vez, a imagem do cinematgrafo era projetada, de modo que podia ser vista por vrias pessoas ao mesmo tempo. Alm disso, diferente da exibio de cabine na Socit dEncouragement, ela era aberta a qualquer um, contanto que a pessoa pagasse. Esse modelo permitiu estabelecer uma dinmica de consumo duradora no Salon Indien. Nos primeiros meses de 1896, o lugar nunca esteve vazio. Exibies aconteciam durante todo o dia, e foi o lucro decorrente delas que impulsionou a produo de novos filmes ento chamados vistas cinematogrficas (MANNONI, p. 449).

    No por acaso, a que termina A Grande Arte da Luz e da Sombra, a vasta historiografia do pr-cinema escrita pelo pesquisador Laurent

    2 H controvrsias. Laurent Mannoni aponta que uma sesso pblica pagante j teria sido realizada pelo bioscpio de Max Skladanowsky, em 1 de Novembro de 1895, em Berlin. Mas Skladanowsky, ao contrrio dos Lumire, no deu continuidade s suas projees. Ver MANNONI, p. 444.

    15Gabriel Menotti

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    Mannoni. O autor opta por abandonar seu objeto de estudo justamente quando ele parece ser capaz de funcionar sozinho: quando o modelo experimentado no Salon Indien ganha o mundo.

    A projeo de imagens, a reconstituio do movimento a partir de unidades discretas, sua inscrio em pelcula, e mesmo a explorao comercial dessa tecnologia: tudo isso surgiu antes do cinema. Mas o que viria a reunir todas essas tcnicas em um processo comum e, portanto, inaugurar o meio seria a criao de um modelo de consumo apropriado, capaz de dar vazo e impulsionar a produo cinematogrfica.

    Logo, por mais que isso incomode Godard, o cinema enquanto tal surge no com a criao do filme, mas com o seu consumo: a sua explorao comercial. em torno da exibio pblica pagante que o meio floresce, produtores se separam de exibidores, uma indstria se consolida, e autores se tornam livres para criar.

    Os locais de exibio sempre ocuparam uma posio central na instituio cinematogrfica. neles que o consumidor finalmente entra em contato com o filme, e os investimentos de produo podem se pagar. E no podemos esquecer que temos aqui um produto muito especfico, que demora anos para ser confeccionado e cujo valor comercial se esgota a cada dia aps o seu lanamento. Poucas mercadorias requerem tanto dispndio de capital por unidade produzida quanto um filme de longa metragem, e ele nem sequer vendido. Isso aumenta ainda mais a importncia dos seus locais de varejo e, por consequncia, a necessidade da indstria de controlar tais magazines.

    Ao mesmo tempo, as condies de exibio fundamentam a prpria recepo cinematogrfica. Isso significa que a experincia do espectador tradicional acaba sempre enquadrada em uma dinmica sociocognitiva determinada comercialmente (por menor o lucro visado). Logo, no de se espantar que o impacto provocado

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    pelas condies de exibio em todo o meio cinematogrfico seja significativo. A sala de projeo esse templo que sinnimo de cinema parece definir a produo e o formato do filme tanto quanto ou at mais do que a pelcula, seu suporte secular.

    Isso fica claro hoje em dia, conforme a pelcula vai se tornando obsoleta, e sobrevive principalmente por causa da intransigncia dos expedientes tradicionais de projeo. Tecnologias eletrnicas, historicamente ligadas ao vdeo, j so amplamente utilizadas na produo cinematogrfica. No existe nenhum filme comercial ou independente que no seja digitalizado em alguma etapa de sua realizao, nem que seja para o tratamento de imagens. Mesmo a captura de material bruto j pode ser feita por cmeras digitais de alta resoluo, como aconteceu no segundo episdio da nova srie Guerra nas Estrelas, Guerra dos Clones (George Lucas, 2002). A principal razo pela qual o resultado final continua sendo exportado para rolos de celulide que a sua dinmica de consumo calcada nas salas de projeo assim demanda.

    Estamos a um passo da metamorfose do cinema em um meio inteiramente digital. Tudo o que resta para completar esse processo a transio plena dos mecanismos de distribuio e exibio. Mas a indstria se ope, e escolheu justamente as salas de projeo como sua ltima trincheira. Ao contrrio do que costumava ser alardeado, os motivos para essa relutncia no so imediatamente estticos. J esto disponveis no mercado tecnologias de projeo digital capazes de construir imagens to definidas quanto um dispositivo 35mm. As razes de a indstria no adotar imediatamente essas tecnologias que dispensariam a copiagem dos filmes em pelcula, provocando ganhos de produtividade em todas as instncias da circulao do produto cinematogrfico parecem ser sobretudo operacionais.

    Desde 2002, produtores, distribuidores e exibidores esto oficialmente negociando quais seriam os padres de som e imagem

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    mais adequados ao cinema digital, capazes de trazer vantagens para todas as partes. Esse processo encabeado pelo Digital Cinema Initiative (DCI), um consrcio formado pelos sete maiores estdios de Hollywood. Por trs do DCI, est a resistncia da indstria em ceder terreno no campo sobre o qual se fundamenta toda a economia do cinema, e de onde essa economia pode ser controlada: suas dinmicas de consumo.

    O principal interesse dos agentes que dominam o mercado manter uma posio privilegiada. A digitalizao representa uma sria ameaa sua vantagem, uma vez que acarretaria o completo sucateamento do parque tecnolgico vigente, substituindo-o por uma estrutura mais aberta, dinmica e flexvel.3 Digitalizado, o filme uma quantidade de bytes, uma matriz de altssima qualidade, pronta para se desviar dos canais autorizados e escoar pelo mercado informal. Digitalizada, a sala de projeo pouco diferente de um home theater conectado Internet. Ela se torna to acessvel para o espectador quanto uma cmera de gravao MiniDV ou um software de edio de vdeo.

    Dentro desse quadro, o que parece preocupar a indstria, mais do que a proliferao descontrolada de cpias ilegais de filmes inditos, so os efeitos que a vulgarizao dos espaos de exibio poderia causar no moviegoing.

    Por muito tempo, o moviegoing foi a nica dinmica de consumo audiovisual legtima. Hoje, muito embora conviva com vrias outras filmes podem ser vistos em canais de TV, alugados em DVD, baixados da Internet , ele mantm a sua importncia. Mesmo com

    3 Esse pargrafo tambm poderia se referir indstria fonogrfica, que, assaltada pelas tecnologias digitais, se apega a um modelo ultrapassado de consumo, apropriando-se dessas tecnologias principalmente como forma de manuteno desse modelo um trabalho desempenhando tanto pelos mecanismos de gerenciamento digital de direitos (DRM) quanto pelas plataformas oficiais de distribuio on-line, como a iTunes Music Store.

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    a disseminao de modos de ver mais adequados s tecnologias digitais, a sala de projeo permanece preponderante no circuito cinematogrfico. Ela ainda o primeiro e principal ponto de vendas de filmes (DE LUCA, p. 95), de tal modo que o circuito continua se organizando ao seu redor. Apenas de uma outra maneira.

    Se antes a sala de projeo era o nico local onde a indstria obtinha retorno financeiro, hoje a venda de home vdeo e os licenciamentos de imagem representam aos produtores um lucro ligeiramente superior aos dividendos da bilheteria. Da mesma forma, os prprios exibidores j ganham mais vendendo concesses (pipoca, refrigerante e demais comestveis) do que ingressos. Com isso, mais do que nunca, a experincia cinematogrfica se faz refm de uma economia de resultados. A projeo do filme acaba se tornando uma espcie de espetculo de marketing para uma srie de mercados acessrios, e a sala de cinema passa a ser nada mais do que um pedestal publicitrio em torno do qual todas as outras mdias se posicionam, obedecendo ao esquema das janelas de exibio.4

    Ironicamente, dentro da presente estrutura, as potncias particulares de cada dinmica de consumo so anuladas. Uma obra precisa ser portvel o bastante para atravessar diversas mdias com o mnimo de adaptaes, sem perder o seu apelo comercial. Por isso, ela no pode se valer de caractersticas especficas de qualquer meio nem mesmo do suposto original, a sala de projeo. Logo, com a comodificao do moviegoing, restringem-se todas as formas de espectao cinematogrfica, inclusive ele mesmo. O controle das salas de projeo possibilita indstria determinar econmica e esteticamente a recepo do filme e, em ltima instncia, aspectos relativos sua produo e linguagem.

    4 Processos de autorizaes cronolgicas, gradativas, para a veiculao de filmes em diversos veculos. Ver DE LUCA, p. 197.

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    Se a digitalizao assusta, porque permite diluir esse controle, e flexibilizar as dinmicas de consumo a tal ponto que seria impossvel utiliz-las como cancela para a produo. Cada filme poderia buscar as formas de exibio que fossem mais adequadas sua proposta especfica, e nem por isso deixar de ser cinema. Mesmo dentro da indstria, timidamente, isso j est acontecendo. Tanto de maneira mais branda (como em Road to Guantanamo, de Michael Winterbottom, primeiro filme lanado simultaneamente em salas de projeo, televiso e Internet) quanto em propostas mais radicais (como a srie The Tulse Luper Suitcases, que foi desenvolvida por Peter Greenaway, de maneira articulada e complementar, em diversas mdias).

    Por essas razes, mais do que nunca, se faz necessrio pensar o consumo do filme e em especial suas prticas de exibio, que a pesquisadora Ina Rae Hark define como todas as prticas que se renem em determinado momento e lugar para permitir aos espectadores assistirem a um filme (HARK, p. 1). Esse livro busca se inserir nesse campo de pesquisa, investigando a mais antiga dessas prticas: a projeo cinematogrfica. Ele toma a sala de cinema como modelo exemplar de uma dinmica espacial de consumo e busca presumir os efeitos que essa configurao arquitetnica pode causar no filme.

