aspectos da produção cultural brasileira

download aspectos da produção cultural brasileira

of 23

Transcript of aspectos da produção cultural brasileira

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    1/23

    ASPECTOS DA PRODUOCULTURAL BRASILEIRA

    CONTEMPORANEA

    TNIA PELLEGRINI*

    "Voc sempre pergunta pelas novidades daqui deste serto, e fi-nalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendoque agora temos aqui uma mquina imponente, que est entusiasmandotodo mundo. Desde que ela chegou, no me lembro quando, quase notemos falado de outra coisa. "

    (J. J. Veiga, A mquina extraviada)

    Introduo

    Definitivamente, hoje no mais novidade dizer, vivemos num mundode imagens. Nunca foi to forte a sensao de dj vu, de j ter estado numlugar quando l se chega pela primeira vez. Todas as paisagens parecem-nos visitadas, todas as faces conhecidas, todos os caminhos trilhados, todasas histrias contadas e todos os quadros j vistos: globalmente, tudo sereduz a uma imagem transmitida pela TV ou a um dado disponvel nocomputador.

    O simples ato de ver um filme ou de assistir televiso, de observar aforma como as imagens mantm um domnio absoluto sobre qualquer dado

    ou informao vem suscitando interrogaes relevantes sobre arepresentao artstica contempornea. Movimento, visibilidade,simultaneidade de tempos e espaos so caractersticas da imagem que,desde o surgimento da fotografia - e, depois, do filme -, comearam ainvadir as manifestaes artsticas, tais como a pintura, a msica, aliteratura, enquanto tambm se apoderavam de muitos dos seus recursos;hoje, no final do sculo, quando os processos de reproduo e difusoparecem ter atingido o apogeu, novas e instigantes questes se colocam.

    Partindo do princpio de que, segundo Walter Benjamin, as formas depercepo humana so historicamente determinadas, entre outras coisas,pelosfatos tcnicos de sua poca(1), parece lgico pensar que o horizontetcnico contemporneo, pleno de imagens evanescentes proliferando ad

    Bolsista do CNPq junto ao Departamento de Sociologia da Universidade Estadual Paulista. campus de Araraquara.

    1. Ver "O autor como produtor" e "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica", in Obras escolhidas J, So

    Paulo, Brasiliense, 1986.

    CRTICA MARXISTA . 69

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    2/23

    infinitum, no s vem transformando as formas de perceber o mundo comoas formas de represent-lo.

    O elemento mais marcante percorrido pelas modernas tcnicas de repro-duo, depois do filme, foi o aparecimento da televiso. E j banal associa-

    rem-se seus efeitos quantificao de informaes, queda de qualidade daproduo cultural, diminuio do hbito de leitura, banalizao daliteratura. Seja qual for o grau de verdade dessas afirmaes, o que importareter aqui, por enquanto, a TV como smbolo de um perodo especfico davida cultural brasileira, marcado por profundas transformaes; a TV comodado mais visvel da nossa modernizao, fundamento da nossa indstriacultural, ponta-de-lana do nosso ingresso numa cultura que se pretendemundializada.

    Mas o que realmente simboliza a TV, na intrincada rede de relaesentre a percepo do mundo e sua representao artstica? a essa perguntaque tentaremos responder e, para isso, importante destacar desde logo que,alm dos aspectos culturais, envolvem-se nessa rede, como fatores

    determinantes, coordenadas histricas, econmicas e sociais.

    Coordenadas

    Pode-se dizer que o aparecimento da televiso brasileira, nos anos 50,visto de hoje, j se perde num idlico passado de seres familiares em voltado rdio e de salas de cinema lotadas nos sbados noite. A visocontempornea introduz um toque nostlgico, que j se percebe como marcade poca.

    O termo contemporneo, aqui, refere-se a um perodo que assiste aoesvaziamento gradativo dos cinemas, ao surgimento das rdios FM,

    televiso ocupando todos os espaos pblicos e privados, expanso domercado fonogrfico, ao crescimento do mercado editorial, definitivaprofissionalizao do escritor, introduo dos computadores. Todas essasmodificaes perseguem uma mesma lgica, cujo ponto de partida pode sersituado no incio do regime militar, quando ento aos poucos vai se criandouma conjuntura poltico-econmica que j expresso de um novo tipo dearticulao com o mercado mundial.

    As implicaes disso para o processo cultural dizem respeito importao de modernas tcnicas e esquemas de organizao produtiva, oque passa a exigir cada vez mais um reaparelhamento do novo mercado debens culturais, dentro do qual a literatura se inclui, na busca de crescimentoe sofisticao.

