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As mil e uma noites de Saladino O homem mais respeitado do mundo árabe até hoje foi um curdo que viveu há mais de 800 anos. Conheça a história de Saladino, um sultão que uniu seu povo, tomou Jerusalém dos cruzados e virou o grande líder muçulmano por Mariana Sgarioni ”Os verdadeiros reis não se matam uns aos outros.” Depois de falar essa frase certeira, o sultão guarda a espada na cintura e oferece um refresco de água de rosas ao prisioneiro inimigo, que estava de joelhos diante dele, esperando o golpe final sobre sua cabeça. Estamos em 1187. O protagonista da cena é Salah al-Din Yusuf ibn Ayub, ou para nós, ocidentais, Saladino. Ajoelhado e rendido estava Guy de Lusignan, então governante cristão de Jerusalém, recém-tomada pelos muçulmanos. Quem está acostumado a ver na TV prisioneiros decepados por extremistas da Al Qaeda pode imaginar que eles nada aprenderam com o maior líder do Islã de que se tem notícia. Em uma época nem tão diferente da nossa, em que governantes se mostravam traiçoeiros e cruéis, Saladino entrou para a história não só pela coragem de conquistar Jerusalém, mas por sua humanidade e simplicidade. Líder carismático, implacável na luta, generoso na vitória. Esse é o homem que você vai conhecer agora. “Saladino foi adorado até mesmo pelos seus inimigos”, resume Ridley Scott, diretor de Cruzada. De família curda, Yusuf nasceu em 1137 nas montanhas de Tikrit, no Iraque – curiosamente, a mesma cidade natal de Saddam Hussein. Justo no dia de seu nascimento, seu tio Xirkuh, que mais tarde iria ensinar-lhe a guerrear, envolveu-se numa briga e a família teve de se mudar para a Síria. O pai de Saladino, Najm ad-Dim, tornou-se o comandante da segurança da fortaleza do líder árabe Zengi, em Baalbek. Xirkuh, seu tio, chefiava parte do exército que, em 1144, tomou Edessa, no norte do Iraque, dos cruzados. Dois anos depois, Zengi morreu e foi substituído por seu filho Nur al-Din, uma liderança ainda mais forte na unificação dos domínios do Islã. Jovem guerreiro Por ordem do novo comandante, a família de Saladino mudou para Damasco, onde o patriarca teve como missão reorganizar a defesa da cidade. Por segurança, Saladino e os irmãos só podiam andar com soldados como guarda- costas. Sendo o terceiro filho homem, ele cresceu um tanto livre das cobranças que sofriam os primogênitos. Todos os dias, os irmãos se divertiam ensinando os soldados a jogar chogan, uma espécie de pólo, com

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As mil e uma noites de Saladino

O homem mais respeitado do mundo árabe até hoje foi um curdo que viveu há mais de 800 anos. Conheça a história de Saladino, um sultão que uniu seu povo, tomou Jerusalém dos cruzados e virou o grande líder muçulmano

por Mariana Sgarioni

”Os verdadeiros reis não se matam uns aos outros.” Depois de falar essa frase certeira, o sultão guarda a espada na cintura e oferece um refresco de água de rosas ao prisioneiro inimigo, que estava de joelhos diante dele, esperando o golpe final sobre sua cabeça. Estamos em 1187. O protagonista da cena é Salah al-Din Yusuf ibn Ayub, ou para nós, ocidentais, Saladino. Ajoelhado e rendido estava Guy de Lusignan, então governante cristão de Jerusalém, recém-tomada pelos muçulmanos.

Quem está acostumado a ver na TV prisioneiros decepados por extremistas da Al Qaeda pode imaginar que eles nada aprenderam com o maior líder do Islã de que se tem notícia. Em uma época nem tão diferente da nossa, em que governantes se mostravam traiçoeiros e cruéis, Saladino entrou para a história não só pela coragem de conquistar Jerusalém, mas por sua humanidade e simplicidade. Líder carismático, implacável na luta, generoso na vitória. Esse é o homem que você vai conhecer agora. “Saladino foi adorado até mesmo pelos seus inimigos”, resume Ridley Scott, diretor de Cruzada.

