Atividade 4

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Ano letivo 2014 / 2015 Página 1 CP4 - Processos identitários Atividade 4 Dr. Francisco Fernandes Lopes Escola Secundária Para ler: Por comparação com outras Ciências Sociais e Humanas como a Antropologia a reflexão filosófica contemporânea sobre a multiculturalidade pecou por tardia. No entanto, conheceu um enorme incremento a partir do final dos anos setenta do século XX. Começou por inserir-se no debate entre liberais individualistas, por um lado, e comunitaristas, por outro. Os primeiros, desde o liberalismo igualitário de John Rawls ao pensamento radicalmente libertário de Robert Nozick, defendiam a neutralidade do Estado em relação às diferentes concepções da vida boa e, implicitamente, em relação às concepções especialmente prevalecentes nesta ou naquela comunidade cultural. Para estes pensadores liberais, os direitos e deveres dos cidadãos não deveriam ser contaminados pelas pertenças etnoculturais dos indivíduos na sociedade civil. Representantes do campo comunitarista, por seu turno, contestaram desde logo esta pretensa neutralidade do Estado. Consideraram que o Estado liberal apenas protege o indivíduo e tende a esquecer a sua comunalidade. Em consonância, defenderam que caberia ao Estado proteger as diferentes comunidades culturais, mediante a outorga de direitos colectivos (Van Dyke, 1977). Os liberais, portanto, eram anti-multiculturalistas, e os comunitaristas, pelo contrário, favoreciam o multiculturalismo. A necessidade repensar a questão da multiculturalidade, ultrapassando a simples dicotomia entre liberais e comunitaristas? Essa tarefa foi assumida pelo filósofo canadiano Will Kymlicka (Kymlicka, 1989, 1995). Este autor formula aquilo a que chama uma “teoria liberal dos direitos multiculturais”. Partindo de um ponto de vista liberal, mas acrescentando alguns aspectos mais comunitários, Kymlicka reclama ter chegado a uma perspectiva solidamente multiculturalista. Estaria assim operada a quadratura do círculo que a dicotomia prevalecente até então não permitia operar. Os liberais argumenta Kymlicka valorizam a liberdade como um meio que permite a cada indivíduo realizar a sua concepção particular do bem. Mas a opção livre entre concepções do bem não é operada no vazio. Ela é realizada num contexto social específico: a comunidade cultural, ou cultura societal, na qual cada indivíduo se insere. Uma cultura societal é composta por um conjunto de práticas, sentidos partilhados e, muito especialmente, uma língua própria. Nenhuma cultura societal tem as suas características fixadas para sempre, todas as culturas evoluem no tempo. Mas existe uma ligação privilegiada entre cada indivíduo e a sua cultura societal. Para Kymlicka, as políticas multiculturalistas em geral, e mesmo a outorga de direitos multiculturais, justificam-se plenamente na medida em que sirvam para proteger o contexto da liberdade para os membros de culturas societárias minoritárias e historicamente discriminadas. Taylor trouxe para a questão multiculturalista a reflexão que desenvolvera anteriormente sobre a progressiva construção do Eu no quadro da modernidade (Taylor, 1994). Com o colapso das hierarquias sociais e da visão fixista das identidades em função da honra, a identidade do indivíduo moderno tem de ser construída num modelo dialógico. O

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Ano letivo 2014 / 2015 Página 1

CP4 - Processos identitários

Atividade 4

Dr. Francisco

Fernandes Lopes

E s c o l a

S e c u n d á r i a

Para ler:

Por comparação com outras Ciências Sociais e Humanas – como a Antropologia – a

reflexão filosófica contemporânea sobre a multiculturalidade pecou por tardia. No

entanto, conheceu um enorme incremento a partir do final dos anos setenta do século

XX. Começou por inserir-se no debate entre liberais individualistas, por um lado, e

comunitaristas, por outro. Os primeiros, desde o liberalismo igualitário de John Rawls ao

pensamento radicalmente libertário de Robert Nozick, defendiam a neutralidade do

Estado em relação às diferentes concepções da vida boa e, implicitamente, em relação

às concepções especialmente prevalecentes nesta ou naquela comunidade cultural.

Para estes pensadores liberais, os direitos e deveres dos cidadãos não deveriam ser

contaminados pelas pertenças etnoculturais dos indivíduos na sociedade civil.

