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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE
LUCAS LARA FONSECA SOUZA CARMO
ATIVISMO TRANSNACIONAL, DIREITOS HUMANOS E
SOBERANIA ESTATAL: UMA PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA
Belo Horizonte
2014
LUCAS LARA FONSECA SOUZA CARMO
ATIVISMO TRANSNACIONAL, DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA ESTATAL: UMA PERSPECTIVA
CONSTRUTIVISTA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro Universitário de Belo Horizonte como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais. Orientadora: Professora Marinana Andrade e Barros
Belo Horizonte
2014
Agradeço a minha orientadora Marinana pelo apoio e
considerações dadas ao longo da realização desse trabalho.
RESUMO
O presente estudo objetiva demonstrar as relações entre direitos humanos, ativismo
transnacional e soberania do Estado. Para tanto, o trabalho instrumentaliza-se da
perspectiva construtivista para interpretar as categorias estudadas e traçar uma
relação entre o ativismo transnacional de direitos humanos e o possível processo de
redefinição do conteúdo do conceito de soberania.
Palavras-chave: construtivismo, direitos humanos, soberania, ativismo
transnacional
ABSTRACT
This study aims to demonstrate the connections among human rights, transnational
activism and state’s sovereignty. To do so, this study applies the constructivist
perspective to interpret the categories studied and delineate a relation between
human rights transnational activism and the process of reshaping the concept
sovereignty.
Key-words: constructivism, human rights, sovereignty, transnational activism
LISTA DE SIGLAS
ACNUDH - Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
CEDH – Corte Europeia de Direitos Humanos
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
DPAV - Declaração e Programa de Ação de Viena
ONG - Organização não governamental
ONU - Organização das Nações Unidas
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................... 6
2. A PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA.......................................................... 7
3. CONSTRUINDO OS DIREITOS HUMANOS................................................. 12
4. A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS............................ 16
5. SOBERANIA, ATIVISMO TRANSNACIONAL E DIREITOS HUMANOS...... 22
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 32
REFERÊNCIAS................................................................................................... 35
6
1. INTRODUÇÃO
A ascensão dos direitos humanos em escala global é um fenômeno
relativamente recente nas discussões e estudos da política internacional. As teorias
tradicionais de Relações Internacionais não apresentam instrumentos teóricos
capazes de explicar a emergência dos direitos humanos, e tratam o tema com
marginalização. O presente estudo não considera o tema de direitos humanos como
marginal, mas como uma área de relevância nos estudos da política internacional.
Nesse sentido, faz-se breve revisão bibliográfica de modo a engendrar os conceitos
de construtivismo, a implementação dos direitos humanos e do ativismo
transnacional.
Serão buscados no construtivismo os instrumentos para explicar a ascensão
dos direitos humanos internacionais. Por meio da difusão internacional de normas e
ideias relacionadas aos direitos humanos, e do poder político que estas ideias e
normas representam, acredita-se que o tema de direitos humanos vem conquistando
espaço nas relações internacionais. O pressuposto é que a disseminação do ideário
dos direitos humanos é capaz de provocar mudanças significativas no sistema
internacional.
A globalização dos direitos humanos e a expansão de normas e dispositivos
de proteção a elas relacionados operam no sentido de questionar a concepção
tradicional acerca da soberania do Estado. Kathryn Sikkink (1993), por exemplo,
afirma que doutrina de direitos humanos e do direito internacional detém poder
subversivo quando se trata da organização da sociedade em Estados soberanos, e
atua questionando o domínio do Estado na sociedade e a própria soberania estatal.
Nessa direção, somente se poderia conceber a internacionalização dos direitos
humanos paralelamente à redefinição do conceito de soberania do Estado.
Para desenvolver o argumento de que a ascensão dos direitos humanos
internacionais atua subversivamente na concepção de soberania absoluta, será
apresentado um quadro de conceitos teóricos relacionados à perspectiva
construtivista (linguagem e discurso, regras, normas, agente e estrutura). O objetivo
da exposição conceitual é demonstrar as potencialidades do construtivismo
enquanto instrumento de interpretação da realidade, sobretudo, em relação ao
7
compartilhamento intersubjetivo de ideias e valores relacionados aos direitos
humanos.
A segunda seção do estudo trata do processo de internacionalização dos
direitos humanos e do contexto histórico no qual os primeiros passos no sentido de
tutelar os direitos humanos foram tomados. O estudo faz uma breve exposição dos
principais documentos que apresentam a normativa internacional relacionada aos
direitos humanos e analisa a Conferência de Viena de 1993 e suas implicações para
os direitos humanos à época.
A última seção do trabalho busca relacionar as categorias principais do
estudo: soberania, ativismo transnacional e direitos humanos. Primeiro, expõe-se o
conceito de soberania em seus moldes tradicionais para, posteriormente, apresentar
novas formas de interpretação desse princípio. Após expor o conceito de soberania,
o ativismo transnacional será explicado a partir das lentes interpretativas do
construtivismo, associando o movimento aos direitos humanos e com a
potencialidade desta relação atuar no sentido de alterar a forma como a comunidade
internacional percebe a soberania.
2. A PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA
O termo "construtivismo" foi inaugurado no estudo das Relações
Internacionais1 em 1989, com a publicação da obra de Nicholas Onuf, "World of our
making - Rules and Rule in Social Theory and International Relations". A sua
popularização na disciplina de Relações Internacionais é atribuída a Alexander
Wendt, quando da publicação do artigo "Anarchy is What States Make of It: The
Social Construction of Power Politics2", de 1992.
As contribuições feitas por Nicholas Onuf e Alexander Wendt apresentam as
premissas básicas da perspectiva construtivista: o mundo é socialmente construído;
ele está em processo contínuo de construção e reconstrução. O mundo não é pré-
1 Relações Internacionais refere-se à disciplina acadêmica que trata da política e dos fenômenos
internacionais a ela relacionados. 2 International Organization, Vol. 46, No. 2. (Spring, 1992), p. 391-425.
8
determinado, e pode ser modificado através da atuação dos agentes (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005).
Onuf refere-se ao construtivismo como a "linguagem da construção social"
(1998, p. 58), e apresenta a vertente não como uma teoria específica das Relações
Internacionais, mas como uma forma de investigação social (ADLER, 1999; ONUF,
1998; ZEHFUSS, 2002) que parte de um sistema próprio de conceitos e proposições
(ONUF, 1998). Wendt (1995), por sua vez, insere o construtivismo no grupo da
Teoria Crítica3 das Relações Internacionais, destacando que o elemento de
convergência entre o grupo dessas teorias é a crença de que a política mundial é
socialmente construída. Emanuel Adler (1999), por sua vez, coloca o construtivismo
como um "conjunto de lentes paradigmáticas através das quais observamos todas
as realidades socialmente construídas, as "boas" e as "más" (1999, p. 224)”.
A perspectiva construtivista destaca a importância das ideias, regras, normas,
cultura e da linguagem no processo de construção social e, portanto, de produção
de conhecimento intersubjetivo (ONUF, 1998; GUARNIERI, 2010; WENDT, 1998). O
processo de construção e reconstrução do mundo acontece mediante a ação dos
agentes, em uma relação contínua e recíproca entre agente e estrutura; entre
pessoas e sociedade. (ONUF, 1998; NOGUEIRA e MESSARI, 2005; WENDT, 1999).
As relações internacionais4 são concebidas pelos autores construtivistas
como um fenômeno eminentemente social e rejeitam premissas racionalistas que
percebem o mundo como pré-determinado, contrapondo, assim, escolas teóricas de
base racionalista, como o mainstream5 das Relações Internacionais.
Ao inserir e enfatizar as relações internacionais como fenômeno social, os
construtivistas percebem o sistema internacional a partir de elementos ideacionais
(WENDT, 1999), e intersubjetivos (ADLER, 1999; ONUF, 1998; WENDT, 1999), e
enfatizam a estrutura cognitiva coletiva que é produzida através das ideias, normas
e regras. Mesmo priorizando o papel das ideias na investigação dos fenômenos
sociais, Wendt reserva espaço para um tipo de "materialismo residual",
reconhecendo que, de fato, as forças materiais possuem efeito na Política
Internacional. Em suas palavras, "it cannot be ideas all the way down (WENDT,
3 Grupo de teorias que partilham de premissas similares e convergem quanto à percepção da
realidade sendo uma construção social. Por exemplo, o pós-modernismo, o construtivismo, neo-Marxistas e feministas (Wendt, 1995). 4 Escrito em letras minúsculas, relações internacionais refere-se aos processos de interação entre os
diversos atores que compõem o sistema internacional. 5 O Neorealismo e Neoliberalismo são considerados o mainstream das Relações Internacionais.
