Atelier TEXTO Miss Cabo de Vassoura - H. L. Miller[1]

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Miss Cabo de Vassoura (H. L. Miller/ Tradução: André Gouveia) Personagens Vanila – a bruxa mais jovem que quer ser bonita Aurila a irmã do meio, indecisa Sabila – a bruxa mais velha, autoritária Terror Encapuçado – um fantasma Januária Bezerra Cavalcanti – moça bonita, maquiadora Capitão Matamouros – um pirata-fantasma (Cenário: A caverna das três bruxas, Aurila, Sabila e Vanila) (Quando o pano se abre, Aurila, uma criatura de horrível aparência, está sentada em um banco alto, diante de uma escrivaninha antiquada, atulhada de papéis. Enquanto procura freneticamente, vai atirando os papéis para a esquerda e para a direita. De fora do palco vem um ruído de gritos agudos que se alternam com grunhidos e lamentos) SABILA – (Não menos feia que a irmã, entrando pela direita. Ela traz consigo três das mais horríveis máscaras que é possível encontrar) Não adianta. Não posso fazer nada com ela. Ela está terrivelmente furiosa. AURILA – Ela gostou das máscaras que você escolheu? SABILA – Não quis nem olhar para elas. Quando eu as mostrei, ela simplesmente virou a cara para a parede e berrou mais alto do que nunca. Não, Aurila, essa nossa desgraça irmã pôs todo o coração na idéia de ir ao Baile da Caveira como uma garota de verdade e viva, e nada do que nós dissermos ou fizermos poderá fazê-la mudar de idéia. Eu sugeri toda sorte de disfarces, a Mulher Petrificada, a Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

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Miss Cabo de Vassoura(H. L. Miller/ Tradução: André Gouveia)

PersonagensVanila – a bruxa mais jovem que quer ser bonita

Aurila – a irmã do meio, indecisaSabila – a bruxa mais velha, autoritária

Terror Encapuçado – um fantasmaJanuária Bezerra Cavalcanti – moça bonita, maquiadora

Capitão Matamouros – um pirata-fantasma

(Cenário: A caverna das três bruxas, Aurila, Sabila e Vanila) (Quando o pano se abre, Aurila, uma criatura de horrível aparência, está sentada em um banco alto, diante de uma escrivaninha antiquada, atulhada de papéis. Enquanto procura freneticamente, vai atirando os papéis para a esquerda e para a direita. De fora do palco vem um ruído de gritos agudos que se alternam com grunhidos e lamentos)

SABILA – (Não menos feia que a irmã, entrando pela direita. Ela traz consigo três das mais horríveis máscaras que é possível encontrar) Não adianta. Não posso fazer nada com ela. Ela está terrivelmente furiosa.

AURILA – Ela gostou das máscaras que você escolheu?

SABILA – Não quis nem olhar para elas. Quando eu as mostrei, ela simplesmente virou a cara para a parede e berrou mais alto do que nunca. Não, Aurila, essa nossa desgraça irmã pôs todo o coração na idéia de ir ao Baile da Caveira como uma garota de verdade e viva, e nada do que nós dissermos ou fizermos poderá fazê-la mudar de idéia. Eu sugeri toda sorte de disfarces, a Mulher Petrificada, a Madame Cobra, e Ogre Purpurino, o Terror Escarlate, mas ela não quis nenhum deles. Diz que quer ser uma Gata Glamurosa ou nada.

AURILA – Uma Gata Glamurosa? Pelo grande Sapo Chifrudo, que diabo quer dizer isso?

SABILA – Uma Gata Glamurosa é uma garota bacana, uma uva, uma boazuda, um xuxuzinho, em suma, um ente humano, gênero feminino, desses de fechar o comércio.

AURILA – (tremendo) Só de pensar me dá arrepio. Imagine uma irmã nossa, da mais tradicional família de bruxas existentes no mundo, querendo virar um ser humano.

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SABILA – (suspirando) Eu sei. E tudo porque nós uma vez a deixamos espairecer sozinha por aí num cabo de vassoura. Nunca mais ela foi a mesma. Quando se apaixonou pelo Capitão Matamouros, pensei que ela ficaria curada, mas só fez piorar.