Representantes do campo comunitarista, por seu turno, contestaram desde logo esta

pretensa neutralidade do Estado. Consideraram que o Estado liberal apenas protege o

indivíduo e tende a esquecer a sua comunalidade. Em consonância, defenderam que

caberia ao Estado proteger as diferentes comunidades culturais, mediante a outorga de

direitos colectivos (Van Dyke, 1977). Os liberais, portanto, eram anti-multiculturalistas, e

os comunitaristas, pelo contrário, favoreciam o multiculturalismo.

A necessidade repensar a questão da multiculturalidade, ultrapassando a simples

dicotomia entre liberais e comunitaristas? Essa tarefa foi assumida pelo filósofo

canadiano Will Kymlicka (Kymlicka, 1989, 1995). Este autor formula aquilo a que chama

uma “teoria liberal dos direitos multiculturais”. Partindo de um ponto de vista liberal, mas

acrescentando alguns aspectos mais comunitários, Kymlicka reclama ter chegado a uma

perspectiva solidamente multiculturalista. Estaria assim operada a quadratura do círculo

que a dicotomia prevalecente até então não permitia operar.

Os liberais – argumenta Kymlicka – valorizam a liberdade como um meio que permite a

cada indivíduo realizar a sua concepção particular do bem. Mas a opção livre entre

concepções do bem não é operada no vazio. Ela é realizada num contexto social

específico: a comunidade cultural, ou cultura societal, na qual cada indivíduo se insere.

Uma cultura societal é composta por um conjunto de práticas, sentidos partilhados e,

muito especialmente, uma língua própria. Nenhuma cultura societal tem as suas

características fixadas para sempre, todas as culturas evoluem no tempo. Mas existe

uma ligação privilegiada entre cada indivíduo e a sua cultura societal.

Para Kymlicka, as políticas multiculturalistas em geral, e mesmo a outorga de direitos

multiculturais, justificam-se plenamente na medida em que sirvam para proteger o

contexto da liberdade para os membros de culturas societárias minoritárias e

historicamente discriminadas.

Taylor trouxe para a questão multiculturalista a reflexão que desenvolvera anteriormente

sobre a progressiva construção do Eu no quadro da modernidade (Taylor, 1994). Com o

colapso das hierarquias sociais e da visão fixista das identidades em função da honra, a

identidade do indivíduo moderno tem de ser construída num modelo dialógico. O

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reconhecimento, como parte da construção da identidade, é “uma necessidade humana

vital”. Mas como esse reconhecimento já não é fixo e herdado, as sociedades

democráticas passam a construí-lo na esfera pública. Neste registo, há dois momentos

fundamentais, segundo Taylor. Em primeiro lugar, o momento da “política da igual

dignidade”. Trata-se aqui de propiciar a cidadania igual para todos ou, se se preferir, o

universalismo da cidadania. A política da igual dignidade marcou as revoluções liberais

da modernidade e foi o paradigma dominante até recentemente. Esta política é

propositadamente cega em relação à diversidade cultural. Mas num segundo e recente

momento, afirma-se a “política da diferença”. Esta já não é cega em relação à

diversidade e, pelo contrário, aposta na reivindicação da especificidade cultural. Aquilo

que se pretende não é já o reconhecimento de todos como cidadãos iguais, mas antes o

reconhecimento das diferenças entre esses mesmos cidadãos, em função das suas

pertenças culturais.

A sociedade multicultural é uma realidade. O multiculturalismo é apenas um modelo, ou

um conjunto de modelos, que visa interpretar aquilo que entendemos por sociedade

multicultural e, ao mesmo tempo, dizer o que devemos fazer, de um ponto de vista

político, em relação a ela. Sociedade multicultural é um conceito descritivo, enquanto

multiculturalismo é um modelo normativo. Podemos concordar com o facto de que a

maior parte das sociedades em que vivemos são multiculturais, mas não temos de

concordar com a perspectiva multiculturalista sobre essas sociedades.

Aquilo que caracteriza uma sociedade multicultural é, como a palavra sugere, a

existência de uma série de culturas diferentes na mesma sociedade. Mas esta definição

redundante está longe de constituir qualquer ajuda e, aqui também, temos de proceder a

algumas distinções. O que se entende por diversidade de culturas? Se quisermos

raciocinar em abstracto, a partir do significado da palavra «cultura», dificilmente

chegaremos a qualquer resultado útil.

Uma coisa é a cultura no sentido antropológico - tudo é cultura -, outra no sentido de

cultura política, outra diferente na acepção de modelo de comportamento, outra ainda

como sinónimo de etnicidade, e por aí adiante.

Na literatura contemporânea sobre a multiculturalidade parece que há pelo menos três

acepções diferentes para o conceito de sociedade multicultural.

