ASPECTOS DO ESTOICISMO ROMANO SOB OS JÚLIO- CLÁUDIOS ... · Os estoicos [tinham] convicção de...

17
1 ASPECTOS DO ESTOICISMO ROMANO SOB OS JÚLIO- CLÁUDIOS, FLÁVIOS E ANTONINOS doi: 10.4025/XIIjeam2013.costa.venturini11 COSTA, Alex Aparecido da 1 VENTURINI, Renata Lopes Biazotto 2 Introdução O regime do Principado nasceu em Roma, grosso modo, em decorrência do fracasso das instituições republicanas em sua tarefa de governar um império a partir das antigas instituições municipais concebidas séculos antes. Todavia, as mudanças que se impunham não foram capazes de operar uma ruptura completa com o passado e os césares, para fundamentar seus poderes, precisaram muito mais do que apenas evidenciar a necessidade pragmática do poder centralizado, pessoal e vitalício. Era preciso convencer os espíritos mais ciosos das tradições e mostrar que aquele que detinha o poder merecia-o e seria capaz de exercê-lo com justiça e moderação. Para isso a Stoa foi um instrumento fundamental. A filosofia do Pórtico surgiu em fins do século IV a. C., num período de conturbação política e espiritual do mundo grego, no século II a. C. chegou a Roma e passou a influenciar os atos que iniciavam o drama cujo clímax seria a queda da República. Durante o Principado sua influência foi também marcante, entretanto nem todos os imperadores e seus ideólogos abraçaram o estoicismo. Isso exige, ainda que de maneira sintética, uma análise que nos permita observar as nuanças do estoicismo da época imperial. Veremos que quando a filosofia do Pórtico não fazia parte da base ideológica de um imperador ela fornecia respaldo às críticas contra seu governo por parte principalmente de setores da ordem senatorial. A ambiguidade do regime e a necessidade de equilíbrio entre seu poder e a autoridade da cúria apontam claramente quais seriam os dois caminhos 1 PPH/LEAM/UEM – CAPES 2 PPH/LEAM/UEM – Orientadora

Transcript of ASPECTOS DO ESTOICISMO ROMANO SOB OS JÚLIO- CLÁUDIOS ... · Os estoicos [tinham] convicção de...

1

ASPECTOS DO ESTOICISMO ROMANO SOB OS JÚLIO-

CLÁUDIOS, FLÁVIOS E ANTONINOS doi: 10.4025/XIIjeam2013.costa.venturini11

COSTA, Alex Aparecido da1

VENTURINI, Renata Lopes Biazotto2

Introdução

O regime do Principado nasceu em Roma, grosso modo, em decorrência do

fracasso das instituições republicanas em sua tarefa de governar um império a partir das

antigas instituições municipais concebidas séculos antes. Todavia, as mudanças que se

impunham não foram capazes de operar uma ruptura completa com o passado e os césares,

para fundamentar seus poderes, precisaram muito mais do que apenas evidenciar a

necessidade pragmática do poder centralizado, pessoal e vitalício. Era preciso convencer os

espíritos mais ciosos das tradições e mostrar que aquele que detinha o poder merecia-o e

seria capaz de exercê-lo com justiça e moderação. Para isso a Stoa foi um instrumento

fundamental.

A filosofia do Pórtico surgiu em fins do século IV a. C., num período de

conturbação política e espiritual do mundo grego, no século II a. C. chegou a Roma e

passou a influenciar os atos que iniciavam o drama cujo clímax seria a queda da República.

Durante o Principado sua influência foi também marcante, entretanto nem todos os

imperadores e seus ideólogos abraçaram o estoicismo. Isso exige, ainda que de maneira

sintética, uma análise que nos permita observar as nuanças do estoicismo da época

imperial. Veremos que quando a filosofia do Pórtico não fazia parte da base ideológica de

um imperador ela fornecia respaldo às críticas contra seu governo por parte principalmente

de setores da ordem senatorial. A ambiguidade do regime e a necessidade de equilíbrio

entre seu poder e a autoridade da cúria apontam claramente quais seriam os dois caminhos

1 PPH/LEAM/UEM – CAPES 2 PPH/LEAM/UEM – Orientadora

2

possíveis a serem seguidos, ambos, porém, poderiam levar a consequências funestas para o

regime.

A Stoa e o Alto Império

Segundo André (1994, p. 7), durante o período imperial o estoicismo se expressava

principalmente entre os grupos de homens que em Roma mantinha amizades comuns.

Portanto, os círculos culturais e as relações de patronato eram um lugar privilegiado de

expressão do pensamento estóico. Essa presença seletiva da Stoa entre os homens políticos

demonstra de que maneira essa filosofia poderia ser utilizada tanto para o apoio quanto

para a crítica, ainda que moderada, aos imperadores, isso se dava pela própria divisão

interna dos membros do Senado que punha de um lado os apoiadores e de outro os

opositores dos príncipes.

