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LARISSA GRIPP CARDOSO ASPECTOS RELEVANTES DA CONSTITUCIONALIDADE DA USUCAPIÃO FAMILIAR COM O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Monografia apresentada ao Curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Rondônia UNIR Campus Professor Francisco Gonçalves Quiles Cacoal, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, elaborada sob a orientação da professora M.ª Francele Moreira Marisco. CACOAL RO 2015

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LARISSA GRIPP CARDOSO

ASPECTOS RELEVANTES DA CONSTITUCIONALIDADE DA

USUCAPIÃO FAMILIAR COM O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL DE 1988

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Fundação

Universidade Federal de Rondônia – UNIR – Campus

Professor Francisco Gonçalves Quiles – Cacoal, como

requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em

Direito, elaborada sob a orientação da professora M.ª

Francele Moreira Marisco.

CACOAL – RO

2015

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ASPECTOS RELEVANTES DA CONSTITUCIONALIDADE DA

USUCAPIÃO FAMILIAR COM O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL DE 1988

LARISSA GRIPP CARDOSO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Fundação Universidade Federal de

Rondônia UNIR – Campus Professor Francisco Gonçalves Quiles – Cacoal, para obtenção do

grau de Bacharel em Direito, mediante a Banca Examinadora formada por:

___________________________________________________

Professora M.ª Daeane Zulian Dorst – UNIR – Presidente

________________________________________________________

Professora M.ª Ozana Rodrigues Boritza – Membro

________________________________________________

Professor M.e Afonso Maria das Chagas – Membro

Conceito: _______________

Cacoal, _______ de Julho de 2015.

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Dedico este trabalho aos meus pais Vanderlei e Izaura que

sempre me apoiaram, incentivaram, acreditaram em mim e

nos meus sonhos e me deram todo o suporte e a estrutura

necessária para que eu pudesse chegar até aqui e

colecionar mais uma vitória no currículo da vida.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por ter me dado vida, saúde, perseverança, sabedoria

e fé, em todos os momentos que precisei Ele me sustentou com sua mão firme, mesmo

quando eu levemente começava a vacilar ou tropeçar em algumas pedras, erguia-me e

mostrava que a vontade de vencer é maior do que os desafios pelos quais estava passando.

Aos meus pais, a quem devo a graça de terem me dado a vida, acreditaram e acreditam

em mim e por terem contribuído significativamente para que eu pudesse ser quem sou, e

também por terem emocionalmente e financeiramente ajudado em meu avanço profissional e

pessoal e permitiram que eu conseguisse colecionar mais uma vitória no currículo da vida.

À Lauriana, Miguel, Bárbara, Luiz Miguel e Higor Gabriel, os quais me acolheram em

seu lar, nas suas vidas e fizeram com que eu me tornasse ‘filha e irmã’, dessa família a qual

admiro e agradeço por cuidarem de mim quando precisei e por todos os momentos de alegria,

diversão e companheirismo, os quais pude compartilhar durante 4 anos especiais.

À orientadora Professora M.ª Francele Moreira Marisco pelo aprendizado que me

concedeu nos últimos meses em elaborar um texto coerente, sou grata pela amizade, carinho,

disponibilidade, atenção, paciência e profissionalismo louvável, especificando a cada dia mais

um detalhe a ser analisado e reformulado contribuindo para a concretização deste trabalho.

À orientadora Professora M.ª Daeane Zulian Dorst pela contribuição de seus

ensinamentos basilares de estrutura monográfica, bem como entre outros conselhos e

experiências compartilhadas em sala de aula que contribuíram para a execução deste trabalho.

Aos amigos que Deus permitiu entrar em minha vida e fazerem parte dela durante

todos esses 5 anos de faculdade, árduos, divertidos, por ora tristes, preocupantes,

comemorativos, pelos momentos de estímulos e força que demos uns aos outros. Muito

obrigada por participarem dessa experiência incomparável e insubstituível, e que Deus nos

conserve por muitos e muitos anos, amigos.

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“[...] em primeiro lugar busquem o Reino de Deus e a sua

justiça, e Deus dará a vocês, em acréscimo, todas essas

coisas. Portanto, não se preocupem com o dia de amanhã,

pois o dia de amanhã terá suas preocupações”. (Bíblia

Sagrada).

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RESUMO

O trabalho em questão visa verificar o dispositivo 1.240-A do Código Civil, em relação a sua

inconstitucionalidade, tendo em vista a incompatibilidade dos requisitos exigidos pelo

mencionado artigo, a fim de configurar a modalidade de usucapião familiar. Assim, durante a

análise da constitucionalidade de tal instituto observa-se a violação do princípio da liberdade e

do devido processo legal, quando institui o abandono de lar como uma das condições

essenciais a usucapião familiar, pois além de restringir a liberdade dos cônjuges em decidir se

permanecerão no imóvel ou se sairá também se torna uma sanção ao cônjuge abandonador

infringindo o regime de bens adotado pelo casal; outra situação é a possibilidade de usucapir

somente bens imóveis urbanos, excluindo os rurais, ferindo o princípio da igualdade. Além

disso, é possível perceber a incompatibilidade do instituto com a Emenda Constitucional

66/2010, pois esta instituiu o divórcio no ordenamento jurídico e provocou mudanças

significativas no direito de família, como por exemplo, extinguindo a culpa, o que de fato está

diretamente ligada ao abandono de lar exigido pelo artigo 1.240-A. Para a sua realização foi

utilizado o método dedutivo e tendo como método interpretativo o dogmático de análise do

direito.

Palavras-chave: Usucapião familiar. Abandono de lar. Emenda Constitucional 66/2010.

Violação aos princípios constitucionais. Inconstitucionalidade.

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ABSTRACT

The work in question is intended to check the device 1,240 -A of the Civil Code, in relation to

its unconstitutionality, having in view the incompatibility of requirements required by

indicate, in order to configure the modality of usucapiao family. Thus, during the analysis of

the constitutionality of such institute observes the violation of the principle of freedom and of

due legal process, when establishing the abandonment of home as one of the essential

conditions to usucapiao family, because in addition to restricting the freedom of the spouses

to decide if will remain on the property or if you exit also becomes a sanction to spouse

abandonador breaking the property scheme adopted by the couple; another situation is the

possibility of usucapir only immovable property urban, excluding rural, injuring the principle

of equality. In addition, it is possible to perceive the incompatibility of the institute with the

Constitutional Amendment 66/2010, because this instituted the divorce by the legal system

and has caused significant changes in family law, such as for example, whereupon the guilt,

which in fact is directly linked to the abandonment of home required by article 1,240 -A. For

its implementation was used the deductive method and having as interpretative method the

dogmatic analysis of law.

Keywords: Usucapiao family. Abandonment of home. Constitutional Amendment 66/2010.

Violation of the constitutional principles. Unconstitutional.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1 OS ASPECTOS DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO .................................................................................................... 11

1.1 MODALIDADES DE USUCAPIÃO ................................................................................. 13

1.1.1 A Usucapião Especial Urbana ...................................................................................... 19

2 A RELAÇÃO DA USUCAPIÃO COM A PROPRIEDADE E O ADVENTO DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................................................... 24

2.1 A USUCAPIÃO FAMILIAR E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ......... 32

3 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA USUCAPIÃO FAMILIAR ............... 37

3.1 USUCAPIÃO FAMILIAR FRENTE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ............ 37

3.1.1 Violação ao Princípio da Igualdade ............................................................................. 38

3.1.2 Violação ao Princípio da Liberdade ............................................................................ 41

3.1.3 Violação ao Princípio do Devido Processo Legal ........................................................ 43

3.2 USUCAPIÃO FAMILIAR FRENTE À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº. 66/2010 ... 48

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 57

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 60

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo verificar o dispositivo 1.240-A do Código Civil

em relação à sua inconstitucionalidade visto a incompatibilidade dos requisitos, exigidos pelo

mencionado artigo, a fim de configurar a modalidade de usucapião especial urbana.

Nota-se que, a Usucapião é um instituto com origem no Direito Romano e foi

difundida em todo o mundo por regulamentar o direito de propriedade e os procedimentos

necessários às relações negociais. Sendo assim, com o passar do tempo veio consolidando as

normas referentes à propriedade e trazendo segurança ao mundo jurídico.

A lei 12.424/2011 inseriu no Código Civil o art. 1.240-A, o qual institui vários

quesitos contrários a posicionamentos e preceitos norteadores do ordenamento jurídico pátrio,

como por exemplo, o reavivamento da culpa em relação ao divórcio devido ao abandono de

lar fazer parte de uma das condições necessárias ao reconhecimento da Usucapião Familiar.

Insta ressaltar, que a Emenda Constitucional 66/2010 já havia revogado a culpa, evitando

discussões a cerca do final do relacionamento afetivo.

Com relação ao princípio da liberdade, nota-se um descompasso quando o legislador

taxa o companheiro preconceituosamente como ‘abandonador voluntário’, acontecimento este

precipitado, pois, o aplicador da lei não tem condições de saber a real situação pela qual

estava passando o casal, forçando um dos cônjuges ou companheiros a continuar no imóvel a

fim de evitar uma futura perda patrimonial, restringindo desse modo a liberdade de

locomoção.

Nessa vertente, destaca-se que com o estudo da constitucionalidade da modalidade de

usucapião pro familia será possível verificar os efeitos capazes de gerar impactos na

sociedade, no mundo jurídico e acadêmico, em razão de inserir condições questionáveis com

relação aos princípios constitucionais e os preceitos norteadores do ordenamento jurídico

pátrio.

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Com a finalidade de explanar a respeito da inconstitucionalidade da usucapião familiar

este trabalho terá três capítulos. O primeiro abordará os aspectos da prescrição aquisitiva no

ordenamento jurídico brasileiro de modo a apresentar a origem do instituto, a evolução

histórica, política e social; e as modalidades existentes no Brasil, além de dar ênfase aos

requisitos exigidos na espécie de usucapião especial urbana pro moradia e a relação desta

com direito de propriedade de modo a regular as relações entre os particulares.

No segundo capítulo será apresentada a relação da usucapião com a propriedade, e

também ao transcorrer do texto será exposto o advento da Constituição Federal de 1988 com

dois fatos importantíssimos para o direito de propriedade, a instituição deste como direito

fundamental e a constitucionalização do direito, o qual estabeleceu a irradiação das normas

constitucionais por todo o ordenamento jurídico brasileiro sob pena de inconstitucionalidade

das normas infraconstitucionais com ela incompatível.

O último está reservado ao estudo da constitucionalidade da usucapião familiar, no

qual será exposto a violação ao princípio da igualdade, da liberdade, do devido processo legal,

bem como a incompatibilidade do artigo 1.240-A do CC com a Emenda Constitucional nº.

66/2010.

Por conseguinte, para verificar a inconstitucionalidade daquele instituto frente ao

ordenamento jurídico brasileiro foi utilizado o método dedutivo e como método interpretativo,

o dogmático de análise do direito. No mais, o procedimento técnico aplicado foi de pesquisa

bibliográfica a fim de se averiguar tal inconstitucionalidade mediante a averiguação dos

fundamentos, princípios e posicionamento doutrinários.

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1 OS ASPECTOS DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

A Usucapião é um instituto com origem no Direito Romano e foi difundida em todo o

mundo por regulamentar o direito de propriedade e os procedimentos necessários às relações

negociais. Sendo assim, com o passar do tempo veio consolidando as normas referentes à

propriedade e trazendo segurança ao mundo jurídico. Logo, desempenha um importante papel

dentro do ordenamento jurídico, por isso torna-se imprescindível a análise dos aspectos mais

relevantes desta matéria.

Ao analisar o instituto em tela percebe-se a existência de controvérsias com relação à

origem da usucapião, alguns estudiosos compartilham o entendimento de que a prescrição

aquisitiva originou-se na Grécia, contudo, a maioria dos doutrinadores, como Sílvio de Salvo

Venosa (2013), Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012), Benedito Silvério

Ribeiro (2006), entre outros, afirmam que tal instituto surgiu no direito romano.

Segundo Venosa (2013, p. 1.451) “A Lei das Doze Tábuas estabeleceu que quem

possuísse por dois anos um imóvel ou por um ano um móvel tornar-se-ia proprietário. Era

modalidade de aquisição ius civile, portanto, apenas destinado aos cidadãos romanos”.

Além disso, Farias e Rosenvald (2012, p. 395) consideram o reconhecimento da

usucapião no Direito Romano, após a criação da Lei das Doze Tábuas, a qual regulamentava o

direito privado e os procedimentos necessários às relações negociais. Ademais, ratificam que

tal instituto era uma forma de obter bens móveis e imóveis por intermédio da posse contínua

por um determinado lapso temporal, e apenas tinham direito de usufruir de tal benefício os

cidadãos romanos.

Nessa toada leciona Ribeiro (2006, p. 141):

Não se aplicando, pois, a lei em questão aos fundos provinciais e não podendo

invocá-la aos estrangeiros, dado que não gozavam dos direitos preceituados no ius

civile e, sendo a usucapião um modo civil de aquisição, os romanos mantinham seus

bens perante os peregrinos e podiam reivindicá-los quando bem entendessem.

Contudo, devido à expansão do império e o passar do tempo, os peregrinos acabaram

por ser agraciados com o direito à prescrição temporal1, uma maneira de defesa das ações

reivindicatórias dos bens imóveis e móveis, desde que os proprietários destes tenham agido

1 Prescrição temporal refere-se ao transcurso de um prazo estabelecido em lei, a qual se confere o direito de

quem lhe possuir poder usucapi-lo.

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desidiosamente e também tenha decorrido o prazo de 10 e 20 anos, porém, o dono não perdia

a propriedade, apenas o acesso à posse.

Destarte, de acordo com os ensinamentos de Farias e Rosenvald (2012, p. 396) no

mandato do imperador Justiniano a usucapião e a prescrição aquisitiva2 foram

consubstanciadas em um único instituto sob o argumento de não haver mais diferença entre

elas. Logo, aquela se tornou uma modalidade de aquisição e perda da propriedade, conhecida

também como prescrição aquisitiva.

No Brasil, a usucapião tem como base os princípios instituídos por Justiniano, e

atualmente é regulamentada pela Constituição Federal de 1988 em seus artigos 1833 e 191

4,

bem como pelo Código Civil de 2002 a partir do artigo 1.238.

Com relação ao estudo etimológico da palavra, bem como a contribuição desta para

seu conceito, Ribeiro (2006, p. 173) esclarece que ela provém do latim uscapio, do verbo

capio (ou capere), tomar, adquirir; e usus, uso, significando tomar pelo uso ou em relação ao

uso (porque originariamente usus tinha o significado de posse). Logo, Ribeiro (2006, p. 189)

conclui: “pela usucapião a posse transforma-se em propriedade, desde que ocorra tempo

suficiente para que tal se verifique”.

No mesmo giro Pereira (2003, p. 138) ratifica: “usucapião é a aquisição da

propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos

requisitos instituídos em lei”.

A Usucapião é considerada por vários doutrinadores um instrumento que analisa três

vertentes: o tempo, a existência de uma propriedade e o uso contínuo, os quais são utilizados

na conceituação desse instituto e contribuem para a formação do fundamento essencial desta

prescrição aquisitiva, a qual tem com objetivo solucionar conflitos originados entre a posse e

a propriedade regulamentando ao mesmo tempo a perda e a aquisição do imóvel.

Sendo assim assevera Coelho (2012, s.p.) em relação às exigências necessárias a

configuração da prescrição aquisitiva:

Em todas as espécies de usucapião, há três elementos comuns à posse: continuidade,

inexistência de oposição e a intenção de dono do possuidor. São os elementos que,

2 Prescrição aquisitiva refere-se ao decurso do lapso temporal previsto em lei que gera o direito de quem possui a

propriedade imóvel possa requer a usucapião. 3 Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco

anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o

domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 4 Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos

ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva

por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

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aliados aos requisitos próprios de cada espécie, caracterizam a posse que dá ensejo à

aquisição do imóvel por usucapião; a chamada posse ad usucapionem.

Já com relação ao fundamento do instituto Gonçalves (2012, p. 258) entende ser:

O fundamento da usucapião está assentado, assim no princípio da utilidade social, na

convivência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se

consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio. Tal instituto, segundo,

consagrada doutrina, repousa na paz social e estabelece a firmeza da propriedade,

libertando-a de reivindicações inesperadas, corta pela raiz um grande número de

pleitos, planta a paz e a tranquilidade na vida social: tem a aprovação dos séculos e o

consenso unânime dos povos antigos e modernos.