9
1999, p. 110)"6. Infere-se, a partir disso, que o conteúdo material da estrutura
internacional e o seu significado para os agentes é atribuído em função das ideias e
de seu compartilhamento. O aspecto material do mundo, assim, é constituído por
uma rede intersubjetiva de ideias compartilhadas; são os agentes que produzem e
reproduzem o significado das forças que constituem o mundo.
O construtivismo se insere no debate ontológico7 agente-estrutura8, que
busca compreender qual dessas categorias influencia a outra (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005). A vertente construtivista não acredita que haja antecedência
ontológica da estrutura sobre o agente, e tampouco a relação oposta. Onuf (1998) e
Wendt (1999) sustentam que a relação entre agente e estrutura é de mútua
constituição, outorgando-lhes o mesmo status ontológico.
A crítica de Wendt é endereçada aos racionalistas, e mais propriamente ao
Neorealismo de Kenneth Waltz9 (1979), que privilegia a estrutura em detrimento dos
agentes, e assumem que as identidades e interesses dos agentes são dados, e que
o sistema de auto-ajuda é uma característica imutável do sistema internacional
(ZEHFUSS, 2002; GUARNIERI, 2010). Fundamentado pela teoria da estruturação
de Anthony Giddens, Wendt conceitua o agente e a estrutura como mutuamente
constitutivos (ADLER, 1999; ZEHFUSS, 2002). As propriedades das estruturas e dos
agentes são ambas importantes para explicação do fenômeno social, e "a estrutura
é tanto o meio como o resultado das práticas sociais (ADLER, 1999, p. 210)" que
constituem a realidade social. Nesse sentido, o foco da teoria construtivista reside no
estudo das práticas sociais, e em seu papel na atribuição de significados coletivos
que são institucionalizados em práticas.
A estrutura, na concepção de Wendt, existe e é definida (a sua configuração
ou entendimento que os atores tem desta estrutura) em função das práticas sociais;
ou, nas palavras de Wendt: “a estrutura social existe somente no processo10 (1995,
p. 74)". Em seu livro Social Theory of International Politics (1999), o autor enfatiza o
papel ideacional na construção social, destacando a importância de se compreender
6 Não pode ser somente ideias
7 Ontologia estuda a natureza ou a formação das entidades de análise existentes.
8 Para mais sobre o debate agente-estrutura, ver Alexander Wendt, The agent-structure problem in
international relations theory, 1987. 9 Kenneth Waltz publicou em 1979 o livro Thery of International Politics, no qual fundamenta e expõe
as premissas do realismo estrutural. Coloca a anarquia como princípio ordenador do sistema internacional, os Estados como atores racionais e unitários, e que, em virtude da anarquia, estão inseridos em uma dinâmica de self-help. 10
social structure exists only in process.
10
o conhecimento compartilhado como formador das identidades e interesses dos
atores sociais. Com isso, a dinâmica de comportamento em um sistema anárquico
(para o Neorealismo, uma estrutura que forma um sistema de auto-ajuda), por
exemplo, é atribuída e sustentada por uma intersubjetividade que direciona as
identidades dos atores à uma dinâmica específica, que pode ou não ser competitiva.
Por outro lado, Wendt afirma que "anarquia é o que os Estados fazem dela11"; ou
seja, a distribuição de conhecimento intersubjetivo define o entendimento dos atores
acerca da anarquia.
Nicholas Onuf distingue-se da abordagem fundamentada por Wendt pela sua
ênfase no papel da linguagem, colocando o construtivismo como "linguagem da
construção social (1998, p. 58). Segundo o autor, o mundo é construído através dos
atos12 ("deeds") e da fala: "falar é fazer: falar é sem dúvidas a forma mais importante
que usamos para tornar o mundo o que é13 (1998, p. 59)".
O processo de construção social, segundo Onuf, depende da existência de
regras que atuam como intermediárias da relação entre agente e estrutura. As
regras são o terceiro elemento, e que faz a conexão entre os outros dois (ONUF,
1998). O significado nas relações sociais depende da existência destas regras que
são originadas por meio de atos discursivos ("speech acts"). A regra segundo Onuf é
uma afirmação que diz às pessoas o que elas deveriam fazer; qual seria o padrão de
conduta adequado a uma dada situação, e como o indivíduo deve modelar seu
comportamento ao padrão estabelecido. As regras atuam como um guia para o
comportamento humano e, assim, fazem com que seja possível o significado
coletivo ou compartilhado de existir. As regras, ainda, tornam o mundo material uma
realidade social para os agentes (ZEHFUSS, 2002).
A utilização da linguagem em forma de discurso ("speech acts") é responsável
pela criação das regras, que podem ser formais ou informais. A categorização dos
atos discursivos em assertivo, diretivo ou comissivo diferencia a emergência de três
tipos distintos de regras: de instrução, de direção e de compromisso; e que, por sua
vez, produzem três formas distintas de condição de domínio: hegemonia, hierarquia
e heteronomia (ONUF, 1998).
11
Anarchy is what states make of it. 12
Atos podem consistir de ações físicas ou atos de fala, e seus significados definem a realidade social. 13
Saying is doing: talking is undoubtedly the most important way that we go about making the world what it is.
11
A abordagem construtivista utilizada por Martha Finnemore e Kathryn Sikkink
centralizam as discussões sobre o processo de construção social da política
internacional no papel exercido pelas normas como as responsáveis por criar uma
estrutura cognitiva compartilhada; ou seja, significado compartilhado. Segundo as
autoras, existe um relativo consenso quanto à definição das normas sendo um
"padrão de comportamento apropriado para os atores, dada uma identidade
(FINNEMORE; SIKKINK, 1998, p. 891)".
Os teóricos que versam sobre as normas apresentam uma distinção entre os
tipos de normas. A categorização mais utilizada segmenta as normas em três tipos.
A primeira compõe o grupo das normas reguladoras, que ordena e constrange o
comportamento. O segundo grupo é formado pelas normas constitutivas, que cria
novos atores, interesses ou categorias de ação. Por último, as prescritivas, que
usualmente não recebem muita atenção dos teóricos. A marginalização dessa última
categoria ocorre pelo fato das normas possuírem, intrinsecamente, a qualidade do
"dever" (FINNEMORE; SIKKINK, 1998). As normas, assim, definem um conjunto de
padrões de comportamento, estabelecem as obrigações e direitos. É nesse sentido
que a categoria prescritiva é marginalizada, já que o conceito de normas já incorpora
um grau de prescrição ou direcionamento.
É importante salientar que as normas não são herméticas, ou seja, elas são
passíveis de serem remodeladas e até mesmo alteradas. Pode-se atribuir às normas
um "ciclo de vida" composto por três fases: "norm emergence; "norm cascade"14 ou
"norm acceptance"; e a fase de internalização da norma. A primeira fase normativa
relaciona-se à atuação dos "norm entrepreneurs", que podem ser entendidos como
agentes normativos que buscam disseminar certas normas e persuadir os outros a
adotar novas normas. A segunda etapa refere-se à tentativa de socializar uma
norma ou um conjunto de normas, ocorre uma espécie de "efeito cascata". A última
fase é a internalização da norma. Nesse estágio as "adquirem uma qualidade de
algo dado e não são mais uma matéria de debate publico amplo15" (FINNEMORE;
SIKKINK, 1998, p. 895).
O presente estudo adota uma perspectiva construtivista para explicar a
ascensão dos direitos humanos, e reconhece a riqueza de instrumentos teóricos
14
O termo "norm cascade" foi proposto por Cass Sunstein, e é utilizado por Finnemore e Sikkink. 15
Tradução livre: "norms acquire a taken-for-granted quality and are no longer a matter of broad public debate"
12
disponíveis para qualquer análise que se fundamente na abordagem. Para os
propósitos desse estudo, contudo, focar-se-á no papel da linguagem e das normas
como edificadores de estruturas cognitivas compartilhadas, e buscará relacionar os
conceitos à emergência dos direitos humanos internacionais. Acredita-se que a
ênfase atribuída à intersubjetividade na configuração da realidade social amplia a
compreensão dos fenômenos do sistema internacional, e também dos temas de
discussão que lhe são inerentes. Ao utilizar os conceitos de identidades, normas,
regras e discurso, pode-se ampliar o nosso entendimento da realidade e tê-la como
sendo um contínuo processo de edificação. Utilizando-se desses conceitos, é
possível entender como os limites teóricos tradicionais conduziram à marginalização
de temas sociais (direitos humanos, meio ambiente, migrações, movimentos sociais
transnacionais, dentre outros) nas discussões internacionais e na agenda de Política
Externa dos Estados e, ainda, explicar a sua ascensão.