AURILA – Especialmente porque ela não consegue fazê-lo pedir sua mão em casamento. É por isso que o Baile da Caveira é tão importante. Se ele não pedir sua mão hoje à noite, receio que estejamos fritas. E aquela horrorosa Mulher Vampiro, do cemitério da esquina, está de borá armado em cima dele. Se a nossa Vanila não conseguir fisgá-lo hoje, ela pode desistir desde já.

SABILA – (lamentando-se e torcendo as mãos) Ai de nós, ai de nós, o que é que vamos fazer? Se nós não pagarmos logo o aluguel desta caverna, o senhorio nos bota para fora, e eu não sei de onde o dinheiro possa vir a não ser que Vanila faça um bom casamento. O Capitão Matamouros é o fantasma mais rico da redondeza, e tem um lindo mausoléu de mármore cor-de-rosa só para ele. Vanila poderia ser tão feliz se pudesse fisgá-lo.

AURILA – Mas ele é teimosa como um burro. A menos que possamos arranjar-lhe uma forma humana e uma cara para combinar, até meia-noite, ela não se mexerá desta caverna. Só nos resta tomar uma atitude extremamente drástica.

SABILA – (em um murmúrio horrorizado) Você não quer dizer...

AURILA – (com decisão) Sim irmã, quero. Eu sei o quanto você desaprova a violência, mas está é uma situação desesperada que pede uma ação desesperada.

SABILA – Você encontrou a fórmula?

AURILA – Deve estar em algum lugar. Afinal já faz vários séculos desde que o pobre Papai realizou aquele experimento com a Princesa Jacaré, mas ele escreveu tudo justinho como aconteceu, e as anotações devem estar entre os seus livros e papéis.

SABILA – Mas Aurila, é tão horrível! E depois eu não sei se nós temos os instrumentos adequados. Nossas facas estão tão cegas que nem sapos e cobras cortam direito, que dizer duma garota berrando e esperneando.

AURILA – Não se preocupe. Podemos usar a serra se a coisa encrespar. A beleza é só um revestimento externo, você sabe, portanto só há uma coisa a fazer. Vanila precisa arrumar um novo revestimento, se ela pretende aparecer no baile como um ser humano.

SABILA – E a garota, você pensou nela? Onde é que nós vamos catar uma assim de última hora?

AURILA – Enquanto você conversa com Vanila, mandei o Terror Encapuçado sair para buscar uma. Ele deve estar de volta a qualquer instante.

SABILA – Então devemos trabalhar depressa. Eu ajudo você a procurar por entre os livros.

AURILA – Não se amole com isso. Vá dizer a Vanila que pare de chorar. Prometa-me que vamos fazer o possível para fazer dela uma verdadeira beldade humana hoje à noite.

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SABILA – Eu lhe direi. Mas tenho cá minhas dúvidas. Suponha que alguma coisa não dê certo.

AURILA – Tudo dará certo. O Terror sabe de que tipo de garota nós precisamos. Ela terá exatamente o mesmo tamanho de Vanila, assim a sua pele se adaptará sem uma ruga.

SABILA – (em dúvida) Espero. Nunca simpatizei com alterações. E espero que ele cate uma de olhos azuis e de cabelo ondeado. É o tipo de que Vanila mais gosta.

AURILA – Ela vai ficar com o que ganhar, e vai ter de gostar. (Sabila sai. Aurila apanha um caderno de notas) Isto parece com as anotações de Papai. Ah, sim. Até que enfim. Experimento 1313... “A Belezitificação da Princesa Jacaré”. Espero que não seja científico demais para mim. (lendo do caderno) “Primeiro passo. Cate uma garota bonita e jovem na véspera da Noite das Bruxas.” Hmmmm! Dessa parte já cuidamos. “faça com que ela engula uma poção feita de uma parte de extrato de rato cinzento, uma de algas retalhadas, uma de cogumelos venenosos desidratados, e uma de chá de hortelã-pimenta.” Imagino que a hortelã-pimenta é para disfarçar o gosto. “Depois que a vítima estiver insensível, remova a pele, tomando cuidado para que ela não se rompa.” Essa deve ser a parte mais delicada. Serão precisos dedos de cirurgião plástico. “Aplique a nova pele ao paciente, costure o corte com linha de teia de aranha, cubra completamente com uma pasta feita de mal e de creme azedo e ponha p secar em lugar escuro e fresco por duas horas. No caso da Princesa Jacaré, ela secou completamente em apenas uma hora e meia. A pele nova se adaptou perfeitamente e escondeu as suas feições crocodílicas. Foi proclamada a mais bela donzela da região, e pouco depois casou-se com príncipe da România”. Essa será uma notícia maravilhosa para Vanila. E é tão fácil, uma criança poderia fazer isso. Tudo o que falta agora é misturar a poção e esperar que o Terror Encapuçado chegue com a vítima.

