Ativ. 6.4 - Mudança_Mariotti

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Mudança Mudança não significa apenas modificar a superfície das coisas. Significa, principalmente, mudar de modelo mental, o que leva à mudança de percepção. Significa não tentar impor nossos pressupostos às coisas e aos acontecimentos. Significa, enfim, deixar que as coisas e os eventos nos modifiquem e sejam por nós modificados. É importante que estejamos atentos para perceber a mudança, pois isso quer dizer aprendizagem. Se não modificarmos nossa estrutura cognitiva, não conseguiremos perceber o que muda fora de nós (no mundo objetivo) nem o que muda em nossa subjetividade. Além disso, o fato de não percebermos a mudança não garante que ela não tenha ocorrido ou que não esteja em curso. Entre a mudança ocorrida e a percebida há um intervalo. E importante compreendê-lo e entender suas implicações. Para que uma mudança seja satisfatoriamente percebida, e preciso que não resistamos demais a ela. Mas também e necessário entender que um certo grau de resistência, ao menos no inicio do processo, é inevitável. Já foi dito e repetido que não existe percepção apenas subjetiva nem percepção somente objetiva. A percepção é uma circularidade entre o percebedor e o percebido, entre o sujeito e o seu mundo. Toda realidade contém um tanto de imaginário e todo imaginário inclui um tanto de realidade. É assim que se constrói o que chamamos de realidade concreta. Quem não entender isso terá muita dificuldade de entender a si próprio, os outros e o mundo. Eis os termos-chave: relações, ligações, ideia de conjunto sem perda da noção das partes isoladas, diversidade, pluralismo, multilateralismo, saber lidar com a resistência à mudança. Como se sabe, para chegar à pratica e produzir mudanças as ideias precisam da ação politica. É o que os filósofos chamam de pontes políticas. Imaginemos duas coisas ou dois processos, sejam eles quais forem. Precisamos pensar primeiro em um, depois no outro e, por fim, na relação entre eles. Isso ocorre dessa forma porque nosso pensamento é predominantemente linear e sequencial: uma coisa acontece depois da outra. Para superar essa limitação é preciso aprender a pensar fora dos padrões. É document.docx

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Mudança

Mudança não significa apenas modificar a superfície das coisas. Significa, principalmente, mudar de modelo mental, o que leva à mudança de percepção. Significa não tentar impor nossos pressupostos às coisas e aos acontecimentos. Significa, enfim, deixar que as coisas e os eventos nos modifiquem e sejam por nós modificados.

É importante que estejamos atentos para perceber a mudança, pois isso quer dizer aprendizagem. Se não modificarmos nossa estrutura cognitiva, não conseguiremos perceber o que muda fora de nós (no mundo objetivo) nem o que muda em nossa subjetividade. Além disso, o fato de não percebermos a mudança não garante que ela não tenha ocorrido ou que não esteja em curso. Entre a mudança ocorrida e a percebida há um intervalo. E importante compreendê-lo e entender suas implicações. Para que uma mudança seja satisfatoriamente percebida, e preciso que não resistamos demais a ela. Mas também e necessário entender que um certo grau de resistência, ao menos no inicio do processo, é inevitável. Já foi dito e repetido que não existe percepção apenas subjetiva nem percepção somente objetiva. A percepção é uma circularidade entre o percebedor e o percebido, entre o sujeito e o seu mundo. Toda realidade contém um tanto de imaginário e todo imaginário inclui um tanto de realidade. É assim que se constrói o que chamamos de realidade concreta. Quem não entender isso terá muita dificuldade de entender a si próprio, os outros e o mundo. Eis os termos-chave: relações, ligações, ideia de conjunto sem perda da noção das partes isoladas, diversidade, pluralismo, multilateralismo, saber lidar com a resistência à mudança.

Como se sabe, para chegar à pratica e produzir mudanças as ideias precisam da ação politica. É o que os filósofos chamam de pontes políticas. Imaginemos duas coisas ou dois processos, sejam eles quais forem. Precisamos pensar primeiro em um, depois no outro e, por fim, na relação entre eles. Isso ocorre dessa forma porque nosso pensamento é predominantemente linear e sequencial: uma coisa acontece depois da outra. Para superar essa limitação é preciso aprender a pensar fora dos padrões. É necessário um esforço que permita que pensemos em uma coisa, em outra e na relação entre elas como fenômenos simultâneos, embora nossos sentidos nem sempre nos revelem essa simultaneidade.

Convém insistir que, ao contrário do que muitos pensam, essa limitação do pensamento é uma imposição cultural, não um fenômeno natural. Grande parte dos problemas que vivemos nas sociedades atuais resulta dessa imposição. 0 que fazer para ao menos diminuí-la?

Há pelo menos duas atitudes inicialmente possíveis. A primeira é a abertura para a diversidade de posturas e opiniões, que implica o respeito à individualidade (não confundir com individualismo) e à pluralidade. Trata-se de condições que, na maioria dos casos, só são propostas em nossa cultura atual por meio de arengas demagógicas ou exortações piegas. Respeitá-las de fato implicaria abrir-se ao novo, questionar o conservadorismo, tentar sair das posições polarizadas, aprender a aceitar o diferente, ter sensibilidade social. A experiência cotidiana mostra que nada disso é

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fácil de conseguir. Bem mais fácil é adotar um ceticismo obtuso que só faz com que se consolidem os fundamentalismos e as ortodoxias.