3. CONSTRUINDO OS DIREITOS HUMANOS
O conceito de direitos humanos utilizado hoje foi desenvolvido posteriormente
à II Grande Guerra e tem, desde então, sido repetido nas esferas nacional e
internacional. É consensual nas discussões internacionais o fato de que a origem do
conceito de direitos humanos que se utiliza hoje é inextricavelmente ocidental, mas
mesmo assim, a sua socialização e legitimação está sendo alcançada aos poucos. É
preciso atentar que existe uma dualidade quando se trata do discurso de direitos
humanos, e que o discurso pode operar tanto de forma positiva quanto negativa.
O conceito de ato discursivo (ONUF, 1998) exposto na primeira seção ilustra
como a linguagem é utilizada para criar regras que constituem as relações sociais ao
produzir uma rede de conhecimento compartilhado. As formações discursivas
constituem as normas sociais de uma sociedade ao criar campos de conhecimento
que ajudam a produzir identidades, interesses e valores, e que, por conseguinte
influenciam na visão de mundo e comportamento de alguém (GORDON;
BERKOVITCH, 2007).
A relação entre a construção da realidade, o poder e o conhecimento tem um
papel crucial para os direitos humanos e para a realidade social como um todo.
13
Emanuel Adler sugere que o poder significa possuir os recursos necessários para
impor uma visão própria aos outros, e mais ainda, de estabelecer uma relação de
autoridade capaz de determinar os significados que são compartilhados e
constituem as identidades, os interesses e as práticas dos estados (ADLER, 1999).
Esta capacidade de imposição de discursiva significa ter a habilidade e competência
para criar as regras que conduzem as relações sociais e levar os outros a aceitarem
e se comprometerem com tais regras.
A construção da realidade está ligada ao conhecimento, a valores e
interpretações. Assim, a perspectiva construtivista oferece instrumentos para
perceber quais são as interpretações que adquirem autoridade discursiva e
epistêmica. Isto é, quais as normas e regras que regulamentam uma dada realidade
social. Nessa ótica, a disseminação de um discurso que adquire legitimidade e
autoridade estabelece como práticas sociais válidas a visão de mundo de um
indivíduo ou grupo cuja capacidade de agência lhes foi outorgada, definindo e
corroborando para que identidades e interesses sejam formados.
Desde o aparecimento do conceito de direitos humanos, surgido no seio da
Organização das Nações Unidas (ONU), inúmeros protocolos, convenções e
tratados tem contribuído para emergência do discurso internacional dos direitos
humanos. O discurso produzido a partir da proliferação destes protocolos e
convenções contribuiu para transformar o direito internacional e humanitário, e
remodelou as relações entre organizações internacionais, governos e cidadãos
(GORDON; BERKOVITCH, 2007). O processo de disseminação do discurso dos
direitos humanos relaciona-se, ainda, à criação de inúmeras instituições
internacionais, sejam elas compostas pelos próprios Estados, ou entidades não
governamentais que tratam da defesa desses direitos.
Os instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos são
formadores de entendimentos coletivos representados pelas normas produzidas e
reconhecidas internacionalmente. Estabelecem o direcionamento para a formação
de interesses e identidades e estabelecem uma moralidade adequada ao tratamento
das questões de direitos humanos. A socialização normativa decorrente de tais
instrumentos protetivos não é imediata, mas progressiva. Por exemplo, 60 anos
atrás, os direitos humanos não possuíam o valor político que assume hoje nas
realidades internacional e dos próprios Estados nacionais.
14
Assiste-se nas últimas décadas o desenvolvimento do 'discurso global dos
direitos humanos', que demonstra o impacto das ideias e das normas na política
internacional. Manokha (2010) insere o discurso global dos direitos humanos como
um grupo de elementos linguísticos e extralinguísticos relacionados aos direitos
humanos. A retórica dos direitos humanos constitui-se como instrumento para que
os atores internacionais se tornem agentes da disseminação normativa dos direitos
humanos (MANOKHA, 2010).
Sikkink (1998) destaca a importância dos elementos normativo e ideacional
para o estudo da política internacional. Entretanto, tais elementos foram
sentenciados à marginalidade em virtude da dominância teórica imposta pelos
modelos (Neo) realista e (Neo) liberal. O interesse pela normatividade e pelo papel
das ideias na política internacional teve seu ímpeto inicial com a abertura
proporcionada pela teoria dos Regimes16 no final da década de 1980 (SIKKINK,
1998).
A ascensão do tema de direitos humanos e da aceitação das normas que
compõem o seu arcabouço normativo de proteção internacional deve ser entendido
a partir de dois processos: de "emergência normativa" e "norm cascade" (SIKKINK,
1998). O primeiro relaciona-se à própria emergência de conteúdo normativo. No
caso dos Direitos Humanos Internacionais, refere-se, por exemplo, à Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948). O segundo processo relaciona-se à
disseminação normativa e aceitação dos Estados às normas estabelecidas
internacionalmente. Sikkink (1998) argumenta que, desde o final da década de 1970
estamos assistindo o processo de "norm cascade", que pode ser visto a partir do
número de Estados que vêm ratificando tratados e dispositivos protetivos de defesa
dos direitos humanos, e mais ainda, estão, cada vez mais, incorporando e se
adequando (no âmbito doméstico) ao conteúdo normativo dos direitos humanos
internacionais (SIKKINK, 1998).
O processo que conduz à emergência de normas em âmbito internacional
deve ser entendido a partir da capacidade de agência tanto de atores estatais, como
não estatais. A disseminação dos direitos humanos não ocorre exclusivamente via
instrumentos ou regimes internacionais. A retórica dos direitos humanos está
presente, também, na esfera doméstica; por meio de atores transnacionais ou
16
Ver Krasner, 1983; Moravcsik, 1998; Keohane e Nye, 2001.
15
grupos organizados que atuam em prol da defesa e promoção destes direitos
(MARSH; PAYNE, 2007). Dessa forma, é importante salientar que a socialização da
normatividade relacionada aos direitos humanos acontece, simultaneamente, nas
esferas doméstica e internacional (SIKKINK, 1998).
A retórica dos direitos humanos presente na Carta das Nações Unidas, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos protocolos e convenções
relacionadas ao tema são fruto do entendimento e do esforço coletivo de um grupo
específico, que podem ser Estados ou atores transnacionais com capacidade de
agência. A simples fundamentação do discurso dos direitos humanos e do
estabelecimento de um arcabouço normativo e jurídico não garante,
necessariamente, a defesa desses direitos. A promoção das normas de direitos
humanos através da aceitação de declarações, tratados e do suporte da opinião
pública internacional é importante, ainda, para sujeitar os Estados à
responsabilização perante a comunidade internacional (MARSH; PAYNE, 2007).
Os instrumentos teóricos construtivistas aqui expostos permitem avaliar a
normativa internacional dos direitos humanos como um produto das concepções
morais ocidentais. Sendo assim, é duvidoso que em um mundo permeado por
variadas matrizes históricas e culturais, com percepções distintas dos direitos
humanos, todos os Estados ajustarão, genuinamente, seu comportamento para
promoção desses direitos. Os governos podem aderir à ideia dos direitos humanos
apenas para transparecer uma imagem à comunidade internacional, sem
necessariamente acreditar na validade destas normas (MARSH; PAYNE, 2007).
Mesmo sendo a origem do conceito de direitos humanos reconhecidamente
uma construção do Ocidente, a sua legitimação e proliferação ocorre através da
globalização das ideias e normas disseminadas na comunidade internacional. Esse
processo ocorre independente de as sociedades serem abertas ou fechadas,
ocidentais ou orientais. Em sociedades fechadas o ideário dos direitos humanos
pode ser disseminado, por exemplo, através da ação de dissidentes. Já em
sociedades abertas, as normas são facilmente absorvidas e disseminadas. Os
direitos humanos universais, tal como são concebidos atualmente, como um produto
Ocidental, pode dificultar a sua disseminação, mas não evitar que culturas de
distintos contextos culturais adotem, eventualmente, a normatividade dos direitos
humanos universais (MARSH; PAYNE, 2007). É natural que as normas
disseminadas internacionalmente a respeito dos direitos humanos sejam
16
ininteligíveis a certos contextos culturais, mas até que ponto os "particularismos” 17
podem ser justificativas para transgressão de certos direitos fundamentais?