Se durante o Alto Império a filosofia do Pórtico expande-se dentro do sistema

social romano a ponto de Epicteto, um escravo, ser, assim como membros da elite, um

filósofo estoico (BRUN, 1986, p. 23), ela “continua a dirigir a consciência dos grandes”3

(ANDRÉ, 1994, p. 14), e a preocupação com a ética é o tema dominante, caracterizado

principalmente por uma busca moralizadora por meio de ideias mais antigas (GILL, 2006,

p. 35). Nesse sentido temos uma junção entre a filosofia do Pórtico e as tradições

ancestrais romanas compreendidas na noção de mos maiorum. Tal encontro certamente não

se principiou apenas na época imperial, e talvez possa ser mapeado durante a República,

entretanto preferimos observá-lo durante o Principado, quando os imperadores careciam

muito do respaldo das tradições para justificarem suas posições. O estoicismo possuía

características que favoreciam a construção de ideias em momentos em que o panorama

político e ideológico exigia uma ficção restauradora.

Entre as tradições mais valorizadas pelos romanos a religião ocupava um papel de

destaque, pois todos os aspectos da vida dependiam de uma interação entre o mundo dos

homens e o mundo divino. A concepção estoica do universo se alinhou a esses conceitos

teológicos para suas explicações sobre o cosmo. A filosofia do Pórtico era dividida entre a

física, a lógica e a moral, em uma análise da Stoa esses três elementos deveriam ser

estudados em conjunto, todavia, como em Roma o espírito prático preocupava-se

majoritariamente com as questões éticas que se apresentavam ao homem político podemos

3 Continue à diriger la conscience des grands.

3

nos afastar dos assuntos relativos à física, por exemplo. Mas essa diretriz precisará ser

rompida, aqui e em outros momentos, pois para os estoicos a religião não era um dado

metafísico; a presenças dos deuses, suas vontades e desígnios eram dados tão reais, embora

esporádicos e misteriosos, quanto os fatos mais comuns da vida cotidiana, pois

Os estoicos [tinham] convicção de que os mitos e as crenças das pessoas havia muito continham elementos de verdade, uma vez que haviam no mínimo constituído um prenúncio parcial da pré-concepção reta de deus (ALGRA, 2006, p. 196).

A explicação da filosofia estoica do mundo, dessa forma, via na religião uma forma

de acesso ao logos divino, embora não se utilizasse de instrumentos suficientemente

racionais os cultos antigos constituíam-se como pontos de contato entre realidades

universais distantes, mas interligadas. Em suma

Eles acreditavam que a verdade a respeito dos deuses e da religião fosse a princípio acessível, e que as formas tradicionais de culto e crença poderiam ser, pelo menos, como que aproximações – embora primitivas e parciais – daquela verdade. Assim sendo, presumivelmente eles acreditavam que não se deveria descartar tão facilmente a religião tradicional (ALGRA, 2006, p. 197).

Vemos assim, portanto, que a Stoa tinha motivos importantes para acolher em seu

sistema filosófico as tradições religiosas romanas. Ao encontro disso vinha a sensação de

decadência dos costumes da sociedade romana, sobre a qual foi depositada em grande

medida as razões para a queda da República, com suas trágicas conturbações que era

preciso evitar. Como o desconforto moral permanecia sensível sob os tempos do império a

filosofia do Pórtico não deixou de preocupar-se.

Tendo o mos maiorum perdido seu vigor, coube à Estoá reavivar a ética periclitante. Por meio de palestras e de escritos, foi divulgado o pensamento do Pórtico. Desprezo dos bens materiais, domínios de si, igualdade de todos os homens, sem distinção de raça, tornaram-se ideias correntes, em meio ao povo (ULLMANN, 1996, p. 155).

A leitura da citação, assim como de outras partes da presente obra de Ullmann

(1996), pode indicar um alinhamento da filosofia estoica com ideais cristãos. De fato o

4

autor persegue paralelos entre o Pórtico e o cristianismo4, porém, de nossa parte

ressaltaremos os aspectos que interessavam naquela conjuntura às construções ideológica

dos césares. Desapego aos bens materiais e igualdade entre os homens são dois apelos

importantes para os políticos romanos, o primeiro recordava-o para o respeito aos valores

rústicos prezados por seus ancestrais da Urbe, o segundo exortava o estadista que deveria

manter a coesão do imenso império, cuja composição cultural diversificada poderia

oferecer aos olhos de muitos uma hierarquia de estatuto entre os povos, o que seria

prejudicial para a pacífica integração do mundo romano.

Para os imperadores, a manutenção do poder era um problema complexo. Às

medidas já destacadas no tópico que dedicamos ao novo regime alguns césares juntaram o

apoio ideológico da filosofia, principalmente seus aspectos morais e religiosos que estivam

em consonância com o mos maiorum. Sobre os últimos anos da República sabemos que “à

autoridade política, social e militar dos imperatores foi alinhada a autoridade acadêmica,

representada pelos especialistas que o cercavam” (MENDES, 2006, p. 23), tendência que

se estendeu ao período imperial. Os exemplos começam com Augusto, o fundador do novo

regime contava em seu círculo pessoal com a presença de dois estoicos eminentes,

Atenodoro e Ário Dídimo que fizeram o papel de conselheiros do príncipe (SEDLEY,

2006, p. 33). A presença do pensamento estoico no Principado de Augusto pode ser

percebida em certos aspectos de sua propaganda pessoal e de seu projeto restaurador.

O estoicismo sob os Júlio-Cláudios

Antes de se estabelecer no poder Augusto uniu à herança política de César

qualidades divinas que revestiram o ditador falecido e ele próprio, seu filho adotivo. A

estratégia era mostrar que o apoio à gens Julia não vinha apenas das camadas populares,

mas provinha também dos deuses. A improvável aparição de um cometa em julho de 44 a.