VANILA – (entrando com Sabila) Ah, minha irmã, é mesmo verdade? Você vai me transformar numa Gata Glamurosa?

AURILA – Minha filha, acabaram-se os problemas. Encontrei as anotações de Papai sobre o memorável experimento da Princesa Jacaré (A Sabila) Aqui está a prescrição completa. Tudo o que for necessário você pode encontrar na geladeira. Vá juntar os ingredientes.

SABILA – (tomando do caderno as notas e saindo) Graças ao Inferno você o encontrou.

AURILA – Quanto a você, Vanila, se não conseguir que o Capitão Matamouros peça sua mão hoje à noite, nós lavamos as mãos quanto a você.

VANILA – Oh, eu sei que eu posso. Quando ele me vir sem este horrível nariz de gancho, sem estes dentes pretos e sem este cabelo emaranhado, ele nunca mais vai olhar para a Mulher Vampiro. (gritos de fora do palco com sotaque nordestino: “Me larga, cabra da peste! Socorro! Polícia!...” Entra o Terror Encapuçado. Vem uma garota que berra e luta furiosamente para se safar. Ela traz consigo uma pequena valise)

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TERROR – Aqui está ela, madame. Aqui está. Mas cada passo foi um mau bocado para mim. Acho que a senhora vai ter dor de cabeça com esta daqui.

AURILA – Bom trabalho, meu amigo, bom trabalho. Ainda bem que você estava encapuçado, senão ela já teria arrancado os seus olhos fora da cara.

VANILA – Ponha a menina no chão para que a gente possa dar uma olhada nela.

TERROR – Toma cuidado, Dona, que ela bem que dava um bom galo de briga.

JANUÁRIA – (ainda brigando) Eu vou botar você no xadrez por causa disso! Você vai se arrepender! Me bota no chão, seu cangaceiro!

TERROR – (põe a garota no chão, mas segura as suas mãos atrás das costas) Pronto, pronto, moça. Ninguém vai machucar você; pelo menos, não por enquanto.

VANILA – Puxa, ela é linda! É um trenzinho!

JANUÁRIA – (gritando de susto à vista delas) Óxente, que bichos são esses?

AURILA – Você logo logo saberá, menina, e por enquanto, trate de ter modos!

VANILA – Olhem só o cabelo dela, ela tem cachos de verdade! E os olhos, parecem estrelas!

AURILA – E a pele (apalpando o braço de Januária) é um veludo. Nem uma única verruga! Ela é bonita mesmo.

TERROR – E o q é que eu faço com ela?

AURILA – Ponha-a sentada aqui nesse banquinho. (tira um cordão do bolso) Amarre-lhe as mãos e os pés com isto, para que não se possa defender.

JANUÁRIA – O que vocês vão fazer comigo? Socorro! Socorro!

TERROR – (forçando a sentar-se no banquinho e amarrando-a bem, põe a valise ao lado dela) Vamos, vamos, mocinha. Não faça tamanho berreiro, isto só vai servir para fazê-la perder as forças, mesmo porque não há ninguém por aqui para ouvi-la.

VANILA – Puxa, estou impaciente para começar. Ela é mais bonita do que eu imaginava... E é bem do meu tamanho. Quem sabe é bom tirar medida para ter certeza? Levante-se, menina, deixe-me ver a sua altura.

JANUÁRIA – Não me toque, seu bicho velho e feio!

VANILA – (em prantos) Aurila, você ouviu o que ela falou? Ela me chamou de bicho velho e feio! Não admira que o Capitão Matamouros me despreze!

AURILA – Calma, calminha! (para Januária) Eu já lhe disse para calar a boca, menina! Mas você será reduzida ao silêncio total logo-logo. E agora, obedeça. Levante-

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se e compare sua altura com a da minha irmã. (Terror Encapuçado coloca-a de pé a força e a põe costas com costas com Vanila. Ela são da mesma altura)

VANILA – Ela é mais alta ou mais baixa?