Por conseguinte, infere-se do texto supramencionado que o legislador brasileiro

buscou os princípios do instituto da Usucapião nos preceitos do Direito Romano, e a

prescrição aquisitiva utiliza-se do tempo, da existência de uma propriedade e de seu uso

contínuo para solucionar conflitos originados entre a posse e a propriedade regulamentando

ao mesmo tempo a perda e a aquisição do imóvel, as quais são regidas pelo Código Civil

estando divididas em três modalidades, as quais serão melhor explanadas no próximo

subcapítulo.

1.1 MODALIDADES DE USUCAPIÃO

O conjunto de normas jurídicas brasileira divide a usucapião em três espécies:

extraordinária, ordinária e especial, esta por sua vez subdividiu-se em rural e urbana. Dessa

maneira, insta ressaltar que no presente trabalho será abordada com maior ênfase a

modalidade de usucapião especial urbana.

O instituto está disciplinado no Código Civil de 2002, no título III o qual dispõe sobre

a propriedade, mais precisamente no capítulo II referente à aquisição da propriedade imóvel.

O Código Civil no artigo 1.2385 menciona a Usucapião Extraordinária, como uma das

espécies com maior lapso temporal, 15 (quinze) anos, tendo como consequência a dispensa do

justo título e da boa-fé. Nessa esteira leciona Gomes (2005, p. 192): “A usucapião

5 Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel,

adquirir-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare

por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido

no imóvel sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

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extraordinária caracteriza-se pela maior duração da posse e por dispensar o justo título e a

boa-fé”.

Do mesmo entendimento compartilha Gonçalves (2012, p. 260) quando alega:

Basta o ânimo de dono e a continuidade e tranquilidade da posse por quinze anos. O

usucapiente não necessita de justo título nem de boa-fé, que sequer são presumidos:

simplesmente não são requisitos exigidos. O título, se existir, será apenas reforço de

prova, nada mais.

O prazo previsto no dispositivo supracitado poderá ser reduzido para 10 (dez) anos,

conforme menção expressa do parágrafo único do dispositivo supramencionado. Entretanto, o

benefício da atenuação de prazo exige o cumprimento de requisitos conhecidos pela doutrina

como “posse-trabalho”, a permanência habitual do futuro usucapiente no imóvel urbano

objeto da pretensão aquisitiva e a execução de obras ou atividades produtivas, as quais visam

atender à função social da propriedade.

Segundo os ensinamentos de Gonçalves (2012, p. 260):

O conceito de ‘posse-trabalho’, quer se corporifique na construção de uma

residência, quer se concretize em investimentos de caráter produtivo ou cultural,

levou o legislador a reduzir para dez anos a usucapião extraordinária, como consta

do parágrafo único supracitado.

Além disso, o artigo 1.238 CC menciona também a necessidade de o usucapiente

possuir o imóvel de maneira mansa e pacífica. Salienta-se, tais disposições referem-se à

comprovação de poder de fato sobre toda a extensão, a qual o possuidor pretende conquistar.

Ademais, a mansidão e pacificidade relacionam-se com incontestabilidade judicial e não a

simples amistosidade com a vizinhança e o cuidado exacerbado sobre a propriedade, maneira

como a maioria das pessoas se equivocam ao interpretar o texto legal.

De outro modo, Rizzardo (2004, p. 266) estabelece a respeito da posse justa: “for

isenta de violência, tanto no seu início, quanto no curso de sua duração, diz-se mansa, pacífica

ou tranquila”. Assim, depreende-se que a mansidão e a pacificidade dar-se-á quando não

houver violência conhecida também pelo uso da força material ou moral em desfavor da

pessoa do possuidor.

Analisando o requisito da não interrupção Venosa (2013, p. 1.497) manifesta:

A posse contínua e incontestada é aquela que durante o período não sofreu

discussão, contestação, impugnação ou dúvida alguma. Qualquer ato concreto nesse

sentido pode interromper a continuidade de posse, isto é, pode interromper a

prescrição. Cuida-se mesmo de interrupção de prescrição para a qual se invocam os

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princípios do instituto examinados na parte geral. Não é contínua, do mesmo modo,

a posse exercida intermitentemente, com intervalos. Nessa hipótese, apenas o caso

concreto definirá a situação de fato.

Dito isto, o autor supracitado revela o fato de a posse além de ser mansa e pacífica

deve ser ininterrupta, a qual pode ser compreendida pela não manifestação contrária à posse

do usucapiente sobre o bem a ser usucapido, e vai além, quando menciona a existência da

continuidade sem nenhum intervalo.

Por conseguinte, infere-se da espécie supramencionada, a posse mansa e pacífica pelo

período exigido por lei é indispensável à concessão da pretensão aquisitiva na modalidade

extraordinária.

Quanto à outra espécie de usucapião, cabe analisar a Ordinária, prevista no art. 1.2426

CC e assemelha-se a extraordinária quando condiciona a posse mansa e pacífica e remete-a a

utilização da propriedade como moradia habitual ou desempenho de atividades

movimentadoras da economia ou o interesse social. As diferenças da segunda espécie em

relação à primeira referem-se ao lapso temporal de 10 anos, os quais poderão ser reduzidos a

5 (cinco), desde que observadas condições exigidas pelo parágrafo único do dispositivo

supracitado, e também faz mister a apresentação de justo título e boa-fé.

Tal espécie ganha uma particularidade especial, pois não obstante o possuidor seja

portador documental do imóvel e o título deste tenha sido cancelado, seja por irregularidade

ou vício de vontade, o possuidor cumprindo com a função social da propriedade, como por

exemplo: plantando, estabelecendo moradia, ou dando utilidade a coisa, estará protegido

legalmente.

Segundo Gonçalves (2012, p. 288) justo título seria um ato jurídico que transferiria a

propriedade e a posse do imóvel para outrem senão fosse o vício de natureza formal ou

substancial. Além disso, complementa Farias e Rosenvald (2012, p. 312) tal situação

caracteriza-se pela ausência das condições necessárias ao negócio jurídico, tendo por

exemplo, a existência, validade e eficácia.

Já a boa-fé baseia-se na ignorância da existência de um vício. Assim, entende Peluso

(2013, p. 1.237):

6 Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo

título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido,

onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os

possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

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... consiste no desconhecimento do vício que afeta a posse. O justo título faz sumir a

boa-fé, mas os dois requisitos não se confundem. Pode haver justo título sem boa-fé,

como no caso em que o possuidor, em determinado momento, toma conhecimento

do vício que afeta o título e o torna impróprio para a transferência da propriedade.

Pode haver também boa-fé sem justo título, como no caso do possuidor que acredita

na força translativa de um negócio entabulado com quem não é proprietário nem real

e nem aparente da coisa.

Destarte, Monteiro (2003, p. 125-127) ensina na mesma vertente quando resume:

Os pressupostos da usucapião ordinária são, pois, posse, decurso de dez ou cinco

anos, justo título e boa-fé. No tocante ao primeiro, preciso se torna que a posse seja

contínua e incontestada. [...] Perdida a posse, inutiliza-se o tempo anteriormente

vencido, máxime se o prescribente não logrou recuperá-la. Em segundo lugar exige-

se o decurso de tempo, dez anos, ou cinco anos, nas hipóteses previstas no parágrafo

único do artigo 1.242 do Código Civil. [...] O terceiro requisito é o justo título, o

fundamento do direito. Com relação ao domínio, vem a ser o negócio jurídico pelo

qual se adquire ou se transfere a propriedade. Exige a lei que o título seja justo, isto

é se ache formalizado e devidamente registrado [...] Finalmente, o último requisito

da usucapião ordinária, quiçá o mais importante, porque valoriza e moralmente

dignifica o usucapiente, é a boa-fé, vale dizer, a crença de que realmente lhe

pertence a coisa possuída. É a certeza de seu direito, a confiança inabalável do

próprio título, sem vacilações, sem possibilidades de temperamentos ou de meio-

termo.

Logo, notório é o fato de o justo título e a boa-fé serem requisitos autônomos e

imprescindíveis à ação de usucapião na modalidade ordinária, e consequentemente

distinguindo-se da espécie extraordinária.

Além das duas modalidades supracitadas, o ordenamento jurídico ainda prevê a

Usucapião Especial, divididas em duas formas: Rural, conhecida também como pro labore,

disciplinada pela lei nº 6.969/81 e a Urbana, denominada pro moradia regulamentada pela lei

nº 10.257 e igualmente no Código Civil.

A primeira subdivisão surgiu com o advento da Constituição Federal de 1934, tendo

como base a função social da propriedade e o objetivo de efetuar uma política agrícola com o

desenvolvimento da área rural, contudo, para ser usucapiente dessa modalidade é necessário

dar a terra produtividade e utilidade.

Nesse diapasão leciona Venosa (2013, p. 1.501):

A lei refere-se à moradia no local. Essencial que exista, portanto, edificação no

imóvel que sirva para moradia do usucapiente ou de sua família. Não existe

exigência de justo título e boa-fé nessa modalidade, o que se aplica tanto ao

usucapião especial urbano, assim como ao usucapião especial rural. O que leva

alguém a apossar-se de imóvel para obter um teto é a ânsia da moradia, fenômeno

social marcante nos centros urbanos. Por outro lado, há interesse do Estado de que

terras produtivas permaneçam em mãos trabalhadoras e não com proprietário

improdutivo. Há também o intuito de fixar a pessoa no campo. Daí a razão de

denominar-se esse usucapião rural de pro labore.

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17

Sendo assim, o artigo 191 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 1.2397 do

Código Civil recepcionaram a modalidade supracitada e disciplinaram os seguintes quesitos

para adquirir o imóvel rural: o lapso temporal de 5 (cinco) anos, além de o possuidor não ser

proprietário de imóvel rural e nem urbano, devendo manter a posse mansa e pacífica de área

não superior a 50 (cinquenta) hectares. Outro fator essencial, conforme ratifica o autor

infracitado, é o exercício de atividade produtiva e a utilização da propriedade como moradia

do possuidor ou de sua família.

No mesmo giro, entende Venosa (2013, p. 1.458):

A Constituição atual disciplina a usucapião urbano e rural em duas disposições. O

artigo 183 refere-se expressamente a imóvel urbano no chamado usucapião especial

pro misero e o artigo 191 trata da modalidade rural, denominado usucapião pro

labore.[...] Esse usucapião levava em conta a produtividade e a moradia na terra,

além da posse e do tempo.

De acordo com os ensinamentos de Gonçalves (2012, p. 262-263):

A usucapião especial rural não se contenta com a simples posse. O seu objetivo é a

fixação do homem no campo, exigindo ocupação produtiva do imóvel, devendo

neste morar e trabalhar o usucapiente. Constitui a consagração do princípio ruralista

de que deve ser dono da terra rural quem a tiver frutificado com o seu suor, tendo

nela a sua morada e a de sua família.

Asseveram ainda, Farias e Rosenvald (2012, p. 228):

Aqui a função social da posse é mais intensa do que na modalidade da usucapião

urbana. A simples pessoalidade da posse pela moradia não conduz à aquisição da

propriedade, se não acompanhada do exercício de uma atividade econômica, seja ela

rural, industrial ou de mera subsistência da entidade familiar. O objetivo desta

usucapião é a consecução de uma política agrícola, promovendo-se a ocupação de

vastas áreas subaproveitadas, tornando a terra útil produtiva (...).

Outra modalidade é a Usucapião Especial Urbana, a qual se diferencia da espécie

supramencionada devido ao fato de ser voltada para o desenvolvimento da política urbana

buscando cumprir o direito fundamental à moradia evitando que áreas abandonadas pelos

proprietários desidiosos fiquem sem destinação social.

De acordo com Venosa (2013, p. 1.459):

7 Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos

ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva

por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

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O sentido social fica ressaltado no dispositivo, mantido os princípios tradicionais do

instituto, que também não se refere à boa-fé. Este Código Civil assume essa mesma

redação artigo 1.240. A lei nº 12.424/2011 introduziu o artigo 1.240-A mantendo a

mesma noção de proteção social.

Insta ressaltar, ser a moradia a utilidade principal desta espécie, contudo tal condição

não impede a utilização do imóvel para além da moradia, é o que defende Farias e Rosenvald

(2014, p. 378): “se a destinação for mista – para fins de residência e trabalho simultaneamente

-, não há óbice à usucapião”.

Outro ponto salutar refere-se à permissão de usucapir terreno sem qualquer tipo de

construção, logo é preciso algum tipo de construção ao solo para caracterizar a modalidade de

usucapião. Assim, também entende Farias e Rosenvald (2014, p. 379) “se o apossamento

recair sob terreno ocioso, exige-se a acessão física, por mais modesta que seja a edificação,

mediante incorporação permanente dos materiais de construção ao solo (art. 79 do CC) de

modo que não possa ser retirada sem dano”.

A prescrição aquisitiva Especial Urbana é um instituto semelhante ao analisado

anteriormente, contudo é regulamentada pela Carta Política no artigo 183 e também no

Código Civil regida pelo dispositivo 1.2408, e difere na extensão da área e na característica,

pois, esta deverá ser urbana e de 250 m². Além disso, não é preciso exercer atividade

produtiva e nem comprovar justo título e muito menos boa-fé.

Ademais, salienta-se não ser cabível ao usucapiente fazer a comprovação de ser

proprietário ou não de outro imóvel urbano ou rural, tal ônus de prova deve ser suportado pelo

terceiro interessado.

Farias e Rosenvald (2012, p. 435) inferem que a modalidade acima citada tem como

característica principal a pessoalidade, pois, nenhuma pessoa irá adquirir propriedade pela

habitação por meio de outrem, como por exemplo, detentor ou possuidor direto. Além do

mais, tem como consequência o impedimento de ocupação eventual, verbi gratia, indivíduos

que utilizam o bem apenas nas férias ou feriados.

De acordo com o texto supramencionado, depreende-se haver diferenças nítidas entre

a usucapião urbana e a rural, em razão de esta exigir do usucapiente o cumprimento do

princípio da função social da propriedade evitando a negligência por parte dos proprietários e

8 Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco

anos ininterruptos e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio,

desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independente

do estado civil.

§2º O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

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dos possuidores. Enquanto, a primeira apenas exige do possuidor a fixação de moradia dele e

de sua família na propriedade.

Nessa vertente, verifica-se que a modalidade de usucapião especial urbana, subdividiu-

se em usucapião familiar, a qual teve origem nos programas de políticas públicas com a

finalidade de combater os problemas de moradia, os quais atingem as pessoas de baixa renda.

Destarte, a Medida Provisória nº 514, de 2010 foi convertida na Lei 12.424/11 tendo como

escopo disciplinar o Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida visando acelerar

e regularizar as moradias para as famílias de baixa renda. Tal instituto é o objeto de análise do

presente trabalho e será melhor explanada no próximo subcapítulo.

1.1.1 A Usucapião Especial Urbana

A lei 12.424/2011 inseriu no Código Civil o art. 1.240-A9, o qual se tornou uma nova

espécie de Usucapião Especial Urbana, o Pro-Familia, este instituto reduziu o prazo da

usucapião especial urbana para 2 anos, exigiu a existência de um imóvel comum entre o casal

e também o abandono do lar por um dos consortes.

Nessa vertente, leciona Farias e Rosenvald (2012, p. 464):

A nova modalidade de usucapião especial urbana – ou pro moradia – requer a

configuração conjunta de três requisitos: a) a existência de um único imóvel urbano

comum; b) o abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros; c) o

transcurso do prazo por 2 anos.

Desse modo, o advento do dispositivo mexeu com as estruturas da norma vigente,

como se é possível perceber estudando as outras modalidades de prescrição aquisitiva pois, na

pro moradia, não há menção da existência de prova de justo título e boa-fé, além disso, reduz

significativamente o prazo para usucapir.

Primeiramente mister faz-se analisar o requisito da existência de um único imóvel

urbano comum, o qual não deverá ser superior a 250 m² (duzentos e cinquenta metros

quadrados). Dito isto, o legislador ao mencionar a comunhão do imóvel objeto de aquisição,

refere-se ao bem comum do casal, podendo este ser fruto de um dos regimes de casamento, 9 Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com

exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade

divida com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua

família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor por mais de uma vez.

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como por exemplo, a comunhão total ou parcial, participação final nos aquestos, separação

legal ou até mesmo da união estável.

Aduz Farias e Rosenvald (2012, p. 464):

O fracionamento da propriedade pode tanto derivar do casamento pela comunhão

universal de bens, como pela aquisição onerosa por um dos cônjuges após o

matrimônio pelo regime de comunhão parcial, ou mesmo pela evidência do esforço

comum no regime de separação obrigatória. Quanto à união estável, imprescindível

o requisito de coabitação, que pressupõe a vida comum.