C., durante uma celebração em honra de César foi interpretada como um desígnio

favorável para sua carreira política.

Não nos surpreendamos, pois, que [Augusto] tenha podido extrair, da aparição de um cometa em pleno céu de Roma, no momento em que se celebrava a Vitória de César, uma confiança maravilhosa na divindade do

4 Mais adiante em O estoicismo romano Ullmann compara as perseguições empreendidas por imperadores romanos contra cristãos e estoicos.

5

seu pai e no seu próprio destino. Não ensinavam o Estóicos (cujas lições ele ouviu, proferida por Atenodoro) que as almas ditosas alcançavam o empíreo, entre os astros, que eram, eles próprios seres divinos? Não era nada inverosímel, pois, que o cometa miraculoso fosse verdadeiramente a alma de César na sua ascensão ao céu (GRIMAL, 2008, p. 24).

Esse acontecimento ilustra o que dissemos acima acerca da junção entre a física e a

teologia da Stoa. Um fenômeno astronômico apresentava-se como o portador de uma

revelação divina, uma via de acesso para que os homens interpretassem as vontades de

deus, ou seja, era interpretado como um auspício, “um meio de comunicar ao homem o

incomunicável, de lhe dar certo acesso a um transcendente que o ultrapassa infinitamente,

mas que também o engloba” (BRUN, 1986, p. 56). Os auspícios “eram os meios pelos

quais os romanos procuravam verificar se os deuses favoreciam uma iniciativa”

(HARVEY, 1987, p. 75), parte importante da religião que, como vimos, era valorizada

pelo Pórtico. Nesse sentido os auspícios também gozaram de prestígio dentro da filosofia

estoica que via nas práticas primitivas formas rústicas de acesso ao logos. De acordo com

Gill (2006, p. 41) e Algra (2006, p. 171), para o estoicismo a análise racional dos

fenômenos naturais eram maneiras de compreender a providência divina por meio da

interpretação dos oráculos e dos vaticínios. Algra (2006, p. 204), ressalta ainda que para os

estoicos os estudos dos signos divinos eram tratados como ciência e não como superstitio.

Assim, a promoção pessoal de Augusto obteve duplo respaldo apoiada nas crenças

tradicionais, que com o Pórtico ganhavam estatuto elevado no meio intelectual. A junção

do antigo e o novo concorriam para legitimar a posição do príncipe.

Em relação ao projeto restaurador de Augusto sabemos que ele situava-se tanto no

campo político quanto, nos aspectos morais da sociedade romana. Todavia, em alguns

aspectos não interessava ao príncipe ou à aristocracia o total retorno à ordem republicana,

pois

Por intermédio do princeps, as elites romanas tencionavam manter o Imperium e reviver os ideais de res publica, ou seja, preservar a sua base material mediante a proteção da propriedade privada, a manutenção dos seus privilégios sociais e a garantia de segurança pessoal do indivíduo, afastando assim os abusos do tempo das guerras civis. Neste sentido, a atuação de Otávio Augusto foi bastante conservadora, possibilitando a consolidação das transformações socioeconômicas do final do período republicano (MENDES, 2006, p. 26-27).

6

Portanto, para solidificar as bases de seu poder o príncipe precisava dar garantia às

elites que o apoiava. Guiando-nos pela noção dos ideais da res publica podemos entender a

natureza dessa garantia e sua face estoica sob Augusto. André (1994, p. 24) afirma que “o

estoicismo imperial revaloriza a célula familiar”. Embora, na Stoa tal revalorização

tendesse para uma equiparação entre o homem e a mulher Augusto fez uma leitura

enfatizando a revalorização dos papéis do homem e da mulher para reavivar o prestígio das

famílias aristocráticas dizimadas no fim da República (ROULAND, 1997 p. 361-365). Ele

reprimiu o celibato e as práticas sexuais fora do matrimônio, incentivou a natalidade por

meio do jus trium liberorum, benefício concedido às famílias cuja fertilidade fornecesse

três ou mais filhos para a recomposição da ordem superior do Estado. Assim, a seu modo e

a serviço do Império, Augusto buscou reativar os papéis do pater famílias e da matrona

romana, dessa forma homem e mulher equiparavam-se do ponto de vista de suas

responsabilidades tradicionais perante a sociedade.

Para levar a cabo o papel de protetor que as altas camadas da sociedade romana lhe

demandavam, Augusto buscou afirmação em uma ideia moral e política tradicional, a

auctoritas, que à época nutria-se da filosofia do Pórtico. Veremos que, também nesse

ponto, o aporte da Stoa foi importante para dar a uma noção, surgida em tempos remotos,

quando o poder pessoal era suspeito, uma nova significação para a época em que ele era

imprescindível. Afinal a estabilidade repousava da figura de Augusto, temia-se que sem ele

o regime se degradasse em novas disputas e conturbações semelhantes aos do final

República.

A auctoritas era a expressão do poder e da influência políticas em Roma. Era o resultado de um conjunto de fatores materiais, intelectuais e morais que se faziam publicamente conhecidos e justificavam a superioridade política para exercer uma função dirigente. Ela representava uma mistura de poder político e de prestígio social traduzidas no estoicismo (VENTURINI, 2011, p. 179).