    A exibio nunca foi um tpico especialmente favorecido pelos estudos cinematogrficos. Como aponta Robert Allen, a histria do cinema foi escrita como se os filmes no tivessem audincia, ou fossem vistos por todo mundo da mesma forma (ALLEN, p. 300). A principal razo que Dudley Andrew coloca para tanto que o sistema de Hollywood nos absorveu completamente (ANDREW, p. 164). Em outras palavras, estamos to imersos no moviegoing que fica difcil question-lo.

    Para contornar esse problema, podemos adotar a perspectiva do futuro historiador da cultura visual defendida pelo terico Lev Manovich. Tendo em vista a maneira como as tecnologias digitais

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    reorganizam o cinema, procurarei confrontar a sala de projeo com outras dinmicas de consumo audiovisual, de modo a evidenciar as suas particularidades. Especificamente, adotarei como parmetro de comparao uma prtica de exibio de imagens em movimento que parece especialmente desenvolvida: o VJing.

    VJing se refere projeo de vdeo gerado, editado ou composto ao vivo. As imagens saem diretamente das ilhas de edio para os teles. Eventualmente, o sistema pode ser alimentado com informaes ou imagens do prprio espao de exibio, condensando toda a cadeia de produo e consumo audiovisual em um nico evento. Historicamente ligado aos light shows e color music, o VJing se popularizou como um acompanhamento para apresentaes musicais em boates. Foi nesses lugares que a prtica se estabeleceu em um circuito, hoje praticamente autnomo.

    Projees de VJing podem acontecer na prpria pista de dana de clubs e raves, utilizando a msica ambiente como base para composies visuais dinmicas. Segundo o VJ Alexis, um provvel pioneiro do ofcio no Brasil, como se fosse o oposto do cinema mudo: Ns [VJs] produzimos as imagens em cima da msica.5 Dessa forma, enquanto a sala de cinema opera como uma arquitetura dedicada a capturar a ateno do espectador e direcion-la ao filme, os lugares em que o VJing se insere promovem a disperso cognitiva: entre vrios estmulos sensoriais, a projeo de imagens s mais um. Negociando com essas condies, o VJing costuma estabelecer dinmicas de consumo singulares.

    Parto do pressuposto que o lugar do VJing est para a sala de projeo assim como a imagem digital est para o filme. Logo, trata-se do ponto de partida ideal para comear a pensar dinmicas de consumo apropriadas para um cinema que se torna cada vez mais computadorizado,

    5 Entrevista revista Simples, edio de Maio/2003.

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    principalmente porque o trabalho dos VJs est fundamentado em diversas possibilidades tecnolgicas das quais a indstria cinematogrfica tradicional parece querer se afastar: sistemas de projeo digital, redes on-line para troca de arquivos, sampling e remixing.

    Como j deve ter ficado claro, no est entre meus objetivos suprir a lacuna existente na bibliografia brasileira sobre tcnicas de exibio. Tal empreitada demandaria uma anlise histrica mais profunda e rigorosa, levando em conta as condies socioeconmicas especficas do pas, acompanhada por uma extensa pesquisa de campo. Meu interesse com esse trabalho articular dois campos aparentemente dspares, de forma que um possa servir para o exame crtico do outro. Parece-me que uma cincia do VJing no pode prescindir do estudo de tcnicas tradicionais de exibio cinematogrfica, na mesma medida em que, ao cinema, quanto mais digitalizado, no dado ignorar as possibilidades de inveno resgatadas pelos VJs.

    Nesse sentido, so inmeros os relatos que falam da autonomia da projeo nos primrdios do cinema. O fato de os filmes serem vendidos pelos produtores, ao invs de simplesmente alugados ou licenciados, demonstra como o foco da indstria no incio do sculo passado era bem diferente do de hoje em dia. O moviegoing se configurava mais como um ir ao cinema do que um ir ver um filme. Mesmo porque o filme se realizava na hora, como pura experincia cinematogrfica. O dono de um estabelecimento tinha completo controle editorial sobre o que exibir. O operador de projeo podia usar recursos de iluminao e regular a velocidade do mecanismo para dar ou corrigir o sentido das imagens. A msica, executada em sincronia com o filme, no pertencia obra em si, mas sim era aplicada sobre a sua fruio. Dessa maneira, por mais que um filme se repetisse, ele nunca seria exibido da mesma forma.

    Em 1963, Stan Brakhage ainda falava na projeo como performance isto , prtica criadora (BRAKHAGE, p. 350). Mas

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    a marcha da indstria solapou essa capacidade, ao instituir uma dinmica comodificada de consumo, conforme padronizaes tcnicas e semiticas se tornavam cada vez mais necessrias para garantir a penetrao de diferentes obras em diferentes espaos de exibio6 (e, hoje em dia, sua circulao por um amplo espectro miditico).7

    Nesse processo, o filme passou a ser eixo nervoso e piv econmico da indstria cinematogrfica. Os tableaux vivants e os travelogues8 perderam lugar para o blockbuster milionrio. Concomitantemente, a exibio se tornou um procedimento cada vez mais neutro, de forma que o mnimo de interferncia viesse a atuar sobre a fruio do filme tal como ela havia sido originalmente planejada. Por isso, tanto o ruidoso nickelodeon quanto o opulento movie palace acabaram substitudos pelo multiplex de shopping, que local de consumo por excelncia, cuja arquitetura espartana no possui qualquer marco espacial, e favorece um fluxo ininterrupto de pblico e de obras. difcil separar causas de consequncias nessa complicada evoluo. Tudo o que nos resta evidenciar seu resultado: que a dinmica de consumo original do cinema a articulao entre salas de projeo e o moviegoing seja hoje uma prtica hiperdeterminada e determinante.

    6 As padronizaes do sistema de som so um bom exemplo disso. Gregory Waller diz que a chegada do som ajudou a regular e provavelmente estandardizar a exibio de filmes nos EUA (WALLER, p. 175). A converso para som digital representou um novo problema: para muitas das salas de projeo, adotar um sistema tornava economicamente invivel adotar o outro. Dessa forma, a padronizao das tecnologias criativas se fez necessria para o funcionamento do cinema (AUMONT, p. 45).

    7 Isso pode ser notado na dinmica narrativa de certos blockbusters, que se apiam em ganchos tipicamente televisivos, lanados ao espectador o quanto mais cedo melhor. Esses filmes j esto preparados para a TV: pretendem prender a ateno da audincia em seus primeiros minutos, evitando que o suposto telespectador se disperse (como lhe prprio). como se, mesmo na sala de projeo, eles estivessem ameaados por um controle remoto invisvel. No fim das contas, o equilbrio dramtico de tais obras no favorvel dinmica de fruio do auditrio, nem da sala de estar. A tentativa de preparar um mesmo produto para vrias situaes de consumo acaba esgotando o potencial significativo que cada uma dessas situaes pode ter.

    8 Filmes de viagem, pequenos documentrios sobre culturas e pases exticos, que eram um gnero comum no princpio do cinema.

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    Mas tambm possvel ressaltar que nem sempre foi assim. Que o cinema j foi marcado por rotinas sociotcnicas extremamente dinmicas, que a indstria acabou por suprimir. Que essas rotinas esto adormecidas em redes de troca de arquivo e projetores de baixa luminncia espalhados por boates. Que, quanto mais o cinema se digitaliza, mais os estdios de Hollywood se veem ameaados por elas.

    Comearei tentando distinguir a dinmica de consumo particular do moviegoing, referente sala de projeo cinematogrfica, dentro da atual configurao de mdias. Na clssica definio de Christian Metz, a situao cinematogrfica marcada pela submotricidade e pela superpercepo socialmente impostas (METZ, 1983, p. 425). Nos dias de hoje, quando um filme pode ser visto nas mais variadas condies, somos forados a admitir que esses aspectos no esto diretamente relacionados fruio da obra de cinema como um todo, mas ao caso especfico da sala de projeo. Nesse sentido, podemos identificar a sala de cinema como uma interface sociotcnica que impe sua lgica no apenas ao consumo do filme, mas s diferentes mdias com as quais se relaciona, e justamente por isso seria to resistente a mudanas.

    Este trabalho realiza uma rpida historiografia dessa interface, tomando como pontos-chave os modelos de exibio cristalizados em diferentes pocas: as projees em feiras e vaudevilles, os nickelodeons, os movie palaces e os atuais multiplexes. Essa anlise est focada em procedimentos universais da instituio cinematogrfica, depreendidos a partir de um cruzamento bibliogrfico baseado principalmente nos estudos sobre o cinema dos Estados Unidos. No me parece inadequado universalizar os pressupostos retirados de tais estudos, uma vez que os padres da indstria cinematogrfica tambm se universalizam a partir do modelo norte-americano.

    Meu objetivo fazer um desenho, ainda que reticente, de como o moviegoing se transformou de um ir ao cinema em um ir ver um filme, na mesma medida em que a sala de projeo assumiu sua

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    presente anatomia, caracterizada pela sobredemarcao do contedo, a nulificao do espao fsico e o amortecimento da presena humana.

    Esse estudo complementado pelo exame de certas obras que, ao longo do sculo XX, utilizaram a exibio cinematogrfica como procedimento criativo. Nesse universo, destacam-se principalmente experincias advindas do campo das artes plsticas, como o filme Chelsea Girls (1966), de Andy Warhol, que utiliza duas projees 16 mm simultneas, e as Cosmococas (1973), srie de instalaes de Hlio Oiticica e Neville DAlmeida conhecidas pela alcunha de quase-cinemas. Tambm analisarei mais atentamente o j citado The Tulse Luper Suitcases, um projeto que se desdobrou em filmes, vdeos, uma srie para TV, websites, CD-ROM e livros e at mesmo em uma apresentao de VJing do prprio Peter Greenaway.

    Nesse percurso, buscarei elucidar de que maneira a sala de projeo promove um dinmica de consumo adequada somente a um tipo de cinema de tal modo que, por mais que a produo cinematogrfica se desenvolva, ela permanea sempre tolhida pelos espaos de exibio.