De outro modo, de acordo com o artigo 1.240-A do CC é possível a interpretação da

existência da copropriedade, pois o cônjuge abandonado adquirirá por usucapião apenas a

metade do imóvel pertencente ao cônjuge abandonador, ou seja, uma fração de 50%.

Tal situação deu origem à discussão doutrinária e jurisprudencial ante ao fato de esta

nova modalidade tratar-se de usucapião condominial, porque conforme já mencionado acima

o cônjuge abandonado irá adquirir a porção correspondente ao abandonador.

Sendo assim, ensina Pereira (2006, p. 114):

E em nosso direito, assim antigo quanto moderno, não tem cabida o usucapião entre

condôminos; uma vez que não é lícito a um excluir da posse dos demais, mostra-se

incompatível com esta modalidade aquisitiva a condição condominial, que por

natureza exclui a posse cum animo domini.

Além disso, necessária é a compreensão da expressão “imóvel urbano” mencionada

pelo artigo 1.240-A do CC para entender quais imóveis são passíveis de aquisição pela

prescrição na espécie especial urbana. Logo, o artigo 3210

, §1º do Código Tributário Nacional,

ao dispor a respeito do Imposto sobre a Propriedade Territorial e Urbana – IPTU faz menção à

definição de zona urbana, a qual deverá ser definida por Lei Municipal e os Municípios

estipularão os limites e a localização das zonas urbanas e rurais.

Para melhor compreensão segue Enunciado n.85, da I Jornada de Direito Civil (2012):

“Para efeitos do artigo 1.240, caput, do novo Código Civil, entende-se por ‘área urbana’ o

imóvel edificado ou não, inclusive unidades autônomas vinculadas a condomínios edilícios”.

10

Art. 32, §1º. Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal;

observado o requisito mínimo de existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) incisos

seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:

I – meio-feio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;

II – abastecimento de água;

III – sistema de esgotos sanitários;

IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;

V – escola primária ou posto de saúde a uma distância de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.

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Outro destaque há de se dar ao imóvel urbano é o fato de tal modalidade poder ser

utilizada somente uma vez tendo os consortes apenas um único imóvel. Assim, é preciso que

o usucapiente apresente prova negativa da existência de outro bem imóvel por meio do

instrumento de certidões negativas dos registros de imóveis.

Posto isto, passa-se ao estudo de outro requisito exigido pela usucapião familiar:

imóvel de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), tal metragem segundo Ribeiro

(2008, p. 947) abrangerá a área do terreno, bem como da construção, sendo proibido que uma

ou outra ultrapasse essa demarcação e afastado o percentual da área comum, no caso de

apartamentos.

Contudo, ainda em relação à metragem expõe Tartuce (2011, online): “De início, cite-

se a metragem de 250 m², que é exatamente a mesma, procurando o legislador manter a

uniformidade legislativa. Isso, apesar de que alguns locais a área pode ser tida como

excessiva, conduzindo à usucapião de imóveis de valores milionários”.

Outrossim, ressalta-se ser a área determinada pelo artigo 1.240-A do CC relativa tendo

em vista o Estatuto da Cidade de cada região podendo haver diferenças excessivas ou não na

metragem.

Outra exigência do artigo 1.240-A do CC é o abandono de lar, o qual é contado a

partir do término da vida conjugal quer seja pela ‘separação de fato’ ou ‘separação de corpos’.

Tal situação reavivou a culpa no momento da realização do divórcio, situação esta já superada

com a publicação da Emenda Constitucional 66/2010.

Nesse diapasão dispõe Amorim (2011, online):

O prazo há de iniciar sua contagem sempre após o abandono do lar por um dos

consortes, precedida ou coincidente com o fim do relacionamento afetivo. Esta frase

não exclui a possibilidade de interrupções do prazo, mas de qualquer forma o prazo

só correrá após a separação.

O reaparecimento daquela traz novamente ao judiciário assuntos afetivos a respeito do

término da relação conjugal, configurando um verdadeiro retrocesso social, pois, sentimentos,

mágoas e a intimidade do casal voltariam a fazer parte do mundo jurídico em consequência no

social, expondo as partes à situações vexatórias.

Destarte, analisando o art. 1.240-A do CC percebe-se que o legislador impôs

consequentemente uma sanção patrimonial ao cônjuge quando este ausentar-se de sua

residência sem prestar satisfações ao outro.

Nessa vertente, leciona Farias e Rosenvald (2012, p. 465):

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Via de consequência, ao inserir dentre os requisitos da usucapião o abandono

voluntário e injustificado do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros, a

Lei n. 12.424/11, resgata a discussão da infração aos deveres do casamento ou união

estável. Vale dizer, em detrimento da liberdade e da constatação do fim da

afetividade, avalia-se a culpa e a causa da separação, temáticas que haviam sido

abolidas pela referida EC, cuja eficácia é imediata e direta, não reclamando a edição

de qualquer norma infraconstitucional. Se as normas anteriores a EC n. 66/10 não

são mais recepcionadas pelo ordenamento, certamente as posteriores – como a que

se ora discute – podem ser reputadas como ineficazes perante a ordem

constitucional.

Ainda com relação à existência do abandono de lar há de se ressaltar a ausência de sua

definição pelo legislador, dando a intepretação de tal expressão diversos sentidos, entre elas

destaca-se o casal separado de fato mas, ainda não decidiu a respeito da partilha de bens, pois

ainda há um chance de reconciliação, seria o consorte, que saiu do lar para preservar a

intimidade do casal e o bem-estar dos filhos em não presenciar situações constrangedores,

abandonador da posse? Ou até mesmo aquele ausente devido ao trabalho que exerce? Ora, tal

condição institui no ordenamento jurídico interpretação dúbia e trouxe a insegurança jurídica.

Por fim, o último quesito a ser compreendido é o transcurso do prazo de 2 anos,

considerado pelos doutrinadores o menor lapso temporal de todas as outras modalidades de

prescrição aquisitiva, superando até mesmo os 3 anos exigidos para usucapir bens móveis.

Insta ressaltar o início da contagem do prazo dar-se-á após o ex-cônjuge ou ex-companheiro

permanecer na propriedade sem a presença do outro ex-consorte.

Nesse sentido compreende Gonçalves (2012, p. 275):

Ante tal orientação, a separação de fato poderá ser o marco inicial da contagem do

prazo da usucapião familiar, uma vez caracterizado o abandono voluntário do lar por

um dos cônjuges ou companheiros.

Ressalte-se, por fim, que o prazo de dois anos estabelecido na Lei n. 12.424, de 16

de junho de 2011, só começou a contar, para os interessados, a partir de sua

vigência. O novo direito não poderia retroagir, surpreendendo um dos

coproprietários com uma situação jurídica anteriormente não prevista. Assim, os

primeiros pedidos somente poderão ser formulados a partir de 16 de junho de 2013.

Nota-se com o posicionamento do doutrinador acima citado que o prazo de 2 anos só

será contado a partir da vigência da lei 12.424/11, logo, as situações anteriores a esta lei não

serão passíveis de usucapião familiar, pois, violaria a segurança jurídica e a população precisa

se adaptar para receber a nova modalidade.

Em outra vertente analisam-se os reflexos dessa redução temporal em relação à

possibilidade de reatamento dos relacionamentos. Dito isto, tem-se o entendimento de

Amorim (2011, online):

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O prazo tão curto acaba por apressar os casais a formalizarem sua separação,

forçando a redução do prazo de reflexão e reestruturação de sentimentos e projetos

familiares. Tal circunstância atenta contra a dignidade e liberdade dos envolvidos

que poderiam, quiçá deveriam, deixar fluir mais tempo antes de decidirem-se por

enveredar por procedimento de partilha de bens.

Outro doutrinador, que corrobora com a opinião supramencionada, é Simão (2012, p.

459-460):

A lei presume, no meu sentir de maneira equivocada, que quando o imóvel é

familiar deve o prejudicado pela posse exclusiva do outro cônjuge ou companheiro

tomar as medidas mais rápidas, esquecendo-se que o fim da conjugalidade envolve

questões emocionais e afetivas que impedem, muitas vezes, rápida tomada de

decisão. É o luto pelo fim do relacionamento. A psicanálise fala em dois anos de

duração deste luto.

[...]O prazo é exíguo demais para a elaboração do luto elo fim da conjugalidade.

Porque um prazo inferior àqueles das demais modalidades constitucionais de

usucapião?

Logo, infere-se do exposto acima que a brevidade temporal de uma certa maneira

acaba por forçar os casais a formalizarem a separação, consequentemente reduzindo o prazo

de reflexão e restruturação dos sentimentos e das causas da separação, até mesmo a

possiblidade de reatar o relacionamento.

No mesmo espeque corrobora Dias (2011, online):

Quem lida com as questões emergentes do fim dos vínculos afetivos sabe que,

havendo disputa sobre imóvel residencial, a solução é afastar-se, lá permanecendo o

outro, geralmente aquele que fica com os filhos em sua companhia. Essa, muitas

vezes, é a única saída, até porque, vender o bem e repartir o dinheiro nem sempre

permite a aquisição de dois imóveis. Ao menos assim os filhos não ficam sem teto e

a cessão da posse adquire natureza alimentar, configurando alimentos in natura.

Tudo isso, de uma certa forma ocorrerá para resguardar o patrimônio sob pena de

sofrerem uma sanção patrimonial por meio da usucapião familiar e o período que antigamente

se dava entre os casais para pensar no relacionamento ou até mesmo para proteger e preservar

os filhos da existência de maiores conflitos acabará.

Por conseguinte, é possível compreender por todo o exposto até o presente momento a

necessidade de preencher todos os requisitos exigidos pelo artigo 1.240-A do CC, a fim de

que se configure a usucapião pro familia como modalidade de aquisição da propriedade

imóvel, sendo assim imprescindível faz-se analisar o direito de propriedade dentro do

ordenamento jurídico brasileiro para um melhor entendimento dos reflexos deste nas relações

entre os particulares.

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2 A RELAÇÃO DA USUCAPIÃO COM A PROPRIEDADE E O ADVENTO DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A usucapião é considerada, pelos doutrinadores, a primeira de três formas de aquisição

da propriedade imóvel, a segunda é o registro do título e a terceira, acessão. Foi dada a

usucapião esta titularidade tendo em vista o fato de a pessoa que estiver na posse do imóvel e

também se utilizando das faculdades de usar, fruir e dispor da coisa deixar o proprietário

privado destes poderes, configurando ao possuidor, após o decurso do prazo, sem oposição, o

direito de adquiri-lo.

Destarte, insta ressaltar que o direito de propriedade encontra-se vinculado como

direito fundamental previsto na norma constitucional no artigo 5º, inciso XXII da

Constituição Federal de 1988, bem como é disciplinado pelo Código Civil, a partir do artigo

1.228.

Sendo assim, dispõe Tartuce (2014, s.p) ao tratar o direito de propriedade como

fundamental e ao conceituá-lo de acordo com os elementos inerentes a propriedade:

A propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado.

Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição

Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a

coletividade. A propriedade é preenchida a partir dos atributos que constam do

Código Civil de 2002 (art. 1.228), sem perder de vista outros direitos, sobretudo

aqueles com substrato constitucional.

Nesse giro, com a finalidade de compreender a atuação do direito de propriedade no

âmbito constitucional, bem como nas normas infraconstitucionais e seus reflexos na vida da

sociedade, mister faz-se analisar sua evolução.

Posto isto, Coelho (2012, s.p) ensina que:

Na verdade, não há ainda elementos confiáveis que permitam identificar o

momento da pré-história da humanidade em que teria surgido, ou se o conceito

acompanha o ser humano desde sempre. Há quem enxergue a propriedade

como natural ao homem, que, por isso, existe desde o início e existirá até o fim da

aventura da humanidade no universo; e há quem sustente que, nos primórdios da

trajetória humana, não havia propriedade (Engels, 1884). Essa divergência por

enquanto não se consegue resolver por falta de dados arqueológicos ou outros

elementos científicos.

Pois bem, se a história da noção de propriedade não pode ainda ser completamente

escrita, a da ideologia que a cerca é, ao contrário, bem conhecida; e dela cabe

destacar dois marcos importantes para a construção de argumentos referentes ao

direito de propriedade.

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O primeiro marco é a Revolução Francesa (1789). Nele, o direito de

propriedade é proclamado como natural, ilimitado e individualista. Para a

declaração dos direitos do homem e do cidadão, a propriedade é um direito

“inviolável e sagrado”. Define-o, por outro lado, o Código Napoleão — expressão

da mesma ideologia burguesa impulsionadora da Revolução Francesa — como “o

direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta”.

O segundo marco é a flexibilização a que se obrigou o Estado capitalista ao

longo do século XX para sobreviver ao avanço do socialismo. Ela reclamou uma

profunda alteração no direito de propriedade, cujo exercício passou a se

subordinar ao atendimento da função social. Deixou de ser afirmado como um

direito egoísta para se compatibilizar com a realização do interesse público (Savatier, 1950). O altruísmo do proprietário, que a nova formulação procurou

estimular, contribuía assim para a redução dos conflitos de classe. [grifo nosso]

Desta feita, infere-se dos ensinamentos do jurista supramencionado não ser possível

constatar ao certo em que momento a propriedade surgiu na sociedade. Contudo, a noção do

direito de propriedade é auferida em dois marcos: a Revolução Francesa e a flexibilização do

Estado a fim de sobreviver ao socialismo. O primeiro compreende um momento de ruptura do

poderio do sistema monárquico, o qual interferiu na sociedade em todos sentidos, inclusive na

vida econômica e privada, restringindo os direitos e a liberdade do povo. O Código

Napoleônico trouxe à sociedade uma ideologia liberal, proibindo a interferência do poder

estatal no que se refere às possibilidades de fruição e disposição do proprietário com relação à

sua propriedade.

O segundo marco considerado por Coelho, uma flexibilização do Estado capitalista no

tocante ao direito de propriedade, visou restringir este direito a limitação social buscando uma

sociedade mais solidária e igualitária, sendo pois, o direito de propriedade voltado ao

atendimento da função social.

Nessa vertente destaca-se o entendimento de Bulos (2014, p. 615), o qual alega:

[...] o direito de propriedade foi, aos poucos, distanciando-se de suas bases

remotas, consubstanciadas no modelo romanista. Fatores econômicos, políticos,

históricos e sociais repercutiram na sua estrutura e na sua função, concorrendo

para desagregar o poder do proprietário, que se fincava na tríade

indivíduo/propriedade/liberdade.

Certamente, a instituição jurídica propriedade sofreu mudanças consideráveis, ao

longo dos tempos. A multiplicação das transferências coativas, a tutela dos

interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos fizeram com que o seu

exercício fosse relativizado.[grifo nosso]

Logo, de acordo com o exposto acima, é factível perceber a evolução do direito de

propriedade ao longo do tempo e verificar as suas modificações conforme o momento

histórico e social do mundo político, posto isto, nota-se que o direito de propriedade iniciou-

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se como algo estritamente privado, inerente ao direito natural do indivíduo e passou a fazer

parte do direito social e coletivo.

À vista do texto apresentado até o presente momento, contempla-se a consolidação do

direito de propriedade nas relações entre particulares necessitando de uma modificação na

trinca indivíduo/ propriedade/ liberdade para coletividade/ propriedade/ liberdade.

Destarte, inicia-se a transição de um Estado autoritário e individualista para o

democrático, tendo este momento acontecido no ordenamento jurídico brasileiro com o

advento da Constituição Federal de 1988, a qual buscou quebrar paradigmas conduzindo a

uma democracia e garantindo aos cidadãos direitos fundamentais instrumentalizando a

participação do povo na construção de uma sociedade igualitária e justa.

Dito isto, infere-se que a partir do evento supramencionado, o direito de propriedade

tornar-se-ia um direito fundamental e todos os institutos a ele relacionados, no caso em tela, a

Usucapião, devem estar harmonizados com os ditames constitucionais.

Assim, antes de adentrar a essência do direito de propriedade como direito e garantia

fundamental, imprescindível é o estudo do desenvolvimento deste no sistema jurídico. Os

direitos fundamentais inovam-se com o passar do tempo, adquirem novos conteúdos, tornam-

se mais efetivos e até mesmo mais eficazes. Logo, são divididos em: direitos fundamentais de

primeira, segunda11

, terceira12

, quarta13

e quinta14

dimensão. Não obstante, dar-se-á ênfase a

primeira dimensão.

Esta é evidenciada no século XVIII durante o Estado Liberal, pois o liberalismo tinha

como escopo limitar a intervenção do Estado na vida da sociedade, bem como na economia

visando conceder aos cidadãos direitos naturais e inalienáveis. É nesse cenário, que o direito

de propriedade teve seu marco inicial, bem como o direito à vida, à liberdade e à igualdade.