Etimologicamente, segundo Pereira (1987, p. 351), a palavra auctoritas carrega

uma noção de acréscimo, aumento, porém não se trata de uma superioridade de classe, de

grupo ou inata a pessoa, mas de uma qualidade adquirida por meio de méritos pessoais e

exercício correto das virtudes que eram valorizadas no homem político romano. É o que

nos oferece a propaganda pessoal de Augusto.

7

No meu sexto e sétimo consulados, após haver posto fim às guerras civis e assumido o poder absoluto por consenso universal, transferi a República do meu domínio para o arbítrio do Senado e do Povo Romano. Por esse motivo e pelo meu próprio mérito foi-me atribuído, por decisão senatorial, o título de Augusto, e as ombreiras da minha casa foram publicamente recobertas de louros, uma coroa cívica foi fixada sobre a minha porta e um escudo de ouro foi colocado na Cúria Júlia, como testemunho, através da inscrição nele registada, que o Senado e o Povo Romano mo haviam dado graças à minha virtude, clemência, justiça e devoção. Depois dessa época, fiquei acima de todos em autoridade; [auctoritas] porém, não tive mais nenhum poder além do que tinham os outros que também foram meus colegas de magistratura (Res Gestae Divi Augusti, 34 apud GRIMAL, 2008, p. 7).

Como podemos ver os serviços prestados por Augusto renderam homenagens e

fizeram com que sua auctoritas ultrapassasse a de todos em Roma. Afirmamos acima que a

noção de auctoritas valia-se do estoicismo na construção da propaganda pessoal de

Augusto, de fato podemos depreender na exaltação do homem político, idealizada na figura

do príncipe, traços importantes relacionados ao sábio estóico, que também estão presentes

em sua biografia, especialmente na forma como ele conduziu a constituição do novo

regime. Ullmann (1996, p. 40), em relação ao estoicismo, afirma que “sábio (sophós) é

aquele que progrediu moralmente”. Brun (1986, p. 77) por sua vez informa que “a

sabedoria estoica é una: é uma compreensão das implicações dos acontecimentos que, por

sua vez, é um consentimento da natureza e uma adesão ao bem”. Dessa forma podemos

perceber a presença da Stoa no tempo de Augusto, pois em sua propaganda é exaltada por

meio da auctoritas sua superioridade moral e a habilidade como ele se comportou ao

estabelecer o Principado, pois soube prevenir-se dos erros de seus antecessores e adaptar as

exigências da nova realidade política às instituições remanescentes, cumprindo assim um

papel de protetor em favor dos cidadãos de Roma. Portanto, a seu modo e conforme os

acontecimentos se impunham Augusto seguiu as diretrizes da sabedoria do Pórtico.

De um extremo ao outro da época Júlio-Cláudia temos também a importante

presença do estoicismo de Sêneca no fim dessa dinastia5. Diante do recorte de nossa

pesquisa e da magnitude da obra do pensador cordovês nos ateremos ao momento em que

ela se relaciona com mais ênfase ao Principado, ou seja, no período que corresponde ao

governo de Nero. Sobre Sêneca o primeiro dado que devemos destacar são as controvérsias

5 Não negamos a presença da Stoa no intervalo negligenciado, todavia, como nosso interesse é apenas ilustrar a presença da filosofia do Pórtico durante o Principado ressaltaremos apenas os períodos mais marcantes da atuação dessa filosofia na política de Roma.

8

que indagam se ele era de fato estoico ou até mesmo filósofo. Brun (1986, p. 23) escreve:

“Podemos perguntar se Séneca terá verdadeiramente direito ao título de filósofo”, alguma

linhas adiante ele acrescenta: “é necessário dizer que o estoicismo de Séneca é indulgente,

insípido e que se presta a muitas concessões”. Apesar de tais restrições serem fonte de

debate não nos preocuparemos com elas, pois como aqui interessa-nos, sobretudo, a

presença do pensamento estoico no Principado fica em segundo plano a preocupação do

estatuto de Sêneca como filósofo. Em relação a apontada peculiaridade de pensamento

senequiano, entendemos que se ele não se encaixa nos moldes de um estoicismo “clássico”

isso se deve, em grande parte a adaptação de sua Stoa ao regime Imperial. Tal adequação é

o que mais importa em um estudo diacrônico do da filosofia do Pórtico, onde devemos

entender de que maneira as transformações do estoicismo favoreceram o fortalecimento do

poder pessoal e a idealização política dos césares que se acentuava cada vez mais em sua

jornada do Principado ao Dominado, que se instalaria no Baixo Império. Diante disso

destacaremos a seguir as opiniões de pesquisadores modernos a respeito de Sêneca e de sua

atuação durante o governo de Nero.

Para Grimal (s. d.), Sêneca via a si mesmo como um estóico autêntico que, no

entanto reservava para si certa independência e criatividade para lidar com a filosofia do

Pórtico. Vemos nessa constatação a presença do espírito prático do romano Sêneca, que

sabia que o pensamento da Stoa deveria adaptar-se às demandas políticas e sociais da

época. O autor destaca também que o sábio cordovês, ao se tornar conselheiro de Nero

imitava Zenão, que também orientou governantes. Esse dado revela um resgate da Stoa

antiga, que apoiou os monarcas helenísticos e que no Império serviu para justificar o poder

absoluto dos césares após o hiato em que a filosofia favorecia a manutenção do poder

oligárquico em Roma. Segundo Grimal (s. d.) é com Sêneca que esse novo aspecto do

estoicismo aparece na Urbe, uma exaltação da figura do sábio em face da ausência da

possibilidade da atuação política nos moldes republicanos, o que fará com que ele assuma

o papel de conselheiro quando vislumbrou na juventude de Nero a possibilidade de

reformar o Principado e extirpar traços de tirania que se fizeram presentes no governo de

Cláudio. Seu projeto era o de um imperador caracterizado pelas virtudes e de qualidades

divinas, fracassado com Nero tal ideal continuou ecoando em Roma e serviu de exemplo

para o desenvolvimento da instituição imperial sob o governo ideal de um vir bonus a

partir de Trajano e seus sucessores.