A proteção internacional dos direitos humanos é um processo complexo e
repleto de possibilidades para discussão. A fase de "norm cascade" observada hoje
é o período no qual serão estabelecidas e delimitadas as formas e parâmetros de
proteção aos direitos humanos. É preciso salientar a importância de não permitir que
as distinções culturais e de percepções acerca dos direitos humanos seja um
obstáculo à socialização de normas de direitos humanos e à sua proteção
internacional. Tampouco deve a soberania de o Estado ser um empecilho à punição
de violações de direitos humanos.
4. A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
O surgimento do tema de direitos humanos enquanto objeto de preocupação
internacional é um fenômeno recente na política internacional. Seu processo de
internacionalização teve início a partir do pós II Guerra Mundial, sobretudo, em
virtude das imagens de destruição resultantes da guerra, e pela "lógica de
descartabilidade da pessoa humana" (PIOVESAN, 2000, p. 94) representada pelo
regime nazista. O nazismo incorporava uma lógica caracterizada pela noção de
exclusividade de direitos (à raça ariana) e possuía um caráter extremamente anti-
humano. A política totalitária restringia o estado e a condição de sujeito de direito
àqueles pertencentes a uma raça específica: a raça ariana. O resultado dessa
experiência totalitária foi o saldo de milhões de vidas ceifadas, perseguição e
extermínio de grupos étnicos e raciais específicos. Negavam-lhes quaisquer vínculos
jurídicos protetivos, inclusive os direitos mais fundamentais, como o direito à vida
(LAFER, 1995; PIOVESAN, 2000; SABOIA, 2009).
Para além dos horrores cometidos pelo regime nazista, a guerra em si é um
fenômeno que torna legitimo o ato de matar outro ser humano. Celso Lafer
caracteriza a guerra como uma situação-limite, na qual a proibição do homicídio é
17
A palavra particularismo pode, também, ser entendida como um produto ocidental no sentido de que se determinado comportamento não é natural À tradição ocidental, ele se torna um particularismo. Essa discussão, contudo, não é objetivo do presente estudo.
17
abolida; e a "guerra converte a ação de matar outros seres humanos não apenas em
algo permitido e legitimado, como também algo comandado" (1995, p. 169).
Foi necessário que o flagelo causado pela II Grande Guerra acometesse a
sociedade internacional para que se começasse a pensar em uma normatividade de
direitos humanos que direcionasse o comportamento dos Estados. É nesse cenário,
marcado pela tragédia, que começa a ser pensada a ideia de internacionalização
dos direitos humanos e a se estabelecer mecanismos e normativas que
corroborassem na preservação e promoção desses direitos. Flavia Piovesan destaca
que “se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra
deveria significar a sua reconstrução (p. 94, 2000)". Dessa forma, o processo de
internacionalização dos direitos humanos começa a ser estruturado no seio da
recém criada Organização das Nações Unidas (ONU). Havia o desejo e a
necessidade de tornar concretas as aspirações de justiça e dignidade de maneira
extensível a todos os seres humanos. Dever-se-ia, assim, ancorar a proteção dos
direitos humanos em normas e dispositivos de proteção internacional de seu ideário
(PIOVENSAN, 2000).
O marco inicial da empreitada de reconstrução e internacionalização dos
direitos humanos foi a aprovação, no dia 10 de dezembro de 1948, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A Declaração introduziu a concepção
contemporânea dos direitos humanos, que é caracterizada pela universalidade,
indivisibilidade e inter-relação dos direitos contidos no documento; onde o único
requisito para titularidade de direitos é a condição de ser humano (PIOVESAN,
2000). Não houve muita dificuldade em se adotar a Declaração Universal de 1948, já
que o documento não era vinculante, apresentava somente as diretrizes normativas
a respeito dos direitos humanos (LAFER, 1995).
O esquema de internacionalização dos direitos humanos fora elaborado
através dos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas,
estabelecida em 1946. O projeto estabelecia, assim, a criação da Carta Internacional
de Direitos Humanos, que compreendia a elaboração da DUDH, uma Convenção de
Direitos Humanos e medidas de implementação da normativa de direitos. Por
possuir caráter vinculante, a Convenção não foi vista como um instrumento
apropriado pelos representantes governamentais. Decidiu-se, pois, por transformar a
Convenção em dois Pactos distintos (LAFER, 1995). Nesse sentido, foram
implementados em 1966 o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto
18
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o protocolo adicional ao
Pacto de Direitos Civis e Políticos; os dois pactos só entraram em vigor em 1976
após receberem o número requerido de ratificações (LAFER, 1995; FRANCISCO,
2003).
Em referência à DUDH e aos dois pactos podem-se salientar pontos de
discordância e choque entre diferentes matrizes culturais e históricas. As
divergências quanto ao conteúdo normativo referenciam, em consonância com
Rachel Herdy de Barros, o número reduzido de Estados que aprovaram o texto final
do documento, e também o pequeno grupo de Estados incumbidos de, através da
Comissão de Direitos Humanos, redigir a referida Declaração18.
Um dos pontos principais de debate acerca da normativa internacional dos
direitos humanos referia-se às particularidades culturais e à forma com que a
pluralidade de culturas e tradições histórico-sociais era tratada. As discussões se
relacionam com tradições filosóficas de origem universalista e relativista19, e, por
conseguinte, a Estados que defendem a primeira ou segunda orientação. Não se
pretende adentrar em discussões de cunho relativista ou universalista, apenas
demonstrar que o desenvolvimento normativo e do discurso dos direitos humanos
não era de todo consensual.
O processo de universalização dos direitos humanos possibilitou que fosse
criado um aparato normativo internacional para a proteção desses direitos. Um
verdadeiro sistema normativo global de proteção aos direitos humanos, criado e
desenvolvido no seio da ONU. Duas nuances integradas por esse sistema são
destacadas: instrumentos de alcance geral (busca proteger o ser humano sem
distinção de característica; é endereçado a toda e qualquer pessoa), por exemplo,
os dois pactos de 1966; e também instrumentos de alcance específico (o sujeito de
direito é visto em sua especificidade, por exemplo, proteção direcionada às crianças
ou grupos minoritários), são estes as diversas convenções internacionais20 que
18
O Projeto da Declaração foi incumbido aos seguintes países: Bielorússia, Estados Unidos, Filipinas, União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas, França e Panamá. A aprovação do texto, por sua vez, teve a participação de 58 Estados, dos quais 48 votaram a favor, nenhum contra, 8 se abstiveram e dois estiveram ausentes. 19
Para mais, ver Jack Donnely "The Relative Unviersality of Human Rights", 2007; "Cultural Relativism and Universal Human Rights"; e Boaventura de Sousa Santos "Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos", 2001. 20
Por exemplo, Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1965), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), Convenção internacional contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis ou degradantes (1984), Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989). .
19
objetivaram ampliar o escopo protetivo dos direitos humanos (PIOVESAN, 2000).
Em consonância com o sistema universal, desenvolveram-se, também, sistemas
regionais de proteção aos direitos humanos: o sistema europeu, americano e
africano21. Os sistemas protetivos regionais são, assim, complementares ao sistema
universal de defesa aos direitos humanos.
O processo de universalização dos direitos humanos não foi conduzido, e
nem é, atualmente, um projeto que é do agrado de toda a comunidade internacional.
Pelo percurso de seu desenvolvimento, inúmeros pontos de convergência e
divergência puderam ser salientados. Entretanto, como será visto adiante, entende-
se que a legitimidade universal da promoção e defesa dos direitos humanos fora
conseguida.
Quando do final da II Guerra Mundial, abriu-se espaço para que os direitos
humanos recebessem maior atenção no sistema internacional. Como visto, foi a
partir da catástrofe e destruição provocadas pela guerra, que começou a ser
pensada a ideia de se defender os direitos humanos em âmbito internacional. Outra
alteração no quadro internacional, assim como fora a II Guerra Mundial, e que daria
novo ímpeto aos direitos humanos internacionais seria o fim do conflito ideológico
caracterizado pela Guerra Fria. Como observado por Celso Lafer, o fim do conflito
possibilitou que houvesse melhorias no relacionamento multilateral, e liberou "as
Nações Unidas da hipoteca da confrontação ideológica” (1995, p. 179).