Nessa seara ratifica o ilustre doutrinador Sarlet (2012, p. 260):

11

Os direitos de segunda dimensão surgiram após modificações sociais, econômicas e políticas durante o século

XIX marcada pelo cenário pós-primeira guerra mundial, o qual necessitou da criação de uma nova dimensão

capaz de suprir as necessidades que a primeira dimensão não havia conseguido, nascendo o papel de um Estado

assistencialista apto a oferecer prestações de assistência social, como saúde, educação, trabalho, etc. 12

Conhecido também como direitos de fraternidade ou de solidariedade, surgiu após a segunda guerra mundial,

em busca de proteger os direitos fundamentais do ser humano, deixando de lado o individualismo e partindo para

a coletividade, como exemplo, cita-se o direito à paz, a autodeterminação dos povos, desenvolvimento, meio

ambiente e qualidade de vida. 13

É considerado por Bulos (2014, p. 529) uma mudança na vida e no comportamento dos homens passando a

integração de todos os direitos, e como exemplo, tem-se a saúde, informática, softwares, biociências, eutanásia,

alimentos transgênicos, clonagens e etc. 14

A quinta dimensão fala da paz, este direito irradia-se pelas normas mundiais a fim de regular todo o tipo de

direito e interesses, bem como representa o pilar necessário à manutenção da liberdade pública e do Estado

Democrático de Direito.

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27

Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras

Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social

característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do

século XVIII, caracterizados por um cunho fortemente individualista, concebidos

como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente, como direitos de

defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de

autonomia individual em face de seu poder. São, por este motivo, apresentados

como direitos de cunho "negativo", uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a

uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, "direitos

de resistência ou de oposição perante o Estado". Neste contexto, assumem particular

relevo os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei,

posteriormente complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim

denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa,

manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de participação política, tais

como o direito devoto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a

íntima correlação entre os direitos fundamentais e a Democracia.

Dessa maneira, é necessário compreender o propósito, ao qual foram destinados os

direitos e garantias fundamentais para também assimilar o porquê de sua introdução no Estado

Democrático de Direito. Posto isto, entende-se ser aqueles um instrumento cuja finalidade é

facilitar a defesa e a concretização dos direitos dos cidadãos, a fim de evitar lesões aos bens

jurídicos, bem como impedir a interferência do poder público na vida privada da sociedade.

Segundo Bonavides (2004, p. 533) as garantias constitucionais dividem-se em

garantias inerentes à Constituição, em sentido lato sensu, bem como garantia dos direitos

subjetivos utilizados como instrumento de realização dos direitos previstos na Carta Magna.

Analisando as garantias inerentes à Constituição nota-se que elas são a estrutura de

eficácia e fator estabilizante das normas previstas na Carta Política, constituindo um

mecanismo de segurança e conservação do Estado Democrático de Direito, cujo objetivo é

preservar as bases do regime e o sistema de instituições contra as crises e instabilidades do

sistema.

Conquanto, a segunda divisão diz respeito à subjetividade das garantias dos direitos, o

qual se revela como instrumento de atuação dos direitos e garantias fundamentais no plano

social, de modo a proteger direta e imediatamente os direitos fundamentais, por meio da

utilização dos remédios jurisdicionais estabelecidos na ordem constitucional.

Assim, após verificação da atuação dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico

brasileiro há que se falar na importância intrínseca ao direito de propriedade e sua

essencialidade para estruturar as relações públicas e privadas, de modo a uni-las em único

plano. Dito isto, Bastos (1999, p. 171) menciona que o direito de propriedade passou a estar

ao lado da liberdade e da segurança, expandindo-se para respaldar os direitos fundamentais do

homem, deixando de participar exclusivamente da relação civil para fazer parte da estrutura

do Estado.

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No mesmo espeque leciona Farias e Rosenvald (2012, p. 281-282) quando asseveram

ser o direito de propriedade um instrumento eficiente para assegurar a liberdade e os direitos

civis, tendo em vista que a própria Constituição Federal de 1988 colocou tais institutos lado a

lado, com o escopo de que um garanta a existência e a instrumentalização do outro.

Outrossim, a instituição do novo direito constitucional trouxe dois eventos essenciais a

união entre as relações públicas e privadas, o neoconstitucionalismo e a constitucionalização

do direito. Esse teve um papel importantíssimo na mudança de paradigma dentro do

ordenamento jurídico brasileiro. Segundo Barroso sua evolução pode ser dividida em três

fases: marco histórico, filosófico e teórico, o primeiro refere-se à instituição do Estado

Democrático de Direito15

, no segundo o pós-positivismo centraliza os direitos fundamentais e

reaproxima a lei da razão16

. E o terceiro, dá ênfase à força da constituição como norma rígida,

sua expansão dentro do ordenamento jurídico, bem como a existência de um novo sistema de

interpretação constitucional17

.

De acordo com Bulos (2014, p. 80) a constitucionalização do direito pode ser

compreendida como a contemporaneidade do direito constitucional, em outras palavras, é

considerada a evolução do direito constitucional de acordo com a cultura contemporânea, na

qual as normas constitucionais irradiam-se por todo o ordenamento jurídico influenciando as

normas infraconstitucionais e as relações entre os particulares.

À vista disto, também é considerada uma expansão dos princípios e normativas

contidos na Constituição Federal, os quais se tornam parâmetros de regularidade e

constitucionalidade das normas infraconstitucionais de modo que estas precisam ser

compatíveis e harmônicas com a Carta Magna.

Segundo Sarmento (2009, online):

(a) Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua

importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e

recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico:

15

A primeira fase tendo em vista o ordenamento jurídico brasileiro é marcado pela presença do Estado

Democrático de Direito instituído após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual marcou uma fase

de transição política do regime ditador para uma democracia. 16

A segunda fase é marcada pela centralização dos direitos fundamentais, também instituídos pela Constituição

Federal de 1988, os quais trazem a dignidade da pessoa humana como vértice da eficácia de um Estado

Democrático de Direito, relacionando a lei e a razão, a proteção dos direitos do ser humano frente às disposições

do Estado. 17

A terceira fase é marcada pela força da Constituição de 1988, a qual veio para instituir direitos de

aplicabilidade imediata e direta e estabelecer o papel de vértice do Estado Democrático de Direito estando

hierarquicamente superior a toda norma infraconstitucional. Além disso, obteve como consequência a sua

expansão dentro do ordenamento jurídico brasileiro por meio do controle de constitucionalidade, o qual é

utilizado para regular a compatibilidade das normas infraconstitucionais com a norma constitucional, bem como

garantir a supremacia da Constituição Federal de 1988.

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ponderação, tópica, teoria da argumentação etc.; (c) constitucionalização do

Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os

relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da

Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais,

com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do

Executivo para o Poder Judiciário. [grifo nosso]

Outro doutrinador também corrobora com o entendimento acima mencionado, é o caso

de Barroso (2009, p. 360) quando afirma que a Constituição Federal abarca os princípios e

ditames de maior ou menor destaque dos ramos do direito infraconstitucional, tal situação é

encontrada tanto no direito administrativo, civil, penal, do trabalho, processual civil e penal,

financeiro e orçamentário, tributário, internacional, entre outros.

Sendo assim, de acordo com o presente trabalho dar-se-á ênfase para a relação entre o

Direito Civil e a Constituição Federal cujo desenvolvimento relacional, segundo Barroso

(2012) pode ser dividido em três fases: mundos apartados, publicização do direito privado e a

constitucionalização do direito civil.

O primeiro momento destaca a imperialidade do direito civil sob o direito

constitucional, pois, na época da Revolução Francesa o Código Civil napoleônico era quem

determinava juridicamente como deveria ser a relação entre particulares. Enquanto, a

Constituição era invocada apenas pela atuação dos poderes públicos, quando a relação tinha

como sujeito o Estado e o Cidadão, dessa forma, não usufruía de aplicabilidade direta e

imediata.

De maneira bem clara Farias e Rosenvald (2012, p. 63-64) explicam a antiga

supremacia do direito civil sob o direito constitucional:

não se olvide que, outrora, quando estávamos sob a égide da Codificação de 1916 –

resultante das concepções individualista e voluntarista oitocentistas, incorporadas

pelas codificações dos séculos XIX e XX, sob a influência do Code France (Código

Napoleônico) e do BGB alemão – o direito civil esteve liberto da incidência da

norma constitucional. O direito constitucional se restringia a cuidar da organização

política e administrativa do Estado, relegando para o Código Civil a tarefa de

disciplinar as relações privadas. Naquela época, o Direito Civil aspirava o

aniquilamento dos privilégios feudais, defendendo os valores preconizados pela

Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Reconhecia-se assim, a

necessidade de firmar valores individualistas, permitindo o acesso a bens de

consumo, conferindo a legislação privada nítida feição patrimonialista.

O próximo acontecimento iniciou-se com o advento do Estado social, o qual passou a

utilizar-se da premissa coletiva e da igualdade entre os indivíduos para interferir nas relações

entre privadas da sociedade inserindo normas de ordem pública e deixando o direito privado,

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antes voltado ao individualismo, agora voltado para o socialismo e a solidariedade dando

origem a publicização do direito privado.

A última fase diz respeito essencialmente à constitucionalização do direito civil,

situação na qual a Constituição Federal torna-se o vértice do sistema normativo, nesse sentido

surge o princípio da dignidade da pessoa humana a fim de formar um Estado assistencialista,

o qual busca atender as necessidades vitais dos cidadãos, e para finalizar a publicização do

direito privado surge à aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas.

Desta maneira, Barroso (2009, p. 363) leciona:

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si - com a sua

ordem, unidade e harmonia - mas também um modo de olhar e interpretar todos os

demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como

filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e

apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela

consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito

infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de

normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus

institutos sob uma ótica constitucional.

Em relação a essa nova integração entre privado e público Tartuce (2014, s.p) entende:

O Direito Civil Constitucional, como uma mudança de postura, representa uma

atitude bem pensada, que tem contribuído para a evolução do pensamento privado,

para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sadio diálogo entre os

juristas das mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que há uma

inversão da forma de interação dos dois ramos do direito – o público e o

privado –, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em

substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso. [grifo

nosso]

Os próprios constitucionalistas reconhecem o fenômeno de interação entre o Direito

Civil e o Direito Constitucional como realidade do que se convém

denominar neoconstitucionalismo, ou da invasão da Constituição. E, por certo, o

movimento brasileiro é único, é autêntico. Ressalta Eduardo Ribeiro Moreira que

“As outras inovações do direito civil-constitucional têm de ser esse ponto de

encontro, os direitos fundamentais nas relações entre particulares, interação vital

com a transposição e redução entre o espaço privado e o espaço público,

garantizador. Dois pontos basilares do direito civil-constitucional que funcionam em

prol da dignidade humana.

De acordo com o exposto percebe-se por meio do posicionamento do jurista

supracitado que o direito público e o direito privado não deixarão de existir, apenas

coexistirão no mesmo espaço de modo a inverter o praticado anteriormente, pois, agora o

Código Civil deverá ser interpretado conforme a Constituição Federal e esse novo modo de

interação entre o público e o privado servirá para regular as atuações do Poder Estatal bem

como dos particulares impondo sobre todas elas o princípio da dignidade da pessoa humana.

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Ainda relacionado com o advento do Estado Social e a transição do individualismo

para o socialismo e a solidariedade, bem como a limitação da vida privada, explica Farias e

Rosenvald (2012, p. 65) que tal modificação veio a participar do mundo jurídico após o

advento da Carta Magna:

Na medida em que se detectou a erosão do Código Civil, ocorreu uma verdadeira

migração dos princípios gerais e regras atinentes às instituições privadas para o

Texto Constitucional. Assumiu a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do

sistema, passando a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade, do

controle de bens, da proteção dos núcleos familiares etc.

Contudo, não é possível mencionar constitucionalização do direito civil sem reporta-se

aos direitos fundamentais devido ao fato de alcançarem destaque com o advento da

Constituição Federal de 1988 e a partir desse momento constituírem um dos pilares essenciais

ao Estado Democrático de Direito e as relações entre público e particulares.

Assim, Gonçalves (2014, s.p) dispõe:

Tem-se observado um crescimento da teoria da eficácia

horizontal (ou irradiante) dos direitos fundamentais, ou seja, da teoria da aplicação

direta dos direitos fundamentais às relações privadas, especialmente em face de

atividades privadas que tenham certo “caráter público”, por exemplo, matrículas em

escolas, clubes associativos, relações de trabalho etc. O entendimento é que as

normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata

(eficácia horizontal imediata). Certamente essa eficácia horizontal ou irradiante traz

uma nova visão da matéria, uma vez que as normas de proteção da pessoa, previstas

na Constituição Federal, sempre foram tidas como dirigidas ao legislador e ao

Estado (normas programáticas). Essa concepção não mais prevalece, pois a eficácia

horizontal torna mais evidente e concreta a proteção da dignidade da pessoa humana

e de outros valores constitucionais.

Na atividade judicante, poderá o magistrado, com efeito, deparar-se com inevitável

colisão de direitos fundamentais, quais sejam, por exemplo, o princípio da

autonomia da vontade privada e da livre-iniciativa, de um lado (arts. 1º, IV, e

170, caput), e o da dignidade da pessoa humana e da máxima efetividade dos

direitos fundamentais (art. 1º, III), de outro. Diante dessa “colisão”, indispensável

será a “ponderação de interesses” à luz da razoabilidade e da concordância prática

ou harmonização. Não sendo possível a harmonização, o Judiciário terá de avaliar

qual dos interesses deverá prevalecer. [grifo do autor]

Conforme o mencionado acima a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é

observada no momento da aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas

permitindo com que aqueles se espalhem dentro do ordenamento jurídico buscando

concretizar a harmonização entre a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais bem

como preservar a dignidade da pessoa humana e servir de parâmetro ante a colisão de direitos.

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Nesse diapasão, percebe-se a constitucionalização do direito, uma vez que, a

Constituição Federal é a base do Estado Democrático de Direito Brasileiro, sendo ela quem

estabelece todos os princípios e as regras de validade das normas infraconstitucionais, bem

como rege as relações do direito público com o direito privado, do mesmo modo interage nas

relações entre particulares. Logo, é permitido dizer que toda e qualquer norma

infraconstitucional deve estar relacionada harmonicamente com os ditames constitucionais.

Portanto, infere-se do exposto acima o quanto a Constituição Federal de 1988 é

importante na análise do direito de propriedade instituindo este como um direito fundamental,

deixando de atuar somente nas relações civis e passando a se relacionar também com a esfera

pública, o que permitiu uma constitucionalização do direito civil, o qual passou a analisar sob

o crivo do controle de constitucionalidade, toda e qualquer norma infraconstitucional devendo

estas estarem de acordo com as normas constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade.

2.1 A USUCAPIÃO FAMILIAR E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

O fenômeno da constitucionalização do direito, com a irradiação das normas

constitucionais por todo o ordenamento jurídico brasileiro, acabou por influenciar de maneira

significativa a validade das normas infraconstitucionais, entre elas o direito civil e

consequentemente, no caso analisado, a Usucapião Familiar.

Posto isto, verifica-se que tal instituto somente será considerado válido se estiver em

conformidade com a Constituição Federal, caso contrário será julgado como inconstitucional

não obtendo eficácia e nem validade no plano jurídico, pois a Carta Magna serve como

parâmetro de validade as normas infraconstitucionais.

Desta feita, necessário faz-se entender o controle de constitucionalidade brasileiro a

fim de que se compreenda como identificar e analisar a constitucionalidade das normas aquém

ao texto constitucional.

A Constituição Federal de 1988 tem como uma de suas características a supremacia e

a rigidez, pois, ambos visam dificultar a modificação do texto constitucional, já que a Carta

Política é considerada a lei fundamental, a qual se torna o vértice do sistema jurídico do país,

dispondo sobre a estrutura deste e a organização de seus órgãos, bem como as normas

fundamentais de Estado.

Nessa vertente assevera Barroso (2012, p. 61-62):

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A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do

sistema, que se estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o

fundamento de validade de todas as demais normas. Por força dessa

supremacia, nenhuma lei ou ato normativo – na verdade, nenhum ato jurídico –

poderá substituir validamente se estiver em desconformidade com a

Constituição.