Ainda assim, a questão não é eliminar totalmente o conservadorismo e o unilateralismo, pois tudo parece indicar que isso não pode ser feito. Além do mais, a manutenção de algumas tradições e rituais e a necessidade de polarizar em determinadas situações são fatos indiscutíveis Mas é preciso ao menos atenuar a insensibilidade socioambiental, o que se consegue por meio da diminuição dos conservadorismos e dos unilateralismos. Tudo isso justifica a busca de uma estratégia de convivência que nos possibilite viver menos aterrorizados – uma estratégia de hospitalidade, enfim. Trata-se, é claro, de um desafio de grandes proporções.

Vejamos agora a segunda atitude possível. Se quisermos ter sempre em mente esses três termos (uma coisa, a outra e a relação entre elas), é preciso ter ideias novas, autocriticá-las e depois submetê-las à avaliação e a crítica públicas. Tudo isso é difícil, incômodo e exige muito de todos nós. Mas já sabemos que não existem maneiras fáceis de questionar condicionamentos e modificar modelos mentais, sejam eles individuais ou coletivos.

Hoje é comum dizer-se que, na condição de âmbito de mudanças, o espaço político perdeu importância para espaço tecnocrático. Por outro lado, as visões de mundo pretensamente nítidas e inquestionáveis proporcionadas pelas grandes narrativas da Modernidade (como o marxismo) já não têm a eficácia de antes. A tentativa canhestra - e muitas vezes violenta - de recuperar essa nitidez e inquestionabilidade por meio dos fundamentalismos e da manutenção das ortodoxias está longe de ser bem-sucedida. Ao contrário, ela só faz aumentar nosso sentimento de desespero e a falta de compreensão do que acontece.

As grandes narrativas (ou metanarrativas) da Modernidade e as ortodoxias são deterministas e se baseiam na logica binária: direita/esquerda, burguesia/proletariado, mencheviques/bolcheviques, progressistas/reacionários, Ego/Id, natureza/cultura e assim por diante. Por isso, a simples recuperação do espaço político que se perdeu ou está em processo de perda não nos devolverá as "certezas" de antes, porque os tempos são outros. Sabemos que o espaço político também é orientado pela lógica binária: situação/oposição, contra/a favor, conosco/contra nos. É um âmbito no qual imperam a dualidade e o maniqueísmo, e sua simples recuperação não resolverá nossos problemas mais graves, pois a postura maniqueísta nem sequer tem instrumentos intelectuais para tanto. Conclui-se, assim, que, se for mantida a dominância do modelo mental binário, de pouco ou nada adiantaria a recuperação do espaço politico, pois cairíamos na mesma armadilha de sempre. Voltaríamos a querer resolver questões complexas por meio de raciocínios simplistas e não raras vezes simplórios

Em suma, enquanto não nos dispusermos a "trabalhar para pensar melhor", dificilmente sairemos da prisão mental a qual estamos confinados. Enquanto insistirmos em ver tudo dividido, nós nos dividiremos e nos deixaremos dividir, convencidos de que essa é a maneira "normal".

A introdução do pensamento complexo é um projeto de mudança cultural de longo prazo e grande profundidade e amplitude. Requer paciência, visão de futuro e, sobretudo, uma mentalidade de comprometimento compartilhado. Não é nem poderia

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ser uma viagem de ego. Exige a participação das pessoas ditas integradoras, cujo papel, claro, não é apresentar-se como indivíduos especiais ou excepcionalmente dotados. Ao contrário, elas precisam se considerar indivíduos como os outros, possuidores de uma habilidade que pode e deve ser compartilhada. É claro que a recepção, a compreensão e o compartilhamento do conhecimento serão variáveis. Contudo, em vez de ser um empecilho, isso é um benefício, pois é da essência do pensamento complexo tolerar as diferenças e a diversidade e estar sempre aberto à critica e às oposições.

As pessoas com mente mais linear tendem ao operacional e não poderia ser de outro modo. A vida mecânica requer a mente mecânica, ou, como a chama John M. Coetzee, a razão mecânica. Os indivíduos nos quais predomina a mente abrangente, sistêmica, tendem ao pensamento estratégico. Já as pessoas integradoras não se limitam a agir, a ser operacionais, mas também não se reduzem a pensar estrategicamente como os sistêmicos. Sua habilidade é, a depender das circunstâncias, sair do operacional e passar ao estratégico e vice-versa. Os indivíduos naturalmente integradores, ou que aprenderam com graus variáveis de proficiência a pensar desse modo, percebem que entre o operacional e o estratégico há uma circularidade.

Como muitos outros aspectos das sociedades humanas, o fenômeno da liderança tem sido desde sempre um campo de investigação aparentemente inesgotável. Na prática, não há virtualmente nenhum processo de mudança cultural no qual os líderes não desempenhem um papel importante. Influenciar e mudar o pensamento coletivo é uma tarefa para líderes. Por isso, eles são fundamentais à reforma do pensamento. Nesse sentido, os políticos são até mais importantes do que os intelectuais e os acadêmicos, porque em geral são capazes de se expressar com mais clareza e atingem um maior número de consciências.

Isso acontece porque líderes como Nelson Mandela, por exemplo, sabem que a linguagem não existe para falarmos sobre os outros e sobre o mundo como se este fosse somente externo a nós. Sabem que o mundo não é perceptível apenas objetivamente, isto é, não nos é dado já "pronto". Entendem que a linguagem não foi desenvolvida para descrever o mundo como um objeto externo, mas para que o criemos a partir de nossa interação com ele. Infelizmente, porém, líderes assim são raros. Como acontece com tudo o mais, nossas atuais concepções de poder, política e liderança ainda estão profundamente condicionadas pelo raciocínio binário.

Adaptado de:

MARIOTTI, Humberto. Pensamento Complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2007, pp.171-175.

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