AURILA – nem um pingo de diferença. Vocês são do mesmo tamanho.

JANUÁRIA – Eu exijo uma explicação. Quem são vocês e o que querem comigo?

SABILA – (entrando com uma bandeja carregada de vidros, uma esponja, um serrote e um manual. Repara em Januária) Pelos sete gatos pretos! Que é que estou vendo? Esta moça é uma beldade!

VANILA – Sabila, querida, não é uma maravilha? Espera só até o Capitão Matamouros me veja com a pele e os olhos e os cabelos dela! Ele vai cair aos meus pés num êxtase de paixão!

JANUÁRIA – (berrando) O que é que vocês estão dizendo aí? Os meus olhos? A minha pele? O meu cabelo? Vocês estão loucos, criaturas nojentas?

AURILA – Quieta, menina. (para Sabila) Rápido, a poção. Vamos fazê-la engolir isto, para calar a boca duma vez.

SABILA – Sim, mas primeiro precisamos fazer-lhe uma perguntas. Papai sempre foi tão cuidadoso com as suas anotações. Qual é o seu nome, menina?

JANUÁRIA – Januária Bezerra Cavalcanti. E não estou às ordens.

AURILA – E que idade tem?

JANUÁRIA – Dezessete anos.

VANILA – E a gente... Agente humana, quero dizer, acha você bonita?

JANUÁRIA – E que é que você tem com isso?

TERROR – Quem está fazendo as perguntas é ela, não você. Responda, ou será pior para você.

JANUÁRIA – Bem, acho que sim... Embora não fique bem eu mesma dizê-lo... (muda de tom) Ora bolas! Afinal, por que não haveria eu de ser bonita, eu trabalho num salão de beleza!

VANILA – Salão de beleza? O que é isso?

JANUÁRIA – Ignorantezinha, hein? Um salão de beleza é um lugar onde as pessoas vão para serem embelezadas. Eu sou maquiadora.

AURILA – Que conversa maluca é essa? O que é isso de maqui... Maco...

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JANUÁRIA – Maquiadora. Uma pessoa que faz maquiagem, que embeleza as pessoas. (com orgulho profissional) E não é só isso: eu sou uma especialista completa. Faço tintura de cabelo, faço rinsagem, ondulações permanentes e mise-em-plis, arranco sobrancelhas, ponho cílios postiços, faço massagens com óleo, banhos de lama, manicure, pedicure, depilação, sauna, duchas de chicote...

SABILA – (interrompendo espantadíssima) Com cem mil vampiros, eu nunca ouvi uma coisa dessas, nunca! Morcegos me mordam se isto não soa como as experiências de papai!

AURILA – Vamos parar com essa tagarelice e começar a trabalhar!

VANILA – Mas é tão fascinante ouvir isso! Uma embelezadora! Que maravilha de profissão!

AURILA – (obrigando Januária a se sentar) Vamos, quieta agora, nada de truques. (tira a poção da bandeja) Beba direitinho este remedinho e quando acordar... (piscadela para a irmã) tudo já estará terminado.

JANUÁRIA – Não, não! Eu não vou beber isso! Me largue, cabra da peste! Que é que vocês querem de mim?

SABILA – Talvez a gente possa persuadi-la a cooperar por bem. Papai sempre disse que se consegue mais com a razão do que com a força. (para Januária) Ouça aqui, minha filha, é o seguinte: A nossa irmã Vanila tem a possibilidade de arranjar casamento com um fantasma muito rico.

JANUÁRIA – Fantasma! (riso nervoso) O golpe do baú do fantasma! Hahaha... Agora eu sei que vocês estão todos loucos!

SABILA – Não vejo qual é a graça. Muitas bruxas e fantasmas se casam entre si. São muito compatíveis.

VANILA – Pois é. Mas até agora, o Capitão Matamouros, ele é um fantasma pirata, e (revira os olhos) é tão valente e boa pinta, até agora, ele ainda não fez a proposta!

AURILA – E por isso estamos mandando a Vanila para o Baile da Caveira esta noite, para dar-lhe uma última oportunidade. Se ela conseguir fasciná-lo com a sua beleza ele fará o pedido de casamento e eles viverão felizes para todo o sempre...