Em meio a um novo cenário internacional, realizou-se, em Viena, a Segunda
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que se estendeu do dia 14 a 25 de
junho de 1993, reunindo representantes de 171 Estados das mais variadas tradições
e matrizes histórico-culturais (BOYLE, 1995; FRANCISCO, 2003; ROSSANA, 2006).
Além da representação dos Estados, a Conferência recebeu, ainda, a participação
de aproximadamente 800 organizações não governamentais acreditadas como
observadoras (BOYLE, 1995; LAFER, 1995; ROSSANA, 2006). Foi a maior e mais
21
Não objetiva-se aprofundar nas discussões sobre os sistemas regionais e seus elementos constitutivos, mas se reconhece a importância destes sistemas em atuar em regiões específicas através da inspiração dos valores contidos na Declaração Universal, e reconhecendo particularidades presentes em suas regiões. Para mais informações sobre os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, ver Antônio Augusto Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos - Volume III (2003).
20
abrangente reunião já feita para discutir, exclusivamente, o tema de direitos
humanos22 (BOYLE, 1995; ROSSANA 2006).
O sistema internacional era composto por um cenário pós-colonial e pelo fim
da confrontação ideológica entre o ocidente e o oriente. Como destaca Kevin Boyle,
o pensamento da época era de que pudesse se recomeçar e fortalecer as Nações
Unidas para enfrentar os desafios dos direitos humanos, e também de outros temas
que ganhavam força na agenda internacional. O novo cenário abriu espaço para que
proliferassem as reuniões internacionais sobre os mais diversos temas, por exemplo,
a Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), a
Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento (1993), a
Quarta Conferência sobre Mulheres (1995). Esses processos globais possibilitam
que houvesse discussões sobre temas importantes para a nova realidade
internacional, e são instrumentos importantes na produção de normativas
internacionais que podem redefinir o futuro da sociedade internacional (BOYLE,
1995).
A Conferência de Viena aconteceu nesse novo cenário, mas a euforia inicial
quanto às potencialidades oferecidas pelo fim da confrontação ideológica havia
desaparecido. O entusiasmo era menor. Enquanto acontecia a Conferência, bem
próximo de Viena, ocorria o conflito étnico na Bósnia-Herzegovina (BOYLE, 1995). O
fim do conflito, de um lado, permitiu que se transformasse um sistema de
polaridades definidas - Leste/Oeste e Norte/Sul - para polaridades indefinidas, que
se modela a partir das forças da globalização; mas do outro, significou na
proliferação dos conflitos, intensificou-se os particularismos excludentes23, sobretudo
os de natureza étnica e religiosa (LAFER, 1995).
A atmosfera internacional sobre a qual ocorreu a Conferência era marcada
por menos entusiasmo, por dúvidas e incertezas. A Conferência trouxe uma direção,
que se materializou no reconhecimento dos países desenvolvidos no direito ao
desenvolvimento, e que as garantias de direitos econômicos e sociais básicos são
necessárias à proteção dos direitos humanos e manutenção da estabilidade política.
Neste sentido, a Conferência de Viena também resultou na afirmação de que a falta
22
A Conferência de Viena foi a segunda reunião internacional exclusivamente para discussão dos direitos humanos. A primeira aconteceu em Teerã, 1968, para marcar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 23
Por exemplo, a limpeza étnica ocorrida na Ex-Iugoslávia e o genocídio de Ruanda.
21
de condições econômicas e sociais adequadas não podem ser argumento para
justificar possíveis violações de direitos humanos (BOYLE, 1995; LAFER 1995).
A Declaração e Programa de Ação de Viena (DPAV), resultado das
discussões ocorridas durante a Conferência de Viena, reafirmou que "todos os
direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”
(FRANCISCO, 2003, p. 18), além de legitimar a sua preocupação e observância
internacional (LAFER, 1995). Conforme observado por Lafer (1995), a conceituação
dos direitos humanos como indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados acaba
com a ideia de hierarquização de direitos.
A evolução dos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos
confere legitimidade à tutela internacional desses direitos. A construção da ideia de
que a proteção dos direitos humanos não deve estar limitada à atuação do Estado
produz duas consequências: primeiro, abre espaço para que seja repensada a
tradicional concepção de soberania absoluta do Estado; e insere o indivíduo como
sujeito de Direito na esfera internacional (PIOVESAN, 2000). Nesse sentido, a tutela
internacional dos direitos humanos é legitimada por meio do resultado alcançado
com a DPAV, e que a soberania não pode ser um recurso à disposição do Estado
para permitir que violações de direitos humanos ocorram (LAFER, 1995).
A dimensão e heterogeneidade assumidas pela Conferência de Viena, assim
como o seu resultado prático (A Declaração e Programa de Ação de Viena),
conferiram legitimidade e consenso acerca da importância de se discutir, promover e
defender os direitos humanos em escala global. Foi possível que se estabelecesse
discussões plurais e que integrassem os Estados à sociedade civil internacional (por
meio das ONGs). A participação das ONGs foi importantíssima, ainda, para a
Criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUDH). A proposta de criação do ACNUDH já vinha sendo debatida
anteriormente, mas jamais conseguido aprovação. Por meio de uma proposta
enviada à Conferência pela Anistia Internacional, organismo fora criado em 1993
pela Assembleia Geral, com a finalidade de articular as diversas agências da ONU
que lidavam com o tema de direitos humanos (HERNANDEZ, 2010; ROSSANA,
2006). Foi discutida ainda, no âmbito da Conferência, a ideia de se criar um Tribunal
Penal Internacional para julgar crimes contra os direitos humanos, e que se
concretizou em 1998, quando da assinatura do Tratado de Roma (ROSSANA,
1998).
22
O pós II Guerra Mundial abriu espaço para que o ideário dos direitos humanos
emergisse no sistema internacional, e a partir de então a normatividade e a
institucionalização da proteção aos direitos humanos começou a ser iniciada. Abriu-
se espaço para uma série de novas considerações. A Declaração Universal foi um
marco importante para os direitos humanos, mas insuficiente para tratar de um tema
que congrega tantas especificidades. Os direitos humanos podem sempre ser
ampliados em seu escopo protetivo, fato observado a partir da evolução
internacional dos direitos humanos: da Declaração Universal aos dois Pactos, além
de inúmeros protocolos e da criação de instituições cujo objetivo é promover e
proteger os direitos humanos; as convenções também são importantes, sejam elas
de caráter amplo (versa sobre os direitos humanos de modo geral) ou específico
(tratam de direito das crianças ou das mulheres, por exemplo).
A Conferência de Viena não foi um sucesso, tampouco um fracasso. As
expectativas eram, certamente, maiores que os resultados conquistados. A
dimensão assumida pela Conferência e a abertura concedida às ONGs representam
ponto positivo. Como bem observa Kevin Boyle (1995), elas existem para utilizar sua
força na representação de vítimas espalhadas por todo o mundo. A heterogeneidade
representada por 171 nações foi, também, um ponto controverso e de certa forma
positivo. Países que tradicionalmente se opõem ao discurso universalista dos
direitos humanos, e das mais variadas matrizes históricas e culturais reconheceram
a validade universal dos direitos humanos. A criação do ACNUDH, em específico,
como resultado das discussões de Viena, é um avanço significativo no sentido de
defender e promover os direitos humanos. Está cada vez mais difícil os Estados
negarem a entrada de suas missões no território do Estado (ROSAS, 1995).
5. SOBERANIA, ATIVISMO TRANSNACIONAL E DIREITOS HUMANOS.
A proposição fundamental dessa pesquisa é relacionar a emergência dos
direitos humanos internacionais à progressiva alteração da percepção que é
compartilhada coletivamente acerca do princípio da soberania do Estado. O conceito
em questão, antes relativamente incontestado, tem se tornado objeto de discussão
23
dentro das Relações Internacionais, e é exatamente por estar em pauta, que se
pode observar um processo ressignificação em curso.
A perspectiva clássica da soberania considera o princípio como uma das
normas basilares da sociedade internacional, sendo indispensável para se pensar a
dinâmica do sistema internacional. Estados soberanos são entendidos a partir de
categorias que os compõem: são territoriais, dotados de independência jurídica, e
não estão sujeitos a nenhuma forma de autoridade externa, tendo autonomia para
tomada de suas decisões. A autonomia significa, em suma, que os Estados não
devem intervir nos assuntos internos uns dos outros (KRASNER, 2001).