9

A atuação senequiana no cenário político romano se deu principalmente pelo

filósofo ter sido o preceptor de Nero nos primeiros anos da juventude deste, estendendo

seu trabalho como conselheiro do jovem príncipe durante alguns anos de seu governo do

império. A obra que caracteriza esse período e expressa o pensamento de Sêneca em

relação à prática política do principado é o De Clementia, escrito por volta de 55-56 d. C.,

consiste em uma obra de três livros da qual conservamos o primeiro e parte do segundo6,

na qual é feito elogios a Nero no contexto dos primeiros anos de seu governo, o

quinquenuim neronis (HARVEY, 1987, p. 151). Para Braren (1990), o De Clementia atesta

o engajamento político do filósofo estoico em consonância com seu tempo, pois, afirma,

“neste tratado Sêneca apresenta a cristalização de suas ideias políticas e uma resposta ao

diagnóstico das carências que encontrou em seu momento histórico-político” (BRAREN,

1990, p. 13). O objetivo da obra é de conciliar a necessidade do poder absoluto e

autoritário, porém humanizado por uma virtude, a clementia, que possibilita o exercício do

poder de acordo com a lei da natureza segundo a concepção do Pórtico, sem corrupção,

portanto. O De Clementia propunha ainda uma restauração de certos aspectos do mos

maiorum e um restabelecimento da divisão de poder entre o príncipe e a cúria, em suma,

um retorno moderado de algumas instituições republicanas, principalmente em relação à

autoridade do Senado. Enfim, Braren (1990) destaca que a ênfase de Sêneca na clementia é

a busca de

um conceito de poder segundo a filosofia política estoica: a autoridade, que domina o povo, retendo suas tendências anárquicas, contribuindo para ordenar o mundo, provém de sua própria grandeza e poder, que, por sua vez, pertencem aos deuses (BRAREN, 1990, p. 21).

Pelo exemplo da filosofia e pelo engajamento político de Sêneca e de sua obra,

especialmente o De Clementia, percebemos que o processo absolutista do poder imperial

exigia reacomodações constantes que, mormente, passavam por concessões de poder ao

ordo senatorius e retornos controlados a algumas práticas políticas da República. Todavia,

nem todos os príncipes harmonizavam seu governo com a moderação do poder político,

que encontrava no Pórtico sua forma de expressão mais difundida durante o Alto Império.

Assim foi sob a dinastia Flávia, conforme veremos adiante.

6 Em Braren (1990), na introdução do Tratado sobre a Clemência há uma discussão esclarecedora acerca da situação e das disposições propostas para o texto latino do De Clementia.

10

O estoicismo sob os Flávios

De acordo com André (1994, p. 23-24) durante a dinastia Flávia nas relações de

amicitia foi onde os adeptos da Stoa se organizaram contra a tirania imperial,

especialmente sob Domiciano, todavia não foi apenas no governo do último Flávio que o

Pórtico esteve em conflito com o poder. Desde a crise de que sucedeu à queda de Nero a

filosofia estoica se organizou junto aos altos círculos senatoriais como um grupo de

oposição, mas esta postura não indicava aspirações verdadeiramente republicanas,

possibilidade que a poucos interessava, segundo André (1994, p. 35). Os estoicos

reivindicavam a libertas, pedra fundamental do Principado, que seria garantida aos

cidadãos por um príncipe virtuoso, diante disso, tendo em vista que os filósofos do Pórtico

eram ciosos das virtudes dos homens políticos, percebemos de que maneira nascia a

oposição da Stoa aos imperadores que não estivessem de acordo com suas diretrizes morais

(VENTURINI, 2011, p. 179). Esta atitude estoica em relação ao Principado pode ser

sentida de forma aguda principalmente sob os imperadores Flávios, conforme afirma Gill

(2006, p. 37). De fato, Vespasiano, por sua origem itálica e não aristocrática e por sua

ascensão militar “não gostava dos pretensiosos nem daqueles que não tinham outros

méritos senão os da fortuna ou dos títulos, nem dos ideólogos que confundiam política e

filosofia estoica” (ENGEL, 1978, p. 60). Verificamos assim que, apesar da Stoa ter se

adequado ao pragmatismo moral romano, as orientações do Pórtico não eram capazes de

satisfazer prontamente as necessidades políticas que o desenvolvimento do Principado

impunha, não podia tampouco guiar as intenções de um imperador como Vespasiano que,

alcançando sua posição pela força, não poderia suportar a presença de uma filosofia que

pregava a aceitação da lei da natureza, pois a crise de 69 d. C. e a intervenção das legiões

podiam ser compreendidas como um golpe ao ideal de vivere naturae, e se devido às

conjunturas as soluções se reduziram a uma opção que não satisfazia os filósofos o

rompimento era inevitável. Nesse sentido, o caso de Helvídio Prisco, apontado por André

(1994, p. 37), é exemplar. Se a implantação de uma nova dinastia era coerente com a

necessidade de prevenir possíveis conturbações era, por outro lado, contrário ao ideal que

11

exigia a escolha de um imperador sábio segundo os padrões estoicos, Helvídio Prisco que

defendia a segunda posição pagou com sua vida por divergir do imperador.