A rigidez é igualmente pressuposto do controle. Para que possa figurar como

parâmetro, como paradigma de validade de outros atos normativos, a norma

constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso e mais complexo do

que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais. [grifo nosso]

É notável que a Constituição Federal de 1988 é hierarquicamente superior as normas

infraconstitucionais, contudo, somente o status de superioridade não seria necessário para a

obtenção de êxito dentro do ordenamento jurídico, sendo assim, imprescindível, pois, foi a

criação de um instrumento capaz de efetivar a sua supremacia: o controle de

constitucionalidade.

Nesse diapasão ensina Bulos (2014, p. 184):

Controle de constitucionalidade é o instrumento de garantia da supremacia das

constituições.

Serve para verificar se os atos executivos, legislativos e jurisdicionais são

compatíveis com a carta magna.

Controlar a constitucionalidade, portanto, é examinar a adequação de dado

comportamento ao texto maior, mediante a análise dos requisitos formais e

materiais.

Ainda com relação ao status de superioridade da norma constitucional e da

necessidade de existir um controle a fim de que tal supremacia não seja vã, ratifica Bonavides

(2004, p. 296-297):

As constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um

processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem

superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede pois a supremacia

incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num

determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende

da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos, etc),

e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos.

A consequência dessa hierarquia é o reconhecimento da “superlegalidade

constitucional”, que faz a Constituição a lei das leis, a lex legum, ou seja, a mais alta

expressão jurídica de soberania.

O ponto mais grave da questão reside em determinar que órgão deve exercer o

chamado controle de constitucionalidade. Sem esse controle, a supremacia da norma

constitucional seria vã, frustrando-se assim a máxima vantagem que a Constituição

rígida e limitativa de poderes oferece ao correto, harmônico e equilibrado

funcionamento dos órgãos do Estado e sobretudo à garantia dos direitos enumerados

na lei fundamental.

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Assim, é possível perceber a existência do controle de constitucionalidade cuja função

é fiscalizar os atos executivos, legislativos e judiciais, bem como adequar as normas

infraconstitucionais ao texto legal. Em decorrência disto, as leis que não se amoldem ao texto

constitucional são consideradas inconstitucionais, igualmente a desconformidade entre os

comportamentos públicos e privados.

Destarte mister faz-se mencionar a finalidade da existência do controle de

constitucionalidade, desse modo dispõe Bulos (2014, p.188):

Um dos fundamentos do controle de constitucionalidade é a proteção dos

direitos e garantias fundamentais, porque existe uma tábua de valores na

sociedade que deve ser preservada das injunções estritamente políticas, das

decisões que contrariam a legitimidade democrática, dos conchavos que

deturpam as conquistas alcançadas no longo e tormentoso processo de

elaboração originária da lex mater.

Mas a finalidade do controle não é apenas assegurar as liberdades públicas. Evidente

que esse é um dos escopos prioritários desse mecanismo de tutela da supremacia

constitucional, mas não é o único. Todas as normas e princípios, depositados na

constituição, independentemente do assunto que versem, ou do grau de importância

que ostentem, merecem amparo. Logo, o controle de constitucionalidade limita os

Poderes do Estado na unanimidade das provisões constitucionais. Só assim se

concretiza o processo democrático, porquanto a defesa da constituição, em rodas as

suas entrelinhas, é o signo referencial das instituições livres. [grifo nosso]

Desse modo é factível entender de acordo com as palavras do ilustre doutrinador que o

controle de constitucionalidade além de instrumentalizar a supremacia da Constituição

Federal de 1988 frente às normas infraconstitucionais serve também, como ferramenta

necessária à proteção dos direitos e garantias fundamentais, tendo em vista a preservação do

Estado Democrático de Direito e a limitação da interferência do Estado na vida privada.

Logo, infere-se que no ordenamento jurídico brasileiro existe duas etapas relacionadas

à fiscalização do controle de constitucionalidade: a preventiva e a repressiva. Assim, leciona

Ferreira Filho (2012, p. 262-263):

Não há apenas uma, mas várias formas de controle da constitucionalidade, uma vez

que este controle pode ser encarado sob vários aspectos. Um destes concerne ao

momento em que intervém. Distingue-se então o controle preventivo do controle

repressivo. Aquele opera antes que o ato, particularmente a lei, se aperfeiçoe; este

depois de perfeito o ato, de promulgada a lei. Aquele é controle a priori. Este, a

posteriori.

A primeira ocorrerá em uma etapa anterior à promulgação da lei e é realizado pelo

Poder Legislativo e pelo Poder Executivo, naquele a prevenção dar-se-á no momento de

manifestação sobre o procedimento legislativo de modo a promulgação de uma lei com

eventuais inconstitucionalidades. E o Executivo, no momento de apresentar o veto ou não de

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determinado projeto de lei também realiza o controle preventivo impedindo a entrada em

vigor, no ordenamento jurídico brasileiro, de uma lei inconstitucional.

O controle repressivo ocorre após a promulgação da lei e é realizado pelo Poder

Judiciário com a finalidade de paralisar a eficácia da lei que está em confronto com as normas

constitucionais.

Possível destacar a existência de dois tipos de inconstitucionalidade: a formal e a

material. Essa está relacionada com o momento de elaboração ou dos procedimentos exigidos

para a formulação das emendas constitucionais, leis complementares, ordinárias, delegadas,

medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Já a inconstitucionalidade material diz respeito à substância ou conteúdo, logo

menciona sobre a transgressão dos preceitos e dos princípios fundamentais ao comparar uma

lei infraconstitucional com a Constituição Federal de 1988.

Nas palavras de Bonavides (2004, p. 297):

O controle formal é, por excelência, um controle estritamente jurídico. Confere

ao órgão que o exerce a competência de examinar se as leis foram elaboradas de

conformidade com a Constituição, se houve correta observância das normas

estatuídas, se a regra normativa não fere uma competência deferida

constitucionalmente a um dos poderes, enfim, se a obra do legislador ordinário não

contravém preceitos constitucionais pertinentes à organização técnica dos poderes

ou às relações horizontais e verticais desses poderes, bem como dos ordenamentos

estatais respectivos, como sói acontecer nos sistemas de organização federativa de

Estado. [grifo nosso]

Já Bulos (2014, p. 146) dinamiza a inconstitucionalidade material da seguinte maneira:

A inconstitucionalidade material, substancial ou intrínseca é a que afeta o conteúdo

das disposições constitucionais.

Mas o que significa afetar o conteúdo dos preceitos constitucionais?

Significa violar a matéria de fundo presente na constituição.

Matéria de fundo é o assunto, o tema, a substância que está por trás dos artigos,

incisos ou alíneas da constituição. Não diz respeito ao procedimento, nem à técnica

formal de produção legislativa; relaciona-se à conveniência ou inconveniência de

editar, ou não, determinada lei ou ato normativo. Nisso, abrange os grandes

princípios formulados pelo constit-uinte e o quadro de valores supremos

inseridos na mensagem constitucional positivada. [grifo nosso]

Dito isto, agora é permitido fazer uma relação entre o controle de constitucionalidade e

a usucapião familiar, pois, esta é prevista pelo Código Civil, considerado uma norma

infraconstitucional e estabelece requisitos incompatíveis com a Constituição Federal de 1988.

Além disso, tem-se a instituição do abandono de lar, violando o princípio da liberdade;

a possibilidade de usucapir somente bens imóveis urbanos, excluindo os rurais, ferindo o

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princípio da igualdade; bem como a fixação de uma sanção ao cônjuge que abandonador,

caracterizando violação do devido processo legal.

Por conseguinte, o próximo capítulo é destinado à análise material da

constitucionalidade da usucapião, pois verificará a contrariedade entre a norma

infraconstitucional, o Código Civil, com os princípios da Constituição Federal de 1988, sendo

eles: a igualdade, liberdade e do devido processo legal, bem como a incompatibilidade com a

Emenda Constitucional 66/2010.

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3 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA USUCAPIÃO FAMILIAR

3.1 USUCAPIÃO FAMILIAR FRENTE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Segundo Abbagnano (2000, p. 792) a palavra princípio, no sentido amplo, significa:

“ponto de partida e fundamento de um processo qualquer”. Desta feita, utilizando-se do

estudo do ordenamento jurídico brasileiro observa-se a existência de três tipos de princípios:

os do direito, os infraconstitucionais e os constitucionais. Contudo, no presente trabalho dar-

se-á ênfase a este último.

Nesse diapasão convém ressaltar os ensinamentos de Bonavides (2004, p. 286), os

quais consideram os princípios normas-chaves de todo o sistema jurídico:

A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e

os arrestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram

essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como

normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o

conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava

neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus

objetivos básicos, em seus princípios cardeais. [grifo nosso]

Posto isto, compreendem-se por princípios constitucionais os preceitos previstos na

Constituição Federal, sejam eles de maneira explícita ou implícita, os quais formam a base e

os valores necessários ao estabelecimento da organização constitucional.

Nesse sentido, com a finalidade de entender a relação entre os princípios

constitucionais e os direitos fundamentais, é necessário explanar que, ora esses atuam no

ordenamento jurídico como normas, ora como princípios e em outros momentos ambos

tornam-se essenciais à concepção de determinado fato normativo.

Dito isto, Alexy (2008, p. 141) estabelece:

O fato de que, por meio das disposições de direitos fundamentais, sejam estatuídas

duas espécies de normas – as regras e os princípios é o fundamento do caráter duplo

de disposições dos direitos fundamentais. Mas isso não significa ainda que também

as normas de direitos fundamentais compartilhem desse mesmo caráter duplo. De

início elas são ou regras (normalmente incompletas) ou princípios. Mas as normas

de direitos fundamentais adquirem um caráter duplo se forem construídas de forma a

que ambos os níveis sejam elas reunidos.

À vista disso, imprescindível é a assimilação do caráter principiológico pelos quais

alguns dos direitos fundamentais são revestidos, e que Alexy (2008, p. 90) considera os

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princípios um “mandado de otimização” cuja explicação reside no fato desses serem

considerados normas e em certos momentos atuaram como um sistema de freios e contrapesos

em relação à aplicação de alguns acontecimentos no plano social com as possibilidade

jurídicas e fáticas.

Nesse giro, Barroso (2009, p. 203-204) leciona de modo valorar a presença dos

princípios dentro do ordenamento jurídico dispondo que:

O reconhecimento da distinção valorativa entre essas duas categorias e a atribuição

de normatividade aos princípios são elementos essenciais do pensamento jurídico

contemporâneo. Os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a

porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico. Em sua

trajetória ascendente, os princípios deixam de ser fonte secundária e subsidiária do

Direito para serem alcançados ao centro do sistema jurídico.

Destarte, de acordo com o exposto acima este capítulo abordará os princípios

constitucionais conhecidos também por direitos fundamentais, previstos no artigo 5º da

Constituição Federal, tanto de modo implícito quanto explícito, sendo eles: a igualdade,

liberdade e o devido processo legal, dado que a pesquisa desses é necessária para a

compreensão de suas extensões e efeitos na aplicação prática da usucapião pro familia.

3.1.1 Violação ao Princípio da Igualdade

Com o intento de averiguar a violação dos princípios constitucionais pela usucapião

familiar, passa-se a análise do artigo 1.240-A do Código Civil, o qual ao disciplinar sobre esta

modalidade de prescrição aquisitiva acaba por abranger apenas os imóveis urbanos deixando

de lado os imóveis rurais. Ora, tal situação configura uma discriminação aos moradores das

zonas rurais, visto que, também utilizam de sua propriedade rural como moradia e não

somente como área produtiva. Desta feita, qual seria a razão de não terem sido abarcado por

este dispositivo constitucional, posto que as outras espécies de usucapião sempre fazem

menção a área urbana, bem como a rural?

Com maestria ensina Farias e Rosenvald (2012, p. 467-468) a respeito da menção do

artigo 1.240-A de usucapir somente imóveis urbanos:

Não se olvide que o art. 1.240-A do Código Civil se reserva apenas ao imóvel

urbano comum. Sendo a moradia do caso localizada na zona rural, a divisão

patrimonial seguirá o regime ordinário do direito de família. Qual é a justificativa

para o tratamento diferenciado? Outrossim, a norma não incide nas uniões presididas

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39

pelo pacto antenupcial de separação absoluta de bens (ou contrato escrito dos

companheiros neste sentido), relações em que todos os bens serão singulares, sem

qualquer comunicação patrimonial.

No mesmo espeque Vilardo (2012, online) dispõe:

No tocante à aplicação exclusiva ao imóvel urbano há notória discriminação com

aqueles que vivem em área rural. Em um país com a dimensão do nosso as questões

familiares nas áreas rurais são muitas. Não faz sentido aplicar-se instituto dessa

natureza apenas na cidade e vedar sua aplicação na área rural. (...)

No caso em tela, nota-se o erro do legislador, o qual acarreta na inconstitucionalidade

material, tendo em vista a falta de observância aos princípios e normas instituídos pela

Constituição Federal de 1988. Além disto, convém mencionar a inexistência de lógica ou

alguma finalidade explícita quando se deixou de incorporar ao artigo 1.240-A do CC a

possibilidade de usucapir imóveis rurais pela modalidade de usucapião pro moradia.

Nesse diapasão, ensina Bastos (1999, p. 154):

Dessa forma, a atual redação, ao não especificar quais os critérios vedados, deixa

certo que o caráter inconstitucional da discriminação não repousa tão-somente no

critério escolhido, mas na falta de correlação lógica entre aquele critério e uma

finalidade ou valor encampado quer expressa ou implicitamente no ordenamento

jurídico, quer ainda na consciência coletiva.

No mesmo giro, Vilardo (2012, online) alega que: “(...) A discriminação legal não se

sustenta diante da Constituição e da necessidade de se conceder a mesma proteção a qualquer

casal, seja na cidade, seja no campo”.

Assim, de modo a verificar a não existência de qualquer forma de discriminação, o

princípio da igualdade, conhecido também como isonomia, foi inserido no artigo 5º18

, caput,

da Constituição Federal de 1988, e visa manter o Estado Democrático de Direito e o respeito à

dignidade da pessoa humana. Contudo, insta ressaltar que aquele princípio se fazia presente

desde o constitucionalismo de matriz liberal-burguesa, embora tenha tido seu apogeu no

direito constitucional contemporâneo.

Logo, é possível ratificar o exposto supramencionado quando Sarlet (2012, p. 523)

infere:

18

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

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40

Além disso- mas também por isso mesmo- a igualdade passou a constituir valor

central para o direito constitucional contemporâneo, representando verdadeira ‘pedra

angular’ do constitucionalismo moderno, porquanto parte integrante da tradição

constitucional inaugurada com as primeiras declarações de direitos e sua

incorporação aos catálogos constitucionais desde o constitucionalismo de matriz

liberal-burguesa. Desde então, e cada vez mais (embora os importantes câmbios na

compreensão e aplicação da noção de igualdade ao longo do tempo) -, de acordo

com a oportuna dicção de José Joaquim Gomes CanotiÍho e Vital Moreira, "o

princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional-

global, conjugando dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais

inerentes ao conceito de Estado de direito democrático e social", tal como (também)

o é o Estado projetado pela Constituição Federal Brasileira, de 1988.

Desse modo, parte-se ao estudo dos objetivos almejados pelo princípio da isonomia,

sendo um deles: a inibição de criação de normas, por meio do legislador, que por ventura,

venham beneficiar alguns em detrimento de outros. Desta feita, a lei que violar tal princípio

deverá ser considerada inconstitucional.

Dessa maneira, Ferreira Filho (2012, p. 1.258) determina:

Na verdade, o princípio de igualdade é uma limitação ao legislador e uma regra de

interpretação.

Como limitação ao legislador, proíbe-o de editar regras que estabeleçam privilégios,

especialmente em razão da classe ou posição social, da raça, da religião, da fortuna

ou do sexo do indivíduo. Inserido o princípio na Constituição, a lei que o violar será

inconstitucional.

É também um princípio de interpretação. O juiz deverá dar sempre à lei o

entendimento que não crie privilégios, de espécie alguma. E, como o juiz, assim

deverá proceder todo aquele que tiver de aplicar uma lei.

Mister, faz-se mencionar que a igualdade não tem sua observação voltada somente ao

legislador, mas também aos particulares, instituindo ao cidadão, o direito de não ser

discriminado por outras pessoas. Logo, percebe-se tamanha dimensão da isonomia devendo

ser apreciada por todo o ordenamento jurídico.

Dito isto, Bulos (2014, p. 560) considera o princípio supracitado como “uma regra de

ouro” e o define como limite de atuação tanto do legislador quanto do particular:

Como limite ao legislador, a isonomia impede que ele crie normas veiculadoras de

desequiparações ilícitas e inconstitucionais.