A soberania é um tipo de relação de autoridade, que é caracterizada por
comandos dados por um ator, cuja expectativa é que sejam obedecidos por um
segundo ator. Algumas características compõem o entendimento da autoridade, tais
quais: deve incorporar uma medida de legitimidade; envolve um tipo de comando
não coercitivo; a autoridade nunca é absoluta (LAKE, 2003). A soberania confere
autoridade suprema aos Estados dentro de seus limites territoriais, e nega qualquer
autoridade superior para além dessas fronteiras. Ou seja, não estão submetidos a
quaisquer obrigações políticas ou legais fora de suas fronteiras (REUS-SMIT, 2001).
Desse modo, pode-se caracterizar o princípio como uma relação de autoridade que
possui tanto uma face interna quanto uma externa. Internamente, a soberania define
a autoridade dentro de um Estado, requer o controle efetivo do território e povo de
um Estado específico, e implica uma relação de hierarquia entre o Soberano e os
subordinados. Externamente, a soberania requer que os Estados reconheçam um ao
outro como tal, o que caracteriza a soberania como uma categoria inerentemente
social (LAKE, 2003, p. 305), pois a materialização das práticas relativas à soberania
só é possível em função do outro, e não haveria um Estado soberano sem a
existência de outras unidades soberanas. É somente em virtude do reconhecimento
mútuo que os Estados dispõem de “direitos de propriedade territorial” (WENDT,
1992, p. 413).
As teorias de Relações Internacionais de matriz racionalista, tal como o
realismo e o liberalismo institucional, tratam a soberania como uma instituição
sedimentada a partir do reconhecimento mútuo, do princípio da não intervenção e da
autodeterminação, além de enxergar a soberania como absoluta (REUS-SMIT,
2001). A perspectiva clássica assume, ainda, que a soberania é um atributo fixo e
24
exógeno ao Estado, sendo percebida como um princípio absoluto, e que caracteriza
o Estado24 (LAKE, 2003).
Os estudos mais recentes têm enfatizado a natureza dinâmica do conceito de
soberania, e o interpretado a partir de múltiplos contextos históricos e políticos,
diferentemente da extensão universal e atemporal que antes lhe era atribuída. Muito
dessa nova percepção, ou do questionamento, de paradigmas tradicionais, foi
resultado da “virada linguística”, movimento que acometeu as ciências sociais a
partir da década de 1970 (BARTELSON, 2006). Como visto na primeira seção dessa
pesquisa, a linguagem e a sua utilização em forma de discurso, é o instrumento mais
importante no processo de construção social, ou seja, em produzir os significados
que são introjetados na sociedade e em seus agentes, e passam a ser
coletivamente compartilhados (ONUF, 1998).
A linguagem possui caráter pessoal e intencional, ou seja, ela é utilizada com
um propósito, e representa as expectativas particulares do locutor que profere o
discurso. A soberania é, pois, uma instituição que existe somente em relação a
certos entendimentos e expectativas intersubjetivas, que são originadas a partir de
discursos que são propriamente proferidos e produzem uma reação no interlocutor
(ONUF, 1998). A constatação do significado real da soberania reside naquilo que
fazemos dele, através do discurso amplamente aceito pela comunidade, de nossas
convenções linguísticas e práticas retóricas, que produzem um ambiente de
interação dialético, onde significados são criados e recriados, abrindo espaço para
diversos campos de investigação, ao tempo que descarta a ideia de que o conceito
seria uma fundação incontestável (BARTELSON, 2006).
O Estado soberano é um fruto de um processo contínuo de reprodução de
práticas, e que dependem, portanto, do modo que os Estados (como agentes),
tratam um ao outro. Caso os Estados tratem um ao outro como soberanos, com o
tempo um modo particular de subjetividade será institucionalizado em práticas; caso
contrário, este modo específico não se tornará a norma padrão. Os entendimentos
coletivos incorporados na instituição soberania são o que determinam a
interpretação que os Estados e demais agentes terão acerca deste conceito
(WENDT, 1992). É preciso ter em mente, contudo, que arranjos sociais como a
comunidade de Estados soberanos, uma vez consolidados, tendem a ser bastante
24
Nesta lógica, ou o Estado é soberano, ou não é, de fato, um Estado.
25
duráveis, já que as ideias que compõem a intersubjetividade em questão já estão
formadas e internalizadas. Mesmo assim, partindo das lentes construtivistas, sabe-
se que ideias podem mudar rapidamente, e os arranjos sociais outrora
estabelecidos, podem ser transformados (ONUF, 1991).
Como visto, a soberania do Estado é comumente concebida como uma série
de pressupostos a respeito da natureza e escopo da autoridade do Estado. Os
pressupostos da soberania são fortes, mas somente pelo fato de representarem
entendimentos e expectativas compartilhadas que são continuamente reafirmadas
através das práticas dos Estados e de atores não estatais. Se a soberania é formada
por um conjunto de entendimentos e expectativas a respeito da autoridade do
Estado, e é reforçada a partir das práticas dos atores, então a forma de transformar
a interpretação deste princípio é justamente alterando os próprios entendimentos e
práticas que os atores têm acerca da soberania (SIKKINK, 1993).
Os esforços internacionais no sentido de proteger os direitos humanos se
confrontam com a premissa básica da soberania em seus moldes tradicionais, pois
significa que a forma pela qual um Estado se comporta com seus próprios cidadãos
está se tornando objeto de preocupação que extrapola os limites territoriais e da
jurisdição de um Estado específico. A atuação das redes de ativismo transnacional
busca, assim, a redefinição do que era essencialmente matéria da jurisdição interna
do Estado, e objetiva tornar legítima a preocupação dos Estados e atores não
estatais em preocupar-se com o tratamento de habitantes de outros Estados
(SIKKINK, 1993). As redes de direitos humanos, deste modo, têm contribuído para
que entendimentos e práticas compartilhadas a respeito da soberania e da
legitimidade dos direitos humanos sejam alterados.
26
As redes de direitos humanos ajudaram a promover estes
meios de duas maneiras. Organizações internacionais
desenvolveram procedimentos formais para discutir e investigar
situações de direitos humanos nos Estados-membros. Mas
procedimentos formais são ineficazes se não usados. O
trabalho de ONGs tornou a prática repressiva dos Estados
mais visíveis e salientes, forçando os Estados que
permaneceriam em silêncio a responder. Ao se tornarem mais
cientes das violações de direitos humanos, alguns Estados
exigiram explicações de outros. Expostos a crescentes
pressões, Estados repressivos tentaram fornecer justificativas.
O ciclo de expor violações, exigir explicações, prover
justificativas, e mudar práticas, Estados e ONGs gradualmente
questionaram os entendimentos tradicionais da soberania e
começaram a construir elementos de uma soberania
modificada. Quando um Estado reconhece a legitimidade de
intervenções internacionais no tópico de direitos humanos e
altera suas práticas domésticas de direitos humanos em
resposta às pressões internacionais, ele reconstitui o
relacionamento entre Estado, cidadão e atores internacionais
(SIKKINK, 1993, pp. 414-415).
Os estudos que versam sobre as redes transnacionais de advocacia em prol
dos direitos emergiram como um subcampo das Relações Internacionais na década
de 1990, apresentando-se como um desafio à primazia do Estado e da perspectiva
materialista de interpretação da realidade. O argumento construtivista pressupõe
que a realidade social é construída a partir das interações de indivíduos e atores
coletivos em uma comunidade de Estados. Os defensores do transnacionalismo
instrumentalizam tal argumento de modo demonstrar como a defesa de normas
específicas, tais quais as de direitos humanos, podem moldar o comportamento dos
Estados e governos sem mesmo ter controle de recursos ou forças materiais
(SCHMITZ, 2010).
A escolha das redes de ativistas transnacionais, nesse sentido, é fruto do
reconhecimento do papel exercido por tais grupos na formação da intersubjetividade
compartilhada a respeito de determinados assuntos, nos âmbitos doméstico e
internacional. A sedimentação da realidade intersubjetiva acontece por meio da
disseminação de normas, ideias e valores que atuam na formação de identidades e
contribuem para a convergência de percepções entre os atores que compõem o
sistema internacional. Reconhece-se de modo quase consensual que, atualmente, a
política internacional é moldada a partir da interação de diversos atores, que vão
muito além dos Estados, incluindo atores não estatais que interagem entre si e com
27
os Estados, com os indivíduos, grupos civis, organizações internacionais e ONGs
transnacionais (KECK; SIKKINK, 1999; BOCSE, 2011).