  • Captulo 2:

    Arquitetura da espectao

    Os estudos cinematogrficos tradicionais costumam conjugar o filme a uma forma ideal de consumo, determinada pelo direcionamento da ateno do espectador e pela restrio do seu comportamento. Essa dinmica, batizada por Hugo Mauerhofer de situao cinema, implica um regime particular de conscincia definido pelo isolamento mais completo possvel do mundo exterior e de suas fontes de perturbao visual e auditiva (MAUERHOFER, p. 375).

    Esse conceito ressoa nas formulaes de Christian Metz, que prope a submotricidade e a superpercepo do pblico como condies indispensveis da experincia cinematogrfica e at mesmo da existncia do filme enquanto tal. Para Metz, o filme somente pelo olhar, dependendo tanto da assistncia do espectador quanto de uma negao do sujeito: todas as suas energias so drenadas para o ver-olhar-ouvir (METZ, 1983, p. 425).

    Essa disposio psicofsica teria relao direta com a arquitetura da sala de projeo, onde o filme se apresenta como nico estmulo possvel aos corpos amortecidos. Evocando um cinema ideal, o prprio Mauerhofer diz que

    a eliminao radical de todo e qualquer distrbio visual e auditivo no relacionado com o filme justifica-se pelo fato de que apenas na completa

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    escurido podem-se obter os melhores resultados na exibio do filme (MAUERHOFER, p. 376).

    Dessa forma, Mauerhofer define a experincia cinematogrfica como algo passvel de ser mesurado com base na eficcia da sala de projeo em filtrar rudos. Logo, a sala de projeo ocuparia a funo de canal de transmisso em certas teorias datadas, segundo as quais o filme seria uma mensagem a ser transmitida com o mximo de fidelidade entre dois polos comunicantes.

    Estudos mais recentes deixam de lado esse vis hipodrmico, mas insistem na correspondncia entre o filme, o regime de conscincia do espectador e o lugar de consumo. Lev Manovich, por exemplo, caracteriza a situao cinema como a culminncia do regime de espectao (viewing regime) tpico das telas dinmicas, baseado na identificao do espectador com a imagem (MANOVICH, p. 97).

    Entretanto, como ressalta Anne Friedberg, tais teorias generalizam a noo de consumo cinematogrfico a partir dos preceitos de espectao do filme hollywoodiano clssico, descartando estratgias opostas ou alternativas de exibio (FRIEDBERG, p. 130). Nesse sentido, para que se possa avaliar criticamente a arquitetura da sala de projeo, preciso admitir a sua construo histrica. S assim seria possvel distinguir a real importncia de seus efeitos no processo de fruio do filme seja para assumi-los ou rejeit-los.

    A situao cinema no a nica dinmica de consumo cinematogrfico possvel, como tambm no inerente sala de projeo. Muito pelo contrrio, foi engendrada ao longo de anos, conforme a indstria se adequava a uma srie de percalos e buscava os arranjos mais lucrativos. Neste captulo, buscarei delinear essa evoluo por meio da anlise de diversos espaos de exibio cinematogrfica que se tornaram padro em determinados perodos histricos.

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    O que guiar esse percurso ser uma certeza tomada de emprstimo de Douglas Gomery: a de que a exibio de filmes sempre foi um negcio (GOMERY, 1992, p. 3). Portanto haveria, na base de sua histria, uma histria econmica uma histria na qual os padres de consumo mudam de acordo com as mais novas tcnicas do varejo.

    O Primeiro Cinema

    As primeiras exibies cinematogrficas, ocorridas entre 1895 e 1907, so chamadas por Tom Gunning de cinema de atraes, uma vez que compreendiam uma variedade de gneros e espetculos descontnuos (CHARNEY & SCHWARTZ, p. 14). Na poca, o cinema ainda no havia se fixado em lugar nenhum. Podemos at dizer que no havia lugar apropriado para ele, tanto que boa parte das exibies era itinerante. O seu lugar foi sendo criado aos poucos, pela prpria instituio cinematogrfica, na medida em que consolidava uma prtica economicamente estvel.9

    As projees de filme eram montadas em espaos tradicionalmente voltados para o entretenimento popular, que possibilitassem de alguma forma a sua explorao comercial. Eram espaos como feiras, parques de diverso, quermesses, vaudevilles e cafs. Ento, o filme era apresentado como melhor conviesse ao ambiente: como espetculo ou curiosidade cientfica, ora em companhia de uma apresentao de canc, ora no lugar do homem-elefante.

    A experincia cinematogrfica no era simplesmente contaminada, mas em grande parte definida pela organizao do lugar em que a projeo se instalava, bem como pelo comportamento habitual de seus frequentadores. A dinmica de consumo do filme estava especialmente vulnervel s mais diversas influncias:

    9 Estabilidade que s a projeo tornou possvel. Ver GOMERY: 7.

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    Os filmes eram vistos diferentemente, e tinham uma ampla gama de significados, que dependia do bairro e do status do teatro, da bagagem tnica e racial da audincia habitual, da mistura de sexos e idades, da ambio e das habilidades do exibidor e da equipe de atuantes (John Fell, in COSTA, p. 64).

    interessante notar que, entre esses vrios aspectos, aqueles relativos produo do filme parecem ficar de fora. Isso porque, como nunca depois, o filme era indissocivel de sua projeo ou, como coloca Flvia Cesarino Costa, s aparecia na sua apresentao-performance (COSTA, p. 60).

    No por acaso, os fabricantes de dispositivos cinematogrficos eram os mesmos que realizavam os filmes, e inicialmente tambm acumulavam a funo de exibidores. Por algum tempo, os Lumire tentaram manter o monoplio sobre a projeo, alugando seu cinematgrafo (acompanhado por um tcnico da companhia) aos estabelecimentos que quisessem utiliz-lo. Essa ttica se provou economicamente intil, conforme aparelhos equivalentes como o vitascpio ganharam o mercado. Em 1897, os irmos franceses j haviam desistido da ideia, e estavam vendendo unidades da sua inveno para quem estivesse interessado.

    Como isso demonstra, no incio do cinema, o que havia de particular ao moviegoing era determinado pelo dispositivo. Tanto que as pessoas no iam ao cinema (lugar que ainda no existia), tampouco ver um filme (produto que no possua qualquer autonomia), mas maravilhar-se com o cinematgrafo dos Lumire ou com o vitascpio de Edison.10 Logo, na experincia cinematogrfica original, os efeitos do dispositivo o movimento e a verossimilhana se sobrepunham em muito ao arranjo narrativo. Como o nome indica, o cinema era originalmente uma arte do

    10 As primeiras exibies de cinema nos EUA foram, na verdade, exibies do vitascpio de Edison, que aconteceram no Koster & Bials Music Hall, em Nova York, em 1886 (MUSSER, p. 13).

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    movimento. Era, tambm, uma arte exibicionista: sua essncia se realizava pelo mostrar.

    Essa natureza encontra correspondncia na economia cinematogrfica da poca. Os filmes, isolada e individualmente, no valiam grande coisa. Ao contrrio de outros brinquedos ticos populares no final do sculo XIX, que mesmo desligados possuam certo apelo escultural, os filmes em estado de latncia no passavam de rolos de pelcula. Separados do dispositivo de projeo, eles eram reduzidos mais banal materialidade.

    Tambm durante a sua exibio, um filme sozinho no era suficiente. Por razes tcnicas, as obras no duravam o tempo bastante para preencher uma sesso de cinema, obrigando os exibidores a juntar vrias num mesmo programa. As exibies reuniam filmes diversos, eventualmente intercalados com outros tipos de espetculo, num claro exemplo do que podemos denominar coleo: um mundo imagtico mais livre e desconcertante, mais surpreendente, apoiado na fora de ocorrncias imagticas descontnuas (CHARNEY & SCHWARTZ, p. 14). Mas isso no era visto como um empecilho, e sim como uma vantagem, pois contribua para o modelo de negcios ento adotado pela indstria cinematogrfica, que dependia do retorno constante do pblico. Em 1925, ao falar do Capitol Theater de Chicago, John Eberson j dizia que variedade a primeira demanda de um pblico que quer se divertir (EBERSON, p. 106).

    O descaso com a singularidade dos filmes se refletia no tratamento que lhes era dispensado enquanto produtos. Quem est acostumado com o rgido controle sobre direitos de exibio vigente nos dias de hoje pode se espantar com o fato de que os rolos com imagens eram originalmente cedidos ao exibidor. Como os filmes eram relativamente curtos e baratos de se produzir, a forma mais eficiente de lucrar com sua realizao era vendendo-os para os cinemas. O valor era determinado da forma mais material possvel: pela sua extenso em metros. Esse

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    modelo vigorou at meados de 1910, quando as cpias dos filmes passaram a ser alugadas. At ento, o controle dos exibidores sobre a programao era quase pleno. Diz Suzanne Schiller que quando a cpia era vendida diretamente para o exibidor, ela podia ser mostrada e usada sem restries (SCHILLER, p. 107).

    Esse controle tinha influncias profundas no apenas sobre a recepo, mas tambm sobre a prpria forma do filme. Atravs da dcada de 1890, conta Charles Musser, o exibidor tinha controle criativo sobre uma srie de elementos que hoje chamamos de ps-produo:

    Ao organizar e apresentar sequncias de filmes curtos, eles no apenas moldavam seu sentido, como o criavam. [] Nesse respeito, programar e editar ainda no eram fenmenos distintos (MUSSER, p. 17).

    Nesse sentido, a narrativa no teria sido estranha ao cinema de atraes. A primeira exibio do vitascpio, por exemplo, teria criado uma narrativa altamente estruturada, apesar de oblqua (ibid.). Mas intil procurar essa textura em qualquer uma das seis obras apresentadas naquela noite de 23 de Abril de 1896, uma vez que ela teria existido exclusivamente durante a sua apresentao conjunta.