SABILA – Num lindo mausoléu de mármore rosa, com dois nichos de hóspedes, para mim e para Aurila.

VANILA – E é por isso que estou decidida a ir ao Baile da Caveira como beldade glamurosa, para tonteá-lo com a minha beleza e seduzi-lo a me fazer a proposta de casamento.

JANUÁRIA – (que ficou olhando de uma para outra, espantada, pisca os olhos várias vezes com força) Não é possível. Eu devo estar sonhando.

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AURILA – Não está sonhando não. E por meio de uma simples operação plástica, podemos fazer com que a nossa irmã Vanila tenha uma aparência exatamente igual à de você.

JANUÁRIA – (berrando) Operação! Não quero! Não, não!

AURILA – Asseguro-lhe que será inteiramente indolor. A porção mágica vai fazê-la dormir num instante.

JANUÁRIA – Eu não quero! Eu não quero! Socorro!

TERROR – Pode desistir do socorro, senhorita. De modo que é melhor que beba logo este líquido e durma duma vez. Ou prefere ficar acordada enquanto as bruxas trabalham em você, hein?

JANUÁRIA – (apavorada) Por misericórdia, não! Por favor, tenha dó de mim! Não façam isso comigo! Socorro! Socorro!

AURILA – Acabe com este berreiro e beba o remédio antes que nós o despejemos pela sua goela abaixo.

JANUÁRIA – (desesperada) Mas será que não outro jeito? (numa inspiração) Se é beleza que vocês querem, eu posso fazê-las bonitas! (entusiasma-se) É a minha profissão! Eu embelezei centenas de mulheres! Centenas! Transformei canhões em beldades, velhas corocas em brotos legais! Por favor, deixem-me tentar!

VANILA – (que foi se interessando) Você acha que poderia mesmo?

JANUÁRIA – Tenho a certeza absoluta! Com um pouco de tintura para o cabelo, um xampu, uma permanente, um pouco de massagem facial e uma boa maquiagem, eu posso transformá-la numa verdadeira glamurosa!

VANILA – Gata glamurosa! Vocês ouviram isso?!

AURILA – (cética) Ouvimos, sim... Mas um tratamento desses deve tomar muito tempo, e nós não temos...

JANUÁRIA – (interrompe apressada) Mas não, é rápido. Garanto que é muito mais rápido do que o que vocês iam fazer... (arrepia-se toda) e muito mais limpo!

SABILA – (pensativa) Quem sabe será mais fácil mesmo... Nós nunca fizemos aquela operação, e a primeira vez pode não dar certo... Além disso, eu detesto ver sangue, não sou vampiro nem nada...

VANILA – É mesmo!

AURILA – O que vocês duas são, é um par de molengas medrosas...

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JANUÁRIA – Mas se estou lhe dizendo que sou uma profissional do embelezamento! Eu vivo disso! Fazer as outras ficarem bonitas é a minha ocupação! Por favor, deixem-me tentar...

AURILA – E se você falhar?

JANUÁRIA – Se eu falhar, estou à mercê de vocês... Mas eu não vou falhar!

VANILA – (assanhada) É uma proposta correta, não é irmãs?

SABILA – Bem... Você parece uma pessoa que sabe o que está dizendo, Januária, e eu prefiro não sujar minhas mãos. Se você tem certeza de que pode conseguir o que promete, por mim, pode tentar. Que é que você fiz, Aurila?

AURILA – Eu digo que tudo isso é uma perda de tempo, mas já que vocês duas estão tão entusiasmadas, não vou interferir. Se a coisa não demorar muito. Assim, se esta... Maquiadora não acertar, ainda teremos tempo para usar o método de papai. (para terror) Pode desamarrá-la! (ele obedece)

TERROR – (desamarrando-a) Você tem sorte, menina! E agora, largue brasa!

JANUÁRIA – (apanhando a valise) Obrigada, obrigada! (abrindo a valise) Por sorte, a minha maleta de apetrechos está comigo, eu estava a caminhos de casa quando este... Esta criatura me agarrou. (para Vanila) E agora, sente-se aqui, fique bem quietinha e deixe-me trabalhar. (Vanila senta-se, Januária tira o chapéu de bruxa e mexe no seu cabelo) Vamos começar pelo cabelo, porque é a parte mais demorada. (coloca-lhe o manto plástico) Isto é para proteger a sua roupa enquanto eu faço o xampu.