No grupo desses ativistas transnacionais, congregam-se atores que atuam
internacionalmente em um assunto específico, e que estão ligados por meio do
compartilhamento de valores e de um discurso semelhante. O instrumental prático
destes ativistas, e o que de fato lhes confere poder de atuação, é a habilidade de
mobilizar informações de forma estratégica e de espalhá-la, contribuindo para o
surgimento de novos temas na agenda de discussão, servindo ainda como
instrumento para persuadir, pressionar e ganhar influência sobre organizações e
governos mais poderosos. Deste modo, os ativistas transnacionais podem
influenciar diretamente nos resultados políticos e transformar a natureza do debate
acerca de assuntos específicos. É preciso ter em mente, contudo, que nem sempre
são bem sucedidos em suas empreitadas (KECK; SIKKINK, 1999).
Uma rede de ativismo transnacional é definida como um conjunto de atores
que exercem atuação internacional relevante acerca assunto específico, e que estão
ligados pelo compartilhamento de valores, um discurso comum, e intensa troca de
informações e serviços (KECK; SIKKINK, 1999; BOCSE, 2011). As redes de
ativismo transnacional são significativas tanto na esfera transnacional como na
doméstica, pois ao criar novas ligações entre atores da sociedade civil, estados e
organizações internacionais, eles multiplicam os canais de acesso ao sistema
internacional (KECK; SIKKINK, 1998). Deste modo, as redes de ativismo devem ser
compreendidas como espaços políticos nos quais os atores negociam – formal ou
informalmente – o significado social, cultural e político de suas empreitadas. São
estruturas comunicativas que contribuem para a promoção de normas que podem
alterar a percepção que os atores estatais ou societais possuem deles próprios, de
suas identidades, interesses e preferências. Caso a atuação destes ativistas tenha o
resultado prático esperado, as posições discursivas e o próprio comportamento dos
atores podem ser alterados (KECK; SIKKINK, 1999). Acredita-se que, ao alterar os
limites do relacionamento dos Estados com seus próprios cidadãos, e os recursos
que estes têm para acessar o sistema internacional, a rede de ativismo
transnacional está contribuindo para transformar a prática da soberania nacional
(KECK; SIKKINK, 1998).
As redes de ativismo transnacional são apontadas, frequentemente, como a
solução para problemas amplos que afetam o sistema internacional, tal qual o meio
28
ambiente e direitos humanos, já que tais grupos incorporam uma ideia composta por
princípios e valores que motivam suas ações. Suas atividades estão focadas na
promoção de objetivos ou metas específicas, realizadas de forma coletiva, e
amparadas por normas ou princípios. Ao promover novos entendimentos
compartilhados e normas em uma variedade de áreas da política internacional, a
rede de ativismo transnacional pode contribuir para a reconstituição das identidades
dos Estados, de atores diversos, e também de organizações internacionais (PARK,
2004).
Os ativistas transnacionais atuam promovendo a implementação de normas.
Tais grupos identificam alvos específicos e pressionam os atores a adotar novas
políticas, que têm seu cumprimento monitorado a partir dos padrões internacionais
compartilhados. A sua atuação corrobora para transformar as percepções que os
Estados e atores societais possuem de suas próprias identidades, interesses e
preferências, fato que pode resultar na alteração de suas posições discursivas, e
mudar procedimentos políticas e comportamento (KECK; SIKKINK, 1998). O
conceito de “estrutura de oportunidade política” é importante para analisar a atuação
e importância da rede de ativismo na sedimentação ou alteração do conhecimento
compartilhado no sistema internacional. A estrutura de oportunidade política é
definida como um conjunto de variáveis sociais e institucionais que podem afetar o
desenvolvimento da ação coletiva (BOCSE, 2011). Kathryn Sikkink categoriza tal
estrutura em doméstica e internacional. A primeira refere-se à abertura das
instituições políticas domésticas ao movimento social ou influência que pode ser
exercida por ONGs. A estrutura internacional, por sua vez, está ligada ao grau de
abertura das instituições internacionais à participação de ONGs transnacionais,
redes de ativistas e coalizões diversas (SIKKINK, 2005).
A linguagem do ativismo transnacional pode ser traduzida, basicamente, na
reivindicação por direitos. Neste sentido, destaca-se que os governos são, ao
mesmo tempo, os principais garantidores e violadores de quaisquer direitos. Em
alguns casos, direitos são violados dentro da jurisdição dos Estados, e as
autoridades não respondem às demandas individuais ou de grupos específicos. O
“padrão boomerang”, assim, é importante para ilustrar eventos como estes, nos
quais os canais de comunicação entre o Estado e seus atores domésticos
encontram-se obstruídos (KECK; SIKKINK 1999; BOCSE, 2011).
29
Figura 01 – Ilustração do Padrão Boomerang
Fonte: KECK E. Margaret; KATHRYN, Sikkink. Activists beyond Borders: Advocacy Networks in
International Politics. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1998
O padrão boomerang constitui-se quando as ligações entre o Estado e atores
domésticos estão rompidas, e ONGs domésticas buscam auxílio externo para
pressionar o Estado a alterar sua conduta através de mecanismos de pressão
externa, com o apoio de outros Estados ou através de organizações internacionais,
ONGs transnacionais, mídia ou quaisquer atores capazes de tornar público o
divórcio entre o Estado e grupos internos que clamam por direitos (KECK; SIKKINK,
1999).
Quando o governo de um Estado particular viola ou recusa a reconhecer
direitos individuais ou de grupos, na maioria dos casos tais atores não possuem
recursos para alterar a situação de abandono que os acomete dentro de suas
próprias sociedades. Deste modo, quando o governo se mostra inerte face às
reivindicações de indivíduos ou grupos domésticos, estes podem buscar apoio
internacional, representados pela ação de ONGs transnacionais, governos
estrangeiros ou organizações intergovernamentais, com a esperança de que tais
entidades exerçam pressão nas autoridades nacionais que estão violando ou
usurpando direitos (KECK; SIKKINK, 1999; BOCSE, 2011).
30
Os direitos humanos servem como ilustração para casos nos quais governos
se mostraram indispostos a responder de forma efetiva diante de situações de
violações, e a forma com a qual o ativismo transnacional pode internacionalizar as
demandas de grupos internos. Os dois casos considerados como precursores do
assunto de direitos humanos foram levados ao debate público internacional através
de ONGs e corroboraram para promover ação internacional: A Cruz Vermelha25 está
relacionada ao movimento em prol do respeito aos direitos humanos em conflitos
armados, tendo encabeçado as atividades que deram origem às leis de direitos
humanos em conflitos armados. O outro movimento, por sua vez, relaciona-se à
campanha pela abolição do comércio de escravos e da escravatura, cuja liderança
fora exercida por um grupo de ONGs, pela Liga Anti-Escravatura, que militavam no
sentido de proteger os direitos daqueles que se encontravam condicionados à
escravidão até que eventualmente a escravidão fora abolida (SIKKINK, 1993).
Os casos nos quais o Brasil foi demandado junto ao sistema interamericano
ilustram a importância que a advocacia transnacional de direitos humanos exerce no
sistema internacional. Os atores não tradicionais têm auxiliado na publicidade das
violações de direitos humanos, deixando o Estado violador exposto ao risco de
constrangimento político e moral. Neste sentido, o trabalho de ONGs transnacionais
torna as práticas repressivas dos Estados um assunto público e visível a toda
comunidade internacional. Ao enfrentarem a publicidade das violações e as
decorrentes pressões internacionais, o Estado é constrangido a apresentar
justificativas a respeito do tratamento de seus nacionais. Na medida em que esse
tipo de situação se torna mais frequente, as práticas relacionadas aos direitos
humanos vão sendo alteradas e novos entendimentos são produzidos, servindo de
estímulo para que reformas internas aconteçam (PIOVESAN, 2012). Em uma
perspectiva atual, o Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) foi
responsável por encaminhar diversos casos à Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Somente nos anos de 2006 e 2007 o CEJIL e seus co-peticionários
25
Há controvérsia quanto à classificação da Cruz Vermelha como uma ONG. Por ter uma atuação específica, muitos classificam a instituição como sui generis, reconhecendo, inclusive, sua personalidade jurídica internacional. A Convenção de Genebra e seus protocolos adicionais não obrigam as partes contratantes a reconhecer a personalidade da instituição, seja no âmbito doméstico ou internacional, ou a garantir imunidades. A Cruz Vermelha, contudo, é vista como sujeito de direito internacional ante ao Tribunal Penal para a Ex-Iugoslavia e em diversos documentos públicos (GAZZINI, 2009, pp. 3).