    Dadas as condies extremamente desreguladas de consumo do filme, o sentido criado na exibio, embora efmero, invariavelmente sobrepujava qualquer arranjo discursivo presente nas obras. Um exemplo significativo dessa influncia relatado numa crtica ironicamente intitulada The Murder of Othello, escrita em 1911 por H. F. Hoffman, que descreve uma exibio particularmente catastrfica de uma adaptao cinematogrfica da pea de Shakespeare. Ele foi assassinado por um operador ontem noite (HOFFMAN, p. 73).

    Entre os vrios erros cometidos pelo tal operador, o mais grave foi ter colocado o filme ao contrrio, de tal forma que o ttulo e as

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    legendas apareciam invertidos. Ao invs de interromper a exibio, o projecionista tentou disfarar o defeito, acelerando o filme cada vez que um texto aparecia. Com isso, s conseguiu transformar o drama em comdia, e chamar mais ateno para si do que para o que estava na tela. Por meio do erro, o mecanismo se desvelara.

    Nas crticas de Hoffman, j podemos notar certa preocupao com aquilo que traz as pessoas ao lugar: o filme.11 Tambm fica patente o quanto era difcil manter a coerncia desse elemento. As tcnicas de exibio no eram nada transparentes, e a perfeita reproduo de uma obra dependia da afinao de uma srie de fatores sobre os quais havia padronizao meramente funcional. Some-se a isso uma audincia um tanto quanto dispersa, e somos forados a admitir que a comunicao fidedigna de uma mensagem um pouco mais complexa seria um esforo praticamente incuo ou um engano.

    A primeira fileira est sempre cheia de crianas batendo os calcanhares, rindo e conversando com o filme. A todo o momento, a plateia explode em aplausos fervorosos. Os meninos adoram assoviar acompanhamentos para a msica, indiferentes ao tom e ao ritmo (BOBLITZ, p. 138).

    Embora se refira especificamente s agruras vividas pelos pianistas nos nickelodeons, o pargrafo acima poderia muito bem descrever o comportamento da plateia nas primeiras exibies cinematogrficas. No h aqui qualquer superpercepo, e muito menos submotricidade mas quem h de negar que estamos diante de uma certa situao cinematogrfica?

    Originalmente, o cinema no possua um pblico especfico; ele tomou audincia emprestada dos vrios espaos em que se inseriu.

    11 Ainda assim, uma espcie de crtica cinematogrfica que no faz qualquer juzo de valor sobre o filme em questo (nem sequer cita seu diretor ou empresa produtora). Tudo o que se avalia a sua reproduo momentnea. Isso demonstra como o cinema ainda estava focado na mera projeo, uma vez que o filme no existia para alm dela.

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    Essa gente veio trazendo uma srie de expectativas cognitivas que a projeo nunca foi obrigada a cumprir, mas os produtores no viam como no faz-lo, de forma a manter o seu ofcio comercialmente sustentvel. No havia como controlar a plateia; era ela que controlava as exibies. Assim, quando os primeiros estabelecimentos para a exibio de filmes surgiram, a postura leviana do pblico dos vaudevilles e das quermesses foi importada para dentro deles.12 Eram ambientes bem diferentes do que Mauerhofer poderia classificar como ideais. No obstante, tratava-se do cinema ele mesmo, heterogneo como talvez nunca mais tenha sido.

    Nickelodeons:fixando um lugar e agregando pblico

    Espaos destinados exclusivamente para a exibio cinematogrfica comearam a se popularizar por volta de 1905. Eram chamados nickelodeons, um termo que combina a palavra grega para teatro, odeon, moeda cujo valor correspondia ao ingresso (o nquel cinco centavos de dlar).

    Essa denominao revela o quanto o apelo desses ambientes (e de sua dinmica de exibio particular) estava relacionado no apenas a uma forma anterior de entretenimento, como tambm economia e ao comrcio. Mais especificamente, ao comrcio popular: o cinema era um teatro de cinco centavos um teatro barato, um teatro para as massas.13

    12 A criao de estabelecimentos exclusivos para o cinema no acabaria com a exibio de filmes nos vaudevilles, que so apontados por Charlotte Herzog como o mais importante outlet cinematogrfico at 1915 (HERZOG, p. 53). Como veremos a seguir, o movie palace dar continuidade a muitas de suas caractersticas, inclusive programao hbrida e arquitetura pronunciada.

    13 Um teatro no seria caracterizado pelo seu preo, a menos que esse fosse muito alto ou baixo. A ironia com que a lngua helnica usada deixa claro que temos aqui um exemplo do segundo caso.

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    O que tornava o secular divertimento burgus acessvel a qualquer um era justamente a substituio da pea ao vivo pela projeo de filmes. A automatizao da cena era uma maneira de diminuir os custos de produo e reduzir o valor de entrada. O cinema, que antes era vendido como curiosidade ou maravilha da cincia, passou a ser explorado como uma forma de encenao barata. As dependncias fsicas dos nickelodeons condiziam com essa pretenso. Ao buscar espao nos distritos comerciais, a exibio cinematogrfica acabou por se instalar em armazns e armarinhos adaptados.14 Russel Merritt diz que o tpico nickelodeon era um teatro pequeno e desconfortvel; normalmente um salo de baile, restaurante, loja de penhores ou tabacaria, modificado para parecer com um emprio de vaudeville (MERRIT, p. 22).

    No por acaso, a audincia comumente associada aos nickelodeons so as vastas camadas proletrias dos cintures industriais. Na poca, a explorao comercial de formas de entretenimento havia sido especialmente favorecida pela reduo das horas de trabalho e pelo aumento da renda familiar da classe mdia. Estabelecimentos de todo o gnero pipocaram pelas cidades. Entre eles, os nicos que se adequavam ao ritmo de vida dos operrios eram os nickelodeons. Nos Estados Unidos, o cinema passou a disputar com o bar e com a igreja o tempo de lazer da classe trabalhadora, especialmente dos imigrantes. O preo era baixo, e os horrios, frouxos o bastante para se adequarem perfeitamente ao salrio e ao tempo livre dos operrios fabris.

    Alm disso, para um estrangeiro recm-chegado Amrica, o cinema no era apenas um espetculo barato, como tambm o nico compreensvel. Como os filmes eram mudos, seu entendimento dependia muito pouco do pleno domnio do ingls.

    14 Desse reaproveitamento de espaos surge um outro nome para o cinema da poca, store shows que, numa traduo grosseira, podemos chamar de espetculos de loja.

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    Dessa forma, os nickelodeons logo foram convertidos numa espcie de refgio para a populao dos guetos. O que estava na tela pouco importava: o negcio era estar ali. O cinema era uma forma de escapar dos sobrados precrios e da insalubridade das fbricas. E era tambm uma maneira de conviver com o outro: a sala de projeo, espao nico dos nickelodeons, logo se tornou um espao de socializao. Uma reportagem de 1909 relata que, em Chicago, o cinema [estava] rapidamente se tornando um centro social e um clube em muitas vizinhanas superpopulosas. [...] A sala que abriga [...] o palco pequena e aconchegante, e menos formal do que um teatro regular, e h tanta conversa e interao que parece que o foyer e o fosso se fundiram (ROSENZWEIG, p. 34, grifos meus).

    Segundo Roy Rosenzweig, o pblico assumia um comportamento interativo, vivaz e frequentemente desordeiro (ibid., p. 32) que no parece muito diferente dos hbitos dos frequentadores das quermesses e dos cafs. O caso que, embora esse comportamento estivesse apropriado exibio cinematogrfica nesses outros lugares, no parecia condizer com a atmosfera de um teatro parmetro segundo o qual o nickelodeon pretendia classificar a exibio cinematogrfica. Em um texto do final da dcada de 1890, o crtico John Corbin corrobora essa opinio, assim descrevendo a plateia do Teatro Italiano de Nova York:

    Eles conversam contigo ao menor pretexto, sem nenhuma razo, e se identificam com tudo que acontece no palco... Nos clmaxes trgicos, eles berram deliciados, e, ao fim de cada ato, gritam em plenos pulmes (ibid, p. 32).

    O preo baixo estimulava essa atmosfera de independncia na plateia, caracterizada pela informalidade e relaxamento das normas sociais de comportamento. A falta de uma estrutura rgida de horrios reforava essa atitude: como nenhuma obra apresentada dentro dos programas era muito longa, no havia imperativo de chegar em

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    determinada hora. Para um trabalhador acostumado a bater ponto todo dia, era o paraso.

    Logo, o moviegoing obedecia s dinmicas de outras recreaes da classe trabalhadora. Muito embora as classes dominantes tivessem total controle sobre o contedo dos filmes, a forma de interao com as obras e o uso do espao de exibio eram em grande parte determinados pelo proletariado. Para alguns estudiosos, isso empresta aos nickelodeons e ao incio do cinema uma aura romntica. Mas a realidade no bem assim, mesmo porque em momento algum os exibidores se propuseram a oferecer um entretenimento democrtico eles estavam atrs de um negcio lucrativo. Foi por necessidade, e no por escolha, que acolheram imigrantes, operrios e desempregados. To logo se mostrou possvel, buscaram controlar o comportamento da audincia e elevar o nvel dos espectadores.

    De qualquer forma, foram os nickelodeons que estabeleceram um padro para a distribuio nacional de filmes e construram as bases de um pblico multiclasses, sem o qual a exibio cinematogrfica nunca teria alcanado seu pleno potencial. Embora Arlindo Machado diga que os teatros de cinco centavos tenham tido um papel econmico irrisrio (MACHADO, 2002, p. 79), seu sucesso comercial foi inegvel, tendo impulsionado a expanso da indstria cinematogrfica que viria depois. Rosenzweig d como exemplo a cidade de Worcester (em Massachussets), que, na primeira dcada do sculo XX, viu o nmero de assentos nas casas de entretenimento locais triplicar de 3.438 para 9.338 graas abertura de cinemas baratos e ao crescimento da audincia oriunda da classe operria (ROZENWEIG, p. 29).