AURILA – (desconfiada) Xampu? O que é isso?

JANUÁRIA – É o nome que damos à lavagem de cabelo. Vou precisar de muito sabão e água quente.

VANILA – (alarmada) O meu cabelo! Você não vai lavá-lo, vai?

JANUÁRIA – É o que eu vou fazer... Lavar, cortar, ondular, tingir, e, quando eu tiver terminado você nem vai se reconhecer!

VANILA – Eu vou virar uma gata glamurosa mesmo?

JANUÁRIA – Foi o que eu falei. E quando Januária Bezerra Cavalcanti fala, está falado. Você vai ser a própria Miss Cabo de Vassoura. (arregaça as mangas e fala para Terror em voz de comando) Vá buscar água quente e sabão, bichinho.

TERROR – (indignado) O quê?

SABILA – (rosna) Você ouviu o que ela disse! Ande! (ele sai)

AURILA – Vamos lá para dentro, Sabila. Temos muita coisa para preparar ainda! (vão saindo)

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SABILA – Se a coisa der certo com a Vanila, quem sabe ela pode fazer alguma coisa pela gente também... (apalpa o próprio nariz)

AURILA – Duvido. Mas eu deixaria que ela tentasse, se acreditasse que ela poderia me livrar desta verruga no queixo... Ela quebra a harmonia das minhas feições...

(Elas saem, enquanto Januária examina Vanila com ar profissional)

PANO

CENA 2

(No mesmo cenário, à tardinha do mesmo dia) (Ao abrir o pano, o Capitão Matamouros está andando dum lado para outro, impaciente. Sua fantasia de fantasma-pirata fica a cargo da imaginação dos encenadores. A cara pode ser de “caveira”)

MATAMOUROS – Raios a bombordo e coriscos a estibordo! Quantas horas mais terei de esperar por aquela feiticeira?

SABILA – (entra toda excitada e afobada) Oh, Capitão Matamouros, a Vanila já vai chegar já!

MATAMOUROS – Foi isso que a Senhora disse há uma hora e meia. Estou mas é com vontade de atirá-la pela amurada do castelo de proa, sua bruxa mal-cheirosa!

SABILA – (encantada) Mas quanta gentileza, Capitão Matamouros! Eu ficaria encantada, mas terá que ficar para outro dia. Estamos ajudando Vanila a se arrumar, não imagina que maravilha de fantasia arranjamos para ela! Vanila será a rainha da festa!

MATAMOUROS – Acho bom que seja mesmo, porque ela está se enfeitando há duas horas, e me fazendo gastar as botas de tanto andar dum lado para outro!

SABILA – Garanto-lhe que o resultado valerá a espera, o senhor nem vai reconhecê-la!

MATAMOUROS – Vou reconhecê-la nem que seja pelo cheiro! Só que o baile estará terminado antes de nós chegarmos, se ela não se apressar agora!

AURILA – (entra, com ar muito satisfeito) Meu caro Capitão Matamouros, Vanila pediu-me para dizer que já está quase pronta. Só faltam alguns grampos no cabelo, e estará tudo perfeito. (suspira de encantamento) Ah, meu Capitão, espere só para ver como ficou a nossa pequena Vanila.

MATAMOUROS – Para de falar em espera e traga-a aqui, antes que eu perca a paciência e vá arrancá-la de lá com minhas próprias mãos!

AURILA – Compreendemos sua impaciência, mas o seu prazer será tudo maior ao vê-la! Nunca em minha vida eu vi tanta radiosidade, tanta elegância, tanto encanto, tão devastadora beleza!

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MATAMOUROS – Beleza! O que é que a senhora está falando aí? A quem está se referindo?

SABILA – A nossa irmãzinha caçula, a sua encantadora dama desta noitada. Meu caro Capitão, o senhor será o abantesma mais orgulhoso do baile. (Vanila entra, trajando um longo vertido de baile, luvas compridas, penteado lindo e etc. toda a sua maquiagem de bruxa, nariz postiço e etc. foi removida, e ela está uma moça muito bonita mesmo. Atrás dela entra Januária, carregando o seu chapéu e capa de bruxa, e mais a vassoura)

VANILA – (graciosa e encantadora) Boa noite, Capitão. Sinto muito tê-lo feito esperar.