31
litigaram e supervisionaram a implementação de mais de 250 casos ante a
Comissão Interamericana e também à Corte26 (MIALHE, 2014).
Para melhor compreender a significância da atuação do ativismo
transnacional é importante ressaltar as criticas e desafios apresentados à atuação
destes grupos no sistema internacional. Os defensores das redes de advocacia
transnacional qualificam o movimento como significante e os veem como atores
importantes para a política internacional; em contrapartida, os críticos apresentam
uma visão mais cética a respeito do movimento. Alguns estudiosos observam com
mais pessimismo o fenômeno do ativismo transnacional, destacando as dificuldades
de manter tais tipos de rede e questionando a efetividade de promover direitos
humanos do lado de fora das estruturas domésticas27. A crítica apresentada
argumenta que as redes de ativistas transnacionais não são movidas por princípios
compartilhados, mas por interesse próprio e estratégico, cujo objetivo é o
crescimento organizacional e a sobrevivência (SCHMITZ; SIKKINK, 2012).
O fato de os grupos de ativismo transnacional competir por influência e apoio
internacional os força a estabelecer objetivos que estejam em consonância com
ideias dominantes. Nesse sentido, causas que mereceriam atenção especial podem
não receber o foco devido, pois os grupos transnacionais selecionam suas causas
em função da exposição nos meios de comunicação massiva ou do apoio percebido
a um evento particular. Vários estudos já concluíram que as ações de ONGs
poderosas não necessariamente estão direcionadas às causas mais merecedoras,
mas àquelas que possuem maior potencial de angariar apoio de doares,
corroborando para a marginalização dos abusos que ocorrem em Estados menores
e mais pobres (SCHMITZ; SIKKINK, 2012).
Além disso, uma das críticas mais debatidas a respeito da atuação ativismo
transnacional refere-se à capacidade que tais grupos teriam em compreender as
necessidades locais. Os críticos argumentam que, muitas vezes, o ativismo
transnacional pode falhar em reconhecer peculiaridades locais e engajarem-se em
26
O Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) foi responsável por encaminhar diversos casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diversos casos estão relacionados ao Brasil e tiveram ampla repercussão nacional e internacional, dos quais se destacam: a) caso do complexo Tatuapé FEBEM; b) o caso Simone Diniz; c) o caso do massacre do Carandiru; d) o caso da guerrilha do Araguaia; e) o caso da Fazenda Ubá; f) o caso da Maria da Penha; g) e o caso Fazenda Brasil Verde (CAMPOS, 2010; MIALHE, 2014; SANTOS, 2007).
32
atos de imperialismo cultural que podem produzir e reproduzir a violência que
pretendem combater (SMITH, 2012).
Um pedido final sob o rótulo de desafios para o ativismo transnacional foca sobre as consequências negativas não intencionais de mobilização do lado de fora. Em contraste com as previsões mais otimistas de uma identidade de interesses entre o ativismo nacional e internacional, uma série de estudos tem afirmado que a sociedade civil nacional pode ser afetada adversamente por esforços externos bem-intencionados. Redes verticais que ligam as atividades domésticas a apoiadores externos podem alienar eleitorados nacionais e dificultar ativistas locais em construir coalizões horizontais fortes em casa. Ativistas e políticos locais não necessariamente compartilham valores de seus apoiadores externos e simplesmente usar normas universais para avançar interesses políticos (SCHMITZ; SIKKINK pp. 841).
Os grupos que congregam o movimento do ativismo transnacional têm
aumentado de forma considerável nas últimas décadas, mas a ascensão desta
forma de ativismo aconteceu de forma desigual em termos geográficos. O número
de grupos que atuam transnacionalmente varia consideravelmente quando são
comparados os Estados industrializados do Norte com aqueles de menor
desenvolvimento relativo, os países do Sul. A participação do Sul aumentou durante
as décadas de 1980 e 1990, mas o mundo em desenvolvimento é bem menos
presente no movimento social do ativismo transnacional. O fato de grupos de
ativismo se consolidar em países desenvolvidos é importante para ilustrar a
importância das estruturas domésticas no processo de expansão deste tipo de
movimento. Não obstante, há ainda o risco de perpetuação da subjetividade do
Norte em detrimento daquela do Sul, já que tais grupos podem engajar-se em atos
que podem ser considerados imperialistas e falhar em observar peculiaridades locais
(TARROW, 2005).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho em questão buscou apresentar a perspectiva construtivista das
Relações Internacionais e colocá-la como lente de análise para a ascensão dos
direitos humanos, da interpretação do conceito de soberania, e da potencialidade
oferecida pelo ativismo transnacional no sentido de repensar o paradigma tradicional
33
da soberania. A ascensão dos direitos humanos foi associada à emergência do
discurso e normativas internacionais relativas à ampliação e promoção desses
direitos. O construtivismo das Relações Internacionais forneceu os instrumentos
teóricos que possibilitaram ligar a formação de uma estrutura cognitiva intersubjetiva
– a partir do discurso e da elaboração de normas internacionais, por exemplo,
aquelas positivadas na Carta da ONU e em outros documentos internacionais – à
ascensão dos direitos humanos internacionais. Os instrumentos teóricos
construtivistas permitiram, ainda, constatar que esses direitos são resultado das
aspirações e atuação de uma parcela específica de atores internacionais cuja
capacidade de agência lhes foi outorgada.
A internacionalização e institucionalização dos direitos humanos é um
processo gradativo, e que, sem dúvida, não chegou ao fim. Interpretou-se tais
direitos a partir da perspectiva do discurso como elemento formador da realidade
social, evidenciando as formas com as quais significados são atribuídos e assumem
autoridade epistêmica. Na temática estudada, é evidente que os valores e
percepções ocidentais são os que formam o entendimento a respeito dos direitos
humanos, e o construtivismo permite observar as formas de domínio que podem
emergir a partir do momento em que um discurso adquire autoridade epistêmica.
Tem-se observado a consolidação do discurso global de direitos humanos que,
inegavelmente, corrobora para que o tema ocupe papel de destaque na agenda de
discussão internacional, mas que, ao mesmo tempo, apresenta uma série de
desafios, sobretudo em relação à forma com a qual as peculiaridades culturais são
interpretadas na construção desse sistema de proteção.
Mesmo não havendo mecanismos efetivos de enforcement, cada vez mais os
direitos humanos estão assumindo papel subversivo em relação à soberania. É
nesse sentido que o trabalho apresentou a forma tradicional de interpretação desse
conceito, que pressupõe a autoridade e autonomia absoluta do Estado, e questionou
tal paradigma através da linha de pensamento construtivista. Por ser uma categoria
social, a soberania é percebida a partir do compartilhamento de entendimentos e
expectativas específicas, responsáveis por delimitar o seu significado. Se, um dia, a
soberania foi percebida como absoluta, é porque um modo particular de
intersubjetividade foi institucionalizado em práticas. O estudo mostrou, assim, como
o discurso dos direitos humanos tem contribuído para que essa percepção seja
34
gradativamente alterada, e como novas práticas podem significar o declínio do
paradigma da soberania clássica.
O ativismo transnacional foi escolhido por seu potencial discursivo, que
contribui para que novas práticas sejam formadas no sistema internacional. A
atuação de tais grupos tornam públicas violações de direitos humanos, além de
produzir uma cadeia de comunicação que constrange os Estados a prestarem
esclarecimentos à comunidade internacional. A atuação desses ativistas é limitada,
pois seu instrumental prático é restrito a mobilização de informações e ao exercício
de pressão política, que muitas vezes esbarra na vontade de os Estados
readequarem seu comportamento.
Vários desafios e críticas são observados em relação à atuação dos grupos
de ativismo transnacional, sobretudo em relação à própria motivação de tais grupos
em defender causas específicas. Há o questionamento se, de fato, buscam causas
merecedoras de atenção, ou se suas empreitadas estão relacionadas ao próprio
objetivo de expansão organizacional. Outro ponto importante é o fato de tais grupos,
geralmente, estarem baseados em países ocidentais e representarem a matriz
cultural em questão, deixando, assim, de observar peculiaridades locais. A tentativa
de atuar minimizando o sofrimento de um povo pode causar mais perturbações e
produzir consequências não desejadas.
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