    Em 1910, j havia cerca de 10.000 salas de exibio espalhadas por todos os EUA. Essas salas criavam uma demanda para cerca de 150 novos rolos de filme toda a semana (MERRITT, p. 22). A importncia econmica do cinema aumentava cada vez mais. Com isso, no

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    demorou muito at a classe mdia cruzar os estranhos umbrais dos nickelodeons.

    A bem da verdade, o pblico burgus sempre esteve l, sobretudo mulheres e crianas. Como no possuam muitos lugares onde se divertir, as primeiras iam ao cinema durante pausas na jornada de compras; as outras, aps as aulas. Embora ambos os grupos representassem menos de 30% da frequncia total dos nickelodeons, eles eram especialmente queridos pelos donos desses estabelecimentos, pois representavam uma audincia mais qualificada.

    Acontece que o prprio ambiente dos nickelodeons espantava a burguesia. Acima de tudo, por conta de sua insalubridade: como a maior parte eram lojas adaptadas, no se tratava do local mais propcio para duzentas pessoas passarem horas trancadas no escuro. Essa averso ao espao era somada (ou mesmo superada) pela averso s outras pessoas. Diz Rosenzweig que

    parte do choque do pblico de classe mdia no era causada pelas condies fsicas dos estabelecimentos, mas pela simples aglomerao de um grande nmero de trabalhadores, que se comportavam, se vestiam, e at mesmo exalavam um odor diferente do deles (ROSENZWEIG, p. 35).

    Logo, se a indstria cinematogrfica precisava se expandir, e a forma de faz-lo era absorvendo o pblico burgus, alguma coisa precisava ser mudada nos espaos de exibio. Essa mudana comeou efetivamente com a higienizao do produto cinematogrfico. Da mesma forma que tentava inibir o consumo de lcool, a polcia passou a cortar cenas imorais de determinados filmes.15 Buscando reverter a coao a seu favor, tanto produtores quanto exibidores comearam a adotar prticas de autocensura.

    15 Alguns exemplos dessa imoralidade so as vises do Inferno, no Fausto de Goethe, e o assassinato de Jlio Csar, no drama shakespeariano (ROSENZWEIG, p. 37).

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    Nesse sentido, no bastava tornar o filme um elemento inofensivo. Era necessrio sofistic-lo. O apelo de novidade do cinema j no era suficiente para atrair o tal pblico qualificado, que tambm no estava interessado na socializao marginal que o espao do nickelodeon proporcionava.

    Como j vimos, o cinema passou a ser comercializado como uma encenao barata. Portanto, uma das formas de valorizar o produto era melhorar a encenao. Perseguindo os parmetros da pea de teatro, o drama se complica, e os filmes se tornam mais longos. No toa que o cinema narrativo clssico, e a prpria situao cinema, vo ser inaugurados dentro dos nickelodeons (MACHADO, 2002, p. 79), uma vez que ambos foram apropriados do teatro forma de espetculo com a qual o nickelodeon havia emparelhado a projeo.

    A sofisticao do filme vai aumentar sua importncia comercial, causando uma primeira reorganizao da indstria cinematogrfica. Alm disso, com a complexificao do drama, uma nova disposio cognitiva criada na sala de projeo. Se antes o pblico dividia as atenes entre a tela e seu vizinho de cadeira, agora precisava focar-se no filme, para compreender o que se passava. Essa dinmica colaborava com as outras estratgias de limpeza do espao de exibio, que buscavam torn-lo um lugar familiar. Tais estratgias envolvem, em primeiro lugar, a anulao da presena do outro (no caso, literalmente do estrangeiro), tanto pela represso do comportamento leviano quanto pela nulificao de sentidos acessrios ou seja, de todos os sentidos que no serviam ao consumo do filme.

    Afinal, um dos sentidos mais afetados na sala de exibio era o olfato, que no promovia em nada a afluncia de espectadores, muito pelo contrrio. Rosenzweig relata a seguinte opinio de um correspondente de um jornal de Worcester sobre os cinemas:

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    Pessoas sem higiene deveriam ser convencidas a respeitar o direito dos outros. O melhor sistema de ventilao no livrar os cinemas de odores que j se tornaram parte de certos indivduos (ROSENZWEIG, p. 35).

    Assim, a superpercepo em que o cinema passa a se apoiar seletiva. O estmulo da viso/audio (necessrias para a compreenso da histria) acompanhado pela supresso dos demais sentidos. A anulao do outro acompanhada por uma certa mortificao do eu pela domesticao de todas as funes fisiolgicas que no serviam para o consumo cinematogrfico.

    Isso dar um novo formato ao espao de exibio, marcado pela separao entre a sala de projeo e a arena social. Alm disso, enquanto os produtores apelavam para filmes que se aproximavam em forma e durao das peas de teatro, os exibidores buscavam atrair o pblico com carpetes luxuosos e mordomias correlatas, inaugurando a era dos movie palaces.

    Movie Palaces:sofisticao do consumo e verticalizao da indstria

    Os nickelodeons sinalizaram uma primeira mudana na dinmica de consumo do filme rumo ao que temos hoje. Eles fixaram a exibio cinematogrfica em um lugar determinado, e buscaram reunir um pblico especfico, que se esforaram para educar. Mas o que consolidaria a importncia do filme enquanto produto autnomo seriam os espaos de exibio que vieram depois.

    A era dos nickelodeons terminou por quase dobrar a audincia de cinema nos EUA: de 26 milhes por semana, em 1908, saltou para 49 milhes, em 1914 (MERRITT, p. 26). Embora o incio da Primeira Guerra Mundial tenha estagnado esse progresso, a prosperidade conquistada pelos Estados Unidos aps o conflito daria nova fora indstria

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    cinematogrfica. Um vasto pblico estava espera desse novo moviegoing, mais formal e estruturado, calcado no filme de longa metragem.

    O aumento na durao dos filmes fazia necessria a definio de horrios de exibio especficos e at mesmo de cadeiras marcadas. a partir de ento, por volta de 1915, que tambm surgem as cadeias nacionais de exibio. A exemplo de outras indstrias de bens consumveis, o mercado se verticaliza. O cinema havia se tornado big business um dos maiores. Os espaos de exibio caractersticos dessa poca, os to afamados palcios cinematogrficos, no deixam dvidas sobre esse fato.

    O movie palace procurava ser tudo que o nickelodeon jamais poderia ter sido: um lugar luxuoso, de decorao extravagante, em que o pblico era tratado como rei. Em um artigo escrito em 1925, Samuel Roxy Rothafel, proprietrio da cadeia homnima de cinemas, diz que a primeira coisa que o pblico quer sentir que o cinema seu (ROTHAFEL, p. 100). Era esse tipo de apelo, que no estava necessariamente relacionado ao reconhecimento de uma identidade entre o espectador e a obra, que o movie palace buscava relacionar ao consumo do filme.

    A decorao de interior dos movie palaces era especialmente suntuosa, seguindo a moda de hotis e peras. Os donos dos estabelecimentos, motivados pela competio, adicionavam cada vez mais confortos ao espao lounges, fumdromos, berrios, lanterninhas uniformizados e mveis luxuosos, tapearias, e enfeites de parede para todos admirarem (FLLER, 2002b, p. 46). Nesse sentido, a prpria programao passou a ser tratada como um mimo caro e restrito. Os programas dos movie palaces iriam durar cerca de 3 horas, compreendendo um filme de longa metragem (entre cinco e sete rolos de mil ps), curtas variados e algumas apresentaes ao vivo (por exemplo, de mgica e dana).

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    Os filmes de longa metragem teriam sido especialmente importantes para essa economia, pois davam respaldo a determinados cinemas de acordo com a sua ordem de exibies (runs). Os estdios, interessados em que seu reduzido estoque de cpias fosse visto pela maior quantidade de pessoas no maior nmero de lugares, passariam a dar preferncia de distribuio aos principais movie palaces, alguns dos quais comportavam um pblico pagante de at seis mil pessoas. De acordo com as campanhas publicitrias realizadas pela indstria, esses seriam os nicos lugares em que as produes Hollywoodianas poderiam ser consumidas em toda a sua excelncia. Dessa forma, procurava-se aumentar o lucro proveniente de cada exibio e, indiretamente, a demanda pelos mesmos filmes em cinemas menores, do interior, e nas salas independentes que acabavam recebendo cpias j gastas, sujas e arranhadas, com atraso de semanas.

    Colateralmente, a experincia cinematogrfica assumiria um valor comercial, passvel de ser medido e hierarquizado. No por acaso que datem dessa poca os primeiros estudos psicolgicos sobre o filme, onde a ateno do espectador passa a ser estimada.16 Nesse contexto, a novidade de um filme passa a ser economicamente mais importante do que a variedade de atraes nos programas. A principal razo era prtica, j que a qualidade das cpias efetivamente diminua a cada exibio, de modo que os longa-metragens se desvalorizavam com o tempo, criando uma demanda permanente para novas obras.

    Como j deve ter ficado claro pelo aumento no valor do produto-filme, essa dinmica de consumo era especialmente influenciada pelos realizadores. Ao verem o crescimento do mercado cinematogrfico, os estdios buscaram se aliar s empresas de exibio. Como coloca Kathryn Fller, os produtores descobriram que, possuindo os

    16 Refiro-me especificamente aos de Hugo Munsterberg, de 1916. interessante ressaltar que Munsterberg era famoso na poca por livros sobre psicologia e eficincia industrial, que se tornaram os manuais-padro para a administrao e a propaganda modernas (HANSEN, 2000, p. 338).

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    outlets mais importantes, eles poderiam exercer um lucrativo efeito oligopolstico na massa de cinemas independentes (FLLER, 2002b, p. 47).