MATAMOUROS – (fitando-a de olhos arregalados de espanto, esfregando os olhos, incrédulo, e recuando alguns passos) Não! Não! É impossível! Não pode ser ela! Saia! Deixe-me!

VANILA – Mas Capitão Matamouros, sou eu, Vanila. O senhor veio para me levar ao Baile da Caveira, isto é minha fantasia para o baile de máscaras!

MATAMOUROS – Saia da minha frente! Está ouvindo!? Não quer vê-la! (puxa a espada) Nem um passo mais, ou trespasso-a com a minha espada! (melodramático) De todos os desastres de terra, mas e ar, este é o pior que já me atingiu! Como é possível que tanto azar me acompanhe até o além-túmulo!

VANILA – (quase chorando) O que foi que aconteceu? O senhor não está gostando de mim?

SABILA – Ela não está linda? Uma beleza?

MATAMOUROS – Linda? Sim! E maldita seja esta beleza! Maldita seja qualquer beleza! Foi a beleza que causou minha ruína! Fui traído, vencido e torturado pela beleza quando era vivo. E agora que sou um fantasma respeitável, será que terei de continuar sendo perseguido pelas faces formosas das minhas vítimas? Não, não é possível. Saia da minha frente. Nunca mais me deixe pôr os olhos sobre a sua cara linda. (cobre os olhos com as mãos)

VANILA – Ele deve estar louco.

AURILA – Capitão Matamouros, o que foi que aconteceu? Minha irmã só queria ser-lhe agradável.

SABILA – Ela pensava que o senhor queria uma moça bonita.

MATAMOUROS – Não, não! Sou perseguido pelos rostos das mulheres bonitas que afoguei no mar. Sou torturado pelos olhos das formosas donzelas que assaltei e fiz saltar da prancha. Tive mais que a medida de beleza enquanto vivi na terra. Foi uma linda moça que me denunciou aos beleguins do rei e me viu ser enforcado no convés do meu próprio navio. Não e não! Eu odeio a beleza! Eu abomino a formosura! Eu desprezo a pulcritude! (dramático) Foi por isso que me apaixonei por Vanila, ela era a coisa mais feia que eu já tinha visto. É por isso que eu a queria para minha esposa!

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VANILA – Sua esposa!

AURILA – Você ouviu isso, Sabila? Ele fez o pedido de casamento!

SABILA – O mausoléu rosado é seu, irmãzinha!

VANILA – Mas olhem para mim! (recupera a voz de bruxa. Para Januária) E a culpa é sua, garota malvada! É por sua culpa que eu estou com este aspecto!

MATAMOUROS – Eu vou-me embora daqui. Nunca mais a verei! Oh, como sou infeliz! Talvez a Mulher Vampiro possa me consolar nesta hora de tristeza!

AS TRÊS BRUXAS – Não, não! Não faça isso! Não vá embora!

(Vanila atira-se aos pés de Matamouros)

VANILA – Oh, meu Capitão, perdoe-me! Eu só pensei em agradá-lo! (aponta Januária com o dedo) Foi esta moça cheia de ruindade que me deu esta cara nova e este cabelo!

AURILA – (agarrando Januária que já estava se esgueirando para fugir) E ela vai desfazer sua obra nefasta, ou será atirada aos escorpiões e basiliscos!

JANUÁRIA – Óxente! Eu só fiz o que vocês me pediram!

SABILA – E agora estamos mandando que você desfaça o que fez! Faça a Vanila desvirar no que era, uma bruxa respeitável e casadoura!

JANUÁRIA – (teimando) Mas ela queria ficar bonita.

MATAMOUROS – (dolorido) Outra vez esta palavra maldita!

VANILA – (em prantos para Januária) Viu o que você me fez? Você me fez perder o único fantasma que eu amava de verdade!

MATAMOUROS – (avançando para Januária) Você fez isso com a Vanila, a bruxinha mais feia que eu já vi na minha vida?

JANUÁRIA – Ó diacho, não há como agradar esta cambada!

MATAMOUROS – (ameaçador, avançando para ela enquanto ela recua) Eu vou torturá-la, vou cortar-lhe os gorgomilos, vou fritá-la no azeite, vu fazer picadinho do seu fígado e cozido das suas entranhas, se você não restaurar a minha Vanila, está ouvindo?