De família curda, Yusuf nasceu em 1137 nas montanhas de Tikrit, no Iraque – curiosamente, a mesma cidade natal de Saddam Hussein. Justo no dia de seu nascimento, seu tio Xirkuh, que mais tarde iria ensinar-lhe a guerrear, envolveu-se numa briga e a família teve de se mudar para a Síria.

O pai de Saladino, Najm ad-Dim, tornou-se o comandante da segurança da fortaleza do líder árabe Zengi, em Baalbek. Xirkuh, seu tio, chefiava parte do exército que, em 1144, tomou Edessa, no norte do Iraque, dos cruzados. Dois anos depois, Zengi morreu e foi substituído por seu filho Nur al-Din, uma liderança ainda mais forte na unificação dos domínios do Islã.

Jovem guerreiro

Por ordem do novo comandante, a família de Saladino mudou para Damasco, onde o patriarca teve como missão reorganizar a defesa da cidade. Por segurança, Saladino e os irmãos só podiam andar com soldados como guarda-costas. Sendo o terceiro filho homem, ele cresceu um tanto livre das cobranças que sofriam os primogênitos. Todos os dias, os irmãos se divertiam ensinando os soldados a jogar chogan, uma espécie de pólo, com os amigos. Outro passatempo infantil do futuro sultão era matar serpentes – os meninos mais corajosos, como ele, pisavam em suas cabeças. Isso chamou a atenção de Xirkuh, um bravo e impetuoso guerreiro, que começou a ensinar o sobrinho a cavalgar e a manejar a espada. E, observando o pai astuto, o menino aprendia a ser estrategista, a calcular cada passo e nunca agir por impulso. Segundo os historiadores, essa mistura de audácia e astúcia é que fez de Saladino um grande combatente.

Desde muito cedo, ele ficava impressionado e comovido com os horrores das histórias que ouvia sobre a tomada de Jerusalém. Os mais velhos contavam que seu povo havia sido queimado vivo e sua carne fora comida pelos cruzados. As mesquitas teriam sido profanadas e servidas como estábulo para que os animais dos cristãos defecassem.

O destino deu um empurrãozinho para que Saladino tivesse sua primeira oportunidade. O irmão mais velho morreu subitamente e o segundo na linha de sucessão irritava o pai por causa de sua indisciplina e teimosia. Assim, o jovem Yusuf ganhou muito mais atenção. Por outro lado, o cenário geopolítico também contribuía para o surgimento de um líder. Disputas de facções islâmicas causavam rivalidades entre povos. O surgimento da facção xiita rachou o Islã – os sunitas, como Saladino, ainda eram maioria e respondiam ao líder titular no Oriente Médio, o califa de Bagdá. As brigas eram tão intensas que muitos cristãos se

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aproveitavam desse racha para tomar cidades. Portanto, havia a necessidade urgente de unificação do mundo árabe.

Nessa mesma época, em 1164, Nur al-Din, da facção sunita, decidiu enviar suas tropas e invadir o Egito, governado por califas fatímidas (dinastia que se considerava descendente direta de Fátima e Ali, filha e genro do profeta Maomé), da facção xiita. A idéia era colocar ordem no país, que estava em pleno caos, sem depor os califas. O chefe do exército era ninguém menos que Xirkuh, o tio de Saladino, que insistiu em levar o sobrinho para o combate. Os dois guerrearam juntos e venceram uma série de lutas no sul da Mesopotâmia contra os muçulmanos xiitas, muitos apoiados pelos cruzados, até conquistar o Cairo, quatro anos depois.

O Soberano

Xirkuh foi proclamado rei do Egito, mas morreu dois meses depois, enquanto se esbaldava em um banquete fartamente servido de carneiros, cabras e codornas no espeto. Segundo o escritor paquistanês Tariq Ali, autor de O Livro de Saladino, ele se engasgou de tanto comer. Saladino teria ficado tão impressionado com a cena que passou o resto da vida preferindo pratos vegetarianos, como ervilhas cozidas. Outros escritores, porém, cogitam a hipótese de envenenamento.