No governo do sucessor de Vespasiano, Tito, seu filho mais velho, apesar de

algumas reprovações que mancham os elogios ao seu governo (ENGEL, 1978), não temos

notícias de grandes atritos com o Pórtico. Todavia, o hiato da época de Tito pode ser

sentido de forma mais aguda devido à perseguição que seu irmão, Domiciano, empreendeu

contra os estoicos. As observações acerca governo do último dinasta Flávio mistura elogios

a uma administração profissional e horror em relação à crueldade e tirania, principalmente

contra os senadores. Como a gestão racionalizada do Estado beneficiava majoritariamente

as camadas baixas e médias e os testemunhos que nos alcançaram são frutos dos letrados

da alta aristocracia romana temos em geral testemunhos negativos sobre Domiciano.

Apesar dessas parcialidades e das diferenças de concepção entre política e filosofia

apontadas no período de Vespasiano não há como relativizar completamente a perseguição

empreendida pelos Flávios contra os pesadores do Pórtico. Finalizando a dinastia como seu

pai a começara, em 93 d. C. Domiciano expulsou os filósofos estoicos ao redor dos quais a

aristocracia se reuniu, descontente com as desconfianças e perseguições do príncipe

(ENGEL, 1978, p. 65).

Nessa época de terror adeptos do Pórtico somente poderiam sobreviver em Roma

com discrição (HARVEY, 1987, p. 403), assim, no mesmo ano em que os filósofos eram

afastados Plínio, o Jovem assumia sua primeira pretoria (BOWDER, 1980, p. 211), assim o

panegirista figura como um exemplo pontual das oscilações a que o Pórtico submeteu-se

sob a alternância das políticas dos césares. Isso fica mais evidente quando observamos a

liberdade de expressão que gozou sob Trajano, principalmente na escrita do Panegírico,

pois mesmo em um discurso político que reprova os antecessores e elogia o príncipe no

poder podem surgir interpretações ambíguas que atinjam o césar governante. A

aproximação aos interesses senatoriais, imbuídos da ética estoica, permitiu na época de

Trajano a liberdade aos adeptos do Pórtico.

O estoicismo sob os Antoninos

De acordo com Engel (1978, p. 72-73) o início da dinastia Antonina, como Nerva e

Trajano inaugurou um novo período de entendimento entre a cúria e o príncipe, que Homo

12

(1950) chamou de uma época de restauração senatorial. Foi concedida mais liberdade aos

interesses e responsabilidades do ordo senatorius, que readquiriu parte de seu prestígio

perdido e o príncipe obedeceu a moderatio e não exerceu a magistratura máxima do

consulado por vezes além do limite considerado adequado. Esse comportamento

concessivo tinha por trás de si a realidade de um regime de absoluta centralização, mas ao

permitir o funcionamento de algumas instituições republicanas o príncipe demonstrava

sabedoria e respeito para com as leis da natureza que se confundia com a noção de mos

maiorum, que tradicionalmente garantia o perfeito funcionamento do Estado. Apesar do

testemunho do Panegírico, que sublinha o antagonismo entre Domiciano e Trajano,

Blázquez (2003) e Cizek (1983) afirma que em parte houve certa continuidade nas

políticas adotadas. Diante disso podemos considerar que a aprovação presente na obra de

Plínio tenha decorrido da conciliação entre o Senado e o príncipe e ao alinhamento às

diretrizes do Pórtico, que podem ser sentida na propagando em torno da designação do

sucessor no âmbito mais amplo do império e por meio da adoção, o que atendia aos ideais

estoicos da escolha de um governante sábio e aos valores ancestrais, além disso

Disposições mais humanas foram a proibição de condenação por contumacia; redução da prisão preventiva; proibição das denúncias anônimas, e a condenação em casos discutíveis, todos aspectos que denotam um caráter muito humano em Trajano. Nestes pontos percebe-se a influência de certos juristas de tendência estoica como L. Neratio Prisco e P. Juvencio Celso (BLÁZQUEZ, 2003, p. 166).

A convivência pacífica entre a cúria e o príncipe e a influência da Stoa se unem ao

fato de que o Senado estava cada vez mais depurado de elementos excessivamente

conservadores da antiga nobreza da Urbe e da Itália, sua composição respondia então à

representação política mais ampla dos cidadãos eminentes das províncias do império. Sem

grandes tensões políticas e com um principio de sucessão aceitável, oposições

irreconciliáveis “de tipo estóico e à moda de Helvídio Prisco” (ENGEL, 1978, p. 73) se

tornaram improváveis sob Trajano. O contraste entre a atitude dos Flávios e de Nerva e

principalmente Trajano em relação à oposição dos filósofos, diante do que foi exposto,

deve ser entendido então do ponto de vista da aproximação ou distanciamento das

orientações estoicas que no período buscavam balizar o comportamento moral dos homens

políticos. O fato de que, conforme Alföldy (1987, p 208), somente os que compreendiam

os mecanismos do governo imperial, adeptos de correntes filosóficas, em que se inclui

13

necessariamente o Pórtico, fizeram oposição ao regime, porém com sucesso exíguo,

demonstra a preocupação que reprovação moral devia causar entre os césares que

estabeleciam políticas surdas aos apelos éticos da cúria e da Stoa.