Enquanto limite à autoridade pública, os presidentes da República não podem

praticar ações discriminatórias e os membros do Poder Judiciário não devem dar

azo, em suas sentenças, ao cancro da desigualdade. Daí os mecanismos de

uniformização da jurisprudência, tanto na órbita constitucional (recursos

extraordinário e ordinário) como na infraconstitucional (leis processuais).

No posto de limite à conduta do particular, a isonomia não se coaduna com atos

discriminatórios, eivados de preconceito, racismo, maledicências diversas,

propiciando a responsabilização civil ou criminal dos infratores.

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Portanto, depreende-se do exposto acima que o artigo 1.240-A do CC ao disciplinar

apenas os imóveis urbanos como objetos de usucapião pro familia incorre em

inconstitucionalidade material, pois não observa o princípio da isonomia, levando em

consideração que as pessoas residentes no campo também utilizam a propriedade como sua

moradia e não somente como área produtiva. Em consequência disto, o próximo subcapítulo

falará a respeito da violação ao princípio da liberdade, o que de fato está ao lado da isonomia,

conforme dispõe o artigo 5º, caput da Constituição Federal de 1988.

3.1.2 Violação ao Princípio da Liberdade

A fim de compreender a relação entre a usucapião familiar e a violação ao princípio da

liberdade é necessário analisar o conteúdo do artigo 1.240-A CC, quando exige como

requisito para aquisição do imóvel por meio desta modalidade, o abandono do lar por um dos

consortes, percebe-se notoriamente uma sanção imposta, por parte do legislador ao cônjuge

abandonador, visto que este perderia a propriedade para aquele que nela permanecesse.

Desta feita, o consorte se vê obrigado a quedar-se no imóvel, com a finalidade de não

perdê-lo para o outro cônjuge, sendo assim, o legislador quando se utilizou daquele requisito

acabou por infringir o princípio da liberdade de locomoção, bem como a de escolha e

manifestação de vontade.

Ora, o Estado ao dispor de tal texto infraconstitucional interferiu na liberdade de

locomoção, pois o consorte ao notar tal sanção patrimonial decide permanecer no imóvel

deixando de locomover-se para outros locais nos quais gostaria de estar.

Nesse diapasão leciona Sarlet (2012, p. 474) ao mencionar as situações, nas quais o

Estado e terceiros interferem de modo subjetivo e objetivo na liberdade de outrem:

Na sua dimensão subjetiva, ou seja, como direito subjetivo individual, a liberdade de

locomoção, como em geral se dá com os demais direitos fundamentais, constitui um

direito fundamental em sentido amplo, que abarca e protege, em princípio, um feixe

complexo e diferenciado de posições subjetivas, consistentes em faculdades e ações.

A despeito de ter também uma dimensão positiva, a liberdade de locomoção opera,

em primeira linha, como um direito de defesa (de conteúdo negativo), que tem por

objeto precisamente a abstenção por parte do Estado e de terceiros em relação à livre

circulação das pessoas no território nacional. Assim, a liberdade de locomoção

compreende, desde logo, o direito (faculdade) de qualquer pessoa, em tempo de paz

(como decorre já do teor do art. 5º, XV, da CF), deslocar-se livremente, sem

embaraços, em todo o território nacional, ou seja, sem que seja imposta qualquer

restrição no âmbito interno das fronteiras territoriais brasileiras.

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Outra disposição refere-se à violação da manifestação de vontade e da escolha, tendo

em vista que, o legislador não deixou qualquer alternativa capaz de viabilizar ao consorte

abandonador do imóvel a possibilidade de sair deste sem ser lhe aplicada à sanção

patrimonial. Não se preocupando, o Estado, em nenhum momento em observar a

manifestação de vontade do consorte, bem como desconhecendo as motivações, as quais o

levaram a adotar tal decisão.

Assim, primordial faz-se mencionar o início da previsão do direito à liberdade disposta

no artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, sendo importante ressaltar que durante a

história da constituição brasileira este direito sempre esteve presente em todas as cartas

constitucionais. Contudo, tal direito obteve contornos amplos após a vigência da Carta Magna

de 1988, pois está prevista em várias passagens do texto constitucional assegurando de

diversas maneiras as garantias e direitos fundamentais do cidadão.

Desse modo, a conceituação de liberdade encontra várias acepções de acordo com o

posicionamento de cada doutrinador, logo é possível compreende-lo como um direito inerente

ao cidadão, o qual lhe concede a permissão de fazer tudo o que não vá prejudicar outrem, com

o escopo de buscar suas realizações pessoais, dentre elas, a felicidade.

Diante de tal situação, tem-se o posicionamento de Silva (2005, p. 233) quando relata:

O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de

atuação do homem em busca de sua realização pessoal. É boa, sob esse aspecto, a

definição de Rivero: ‘a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do

qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal’. Vamos um pouco

além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de

coordenação consciente dos meios necessário à realização da felicidade pessoal.

Noutro giro, Sarlet (2012, p. 431-432) menciona algumas conceituações aplicáveis ao

direito de liberdade:

No que diz com sua vertente constitucional mais importante e remota, o direito

fundamental de liberdade tem origem na ideia de liberdade geral contida no art. 4º

da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: ‘A liberdade consiste

em poder fazer tudo o que não prejudica ao outro’. O preceito consagra a ideia

liberal originariamente presente no pensamento dos autores clássicos do liberalismo,

segundo o qual todo ser humano possui uma área ou esfera de liberdade pessoal que

não pode ser de qualquer modo violada e na qual pode desenvolver suas faculdades

e vontades naturais livre de qualquer interferência externa. Já no âmbito do

constitucionalismo brasileiro, nos comentários ao art. 72, caput, da Constituição de

1891, Carlos Maximiliano conceituava a liberdade como ‘o direito que tem o

homem de usar suas faculdades naturais ou adquiridas pelo modo que melhor

convenha ao mais amplo desenvolvimento da personalidade própria, sem outro

limite senão o respeito ao direito idêntico atribuído aos seus semelhantes’.

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Salienta-se que a liberdade é um direito fundamental e por consequência torna-se uma

norma com aplicações jurídicas e fáticas, logo de acordo com Alexy (2008, p. 141) e o

mencionado no início deste capítulo, tal direito é considerado um princípio constitucional.

Destarte, tendo em vista a liberdade ter sido estabelecida no ordenamento jurídico

brasileiro com uma disposição geral, é permitido entender que outras liberdades, as quais não

estejam explícitas ao longo da carta constitucional, também é admitida, ampliando dessa

maneira vários modos de expressões e manifestações de vontades.

No mesmo espeque, Sarlet (2012, p. 431-432) ensina:

Dito de outro modo, o direito geral de liberdade funciona como um princípio

geral de interpretação e integração das liberdades em espécie e de identificação

de liberdades implícitas na ordem constitucional. Assim sendo, para reforçar a

linha argumentativa já lançada, a positivação de um direito geral de liberdade tem a

vantagem de introduzir no ordenamento jurídico uma cláusula geral que permite

dela derivar, por meio de interpretação extensiva, outras liberdades não

expressamente consagradas no texto constitucional. Com efeito, a liberdade, como

faculdade genérica de ação ou de omissão, concede ao indivíduo um amplíssimo

leque de possibilidades de manifestação de suas vontades e preferências e de

expressão de sua autonomia pessoal que não pode ser apreendido por meio de

liberdades específicas previstas em textos normativos.

Na esteira das considerações precedentes, percebe-se também o lugar de destaque

que a liberdade, na condição de valor, princípio e direito (mas também como

dever) ocupa na arquitetura jurídico-constitucional e política brasileira,

construída em torno e com base da noção de um Estado Democrático de

Direito, com o qual guardam conexão direta o direito geral de liberdade, os

direitos especiais de liberdade (incluindo as liberdades políticas e sociais) e os

demais direitos fundamentais. [grifo nosso]

Por conseguinte, de acordo com o exposto acima, nota-se que o artigo 1.240-A do CC

ao estabelecer como requisito para obtenção da usucapião pro familia, o abandono do lar por

parte de um dos cônjuges, acabou por infringir o princípio da liberdade e também impôs uma

sanção patrimonial ao consorte abandonador, o que da mesma forma acaba por violar o

princípio do devido processo legal, o qual será melhor explanado no próximo subcapítulo.

3.1.3 Violação ao Princípio do Devido Processo Legal

Inicialmente há de se entender a conexão entre o princípio do devido processo legal e

a usucapião familiar. Ora, verifica-se diante do exposto no artigo 1.240-A CC, a imposição

sob o cônjuge ou companheiro a permanecer no imóvel urbano de forma mansa e pacífica,

pelo período de 2 anos, o que de fato lhe daria direito a aquisição da propriedade do imóvel.

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Dessa forma, o mencionado dispositivo dá origem a uma sanção patrimonial, pois um

dos consortes perderia o imóvel por causa de sua saída do lar conjugal. Assim veja-se a

audácia do legislador ao estabelecer como requisito essencial à modalidade em estudo, o

abandono do lar, qual seria o fundamento objetivo e subjetivo para utilizar-se dessa situação

como condição necessária a tal modalidade de prescrição aquisitiva?

Com maestria Simão (2012, p. 460) expressa seus ensinamentos a respeito da

usucapião pro familia dar origem à sanção patrimonial:

Ademais, se o imóvel foi adquirido pelo casal, como resultado do esforço

comum, seja ele material ou espiritual, qual o motivo para permitir a

usucapião? No meu sentir, há uma punição patrimonial ao cônjuge ou

companheiro que “abandona” a família. O instituto é verdadeira sanção. Não

considera os motivos que levaram ao abandono do lar.

Seria justa esta usucapião se o cônjuge ou o companheiro abandona o imóvel e não a

família? Um bom argumento ao cônjuge ou companheiro que não mais utilizar o

bem é que se não abandonou a família, apenas tolerou a presença do outro no imóvel

(mormente se o que permaneceu tiver a guarda dos filhos), e os atos de mera

tolerância não significam posse, o que impediria a verificação desta usucapião

familiar. Assim, não haveria posse, mas simples detenção. [grifo nosso]

Mais uma vez, o Poder Público tenta iniciar sua intervenção tirana na esfera privada

dos cidadãos, pois tal circunstância foge a competência do legislador, em razão de sua

“onipresença” não ser capaz de definir os motivos que levaram um casal a “separar-se de fato

ou de direito”, e se tal medida foi escolhida com a finalidade de preservar a convivência entre

os pais e os filhos de maneira mais harmônica e pacífica, tendo em vista que talvez o

relacionamento conjugal já não estivesse sendo mais conivente aos consortes.

Dito isto, convém mencionar que tal sanção patrimonial impediria a correta aplicação

dos regimes de bens definidos pelo direito de família, fato este característico da violação ao

devido processo legal.

Desse modo, Farias e Rosenvald (2012, p. 467) ratificam o raciocínio acima exposto:

Ao ressuscitar o ilícito de efeitos caducificantes, qual seja, a perda da titularidade

sobre a fração ideal do bem comum, o legislador operou sério desvio em relações às

normas do direito de família alusivas à divisão dos bens conviventes. Cria-se uma

norma desproporcional, pois sob o manto da tutela patrimonial de um dos membros

do ex-casal o ordenamento pratica intromissão na esfera privada da família impondo

gravíssima sanção de perdimento de bens, quiçá subtraindo daquele que se retirou

do lar o seu patrimônio mínimo.

Senão vejamos: Antes do advento da lei, para evitar a venda do bem comum – o que

colocaria em risco o direito de moradia do cônjuge que permanecia com a prole –, a

solução criativa dos juízes consistia em manter a compropriedade, estabelecendo a

posse em favor daquele que reside com os filhos, sendo as faculdades de uso e

fruição do bem um substitutivo à verba alimentar que seria prestada em pecúnia pelo

ex-convivente. Agora, contudo, convivem dois sistemas: um objetivamente definido

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pelo artigo 1.639 do CC, com relação aos bens particulares que cada consorte

trouxer à união, bem como com relação ao patrimônio constituído na constância da

convivência; e um regime subjetivamente definido pela causa da extinção do

vínculo. Há um patrimônio geral – cuja a sorte seguirá a autonomia privada do casal

ao tempo da união – e um patrimônio afetado ao acaso, quer dizer, o bem imóvel de

moradia do casal, reservado ao convivente inocente, derrogando-se o regime

livremente eleito pelos consortes.

Diferente não é o posicionamento das decisões dos tribunais levando em consideração

a incompatibilidade do artigo 1.240-A com o regime de bens tendo por consequência uma

violação e uma sanção, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

DIREITO DE FAMÍLIA. DIVÓRCIO LITIGIOSO. BEM IMÓVEL. USUCAPIÃO

ESPECIAL POR ABANDONO DO LAR (ARTIGO 1.240-A DO CÓDIGO

CIVIL). USUCAPIÃO FAMILIAR OU PRÓ-FAMÍLIA. REQUISITOS. NÃO

CARACTERIZAÇÃO. BENS. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DA

SOCIEDADE CONJUGAL. ESFORÇO COMUM. PRESUNÇÃO LEGAL

INERENTE AO REGIME DE BENS. PREVALÊNCIA (CC, ARTS. 1.658 E 1.660,

I). DÍVIDAS. ASSUNÇÃO NA CONSTÂNCIA DO VÍNCULO. RATEIO.

RESOLUÇÃO INERENTE AO REGIME DE BENS. PRELIMINARES DE

NULIDADE DA SENTENÇA. FUNDAMENTAÇÃO. NEGATIVA DE

PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. PRINCÍPIO DA

IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. INTERPRETAÇÃO. MODULAÇÃO LEGAL.

VIOLAÇÃO. AUSÊNCIA. PRELIMINARES REJEITADAS. SENTENÇA

MANTIDA. 1. A SENTENÇA QUE EXAMINA DE FORMA CRÍTICA E

ANALÍTICA TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS, RESULTANDO DA

FUNDAMENTAÇÃO QUE ALINHARA O DESATE AO QUAL CHEGARA

COM ESTRITA OBSERVÂNCIA DAS BALIZAS IMPOSTAS À LIDE PELO

PEDIDO, SATISFAZ, COM LOUVOR, A EXIGÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO

JURÍDICO-RACIONAL QUE LHE ESTAVA DEBITADA COMO EXPRESSÃO

DO PRINCÍPIO DA LIVRE PERSUASÃO RACIONAL INCORPORADO PELO

LEGISLADOR PROCESSUAL E À INDISPENSABILIDADE DE RESOLVER

ESTRITAMENTE A CAUSA POSTA EM JUÍZO, NÃO PADECENDO DE VÍCIO

DE NULIDADE DERIVADO DE CARÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO,

NOTADAMENTE PORQUE NÃO HÁ COMO SE AMALGAMAR AUSÊNCIA

DE FUNDAMENTAÇÃO COM FUNDAMENTAÇÃO DISSONANTE DA

ALINHADA PELA PARTE INSATISFEITA COM O DECIDIDO (CF, ART. 93,

INC. IX). 2. O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ, CONQUANTO

VIGORANTE NO PROCESSO CIVIL E REVESTIDO DE PRAGMATISMO,

POIS DERIVADO DA CONSTATAÇÃO DE QUE O JUIZ QUE COLHERA A

PROVA, TENDO MANTIDO CONTATO COM AS PARTES E AFERIDO

PESSOALMENTE IMPRESSÕES QUE EXTRAPOLAM O CONSIGNADO NOS

TERMOS PROCESSUAIS, RESTA PROVIDO DE ELEMENTOS APTOS A

SUBSIDIAREM A ELUCIDAÇÃO DA LIDE, DEVE SER INTERPRETADO DE

FORMA TEMPERADA E EM CONSONÂNCIA COM A DINÂMICA

PROCEDIMENTAL, QUE É DESENVOLVIDA NO INTERESSE DAS PARTES

E SOB MÉTODO REVESTIDO DE RACIONALIDADE E LOGICIDADE. 3. O

PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ, DE ACORDO COM O

DISPOSITIVO QUE O IMPRECARA NO SISTEMA PROCESSUAL, É

MODULADO DE CONFORMIDADE COM A PREMISSA DE QUE A

VINCULAÇÃO SOMENTE PERDURA EM PERMANECENDO O JUIZ QUE

PRESIDIRA A AUDIÊNCIA, COLETARA PROVAS E ENCERRA A

INSTRUÇÃO EM EXERCÍCIO NO JUÍZO NO QUAL TRANSITA A AÇÃO,

RESULTANDO QUE, EM HAVENDO SEU AFASTAMENTO DAS

ATIVIDADES JURISDICIONAIS OU DO JUÍZO NO QUAL TRANSITA A

LIDE, POR QUALQUER MOTIVO, A VINCULAÇÃO CESSA, POIS O

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PROCESSO, ACIMA DE TUDO, É CONDUZIDO DE FORMA IMPESSOAL E

NO INTERESSE DAS PARTES, NÃO DO ÓRGÃO JUDICIAL (CPC, ART. 132).