    Nos anos 20, j havia pelos EUA centenas de cinemas de rua

    first-run, possudos ou controlados por produtores-distribuidores como Paramout-Famous Players-Lasky, Loews-MGM, Fox e Warner Brothers-First National. Eles mal representavam 20% do total de telas do pas, mas geravam a maior parte da renda dos produtores. A consolidao desse quadro no teria sido possvel sem a formao de cadeias nacionais de exibio. Tomemos como exemplo o caso da Balaban & Katz, que se espalhou pela Amrica aps sua aliana com a Paramount-Famous Players-Lasky, o maior estdio da poca. As estratgias desse grupo demonstram perfeitamente a lgica que regia a dinmica de consumo promovida pelos movie palaces. Douglas Gomery sugere que sua anlise poderia explicar como o cinema viria a se tornar o entretenimento de massa dominante nos EUA na primeira metade do sculo XX (GOMERY, 2002, p. 91).

    Em 1925, quando se uniu Paramount, a Balaban & Katz j era a cadeia de exibio mais famosa de Chicago. Os filmes que exibia, em si, no tiveram tanta importncia para o seu sucesso. As salas do grupo eram em sua maior parte second-run, de modo que tinham pouco acesso aos melhores filmes, pegando s o que os competidores deixavam para trs. Mas havia cinco pontos em que elas se diferenciavam da concorrncia, e foram esses aspectos que lhes permitiram dominar o mercado: localizao, arquitetura, servio, atraes de palco e por irrelevante que possa parecer o ar condicionado.

    Em primeiro lugar, Balaban & Katz foi buscar novas audincias nos subrbios. Ela ergueu as fundaes de seu imprio longe dos centros comerciais, em locais que poderiam ser facilmente acessados por meio da pulsante malha rodoviria. Com quatro auditrios localizados em

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    pontos-chave da cidade de Chicago, a empresa buscava assegurar que ningum precisasse viajar mais de meia hora para chegar a um de seus maravilhosos cinemas (Ibid, p. 95).

    Comparadas com outros movie palaces, essas salas no eram apenas atraentes, mas tambm funcionais. A arquitetura promovida pela Balaban & Katz favorecia a experincia do filme. A empresa foi a primeira a posicionar as cadeiras de forma que todo o pblico tivesse uma viso perfeita da tela. O auditrio de projeo era mantido meia-luz, ganhando uma aura solene. Assim, se impunha certa reverncia plateia, favorecendo a presena da imagem: mesmo que a cpia estivesse desgastada, a obra ganhava destaque. Aliada aos servios oferecidos (como berrios e sales de jogos) e s atraes de palco, essa organizao espacial compensava a ausncia de filmes de grande sucesso nas salas do grupo.

    Se os filmes no pareciam to relevantes, a implantao de ar condicionado, por outro lado, talvez tenha sido uma das principais razes para o sucesso desse modelo de exibio. A climatizao evitava que o auditrio tivesse que fechar no vero, quando a maior parte dos estabelecimentos de entretenimento comerciais ficava quente demais para abrigar o pblico. Pelo contrrio, de maio a setembro, o cinema se transformava em um refgio excepcional contra o calor da estao.

    O ar condicionado tambm vai provocar o amortecimento da presena de si e do outro, colaborando para a criao de um espao cada vez mais artificial dentro da sala de projeo. Em temperatura agradvel, os corpos deixam de suar e se fazer sentir to intensamente. Desse modo, a climatizao apresentou uma soluo indireta, porm definitiva, para o incmodo que a sensao trmica e o odor alheio representavam para o pblico burgus.17

    17 A nulificao da presena humana tambm pode ser notada no comportamento quase militar imposto ao exrcito de lanterninhas que trabalhava nos movie palaces. Um artigo de 1928 sobre o gerenciamento de salas de exibio diz que eles no s deveriam seguir rgida etiqueta,

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    Esse modelo proposto pela Balaban & Katz logo foi imitado por exibidores de todo o territrio norte-americano. Com isso, as salas passaram a oferecer um pacote de entretenimento que gerava o mximo possvel de lucros. As cadeias surgidas nessa poca terminaro por dar forma aos trs maiores estdios de Hollywood: MGM, Warner Bros e Paramount.

    Grandes transies:desvalorizao da experincia e valorizao do produto

    Na dinmica de exibio proposta pelos movie palaces, o filme ainda no era o nico nem o principal foco para atrair a audincia. Ele podia at estar no centro da experincia cinematogrfica, mas, como diz Gomery, muitos espectadores, frequentemente, nem se importavam com o que passava na tela (ibid., p. 102). A experincia cinematogrfica, em sua essncia, ainda era um evento social era simplesmente para sair de casa, segundo a maior parte da audincia. Foi justamente por isso que os produtores buscaram se aliar aos exibidores. Esse arranjo lhes possibilitou aproveitar plenamente a nova dinmica de exibio, valorizar seu produto e garantir um mercado infalvel.

    Mas, ao final da dcada de 20, dois acontecimentos completamente distintos vo causar uma nova reorganizao da indstria cinematogrfica, aumentando a importncia do filme e diminuindo a do seu espao de consumo: a inveno do som sincrnico e a queda da bolsa de Nova York.

    como tambm agir como se fossem invisveis. De forma a agilizar o fluxo de espectadores, um sistema de sinalizao deve ser estabelecido para que os lanterninhas possam indicar uns aos outros os lugares vagos nas fileiras essa sinalizao no deve ser percebida pelo pblico, e deve ser efetuada sem qualquer barulho, pela localizao do lanterninha e pela maneira como posiciona suas mos (FRANKLIN, p. 120).

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    O efeito imediato da chegada do filme sonoro o fim das apresentaes ao vivo nos cinemas. A primeira cadeia a adotar a novidade em larga escala foi justamente a Balaban & Katz. Em 1929, a maior parte das suas salas de exibio Publix j tinha sistema de som instalado, criando um novo patamar para a indstria. Com isso, o palco moveu-se para a tela (HALL, p. 141). Os shows ao vivo perderam seu apelo popular, e os exibidores logo trataram de cort-los do espetculo. Os msicos foram sendo demitidos to logo seus contratos expiravam.

    A publicidade da poca indica a intensa reorganizao espacial provocada pelos sistema de som mecnico, que seria particularmente vantajosa para todo o pblico: O vitaphone [o vitascpio sonorizado] transforma cada cadeira do estabelecimento em uma cadeira da primeira fila (ibid., p. 141). Dessa forma, a nova tecnologia parecia destinada a destruir a distncia, acabando com o prprio espao. Conforme a realidade era absorvida pelo filme, esse produto ganhava importncia, enquanto a sala de cinema ia se apagando.

    Antes do fim daquele ano, todas as salas Publix j estavam equipadas com aparelhos para reproduo de filmes sonoros. Ben Hall pinta um quadro ligeiramente lgubre da situao:

    Um frio que no vinha do ar condicionado percorria os camarotes. Ir ao cinema se tornou uma experincia solitria, ainda que todas as cadeiras estivessem ocupadas. A tela barulhenta tinha ganhado a mxima importncia. Os fossos de orquestra estavam vazios, e os camarins se tornaram depsitos de displays e cartazes de refrigerante. Os gerentes de cinema, que j haviam sido empresrios cheios de orgulho e um milho de idias, se transformaram de showmen em vendedores de balas (ibid, p. 142).

    Assim, a padronizao tcnica, conforme apresenta solues mais lucrativas tanto para estdios quanto para exibidores, desencadeia outra etapa na nulificao do espao fsico e na mortificao da

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    presena humana, deteriorando a convivncia social que at ento caracterizara o moviegoing.

    O golpe de misericrdia na arquitetura de exibio barroca dos movie palaces seria dado pela Grande Depresso. A quebra da bolsa de Nova York, em 1930, afundou os Estados Unidos num perodo de grave crise econmica. Para os exibidores, ficou impossvel manter o padro dos servios oferecidos. Os cinemas independentes tiveram que adotar fachadas mais modestas, diminuir de tamanho ou simplesmente fechar.

    As grandes empresas, muito embora conseguissem resistir melhor aos solavancos da economia, enfrentavam um problema muito mais grave: a falta de pblico. Na poca, no havia audincia disposta a pagar pelo luxo que era ir ao cinema ainda mais porque, agora, tudo o que as salas de exibio tinham para oferecer era um nico filme sonorizado, em oposio ao espetculo multimdia que caracterizara a experincia cinematogrfica na dcada anterior.

    A exibio cinematogrfica acabou por se transformar em um constante exerccio de criatividade, um negcio baseado em seduzir o pblico das maneiras mais apelativas a tal ponto que um artigo de 1938 sobre o gerenciamento de cinemas no traz nada alm de uma srie de ideias para promoo do estabelecimento, entre as quais distribuio de brindes, festas beneficentes, jogos com a plateia, bingo e shows de calouros (RICKETSON JR, p. 194).

    Enquanto os exibidores procuravam desesperadamente um formato de consumo apropriado, os produtores faziam malabarismos para que o valor econmico e cultural do filme longa-metragem no fosse reduzido (e os lucros junto com ele). O cenrio era propcio para o surgimento de novos estdios. Para resguardar o escoamento de toda sua produo e conter o crescimento de uma possvel concorrncia, os majors passaram a promover uma srie de prticas comerciais de tica

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    duvidosa para garantir a sua predominncia nas telas. As principais tcnicas executadas eram o block-booking e o blind bidding.

    Aqueles que defendiam o block-booking como uma prtica legtima diziam que no passava de um sistema de aluguel de filmes em que o exibidor se compromete a pegar dois ou mais ou todos os filmes oferecidos por um distribuidor, de forma a obt-los mais barato do que se fossem alugados individualmente (HARRISON, p. 211). Claro que essa uma explicao tendenciosa. Afinal, podemos repens-la pelo outro lado: de modo a obter os filmes que realmente lhe interessavam por um preo justo, o exibidor acabava sendo obrigado a pegar vrios outros inclusive os pssimos.

    O block-booking funcionava aliado ao blind bidding (ou blind buying), que

    o aluguel de um filme ainda no visto, normalmente em avanado estgio de produo. Era uma parte integral do block-booking porque os distribuidores no costumam carregar uma pilha de filmes prontos para oferecer aos exibidores. Para vender em blocos, era necessrio vender filmes ainda no concludos (HUETTIG, p. 215).