Por ser jovem e inexperiente, Nur al-Din achou por bem que Saladino herdasse o trono – ele obedeceria a suas ordens sem se rebelar. Assim, em 1169, aos 31 anos, ele se tornou vizir, cargo que corresponde a uma espécie de ministro. A conselho do pai, nomeou irmãos e primos curdos para a maioria dos cargos importantes do seu reinado. Com uma equipe de total confiança, evitaria uma eventual traição. Foi aí que, dois anos depois, surpreendeu a corte de Bagdá ao acabar de uma vez por todas com os fatímidas, que dominaram a região por três séculos. Em reconhecimento, foi nomeado sultão – ou seja, governante absoluto – do Egito.

Com a morte de Nur al-Din, Saladino comandou um exército que assumiu o controle da Síria, unificando os dois reinos e tornando-se o imperador. Para o pesadelo dos cruzados, a união dos árabes progredia. “Quando Deus me deu a terra do Egito, eu tinha a certeza de que ele pretendia me dar também a Palestina”, teria dito o sultão, mostrando sua idéia fixa pela conquista do Reino de Jerusalém.

Antes de se dedicar à ofensiva final, restava ao sultão a tarefa de terminar de unir seu próprio império, já que ainda havia dissidências. Sua característica era a de sempre buscar uma solução diplomática antes de atacar – só usava a força militar quando não tinha possibilidade de diálogo. Em junho de 1183, ele tomou Aleppo, cidade de grande importância estratégicas, e em 1186 suas tropas dominaram a Alta Mesopotâmia. Nesse período, o sultão sofreu diversos atentados, todos sem sucesso. Em um deles, soldados xiitas cercaram sua cama enquanto dormia. Foi atingido de raspão por um punhal – morreria se seus seguranças, fiéis e atentos, não tivessem chegado a tempo.

Com o Islã unificado, Saladino se tornou o soberano mais poderoso da época. Naquele tempo Damasco, Cairo e Bagdá somavam uma população de cerca de 2 milhões de habitantes. Já Paris e Londres tinham menos de 50 mil moradores cada uma.

O Líder

O governo de Saladino foi o mais popular da história. No Cairo, era adorado pela população por sua simplicidade e por ter recuperado a economia local. “Para merecer o respeito do povo, e em particular de nossos soldados, devemos nos acostumar a comer e vestir como eles”, ele dizia. “Ao contrário dos califas fatímidas, Saladino não exigia que o povo pagasse imposto para ele acumular uma fortuna pessoal. Recompensava muito bem seus soldados e impedia que o país fosse assolado pela fome”, afirma o escritor Tariq Ali.

Tendo conquistado a fidelidade de súditos, era hora de partir para seu maior objetivo: Jerusalém. Saladino chamou os dois sobrinhos preferidos, filhos de seu irmão mais velho, para comandar os soldados. Sua popularidade era tão grande que vieram guerreiros de todos os cantos – só os curdos somavam cerca de 30 mil homens e, entre eles, havia judeus e cristãos convertidos ao islamismo. Saladino os conclamava para a mais esperada jihad (guerra santa). Por todos os lados só se ouvia um grito: “Allah o akbar” (Alá é grande!).

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Milhares de soldados, arqueiros e espadachins começaram a chegar. O sultão ordenou que todos acampassem em Ashtara (na Síria), cidade em que havia muita água para beber e extensas planícies para a simulação de combates. O exército ali ficou por 25 dias. Foram convocados também 100 cozinheiros, com 300 ajudantes. Saladino fazia questão absoluta que todos recebessem a mesma comida. “Todos são semelhantes aos olhos de Alá, amigos ou inimigos”, dizia ele. Isso fez crescer o sentimento coletivo de solidariedade.

Ao desmontar os acampamentos rumo à guerra, o sultão inspecionava tudo pessoalmente e tinha a habilidade de lembrar o nome da maioria dos arqueiros e espadachins. “Ele não gostava de delegar tarefas e fazia questão de correr riscos junto com seus soldados. Queria lhes dar segurança e manter alto o moral da tropa”, afirma o professor Mohamed Habib, da Unicamp.

Dados acessados em 11 agosto 2010 site:

http://historia.abril.com.br/religiao/mil-noites-saladino-434455.shtml