4. O RECONHECIMENTO DA USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR,

PREVISTA NO ARTIGO 1.240-A DO CÓDIGO CIVIL - USUCAPIÃO

FAMILIAR OU PRÓ-FAMÍLIA -, ENSEJANDO QUE IMÓVEL COMUM PASSE

AO DOMÍNIO EXCLUSIVO DE UM DOS CÔNJUGES À MARGEM DO

REGIME DE BENS QUE NORTEARA O CASAMENTO, TEM COMO

PREMISSA O ANIMUS ABANDONANDI DO CÔNJUGE QUE DEIXA O

IMÓVEL NO QUAL ESTAVA ESTABELECIDO O LAR CONJUGAL,

DETERMINANDO QUE O CONSORTE QUE NELE PERMANECERA

ASSUMISSE OS ENCARGOS GERADOS PELA COISA E PELA FAMÍLIA,

NÃO SATISFAZENDO ESSA PREMISSA A SEPARAÇÃO DE FATO

REALIZADA DE COMUM ACORDO, CONQUANTO TENHA RESULTANDO

NA SAÍDA DO VARÃO DO LAR CONJUGAL E A PERMANÊNCIA DA

CÔNJUGE VIRAGO NO IMÓVEL COMUM. 5. SOB A REGULAÇÃO LEGAL,

O CASAMENTO REALIZADO SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL

DE BENS RESULTA NA PRESUNÇÃO DE QUE OS BENS ADQUIRIDOS NA

CONSTÂNCIA DO VÍNCULO A TÍTULO ONEROSO E AS DÍVIDAS

CONTRAÍDAS NA CONSTÂNCIA DO VÍNCULO EM FAVOR DA FAMÍLIA

COMUNICAM-SE, PASSANDO A INTEGRAR O ACERVO COMUM,

DEVENDO SER RATEADOS NA HIPÓTESE DE DISSOLUÇÃO DO

RELACIONAMENTO CONJUGAL, OBSERVADAS AS EXCEÇÕES

ESTABELECIDAS PELO PRÓPRIO LEGISLADOR À PRESUNÇÃO LEGAL

EMOLDURADA COMO FORMA DE SER PRESERVADO O ALCANCE DO

REGIME PATRIMONIAL ELEITO (DISTRITO FEDERAL, 2013).

No entendimento do referido Tribunal não há que se conceder usucapião familiar

devido ao fato de respeitar o regime de bens escolhido pelo casal no momento da união e no

caso de separação os bens devem ser rateados entre os ex-consortes sem existir qualquer tipo

de discriminação.

Ademais, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul infere por compreender que

todos os bens adquiridos a título oneroso devem ser partilhados igualitariamente, contudo, no

caso de aquisição de bem imóvel por um dos consortes antes do casamento e a título de

permuta não é passível de usucapião. Veja a ementa na íntegra:

APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE

UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. TERRENO E CASA ADQUIRIDOS

COM VALORES EM PARTE SUB-ROGADOS DE BEM EXCLUSIVO DE

PROPRIEDADE DO CONVIVENTE. RATEIO DO VALOR RELATIVO ÀS

PARCELAS DO FINANCIAMENTO DO TERRENO PAGOS NA CONSTÂNCIA

DA RELAÇÃO. PARTILHA IGUALITÁRIA DAS DIVÍDAS CONTRAÍDAS

PELO CASAL. USUCAPIÃO FAMILIAR. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INOCORRÊNCIA. (RIO GRANDE DO SUL, 2012).

Nesse diapasão, com a finalidade de entender melhor a violação praticada pela

usucapião pro familia, é imprescindível a compreensão do que é o devido processo legal e sua

representação no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, aquele é uma garantia fundamental

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estando regulamentado pelo artigo 5º, inciso LIV19

, da Constituição Federal de 1988, sendo

considerado pelos doutrinadores o primeiro aparecimento explícito de tal garantia, pois, nas

constituições passadas a matéria era tratada de maneira implícita.

A conceituação daquele é um tanto sopesado pelos doutrinadores difícil de definir haja

vista a amplitude que o devido processo legal representa para o ordenamento jurídico, alguns

constitucionalistas consideram-no um princípio, outros entendem ser uma garantia, e há quem

diga também ser um direito fundamental.

Para Bulos (2014, p. 685):

Devido Processo Legal é o reservatório de princípios, constitucionais, expressos e

implícitos, que limitam a ação dos Poderes Públicos.

Mais do que um princípio, o devido processo Legal é um sobreprincípio, ou

seja, fundamento sobre o qual todos os demais direitos fundamentais repousam.

Por seu intermédio, a toda pessoa deverá ser concedido o que lhe é devido.

Daí a Constituição brasileira estatuir que ‘ninguém será privado da liberdade ou de

seus bens sem o devido processo legal’ (art. 5º, LIV). [grifo nosso]

Noutro giro define Bastos (1999, p. 185):

O direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente

um direito.

Por que ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se,

portanto, a aplicação da lei.

O princípio se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde

com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se

beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado.

É por isto que hoje o princípio se desdobra em uma série de outros direitos,

protegidos de maneira específica pela Constituição. [grifo nosso]

Contudo, o fato é que o devido processo legal representa no mundo jurídico mais um

fundamento sob o qual repousa a estruturação e a manutenção dos direitos e garantias

fundamentais implícitos e explícitos na Constituição Federal.

Desta feita, o aludido princípio tem-se como escopo a limitação e a proibição da

arbitrariedade do poder público sob os direitos e garantias fundamentais concedidos aos

cidadãos, de modo a almejar o cumprimento da previsão da norma constitucional buscando a

igualdade e justiça dentro do Estado Democrático de Direito.

Nas palavras de Bulos (2014, p. 686):

O devido processo legal funciona como meio de manutenção dos direitos

fundamentais.

19

Art. 5º, inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

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Sua importância é enorme, porque impede que as liberdades públicas fiquem

ao arbítrio das autoridades executivas, legislativas e judiciais.

Em nossos dias, o funcionamento do devido processo legal pode ser facilmente

percebido no confronto entre o interesse privado e o interesse público. Nesse

contexto, é dado a qualquer indivíduo invocar a cláusula para tutelar suas

prerrogativas. [grifo nosso]

Em consequência, depreende-se da narração supramencionada que a utilização do

abandono do lar traz como resultado no mundo jurídico e também social a violação do devido

processo legal, considerando-se o desrespeito ao regime de bens instituído pelo direito de

família, bem como a intromissão do poder público na vida privada da sociedade, de modo a

transgredir os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.

Além disso, mister faz-se a análise da Emenda Constitucional 66/2010 a fim de ratificar a

inconstitucionalidade presente no instituto analisado.

3.2 USUCAPIÃO FAMILIAR FRENTE À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº. 66/2010

O estudo da Emenda Constitucional 66/2010 revela-se importante para a compreensão

da usucapião familiar tendo em vista o fato de um dos requisitos essenciais para configurar a

referida modalidade de aquisição de bens imóveis ser o abandono de lar, e que o legislador ao

instituir tal condição gerou grandes impasses dentro do direito civil na área de família.

Tais embaraços encontram-se em questionamento pelos doutrinadores com relação ao

significado atribuído aquele quesito, pois, alguns consideram a utilização de tal expressão o

renascimento da culpa, por vezes denominando de “fênix”; outros mencionam não haver

qualquer relação com o direito de família, tratando-se apenas de aplicação da função social da

propriedade. Contudo, no presente trabalho dar-se-á ênfase ao estudo do abandono de lar

como um ressurgimento da culpa, a qual já havia sido extinta pela Emenda Constitucional

66/2010.

Esta foi instituída no ordenamento jurídico com o objetivo de extinguir a separação

judicial e também a exigência de prazo de separação de fato para a dissolução do vínculo

matrimonial. Tais mudanças refletiram de modo significativo nas relações sociais, pois, antes

o casal esperava o decorrer do prazo de 1 ano para se separarem de maneira consensual e na

litigiosa somente o cônjuge inocente era quem podia pleitear a separação.

Nesse diapasão tem-se o entendimento de Pereira (2013, p. 50) presidente do Instituto

Brasileiro de Direito de Família:

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Portanto, o novo texto constitucional suprimiu a prévia separação como requisito

para o divórcio, bem como eliminou qualquer prazo para se propor o divórcio, seja

judicial seja administrativo (lei n. 11.441/07). Tendo suprimido tais prazos e o

requisito da prévia separação para o divórcio, a Constituição joga por terra aquilo

que a melhor doutrina e a mais consistente jurisprudência já vinham afirmando há

muitos anos, a discussão da culpa pelo fim do casamento, aliás, um grande sinal de

atraso do ordenamento jurídico brasileiro.

Ainda, ratificando todo o exposto acima, tem-se também o posicionamento de Coelho

(2014, s.p) o qual alega que o direito de família brasileiro passou por uma grande e necessária

transformação com o advento da EC n. 66/2010, porque a partir de tal momento o casamento

poderia ser dissolvido por meio do divórcio sem precisar de qualquer condição para encerrar o

relacionamento afetivo perante o judiciário.

No mesmo espeque afirma Dias (2012, p. 63):

Como a própria ação judicial já evidenciava o rompimento do vínculo afetivo, a

perquirição da causa da separação vinha perdendo prestígio. A dissolução da

sociedade marital era chancelada sem se identificar a culpa de qualquer dos

cônjuges. O fim do casamento era decretado independentemente da indicação de um

responsável pelo insucesso da relação, seja porque é difícil atribuir a apenas um dos

cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é

absolutamente indevida a intromissão da Justiça na intimidade da vida das pessoas.

Explanando a respeito da reforma supracitada, Lobo (2011, p. 150-151) revela os

benefícios que o divórcio trouxe a sociedade bem com ao poder judiciário:

A submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão)

resultava em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos

evitáveis. A superação do dualismo legal repercute os valores da sociedade brasileira

atual, evitando que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias

sejam reveladas e trazidas ao espaço público dos tribunais, com todo o caudal de

constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e

dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas

decorrentes da separação. Levantamentos feitos das separações judiciais

demonstraram que a grande maioria dos processos de separação litigiosa era

concluída amigavelmente, sendo insignificantes os que resultaram em julgamentos

de causas culposas imputáveis ao cônjuge vencido.

Posto isto se infere do mencionado até o presente momento que a aludida alteração

constitucional pôs fim ao instituto da separação, a imposição de prazos para a concessão do

divórcio e a identificação da culpa, situação esta não mais necessária perante os tribunais,

pois, se o vínculo afetivo estava sendo rompido significava que os casais já não tinham

motivos para permanecerem juntos e esses não precisavam justificar-se perante a sociedade

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mencionando quem era o culpado pelo término, apenas que não desejam mais continuar

juntos.

Noutro giro, posicionam-se Gagliano e Pamplona (2014, p. 94):

Na esteira da mais avançada doutrina do direito brasileiro, outra não poderia ser a

conclusão senão a de que não há mais qualquer sentido em se tentar buscar a

existência de um culpado pelo fim do casamento (obviamente o mesmo serve para a

união estável). Em princípio, é necessário que se reconheça que a ideia de culpa pelo

fim do matrimônio é resultado da influência exercida pela Igreja Católica em nosso

direito, o que se fortalece nesse caso pelo fato de ser o casamento também uma

instituição eclesiástica. Não obstante, não se pode olvidar da contradição que está

inserida nessa influência, já que a concepção contratual de casamento adotada pela

Igreja concede mais importância à vontade dos cônjuges em casar-se (em detrimento

da participação do Estado no casamento), mas a desconsidera quando o assunto é

separação, permeando a dissolução do vínculo com a marca da culpa. Além da

necessidade de que se conclua pelo abandono da influência da Igreja no que diz

respeito à separação e o divórcio, é necessário que haja um foco diverso ao tratar

essa situação. Nesse sentido, é preciso que se enfatize a ideia da separação em razão

do fracasso conjugal e não porque um dos cônjuges ou ambos é/são culpados. Com

efeito, essa noção vem sendo bem difundida pela doutrina e aceita por parte da

jurisprudência, restando alguns de nossos dispositivos legais, principalmente do

Código Civil de 2002, desatualizados e em descompasso com o modelo de família

previsto pela Constituição da República de 1988.

Diante do supracitado os autores ratificam que a culpa não deve ser mais recepcionada

pelas normas brasileiras, pois a mesma era considerada anteriormente pela sociedade, devido

a influência da Igreja Católica, a qual de uma certa maneira buscava evitar as separações

conjugais.

Logo, após a breve explanação do que foi a referida emenda e as mudanças trazidas

por ela ao ordenamento jurídico e a sociedade, passa-se a análise da culpabilidade como

motivo substanciador a configuração do abandono de lar.

Assim, conforme o narrado neste trabalho é evidente que aquele é um requisito

essencial para configurar a modalidade de usucapião familiar, estando tal instituto disposto no

artigo 1.240-A do CC. Consequentemente, surgiu perante os doutrinadores civilistas a

hipótese de esta exigência trazer novamente ao sistema jurídico a imposição de culpados pelo

término do relacionamento afetivo, pois, o cônjuge interessado a usucapir o bem imóvel terá

que justificar a ausência do abandonador e dizer os motivos pelos quais o usucapiente

começou a arcar com as despesas da propriedade.

Ora, mais que pacificado encontra-se o entendimento de que não há mais discussão e

nem imposição de culpas ao se efetuar a separação, quer seja ela judicial ou a de “corpos”,

pois, a EC n. 66/2010 contribuiu para a celeridade e a facilidade na realização do divórcio,

sem a necessidade de levar até o judiciário questões afetivas e ressentimentos.

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Além disso, ressalta-se também que a permanência do abandono de lar gerará maiores

dissabores entre o ex-casal dificultando ainda mais a convivência entre eles e

consequentemente podendo afetar a prole, a qual na maioria das vezes é utilizada como

motivo para que um dos cônjuges abandone o lar a fim de evitar constrangimentos aos filhos

com relação à situação vivida entre os consortes estavam passando, julgue-se tal atitude como

uma proteção a esfera psicológica e sentimental da prole.

Corroborando com o exposto Dias (2011, online) afirma:

Quem lida com as questões emergentes do fim dos vínculos afetivos sabe que,

havendo disputa sobre o imóvel residencial, a solução é um afastar-se, lá

permanecendo o outro, geralmente aquele que fica com os filhos em sua companhia.

Essa, muitas vezes, é única saída até porque, vender o bem e repartir o dinheiro nem

sempre permite a aquisição de dois imóveis. Ao menos assim os filhos não ficam

sem teto e a cessão da posse adquire natureza alimentar, configurando alimentos in

natura.

Mas agora esta prática não deve mais ser estimulada, pois pode ensejar a perda da

propriedade no curto período de dois anos. Não a favor da prole que o genitor quis

beneficiar, mas do ex-cônjuge o companheiro.

De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do

relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010

que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A

medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos – que sempre

sobram quando o amor acaba – sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém

interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e

feneceu.

Assim, ainda levando em consideração os problemas que serão piorados, com a

permanência da usucapião familiar, Simão (2012, online) expõe seu ponto de vista:

Sinceramente, creio que teremos mais problemas que solução. Esta modalidade de

usucapião significará acirramento de lutas patrimoniais no seio da família (mesmo

acabada a família conjugal, prossegue a parental) comprometendo a manutenção de

bons vínculos parentais, no mais das vezes.

No mesmo espeque Silva (2011, online) entende que o advento da referida emenda

extinguiu a discussão da culpa dentro do ordenamento jurídico visando proteger a intimidade

dos cônjuges e que devido a essa situação não caberia mais a discussão dela perante o poder

judiciário e também ressalta ser a usucapião pro familia um discreto modo de controle

instituído pelo Estado a fim de regular a natureza patrimonial.

A respeito dos reflexos do referido instituto com relação à utilização da expressão

abandono de lar, Amorim (2011, online) argumenta:

Cabe aqui, discordar do legislador uma vez que ao usar o termo "abandonou o lar"

perigosamente remete-nos à culpa do direito de família podendo formar opinião da

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ressurreição desta falha que levou anos para ser enfim extirpada de nosso direito;

também porque ao invés de consolidar a Justiça Social, acaba por concentrar a renda

na mão de um dos condôminos, gerando desigualdade patrimonial entre os

consortes; a norma ainda poderá abalar a segurança jurídica depositada no pacto

antenupcial e apressar os consortes à partilha de bens, encurtado o prazo de reflexão

necessário entre a separação fática e a judicial.