A primeira é a da existência de diversas nações históricas, com uma língua própria e

uma história distinta, na mesma comunidade política. Neste sentido, por exemplo,

Portugal não é uma sociedade multicultural, enquanto a Espanha o é. Os Estados

europeus que melhor levaram a cabo a construção do Estado-nação nos séculos XIX e

XX não deram azo a sociedades multiculturais. Mas há vários outros em que esse tipo

de sociedade prevaleceu.

Uma segunda acepção é a da existência de diversas comunidades étnicas geradas pela

imigração voluntária ou forçada. Uma comunidade étnica seria marcada pela diferença

em termos de língua e/ou religião e/ou usos e costumes. Neste sentido, mesmo os

países europeus que há poucas décadas eram apontados como não multiculturais – a

Islândia e Portugal - passaram a sê-lo por via da imigração recente. Outros países

europeus - a França e a Grã-Bretanha, por exemplo - tornaram-se progressivamente

multiculturais já desde meados do século XX.

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Uma terceira acepção de sociedade multicultural é aquela que expande o conceito de

cultura até fazê-lo coincidir com minorias nacionais, imigrantes, sexuais, e outras. Esta

interpretação da multiculturalidade é muitas vezes associada ao pensamento da filósofa

americana Iris Marion Young. Young estabelece uma isomorfia entre as diferentes

minorias na sociedade americana - índios, afro-americanos, judeus, hispânicos,

homossexuais - e mesmo um grupo que de todo não pode ser considerado uma minoria:

o das mulheres. O operador conceptual que permite a Young retirar o seu coelho

multicultural de uma cartola cheia de coisas tão diversas é o de «opressão». Os

diferentes grupos mencionados são vistos como vítimas históricas de opressão por parte

da sociedade maioritária. Essa opressão é exercida sob diversas formas: exploração

económica, marginalização, redução à impotência, imperialismo cultural e violência.

Ainda que a violência, aberta ou latente, tenha sido recorrentemente usada contra estes

grupos, a opressão de que eles foram e são alvo exerce-se quase sempre de um modo

sub-reptício: ao nível dos símbolos e hábitos que levam a uma interiorização negativa da

sua identidade. Para Young, a sociedade multicultural será aquela que reconhece a

existência destes diferentes grupos e que aceita as suas diferenças e as suas vozes

distintas. Assim, a multiculturalidade estende-se àquilo a que se costuma chamar os

«movimentos sociais», feministas, gays e lésbicos, movimentos de libertação dos

negros, dos índios, etc. A sociedade multicultural é uma «sociedade arco-íris».

Voltemos então às duas primeiras acepções de sociedade multicultural. As sociedades

europeias sempre foram multiculturais na primeira acepção, enquanto sociedades

multinacionais. Aquilo que é novo para elas é o facto de se terem tornado multiculturais

na segunda aceção, enquanto sociedades poliétnicas. É neste segundo sentido que as

polémicas em torno da multiculturalidade percorrem hoje toda a Europa.

O problema central das sociedades multiculturais na Europa é o seguinte: minorias

imigrantes?

Estamos a falar de grupos de imigrantes chegados à Europa aproximadamente nos

últimos cinquenta anos, em alguns casos muito recentemente, por vezes ainda na

primeira geração, outras vezes já na segunda ou terceira. É destas minorias imigrantes

que me proponho aqui tratar.

Em termos teóricos, há dois grandes modelos, formulados durante as décadas de

setenta e oitenta do século passado, com vista à indicação da via a seguir pelas políticas

públicas que visam a integração de minorias imigrantes. O primeiro grande modelo pode

ser chamado «multiculturalista» e o segundo «anti-multiculturalista». O modelo

multiculturalista defende uma série de «políticas da diferença» com vista a salvaguardar

a especificidade das minorias culturais. Essas políticas englobam o tratamento

preferencial no acesso à educação e ao emprego, as necessárias adaptações ao nível

das línguas usadas no ensino oficial e dos próprios conteúdos curriculares, o apoio

estatal às instituições representativas das minorias culturais, a concessão de direitos

especiais sob a forma de direitos positivos (por ex., direitos especiais de representação

política) ou de isenções legais (por ex., para permitir o gozo de feriados próprios, o uso

de indumentárias tradicionais, o abate de animais de acordo com códigos religiosos,

etc.). Note-se que estas políticas da diferença não têm todas o mesmo nível de

profundidade no que diz respeito à modificação do estatuto institucional dos cidadãos. A

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concessão de isenções legais, por exemplo, vai muito mais longe do que o tratamento

preferencial. Este pode ser compatibilizado com a igualdade de cidadania e, assim

também, com o modelo anti-multiculturalista. O mesmo não se passa com a concessão

de isenções legais.