    Nessa situao, um exibidor frequentemente obrigado a se comprometer com filmes completamente no escuro, meses antes que eles tenham sido finalizados. As vantagens de ambas as prticas para os estdios so claras. O block-booking assegurava o escoamento de toda a sua produo, e o blind bidding garantia que isso fosse feito com muita antecedncia. Em tempos de crise, no havia melhor arranjo. Em uma anlise de 1944 sobre o controle econmico da indstria cinematogrfica, Mae Huettig chega a comparar tais prticas a uma forma infalvel de seguro (ibid., p. 216).

    Alm disso, o block-booking e o blind bidding provocavam um efeito colateral extremamente vantajoso para Hollywood: uma vez que

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    os exibidores acabavam comprometendo toda a sua cota de tela com os filmes dos maiores estdios, no conseguiam absorver produes independentes, ainda que fossem mais bem realizadas. Depois que o luxo dos movie palaces perdeu seu apelo, e as tendncias de consumo deixaram de ser pautadas pelos leading outlets, era esse esquema protecionista que assegurava o monoplio do mercado a uns poucos estdios.

    Alm do produtor independente, quem perdia com esse esquema eram os prprios exibidores. Afinal, ao invs de buscar obras melhores e mais lucrativas, eles precisavam se apegar aos filmes que teriam apelo garantido junto ao pblico, seja por causa da participao de estrelas ou da intensa promoo publicitria. Entretanto, junto com essas obras, tambm eram obrigados a obter vrias outras no to interessantes. O dilema era profundo: s cegas, como saber se aqueles filmes seriam adequados para a sua audincia? Ou to bons quanto o produtor prometia? No fim das contas, essas prticas de licenciamento acabaram contribuindo ainda mais para a pasteurizao da produo e da experincia cinematogrfica.

    A resistncia dos exibidores ao sistema do block-booking iria resultar em uma srie de disputas jurdicas que culminariam em 1938 com uma ao antitruste movida contra os oito maiores estdios de Hollywood. Mas o oligoplio s seria mesmo quebrado dez anos depois, graas ao processo Estados Unidos contra Paramount Pictures, movido pelo Departamento de Justia dos EUA ironicamente, contra o primeiro estdio a formar uma cadeia nacional de exibio. Em favor dos exibidores, a Suprema Corte Norte-Americana determinou a ilegalidade de vrias prticas comerciais dos majors e obrigou-os a abandonar a sua participao no mercado de exibio.18

    18 Embora essa proibio ainda vigore, vale dizer que, informalmente, o block-booking e o blind bidding so correntes nos dias de hoje, ainda que sempre objeto de muita polmica.

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    As consequncias dessa proibio vo ser sentidas mais nitidamente aps o fim da II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos atingiro um novo perodo de prosperidade econmica, e salas de exibio dos mais variados gneros se multiplicaro pelo pas. A nova configurao da indstria favorecer a entrada de filmes independentes e estrangeiros no mercado norte-americano. Com o divrcio entre produo e exibio, e o fim das prticas que asseguravam o monoplio a uns poucos estdios, Hollywood deixa de contar com a renda garantida pelas salas de cinema. Assim, a produo dos majors ter que ser redimensionada, caindo em cerca de um tero entre 1946 e 1956 (WILINSKY, p. 67). Sem estarem certos do escoamento de sua produo, os estdios preferem deixar de produzir filmes em quantidade, e passam a concentrar seus esforos em umas poucas obras de alta categoria, atraentes o bastante para conquistar a preferncia dos exibidores, apesar dos altos custos. Nesse vcuo deixado pelo mainstream, se multiplicaro os cinemas de arte salas especializadas em documentrios, filmes independentes e relanamentos de clssicos do cinemo. Em dois anos (1950-52), a quantidade de espaos do gnero chegou a dobrar nos EUA.

    A queda no volume da produo Hollywoodiana no ser o nico motivo que levar exibidores a apelar para contedos exticos. Outra responsvel pela disseminao de salas alternativas a TV. A partir da dcada de 1950, a entrada de televisores nos lares americanos passa a suprir as necessidades de entretenimento familiar. A indstria cinematogrfica no v outra alternativa que no mirar uma audincia adulta, oferecendo filmes sofisticados, maduros, que motivassem o pblico a sair de casa.

    Mas esse no ser o nico efeito desse notvel eletrodomstico, que acabar promovendo outra reorganizao do circuito cinematogrfico e para o bem ou para o mal contribuindo para a cristalizao de inditas formas de moviegoing e uma nova arquitetura de exibio.

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    4:3 mono versus 19:6 surround:a experincia em favor do produto

    Podemos dizer que, com o ocaso dos movie palaces, os espaos de exibio cinematogrfica entram em um longo perodo de metamorfose, caracterizado por uma srie de abalos na indstria que impediro a fixao de uma dinmica estvel de consumo e de um modelo arquitetnico caracterstico. somente com a inveno da TV que esse quadro ir mudar. Como j vimos, o afastamento dos produtores do mercado de exibio havia resultado na rarefao do filme, convertendo-o em um produto ainda mais sofisticado e valioso. A existncia da TV vai consolidar a autonomia da obra, tornando-a independente de sua projeo nas salas comerciais.

    A partir de ento, se faz necessrio repensar as prticas de exibio, pois elas passam a disputar no apenas o pblico, como tambm o prprio produto. Em um artigo de 1948, a televiso j apontada como sria ameaa ao cinema: A cincia est dando o maior susto na indstria cinematogrfica desde que os filmes surgiram, com a televiso fazendo os espectadores ficarem em casa aos montes (ARCHITECTURAL RECORD, p. 225). Com isso, a qualidade da experincia cinematogrfica volta a ser uma preocupao, uma vez que ela que vai diferenciar o consumo audiovisual na sala de projeo daquele na sala de estar. Mas a qualidade perseguida ser bem diferente da que marcava os movie palaces, uma vez que no estar relacionada opulncia social e a uma srie de luxos acessrios ao filme. Muito pelo contrrio, ela se basear na supresso dessas (e de outras) distraes.

    De acordo com o valor conquistado pelo filme de longa metragem, o foco do moviegoing passa a ser a perfeita fruio da obra. Relacionada a uma forma de viso distrada, a televiso no parecia fazer justia experincia do filme. Em oposio ao eletrodomstico, a sala de cinema vir a ser promovida como o lugar mais adequado para essa experincia. Os exibidores pensavam que a supremacia da projeo

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    seria afinal assegurada pela intensidade da iluso que ela promovia. Portanto, passam a elaborar uma arquitetura funcional, dedicada a garantir essa intensidade. Isso explica a implantao de uma srie de tecnologias imersivas nos cinemas durante a dcada de 50, como o som estreo e a tela panormica (widescreen).

    A widescreen talvez seja o melhor smbolo da nova dinmica de consumo. A partir de 1952, as telas de grande parte das salas de cinema se transformaram: a proporo tradicional 1,33/7:1 se esticou at 1,66:1 (no sistema Vista Vision) ou mesmo 2,77:1 (no Cinerama). Seu tamanho tambm aumentou consideravelmente: de uma mdia de 20 x 16 ps, elas saltaram para 64 x 24. Esse formato buscava estimular a viso perifrica do espectador, numa oposio direta telinha estreita (de proporo 4:3) dos televisores domsticos. Era uma forma de ampliar a diferena entre um meio e o outro, produzindo vantagens que o cinema no possua anteriormente.

    Em resposta espectao passiva possibilitada pelo aparelho televisor, o cinema tambm passaria a estimular a participao da audincia. Claro que isso se daria da maneira mais cnica possvel: oprimindo o espectador com imagens. O cinema widescreen aumentaria a tela a tal ponto que, embora ela no se tornasse completamente imersiva, era como se desaparecesse das vistas, criando um forte sentimento de participao fsica e oferecendo ao pblico um senso de presena equivalente ao do teatro. Outro artigo da poca festeja os avanos tecnolgicos que possibilitavam a reduo da distrao no espetculo moderno (CUTTER, p. 229). Essa supresso da distrao no ser um efeito acessrio da nova dinmica espacial de consumo do filme, mas sim o elemento que a tornar possvel. Belton caracteriza a nova situao da seguinte forma:

    Ao contrrio da distrao que Siegfried Kracauer sugeriu caracterizar a experincia do espectador nos movie palaces de 1920, em que a arquitetura do estabelecimento encoraja os olhos do espectador a vaguear da tela para a

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    decorao ao redor, Cinerama, CinemaScope e Todd-AO contam com telas curvas e som e imagem envolventes, de forma a absorver o espectador no mundo representado na tela: a distrao d lugar participao cooptada (BELTON, p. 244).

    Obrigada a conviver com outra forma de exibio, a sala de cinema pretende destacar uma sensibilidade particular, e para tanto se transforma em um bolso cognitivo, um arranjo provisrio que cria condies a favor de tal sensibilidade. Essa transformao espacial se dar em detrimento da materialidade da prpria sala de projeo e do sujeito espectador, criando o que, em A Psicologia da Experincia Cinematogrfica (1949), Hugo Mauerhofer batizaria de situao cinema.

    No ano anterior publicao do texto de Mauerhofer, o arquiteto Ben Schlanger teria pedido um aparte ao final de uma conferncia de nome parecido, Psychology of the Theater, para descrever o que ento considerava como a sala de projeo perfeita talvez sem saber que anunciava um triunfo da nulificao do corpo e do espao fsico:

    Um estabelecimento em que a pessoa possa se sentar e olhar o que est a sua frente sem ter conscincia do espao fsico em que est vendo o filme. Ela deve ser capaz de assistir ao filme, se perder completamente nele, e no ter qualquer lembrete do fato de que est em um lugar fechado assistindo a um filme (CUTTER, p. 231, grifos meus).