Logo, salienta-se que a manutenção de tal condição imposta não infringe apenas a

aludida alteração constitucional, mas traz como consequência uma sanção patrimonial a um

dos consortes desrespeitando a instituição do regime de bens e inserindo instabilidade

jurídica.

Diante do exposto é perceptível a incompatibilidade entre a usucapião familiar e a

Emenda Constitucional nº. 66/2010, tendo em vista que esta “sepultou a culpa”, e aquela fê-la

ressurgiu das cinzas, como a fênix.

Destarte, a fim de não restar qualquer dúvida ante a incompatibilidade do artigo 1.240-

A do CC com as disposições constitucionais, é necessário dispor sobre as atribuições da

Emenda Constitucional no ordenamento jurídico brasileiro e seus reflexos sobre o crivo do

controle de constitucionalidade.

As emendas à constituição foram mais uma das inovações trazidas pela Constituição

Federal de 1988 e tem como objetivo permitir a modificação desta, a fim de adequar as

normas constitucionais às modificações sociais. Frise-se não ser possível a alteração de

maneira desenfreada, pois o artigo 6020

da Carta Magna expressa à existência de requisitos

necessários a criação de uma emenda constitucional e consequentemente impõe limites ao

conteúdo que poderá ser modificado.

20

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma

delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de

estado de sítio.

§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se

aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com

o respectivo número de ordem.

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova

proposta na mesma sessão legislativa.

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Tal incorporação ao texto constitucional equipara-se hierarquicamente a Constituição

Federal sobrepondo-se sobre as demais espécies normativas. Assim manifesta-se Bulos (2014,

p. 1194): “Evidente que uma emenda que se incorporou ao texto originário da Carta Magna é,

hierarquicamente, superior a todas elas, porque segue um procedimento solene, demorado,

complexo, em virtude de sua importância institucional”.

Nesse diapasão de acordo com o princípio da supremacia da Constituição Federal de

1988 toda e qualquer norma incompatível com ela é considerada inconstitucional, sendo pois,

objeto do controle de constitucionalidade.

Dito isto, Ferreira Filho (2012, p. 193-194) de um modo bem objetivo ratifica o

pensamento apresentado acima:

A Constituição rígida é a lei suprema. É ela a base da ordem jurídica e a fonte de sua

validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra ela

dispor.

A supremacia da Constituição decorre de sua origem. Provém ela de um poder que

institui a todos os outros e não é instituído por qualquer outro, de um poder que

constitui os demais e é por isso denominado Poder Constituinte. O estudo desse

poder é o objeto deste capítulo.

Por outro lado, da superioridade da Constituição resulta serem viciados todos os atos

que com ela conflitam, ou seja, dela resulta a inconstitucionalidade dos atos que a

contrariam. Ora, para assegurar a supremacia da Constituição é preciso efetivar um

crivo, um controle sobre os atos jurídicos, a fim de identificar os que, por colidirem

com a Constituição, não são válidos.

No mesmo sentido leciona Bulos (2014, p. 124):

Quando falamos em supremacia das constituições, pensamos em preeminência,

hegemonia, superioridade.

E faz sentido, porque supremacia constitucional é o vínculo de subordinação dos

atos públicos e privados à constituição de um Estado.

A ideia do princípio da supremacia constitucional advém da constatação de que a

constituição é soberana dentro do ordenamento (paramountcy). Por isso, todas as

demais leis e atos normativos a ela devem adequar-se.

É que o ordenamento se compõe de normas jurídicas situadas em planos distintos,

formando um escalonamento de diferentes níveis.

Dessa maneira, conforme o posicionamento dos autores supracitados é notória a

superioridade hierárquica da Emenda Constitucional por esta fazer parte do texto

constitucional e consequentemente subordinar as demais espécies normativas e os atos do

poder público a sua compatibilidade e harmonia.

Desta feita, ao fazer um paralelo entre o artigo 1.240-A introduzido no Código Civil

pela Lei nº 12.424/11 com a reforma constitucional nº. 66/2010, é possível perceber a

incompatibilidade entre o texto constitucional e a norma infraconstitucional, pois, conforme

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os argumentos demonstrados até o presente momento, a aquela admitiu o divórcio

extinguindo a culpa do ordenamento jurídico e já a usucapião familiar instituída por lei

posterior e infraconstitucional ressuscitou-a.

Além da superioridade do texto constitucional é necessário ressaltar os efeitos

temporais da norma constitucional. Nesse espeque explica Ribeiro e Fonseca (2012, p. 177):

O direito intertemporal tem por objetivo regular os conflitos da lei no tempo.

Possui especial relevo nas situações em que ocorre a revogação de uma

constituição e a consequente promulgação de outra para ocupar o seu lugar.

Atua, sobretudo, na regulação de eventuais conflitos entre a nova constituição e

a ordem jurídica pretérita.

Mas, não é apenas a mudança completa de constituição que gera conflito no plano

do direito intertemporal; o mesmo ocorre quando o texto constitucional é alterado

por meio de Emendas Constitucionais podendo revogar norma jurídica

anteriormente compatível com a constituição. [grifo nosso]

Ante o exposto, cita-se a Lei de Introdução as Normas de Direito Brasileiro, conhecida

popularmente como LINDB, a qual dispõe sobre a aplicabilidade da norma jurídica em

relação ao direito intertemporal com o escopo de evitar e solucionar os conflitos da lei no

tempo, além disso, ressalta-se que tal normativa é aplicada tanto na esfera pública como na

privada, defronte a exposição feita por Bulos (2014, p. 162):

Aliás, é engano pensar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro só

se aplica ao Direito Privado. Na seara constitucional, sua utilização é valiosíssima,

porque ela é uma lei de introdução às leis. Sua aplicabilidade, no tempo e no espaço,

é universal. Atinge todos os domínios da experiência jurídica. Seus seis primeiros

artigos, por exemplo, irmanam-se com os princípios determinativos da exegese e

aplicação das normas constitucionais. A Lei de Introdução é, assim, uma lex legum,

um diploma autônomo, um conjunto de normas sobre normas (ein Recht der

Rechtsordenung, Recht ueber Recht, jus supra jura, surdroit).

À vista disso e conforme a apresentação dos argumentos supramencionados é evidente

a presença do conflito temporal entre a Emenda Constitucional nº. 66/2010 e a posterior

existência do artigo 1.240-A do CC introduzido pela Lei 12.424/11, o qual deu origem à

modalidade de usucapião pro familia, exigindo como requisito essencial o abandono de lar e

não tendo especificação explícita da conceituação e da ampliação desta exigência é possível

ressaltar o ressurgimento da culpa que poderá ser utilizada novamente como desculpa ou

motivação para atribuir ao outro cônjuge a causa de não estarem mais convivendo sob o

mesmo teto, reaparecendo novamente perante o poder judiciário a intimidade dos consortes

causando um grande retrocesso social.

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Outro ponto a ser destacado é o fato de a referida alteração ao texto constitucional ser

hierarquicamente superior à lei 12.424/11 considerada de acordo com as espécies normativas

como lei ordinária estando entre as chamadas “normas infraconstitucionais”. Logo, a

existência e a validade destas são condicionadas a compatibilidade e a harmonia com o texto

constitucional sob pena de serem inconstitucionais, situação esta presente no caso estudado.

Isso posto, Ribeiro e Fonseca (2012, p. 189):

Pois bem. Promulgada uma lei ela ficará em vigor indefinidamente, até que seja

revogada por outra lei de igual ou maior hierarquia (art. 2º, da Lei de Introdução às

Normas do Direito Brasileiro). Consequentemente, o advento de uma Emenda

Constitucional ensejará a revogação de todo o conteúdo infraconstitucional com ela

incompatível.

E, diga-se de passagem, não podia ser diferente. Negar que uma Emenda

Constitucional possa revogar a legislação ordinária com ela incompatível é, repise-

se, defender a subordinação da Constituição ao direito infraconstitucional, em clara e

afrontosa subversão de toda a estrutura do ordenamento jurídico, ancorado na

superioridade normativa da Constituição.

Destarte, conforme o pensamento do doutrinador supracitado depreende-se coerência

na exposição realizada a respeito da inconstitucionalidade da usucapião familiar devido à lei

12.424/11 trazer à tona a culpa por abandono de lar e também a posterioridade dessa em

relação à Emenda Constitucional nº. 66/2010. Por fim, complementa dizendo que ir contra a

presença desta incompatibilidade é ferir o princípio da supremacia do texto constitucional e

também da Lei de Introdução das Normas de Direito Brasileiro.

Outra consequência da usucapião pro familia é novamente permitir a intervenção

estatal na vida íntima dos particulares, a qual também já havia sido superada com a entrada

em vigor do divórcio, de modo a evitar a exibição da intimidade dos cônjuges nos tribunais e

que o Estado, substituindo anteriormente a Igreja, fosse o autor da pretensão de os consortes

permanecerem juntos mediante uma influência sancionatória. O que no caso em tela abrange a

sanção patrimonial.

Assim também se manifesta Silva (2011, online) ao mencionar a continuidade do

aludido instituto de prescrição aquisitiva no ordenamento jurídico brasileiro:

[...] O direito de família brasileiro nem mesmo sob a máscara de função social da

propriedade admite a intervenção estatal desarrazoada na vida privada, sob pena de

violação da dignidade da pessoa humana. No mais, os princípios constitucionais

possuem função de revelar e unificar o Ordenamento jurídico, não permitindo

afronta por normas infraconstitucionais. Assim, fazer da culpa a fênix que surge

das cinzas pelo Usucapião dito Pró-Família ofende a ordem constitucional

posta, a qual é baseada na afetividade e não mais no patrimônio ou na tutela da

moral.[grifo nosso]

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Noutro giro, essa intervenção estatal também teria como consequência a violação ao

princípio da dignidade da pessoa humana, o qual foi admitido na Constituição Federal de

1988 para preservar os direitos dos cidadãos e permitir uma existência digna, sem que

qualquer pessoa pudesse interferir na liberdade de escolhas do povo.

Ainda referindo-se a violação dos princípios Dias (2011, online) aduz:

Além disso, ressuscitar a discussão de culpas desrespeita o direito à intimidade,

afronta o princípio da liberdade, isso só para lembrar alguns dos princípios

constitucionais que a Lei viola ao conceder a propriedade exclusiva ao possuidor,

tendo por pressuposto a responsabilidade do co-titular do domínio pelo fim da união.

Contempla-se da exposição da referida autora outro princípio constitucional afetado

com a existência da usucapião familiar, a liberdade, e menciona também que tal violação

ocorre pelo fato de se responsabilizar um dos cônjuges pelo término da união e a saída do lar

conjugal como cerne da concessão aquele que permanecer no imóvel poder usucapi-lo

refletindo na escolha dos consortes em manter-se ou não na propriedade sob pena de perdê-la.

No mesmo espeque e de modo a complementar os argumentos acima citados, Lobo

(2012, p. 153) revela:

Quando o Poder Judiciário, mobilizado pelo cônjuge que se apresentava como

abandonado e ofendido pelo outro, investigava a ocorrência ou não da causa alegada

e da culpa do indigitado ofensor, ingressava na intimidade e na vida privada da

sociedade conjugal e da entidade familiar. A Constituição (art. 5º, X) estabelece que

“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, sem

qualquer exceção ou restrição. Ora, nada é mais íntimo e privado que as relações

entretecidas na convivência familiar. Sob esse importante ângulo, não poderia a lei

ordinária excepcionar, de modo tão amplo, a garantia constitucional da

inviolabilidade, justamente no espaço privado e existencial onde ela mais se realiza.

Por conseguinte, ante todo o exposto é possível compreender a inconstitucionalidade

da usucapião familiar sob as vertentes da violação aos princípios constitucionais da igualdade,

liberdade, devido processo legal e dignidade da pessoa humana. Além disso, também ressalta-

se o ressurgimento da culpa quando o artigo 1.240-A ao exigir o abandono de lar como

requisito essencial a referida prescrição aquisitiva, infere-se disto um notório retrocesso e

violação da Emenda Constitucional nº. 66/2010 publicada antes da lei 12.424/11, a qual

instituiu a usucapião familiar, e de acordo com o direito intertemporal as emendas

constitucionais revogam lei ordinária com ela incompatível, o que ocorre no caso em tela.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A usucapião é um meio de se adquirir propriedade imóvel pela prescrição aquisitiva e

está prevista no Código Civil com requisitos essenciais em todas as modalidades sendo eles: o

tempo, a existência de uma propriedade e o uso contínuo. O instituto tem por objetivo

solucionar os conflitos originados entre a posse e a propriedade regulamentando ao mesmo

tempo a perda e a aquisição do imóvel.

A última espécie incluída no Código Civil pela Lei 12.424/11 é a usucapião familiar

conhecida também por pro moradia este instituto reduziu o prazo da usucapião especial

urbana para 2 anos, exigiu a existência de um imóvel comum entre o casal e também o

abandono do lar por um dos consortes.

A inserção do instituto supramencionado trouxe contradições entre os doutrinadores e

aplicadores da lei, os quais dividiram-se entre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade

da modalidade citada.

Assim, analisando a referida modalidade de prescrição aquisitiva por meio de seus

requisitos é possível perceber o reavivamento da culpa quando da aplicação da exigência do

abandono de lar pelo artigo 1.240-A do CC, pois, tal situação já havia sido superada com a

publicação da Emenda Constitucional nº. 66/2010.

Esta teve como efeitos a extinção de prazos, o fim da culpa, o nome de casado não é

emprestado ao outro cônjuge, entre outros reflexos que serviram para desburocratizar o fim do

relacionamento afetivo, assim como acabou com a interferência estatal na vida dos consortes.

Contudo, a utilização do abandono de lar pela usucapião pro familia atribuindo ao consorte

abandonador a culpa para que o cônjuge abandonado adquira o imóvel, estabelece um

retrocesso social.

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Além disso, configura também a inconstitucionalidade da lei ordinária ao compará-la a

Emenda Constitucional nº. 66/2010 à vista do estudo da hierarquia das normas constitucionais

e o direito intertemporal, o qual considera o texto constitucional superior as normas

infraconstitucionais e as que com ele forem incompatíveis devem ser consideradas

inconstitucionais.

Outrossim, verificando uma das consequências diretas da usucapião pro moradia,

ainda utilizando-se do requisito abandono de lar, nota-se que o consorte abandonador sofrerá

uma sanção patrimonial ao ausentar-se do imóvel pelo período de 2 anos, configurando assim

a violação ao princípio do devido processo legal, pois, tal penalidade infringe o regime de

bens escolhido pelo casal no momento da união legal.

O próximo requisito é o fato de somente os proprietários de imóveis urbanos poderem

fazer uso daquela modalidade, excluindo a possibilidade de as pessoas que moram no campo

utilizarem-se do instituto, caracterizando violação ao princípio da igualdade, disposto na

Constituição Federal de 1988, a qual tem função de impedir a discriminação dos atos do

Poder Público contra particulares bem como entre estes.

Ainda relacionado à inconstitucionalidade do dispositivo 1.240-A do CC infere-se

também a violação ao princípio da liberdade, pois ao impor o abandono de lar como requisito

essencial a aquisição por usucapião familiar, o cônjuge se vê obrigado a permanecer no

imóvel com a finalidade de não perdê-lo para o outro consorte, restringindo assim a liberdade

de locomoção, a de escolha e a manifestação de vontade.

A primeira configura-se quando o consorte fica restrito a quedar-se no imóvel sob

pena de sofrer a sanção patrimonial. O segundo e o terceiro são consequência daquele, porque

o legislador não deixou qualquer alternativa que viabilizasse ao cônjuge a possibilidade de

sair sem lhe ser aplicado a perda do imóvel deixando ao léu as motivações que o levam a

querer tal situação.

Desta feita, é contemplado no estudo desta modalidade a transgressão aos princípios

constitucionais os quais são considerados direitos fundamentais previstos na Constituição

Federal de 1988 e visam constituir instrumentos de proteção ao cidadão frente à atuação do

Estado estendendo-se também as relações privadas.

Estas também devem submeter-se ao texto constitucional de acordo com a instituição

da constitucionalização do direito, o qual tem por finalidade fazer com que as normas

constitucionais irradiam-se por todo o ordenamento jurídico influenciando as normas

infraconstitucionais e as relações entre os particulares, bem como condicionando toda e

qualquer lei inferior a harmonia e compatibilidade com a Constituição Federal de 1988.

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Nessa esteira, analisando a presente problemática, percebe-se a ocorrência de

inconstitucionalidade por ação no aspecto material – quando há contrariedade entre normas ou

princípios da constituição – pois, o conteúdo do art. 1.240-A do CC contraria os princípios

constitucionais.

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