Em claro contraste com o multiculturalismo, o modelo anti-multiculturalista defende uma

«política da igual dignidade» sem compromissos com as políticas da diferença. Segundo

este modelo, não cabe ao Estado modificar a identidade institucional das pessoas e

grupos com vista à preservação da sua especificidade cultural. Não deve haver lugar

para a concessão de isenções legais ou outro tipo de direitos multiculturalistas. Não cabe

ao Estado privilegiar determinadas associações representativas de minorias culturais e

atribuir-lhes apoios diferentes dos que são concedidos a outras associações que não

têm uma marca cultural específica. A integração das minorias não é feita mediante a

modificação da língua usada nas escolas oficiais ou a adaptação dos conteúdos

curriculares, mas antes pelo maior apoio aos imigrantes na aprendizagem da língua

oficial e dos conteúdos leccionados a toda a população estudantil. Como acima se disse,

a questão das políticas de tratamento preferencial é um pouco diferente, na medida em

que, tanto quanto estas políticas tenham uma duração definida no tempo, elas podem

ser vistas como uma forma de promover a igualdade de cidadania e não propriamente

um modelo multiculturalista.

Julgo que estas distinções são especialmente relevantes se passarmos agora do plano

filosófico para o plano sociológico. Também aqui se costuma mencionar os dois modelos

mais frequentes na Europa: o modelo francês e o modelo britânico. O modelo francês

consistirá em favorecer a integração pela via da assimilação cultural. Em contraste, o

modelo britânico consistirá em favorecer essa mesma integração mediante a

manutenção das diferenças culturais. Estes modelos devem ser vistos como tipos-ideais.

Eles são apenas duas idealizações de um continuum de práticas mistas - inclusive em

França e na Grã-Bretanha - e que varia entre a assimilação, mais assumida pelo modelo

francês, e a manutenção da diferença, mais assumida pelo modelo britânico.

Se quisermos cruzar esta tipificação sociológica com a tipificação filosófica feita acima,

diríamos que o modelo francês é uma forma comunitarista de antimulticulturalismo,

enquanto que o modelo britânico é uma modalidade liberal de multiculturalismo. Julgo

que esta especificação é importante. Os franceses resistem a considerar o seu modelo

como comunitarista. Mas é isso mesmo que ele é, malgré eux. Trata-se de uma forma

comunitarista de anti-multiculturalismo. Por sua vez, o modelo britânico não pode ser

qualificado apenas como multiculturalista na medida em que isso poderia implicar formas

liberais de multiculturalismo. Esse modelo é claramente liberal, mas também claramente

multiculturalista.

O modelo britânico é muitas vezes apresentado, de um modo que me parece errado,

enquanto modelo de tolerância. Ora, isso é precisamente aquilo que ele não é, pelo

menos se entendermos a ideia de tolerância por analogia com a tolerância religiosa

instituída na Europa a partir do final da época moderna. A tolerância religiosa na Europa

foi propiciada pela distinção entre o Estado e as igrejas e pela não intromissão do Estado

nos assuntos internos das igrejas - pelo menos daquelas que não coincidem com a

religião oficial do Estado. Ora, o modelo multiculturalista britânico consiste em usar o

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Estado para manter as diferentes comunidades existentes através de políticas da

diferença. Se o modelo consistisse apenas em tolerar as diferenças - e não em exercer

uma política da diferença - então seria um modelo anti-multiculturalista de carácter

liberal. Porque se trata antes de propiciar a construção política dessas mesmas

diferenças, o modelo multicultural britânico não deve ser visto como modelo de

tolerância.