AURILA – Eu bem que nunca tive confiança nesta coisa, desde o começo.

JANUÁRIA – Eu... Eu vou ver o que posso fazer... Afinal, quem pode embelezar, deve poder enfear. Venha cá, Vanila, deixe-me ver o que posso fazer por você... Espere aí... Primeiro, ponha esta capa de bruxa... Assim! Já está melhorando, quero dizer, piorando. E agora, o chapéu. (o chapéu deve ter a peruca de bruxa já presa por dentro, de modo que chapéu e peruca escondam o penteado bonito)

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MATAMOUROS – (animando-se) Ah, ela já está começando a parecer-se consigo mesma!

JANUÁRIA – (abrindo a valise) Acho que posso até restaurar-lhe o nariz, se o senhor preferir...

MATAMOUROS – Que dúvida! Eu nunca vi um pico mais repugnante do que o nariz da minha adorada Vanila!

JANUÁRIA – Muito bem, assim seja! (tira o nariz de bruxa da valise e coloca-o em Vanila. Arrepia-se) Espero que esteja satisfeito.

AURILA – (encantada) Deixe estar que ela já está quase tão feia como antes!

SABILA – E com o passar do tempo ela vai ficar cada vez mais feia. É um traço de família.

MATAMOUROS – (entusiasmado) Excelente! Excelente! (reverência para as bruxas mais velhas) Senhora Aurila, Senhora Sabila, peço a permissão para me casar com a sua nauseabunda irmã!

VANILA – (dengosa) Oh, meu Capitão, isso é tão inesperado!

BRUXAS – Vocês têm a nossa permissão incondicional! Com os nossos parabéns!

MATAMOUROS – Muito bem. (para Vanila, oferecendo-lhe o braço) E agora, minha repugnante noivinha, vamos nos arrancar daqui! Seremos o casal mais horrendo de todo o baile!

VANILA – E no próximo Baile da Caveira nós já seremos Capitão e Senhora Matamouros! Vamos, meu malzinho?

AURILA – Vanila, você está esquecendo o seu cabo de vassoura!

MATAMOUROS – Ela não precisará de vassoura hoje, cunhada. Nós iremos com o meu navio fantasma, singrando os ares. (sai com a noiva)

AURILA – (suspirando) Que casal mais romântico!

(As duas bruxas ficam um instante olhando. Januária aproveita a deixa para montar no cabo de vassoura de Vanila, sem que as suas, embevecidas, notem e parte em silêncio)

SABILA – (após pequena pausa) Mas que a Vanila estava bonita, quando ficou bonita.

AURILA – (enfezada) Uma bruxa não tem nada que querer ser bonita.

SABILA – Nunca, nunca?

AURILA – Bem, só como disfarce, como a Rainha Má da Branca de Neve, por exemplo. Mas era pra fazer maldade.

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Page 13: Atelier TEXTO Miss Cabo de Vassoura - H. L. Miller[1]

SABILA – (animada) Eu poderia inventar alguma maldade para a qual fosse preciso ser bonita... Acho que vou falar com a Januária para... Uai! Ela sumiu!

AURILA – Ela furtou a vassoura da Vanila e fugiu! Mas que danada!

SABILA – (abre o berreiro) Uhuhuh! Agora eu nunca mais vou poder ser bonita! Ohohohohohoh!

AURILA – (percebendo que Januária deixou a valise) Pare com esta choradeira, Sabila! (sacode a irmã que continua chorando alto) Olha! A tal da maquiadora deixou a sua caixa de mágicas!

SABILA – É mesmo! Na pressa de fugir, ela esqueceu a sua maleta profissional! (idéia luminosa) Aurila... Irmã querida... Será que você não poderia...

AURILA – (entendendo) Eu poderia tentar, só para você acabar com este berreiro...

SABILA – (abre a valise, ansiosa, e tira uns “bobs” para o cabelo) Então, vamos começar pelo cabelo... Ela disse que é assim que se começa...

(Aurila pega o maior dos “bobs” e começa a enrolar o cabelo da irmã, desajeitadamente mordendo a língua e dando-lhe puxões e safanões. O pano vai se fechando, enquanto Sabila, numa careta de dor, diz a frase final...)

SABILA – Oh! Quanto se sofre para ser bela!

FIM

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