O apoio do estoicismo possibilitou que os Antoninos governassem com um nível de

poder absoluto que fora tentado antes, porém sem sucesso pelos césares anteriores, que não

souberam aproveitar as vantagens que a filosofia do Pórtico podia oferecer. Grimal (1981,

p. 55-59) afirma que os sucessores dos Flávios tiveram êxito em remeter as origens de seu

poder à esfera celestial, sendo, inclusive, adorados como soberanos divinos. A associação à

Stoa lhes permitiu demonstrar em sua propagando ideológica que a divinização não era um

ato de orgulho, como fora sob o Júlio-Cláudios, mas a afirmação das virtudes do príncipe

que os tornava semelhante aos deuses. No plano político e cultural do império a integração

das províncias correspondia à concepção estoica do universo, um cosmos em que todas as

partes se unem ao logos pela simpatia universal. O império romano era bilíngue,

comerciantes, pensadores, administradores e soldados nas províncias do Oriente e Ocidente

se faziam entender em latim ou grego, por isso é significativo que Marco Aurélio, exemplo

mais bem acabado de imperador estoico, tenha escrito suas Meditações na língua helênica.

Governando o império sob os primeiros sintomas que eclodiriam na crise do século

III, principalmente o rompimento do limes pelas tribos germânicas, Marco Aurélio

encontrou no estoicismo uma maneira de lidar com as questões que afligiam seu governo.

Esta característica do imperador filósofo exige que o observemos entre os demais

Antoninos, pois, se na época de Trajano a filosofia do Pórtico voltava a orientar a conduta

moral do príncipe, com Marco Aurélio ela era uma maneira de encontrar respostas para as

aflições pessoais do césar. Ascendendo ao poder em 161 d. C., após a morte de Antonio

Pio (BOWDER, 1980), Marco Aurélio representava a realização do sonho de Platão, pois

nele um filósofo governaria (ULLMANN, 1996, p. 80). Tendo adotado a filosofia do

Pórtico na juventude Marco Aurélio nela perseverou durante toda sua vida.

O trono imperial não alterou o seu estilo de vida. Continuou a ser simples, acessível, alma reta e coração magnânimo. Não se deixou seduzir pela volúpia da glória. Os deveres cumpria-os de modo irrepreensível, orientando-se pelas máximas dos sábios estoicos (ULLMANN, 1996, p. 81).

14

Se Marco Aurélio não foi um grande contribuidor da doutrina estoica foi, segundo

Ullmann (1996, p. 87), seu mais fiel praticante. O mesmo autor ressalta que examinava

sua própria consciência e do alto de seu poder absoluto prevenia-se para não se entregar

aos abusos, comodidades e prazeres que poderiam seduzi-lo, demonstrava assim

capacidade para observar as orientação do Pórtico e distinguir o que era bom daquilo que

era preferível. Em relação ao respeito às tradições romanas provou estar de acordo com a

teologia estoica, pois permaneceu fiel aos cultos públicos. Ullmann (1996) destaca que, ao

observar seus deveres antes de seu interesses pessoais, Marco Aurélio obedecia à Stoa e

os valores ancestrais do homem político traduzidos na noção de virtus. Entendendo que

sua posição a frente do império era um privilégio que lhe fora legado pelos deuses ele não

deixava de conceber a si mesmo como parte da comunidade humana unida pelo logo, e

pautava seu comportamento pela gravitas e iustitia. Enfim, ressaltando, junto com Brun

(1986, p. 27), o humanismo universalista de Marco Aurélio, notamos o quanto o

estoicismo era significativo para um imperador que precisava zelar pela manutenção de um

império multicultural, reforçando sua coesão para fazer frente às graves ameaças externas

que se faziam sentir. Apesar de todo esse panorama favorável, uma questão importante

permanece, pois o testemunho de seu ao apego ao estoicismo é dele próprio. Todavia,

mesmo sem podermos medir a sinceridade das Meditações temos em seu interesse em

expressar suas preocupações pessoais e de administrador do império a partir da Stoa a

certeza da penetração e da importância que essa filosofia gozava junto às questões morais e

políticas do Principado.

O pensamento estoico prossegue em Roma após Marco Aurélio rumo a um

humanismo que convergiria para o cristianismo, porém depois do penúltimo Antonino a

Stoa não produz mais nenhum grande nome. Além disso, o regime transmuta-se de

Principado para Dominado, e uma filosofia moderadora do poder e que favorecia a

conciliação entre a cúria e o príncipe não mais importava quando se desnudou

completamente o caráter absoluto do poder imperial, fundado mais do que nunca no poder

militar e cada vez menos no entendimento com o Senado.