O modelo francês, por seu turno, é por vezes apresentado como um modelo liberal, por

contraposição ao britânico. Mais uma vez, isso parece-me um erro. O modelo francês

não procura simplesmente a tolerância das diferenças, mas a sua assimilação. Os

imigrantes são encorajados a professar os valores substantivos da República, da língua

e da história de França, em detrimento dos valores da sociedade de origem, da sua

língua e da sua história. O Estado é usado para dissolver as diferenças e não

simplesmente para as acomodar de uma forma tolerante. É certo que, como se notou

acima, a prática francesa também introduziu aspectos de multiculturalismo liberal. Mas,

se falamos de modelo francês tipificado, então ele não deve ser apresentado como

tipicamente liberal. Como todos sabemos, ambos os modelos, o francês e o britânico,

estão em crise. Esta crise foi evidenciada por acontecimentos específicos, embora

estivesse já latente. Não deixa de ser interessante acompanhar a opinião publicada tanto

na Grã-Bretanha como em França, desde a segunda metade de 2005. Na Grã-Bretanha,

na sequência dos atentados de Londres em Julho de 2005, a tendência parece ser agora

para responsabilizar o modelo multiculturalista daquele país. Os bombistas eram um

produto do Estado multiculturalista. Foi esse mesmo Estado que, através do

multiculturalismo, diminuiu o sentido de comunidade e destruiu a «Britishness». A

resposta consistiria então em voltar um pouco mais os olhos para a odiada França e

constatar como o modelo de assimilação tem pelo menos a vantagem de não balcanizar

a sociedade e de não alimentar no seu seio os germes da sua autodestruição.

Em França, na sequência dos graves distúrbios nas periferias de Paris e de outras

cidades ocorridos entre 27 de Outubro e 17 de Novembro de 2005, várias vozes

levantaram-se contra a incapacidade do modelo francês para integrar os jovens

identificados com grupos de imigrantes, em geral de segunda ou terceira geração. Ao

procurar a assimilação, o modelo anti-multiculturalista francês acabaria por alienar

aqueles que pretendia integrar. Assim conviria olhar para a vizinha Grã-Bretanha e para

o modelo multiculturalista, supostamente gerador da integração pela diferença. Como é

óbvio, estas auto-críticas, as francesas e as britânicas, anulam-se entre si. A conclusão

correcta parece ser que nenhum dos dois modelos funciona.

A minha sugestão final é que não deixemos de considerar as duas alternativas que, de

um ponto de vista lógico, ainda nos restam. Expliquei atrás que o modelo britânico é uma

forma de multiculturalismo liberal e que o modelo francês é um antimulticulturalismo

comunitarista. Assim sendo, parece que ficaram de fora duas possibilidades: a de um

anti-multiculturalismo liberal e a de um multiculturalismo comunitarista. Esta última

hipótese parece difícil de aceitar. Um multiculturalismo comunitarista, isto é, um

multiculturalismo que não colocasse os princípios da igual dignidade dos cidadãos como

limite aquilo que as políticas da diferença podem fazer, confirmaria todos os piores

prognósticos dos anti-multiculturalistas. Um multiculturalismo comunitarista não teria

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razões para proibir a poligamia, ou a mutilação sexual feminina, ou os casamentos

arranjados, etc. Este tipo de multiculturalismo tornaria bem reais as acusações que lhe

são habitualmente dirigidas de balcanização, ou mesmo de dissolução, da sociedade

politicamente organizada. Por outro lado, a ideia de um anti-multiculturalismo liberal

parece mais atraente. Este modelo tem precedentes em sociedades de imigrantes como

os Estados Unidos da América, pelo menos nos aspectos em que este país não

enveredou por práticas multiculturalista. O modelo liberal anti-multiculturalista consiste

em tolerar todas as minorias imigrantes, mas dentro dos limites da tolerância impostos

pela adesão aos valores constitucionais e fundacionais da sociedade política. Neste

modelo, o Estado não procura assimilar os imigrantes à cultura maioritária, mas também

não intenta proteger a sua especificidade enquanto grupo cultural mediante a aplicação

de políticas da diferença.

É certo que sociedades tradicionais como as europeias nunca serão iguais a sociedades

de imigrantes como a dos Estados Unidos. No entanto, à medida que o impacto

numérico e qualitativo da imigração cresce nas sociedades multiculturais europeias estas

vão ficando também um pouco mais «americanas», por muito que isso nos custe

Depois de ler o texto responda às seguintes questões:

1- Diga, por palavras suas, o que entende por multiculturalismo.

2- Explicite as três aceções, presentes na literatura contemporânea sobre a

multiculturalidade, para o conceito de sociedade multicultural.

3- Qual das acepções melhor caracteriza as sociedades Europeias enquanto sociedades

multiculturais? Justifique a sua resposta.

4- Enuncie quais os dois grandes modelos de políticas públicas que visam a integração

de minorias imigrantes e o que é cada um deles preconizam.

5- Explique em que consiste o modelo multiculturalista Francês e Britânico

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6- Diga, por palavras suas, quais as linhas orientadoras, a matriz, do modelo liberal anti-

multiculturalista.

O formador:

António Costa