    Essa utopia acabaria por ofuscar as preocupaes de como o lado social da sala de cinema poderia ser traduzido numa forma de design. Como o favorecimento da percepo do filme acontecer em detrimento da percepo do outro, o lado social do moviegoing rapidamente se deteriora. O design dos multiplex de hoje no nos permite negar: os espaos de exibio passam a subscrever um comportamento privatizado e um isolamento quase to grande quanto o do telespectador em sua casa.

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    A arquitetura dos movie palaces j havia tido enorme sucesso em suprimir a socializao dentro da sala de projeo, isolando-a em lugar e hora determinados: nos amplos foyers, durante intervalos na programao. Mas, no novo modelo, nem mesmo esse ambiente restar para o convvio da audincia. O novo formato de exibio impe um ritmo intenso de consumo, em que no s a sala de projeo, como tambm o foyer se torna espao de fluxo, onde ningum para pra conversar, mas sim compra pipocas a caminho da prxima sesso.

    Blockbusters, multiplexes e o aftermarket

    A popularizao da TV decretou o fim de um moviegoing regular. Entre as dcadas de 1960 e 1970, a afluncia de pblico s salas de exibio diminuiu progressivamente, com a audincia se mostrando cada vez mais seletiva. Dentro desse novo quadro, cada filme precisava fazer sucesso por seus prprios mritos. Interessada em criar uma rotina comercial estvel, a indstria vai novamente redimensionar a obra cinematogrfica: para funcionar, cada filme deveria se tornar um evento, um espetculo irresistvel. Nesse sentido, o volume de produo cai, conforme os estdios passam a concentrar seus esforos na criao de uns poucos fenmenos certeiros os 10% que gerariam metade da sua renda: os blockbusters (PAUL, p. 79).

    A produo de blockbusters estar diretamente ligada a uma estratgia de distribuio especfica, chamada de mass release: o lanamento simultneo no maior nmero possvel de salas, de forma a capitalizar em cima do interesse do pblico pela novidade e reduzir os efeitos que um boca-a-boca negativo possa gerar (uma vez que, quando a m fama se espalhasse, todos j teriam visto o filme). O primeiro filme de grande oramento a se utilizar dessa estratgia foi Tubaro (Steven Spielberg, 1975), lanado em 500 salas ao mesmo tempo. Com ele, estabeleceu-se o modelo de distribuio que se tornaria a nova regra da indstria:

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    Propaganda extensiva no horrio nobre da televiso, para gerar reconhecimento do nome, seguida pela estreia do filme no maior nmero de mercados possvel, para tirar vantagem da propaganda nacional (ibid., p. 80).

    Desse modo, o filme era colocado disposio do pblico como qualquer outro produto de massa. O desenvolvimento desse modelo acabar por dar forma a um novo espao de exibio: o multiplex. Multiplexes so cinemas com mais de uma sala de projeo, construdas em torno de um foyer onde se localizam bilheteria e lanchonetes (as chamadas concesses). Ao contrrio do que se possa pensar, essa arquitetura no nova. O primeiro cinema duplo do mundo data de 1963. A popularizao do modelo, entretanto, est diretamente ligada produo dos blockbusters e ao surgimento de um aftermarket domstico para o filme a partir da dcada de 80.

    Depois do fim da II Guerra Mundial, os cinemas localizados nas regies centrais das grandes cidades comearam a perder prestgio para salas construdas em subrbios distantes. Buscando uma audincia mais constante e fugindo da especulao imobiliria, as cadeias de exibio comearam a migrar em direo s zonas perifricas, ocupando os novos centros residenciais da urbe. Novas salas de exibio foram construdas prximas a shopping centers, ao longo de avenidas interurbanas lugares de fluxo constante, acessveis a qualquer automvel, uma coqueluche da poca.

    Inicialmente, essas salas imitavam a estrutura dos monstruosos movie palaces: possuam entre 500 e 1.500 lugares e uma nica tela. Foi justamente o mass release que motivou a modificao macia dessa arquitetura de exibio. Com vrias telas disponveis, seria possvel oferecer os ltimos lanamentos na hora e no lugar que o pblico desejasse. Com isso, o consumo se tornava o mais imediato possvel.

    Em 1978, 10% dos cinemas possuam mais de uma tela. A partir da dcada seguinte, esse nmero aumenta espantosamente, conforme

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    o multiplex se torna padro no mercado. Praticamente todo cinema construdo nos anos 1980 ser um conglomerado de vrias salas de exibio, alguns chegando a reunir 20 delas. Os movie palaces que ainda existiam, ou deixaram o mercado ou foram esquartejados para formar vrias salas menores. Seus ornamentos espalhafatosos, que enfatizavam individualidade e audcia, foram substitudos por uma decorao racional, corporativa. Em um discurso de 1963, o arquiteto Drew Eberson expe os principais elementos dessa decorao, destinados a implantar a utopia prevista por Schlanger. Trata-se de um desenho funcional, de onde no esto excludas cadeiras confortveis, com lugar o bastante para acomodar as pernas e luz suficiente para inibir bolinaes e tropeos (EDGERTON, p. 156).

    A sala de exibio estaria destinada a se tornar um lugar pelo qual os corpos trafegariam sem solavancos, do qual entrem e saiam sem qualquer impedimento, e onde permaneam imveis durante todo o tempo de projeo do filme sem se cansarem, sem tocarem uns nos outros. Toda uma gama de pequenas tecnologias em favor da situao cinema comear a ser desenvolvida, entre as quais a cadeira de estdio, que permite viso perfeita da tela para toda a audincia.

    Acontece que esse privilgio da situao cinema no se dar em favor de uma fruio cinematogrfica ideal, mas sim da otimizao comercial dessa fruio. No novo modelo de exibio, toda forma de consumo deve ser desimpedida, especialmente a do filme. Os horrios de projeo so vrios, mas precisam ser rigidamente controlados e obedecidos. A espartanizao do espao fsico, acompanhada pela padronizao do consumo audiovisual segundo uma dinmica negativa de comportamento da audincia (i.e.: passivo, marcado pela submotricidade e superpercepo direcionadas), serve para reduzir imprevistos e anular resqucios de interao social que acabariam por retardar o fluxo consumidor, instabilizando a grade de programao e diminuindo os lucros. Em outras palavras, trata-se de uma tentativa de automatizar o ltimo acessrio intransigente na exibio do filme: a plateia.

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    A arquitetura dos multiplexes buscar provocar constncia no apenas no fluxo de pblico, como tambm no de obras. Para tanto, se colocar alm de todas as modas e estilos, tornando-se um cercado completamente neutro (CUTTER, p. 231), compatvel com qualquer tipo de filme. A personalidade desses espaos, desprovidos de quaisquer marcos arquitetnicos especficos, ser um reflexo da novidade das produes. Toda sala passar a ser uma sala de estreia, vazia em sua essncia, mas sempre estufada com os ltimos lanamentos de Hollywood. Assim, enquanto o edifcio dos movie palaces pretendia equiparar a experincia cinematogrfica ao sonho, apelando para decoraes exticas e fachadas monumentais, os multiplexes passaro a oferec-la inegavelmente como um produto descartvel.19

    A mudana na programao dos cinemas deixa de se dar em intervalos regulares, e passa a seguir um modelo darwinista chamado de ampla abertura (opening wide): os lanamentos so colocados em trs ou quatro salas, em diversos horrios, de forma a ficarem amplamente disponveis para o pblico. A presena de um filme nas telas diminui conforme ele deixa de ser novidade e vai parando de atrair audincia. Quando menos percebemos, o filme no est mais l, e foi substitudo por uma nova produo (que tambm est passando em outras quatro salas, vejam s).

    Esse ritmo serve aos estdios na medida em que faz os lanamentos circularem de maneira otimizada, agilizando o retorno financeiro necessrio para cobrir os altos custos de publicidade e produo. Mas ele tambm apresenta vantagens considerveis para os exibidores, para os quais a mera projeo de filmes havia deixado de ser rentvel. Com o aumento no custo de licenciamento das obras cinematogrficas, a sobrevivncia econmica das salas de cinema passar a depender da venda de concesses. Em alguns casos, at 90% do lucro dos exibidores

    19 Ironicamente, grande parte dos mastodnticos edifcios que abrigavam movie palaces foi convertida em igrejas evanglicas ou bingos lugares de sonho, de certa forma.

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    estavam ligados a esse comrcio acessrio. Nesse sentido, para os donos de cinema, um filme seria to bom quanto qualquer outro, j que o valor arrecadado com o ingresso de ambos o mesmo. Por outro lado, a substituio de um filme velho (de pblico restrito, mas constante) por um lanamento (de pblico efmero e numeroso) seria sempre vantajosa, uma vez que intensificava o trnsito pela lanchonete.

    Em outras palavras, o multiplex favorece o comrcio de concesses porque promove maior circulao de pblico do que um cinema com uma nica tela. A variedade de obras busca apelar para uma audincia sortida, e as sesses so organizadas de forma que, caso os ingressos para determinado filme estejam esgotados, outros ainda estaro disposio do espectador. E, no fim das contas, no importa qual filme o pblico tenha ido ver: todos compram refrigerante.

    Dessa forma, as concesses passaro a representar uma base de lucro slido e estvel para o exibidor (GUBACK, p. 129). Grosseiramente, podemos dizer que o eixo econmico da exibio cinematogrfica ser deslocado de projetar filmes para vender pipocas. No por acaso que as salas de cinema se parecero cada vez mais com lojas de departamentos, lugares que mile Zola uma vez descrevera como mquinas de vender, repletos de dispositivos que intensificam a circulao de mercadorias e direcionam o olhar do consumidor (FRIEDBERG, p. 80).

    Por isso, tambm, as salas de cinema terminaro por se deslocar para dentro de shopping centers. Nesses lugares, a exibio de filmes ganhar a funo de elemento catalisador, intimamente relacionada aos rumos que o moviegoing veio a tomar. No jargo dos arquitetos, o cinema o mais poderoso dos estabelecimentos magnticos (magnet stores). Na dcada de 1980, os donos de shopping passaram a investir na cons