Considerações finais

15

A substituição da República pelo Principado recoloca a Stoa diante de questões

importantes. Nos circuli os debates em torno do pensamento estoico fundamentavam as

críticas aos imperadores que exerciam seu poder de maneira tirânica, afastando-se

demasiadamente dos modelos republicanos ainda vivos e que representavam nas mentes

senatoriais o exercício da vida política segundo a natureza e nos moldes delineados pelo

mos maiorum. Quando o imperador comportava-se de maneira coerente com os valores

ancestrais e com as diretrizes do Pórtico os adeptos elogiavam suas virtudes e ilustravam

sua propaganda com os ideais estoicos, justificando sua posição política, aproximando-o

do panteão divino e transformando-o em pater de todo o império, figura integradora da

comunidade sobre a qual convergiam os valores ancestrais e os ideais do Pórtico a respeito

do logos universal.

Essa dualidade de situações colocou os adeptos do estoicismo em condições

instáveis durante o Alto Império. De conselheiros imperiais sob o governo de Augusto a

perseguidos pela dinastia dos Flávios os estoicos do período imperial podem ser ilustrados

pela figura de Sêneca. Vivendo as duas realidades o filósofo cordovês tentou atuar junto ao

imperador Nero para reformular o Principado e livrá-lo das degenerações através das

virtudes, porém a tirania do príncipe frustrou suas intenções levando-o ao suicídio. Nesse

contexto incerto, no qual muitas vezes a defesa intransigente das diretrizes do Pórtico

poderiam acarretar consequências funestas, a sobrevivência dos adeptos da Stoa não raro

dependia de sua discrição, principalmente para aqueles que aspiravam as altas

magistraturas, pois sob o Principado uma carreira política de sucesso dependida, acima de

tudo, do apoio do príncipe. Neste caso a figura modelar é Plínio, o Jovem, que gozou dos

favores de Domiciano para pular etapas do cursus honorum e foi prudente, compartilhando

suas críticas ao poder apenas aos que mais confiava. Sua conduta ponderada favoreceu sua

maior ascensão sob Trajano como ideólogo do césar, em cujo governo alcançou o

consulado e teve liberdade para expressar em um discurso público, o Panegírico, críticas à

conduta moral dos príncipes anteriores e conselhos ao imperador.

A importância das orientações estoicas na construção de um poder imperial

legítimo em consonância com os valores apreciados pela aristocracia senatorial pode ser

ilustrada de duas formas muito contundentes. A primeira diz respeito às perseguições

empreendidas por alguns imperadores contra os filósofos e adeptos das doutrinas do

Pórtico, tais atitudes devem ser entendidas como medidas preventivas de um poder

16

absolutamente maior, que controlava as legiões, a guarda pretoriana e tutelava o Senado,

contra reprovações morais de setores descontentes da aristocracia imperial. A segunda,

tomando as ideias da Stoa de forma mais positiva, contempla a penetração do estoicismo

entre os membros da elite romana como a melhor maneira de atender as demandas morais

que esses grupos exigiam dos governantes, dessa forma temos, enfim, com Marco Aurélio

o exemplo mais bem acabado da busca do ideal de homem político a partir do Pórtico. O

penúltimo imperador Antonino, ao expressar-se em suas Meditações por meio da Stoa,

mostrou-nos o quanto a preocupação pessoal do homem político do Alto império

encontrava no estoicismo a forma mais adequada e aceita pelos romanos para traduzir suas

preocupações em relação à condução do império.

REFERÊNCIAS:

ALFÖLDY, Géza. Historia social de Roma. Madrid: Alianza, 1987.

ALGRA, Keimpe. Teologia estoica. In: INWOOD, Brad. Os estoicos. São Paulo: Odysseus, 2006.

ANDRÈ, Jean-Marie. Les écoles philosophiques aus deuz preimiers siècles de l’Empire. ANRW. Berlim/New York (Dijon): De Gruyter, II, 36.1: 8-77, 19, 1994.

BLÁZQUEZ, José María. Trajano. Barcelona: Ariel, 2003.

BOWDER, Diana. Quem foi quem na Roma antiga. São Paulo: Art Editora, 1980.

BRAREN, Ingeborg. Introdução do Tratado sobre a clemência. In: SÊNECA. Tratado sobre a clemêmcia; SALÚSTIO. A conjuração de Catilina e A guerra de Jugurta. Petrópolis: Vozes, 1990.

BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.

CIZEK, Eugen. L’époque de Trajan: circonstances politiques et problèmes idéologiques. Paris: Les Belles Letres, 1983.

ENGEL, Jean-Marie. O Alto Império. In: ENGEL, Jean-Marie; PALENQUE, Jean-Rémy. O império romano. São Paulo: Atlas, 1978.

GILL, Christopher. A Escola no período imperial romano. In: INWOOD, Brad. Os estoicos. São Paulo: Odysseus, 2006.

GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 2008.

______. La civilisation romaine. Paris: Flammarion, 1981.

17

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica: grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

HOMO, Léon. Les instituitions politiques romaines: de la cité à l’état. Paris: Albin Michel, 1950.

MENDES, Norma Musco. O sistema político do Principado. In: MENDES, Norma Musco; SILVA, Gilvan Ventura da. Repensando o império romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro/Vitória: Mauad/EDUFES, 2006.

ROULAND, Norbert. Roma, democracia impossível?: os agentes do poder na urbe romana. Brasília: UNB, 1997.

SEDLEY, David. A Escola, de Zenon a Ário Dídimo. In: INWOOD, Brad. Os estoicos. São Paulo: Odysseus, 2006.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Estoicismo romano: Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. Estoicismo e imperium: a virtus do homem político romano. Acta Scientiarum. Education, v. 33, n. 2, p. 175-181, 2011.