    Esse crescimento ocorre de forma diferenciada, de acordo com cadasetor, mas sua evoluo e constante consolidao esto vinculados ao fatode que a instaurao do Estado militar aponta, no nvel econmico, para umaprofundamento das tendncias j verificadas no perodo anterior, dogoverno Juscelino, ou seja, a paulatina introduo do Brasil no circuito do

    70 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    3/23

    capitalismo avanado. Este vai trazer novas formas de organizao dotrabalho em nvel internacional (a instalao de multinacionais), uma novadinmica das operaes bancrias internacionais (que possibilitou ocrescimento acelerado da nossa dvida externa), novas formas deindustrializao e automao (incluindo o desenvolvimento e consolidaoda rndia eletrnica).

    Periodizar um fenmeno dessa natureza requer distinguir entre ainstalao de vrias precondies para o funcionamento da nova estrutura eo momento em que elas se combinam j num sistema totalmenteformalizado. Dessa maneira, pode-se dizer que os militares criaram ascondies necessrias para o funcionamento do capitalismo brasileirosegundo uma outra lgica: a da internacionalizao do capital, ou, segundorecente terminologia, a da globalizao dos mercados.

    No contexto mundial do desenvolvimento capitalista, as implicaeseconmicas do processo cultural dizem respeito s caractersticas do que

    hoje j se chama ps-modernidade, inclusive no Brasil; melhor dizendo,esse fenmeno refere-se emergncia de novos traos formais na vidacultural, que correspondem ao surgimento de um novo tipo de vida social ede uma nova ordem econmica, chamados tambm de sociedade ps-industrial, sociedade de consumo, capitalismo tardio etc.

    Fredric Jameson considera que o capitalismo tardio (termo para elemais adequado, entre todos esses citados) constitui a mais pura forma docapital surgida at ento, "uma prodigiosa expanso do capital em reas atento no mercantilizadas''(2), dentro de uma periodizao em que apontatrs momentos subseqentes, cada um deles marcando uma expansodialtica em relao ao anterior: o capitalismo de mercado, o capitalismomonopolista ou imperialista, e o atual, multinacional ou tardio,

    caracterizado por um incrvel salto tecnolgico (eletrnica, informtica,energia nuclear) - a "terceira revoluo industrial" - e que vemconseguindo eliminar, no centro, os enclaves de qualquer organizao pr-capitalista. Contudo (e apesar de tudo), necessrio enfatizar que, em setratando de Brasil, a especificidade dos movimentos enformadores denossa economia e sociedade, se no so outros, pelo menos funcionam deforma diferente, com dinmica e tempos diversos, visto estarmossabidamente na periferia(3). Isso tem conseqncias bvias no estabeleci-

    2. Fredric, Jameson. Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism, Durham, Duke UniversityPress, 1991, p. 35. O autor prefere o termo capitalismo tardio (late capitalism), que indica continuidadeem relao quilo que o precedeu, em vez de sociedade ps-industrial, que indica uma ruptura queefetivamente no houve.3. H autores que, com base nas recentes discusses a respeito da globalizao de mercados emundializao da cultura, preferem considerar superados ou pelo menos postos em questo binmioscomo centro e periferia, nacional e internacional. Apontam um movimento centrfugo de organizaodos mercados e da cultura. numa vasta rede sem centro difusor e/ou decisrio. A propsito, ver Octvio

    CRTICA MARXISTA . 71

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    4/23

    mento de nossas prprias coordenadas culturais, que no podemsimplesmente reproduzir aqui dentro (por maior que seja a hegemonia docentro) os parmetros de fora.

    A despeito de hoje fazermos parte de uma "comunidade cultural planet-

    ria", que praticamente desconhece fronteiras nacionais, talo poder da mdia,no se pode ignorar a convivncia, aqui, de misria e sofisticaotecnolgica, de atraso e progresso, das desigualdades regionais, gerando umat hoje presente descompasso que, como frisa Roberto Schwarz, elementoformador importante da nossa vida cultural, desde as origens(4).

    Esse descompasso, de conotao temporal (pois se trata de diferentesestgios de desenvolvimento, de diferentes temporalidades convivendo nummesmo presente), soma-se a outro, mais espacial na aparncia, conceituadopelo mesmo autor: o das "idias fora do lugar". Analisando o liberalismoeuropeu aqui introduzido no perodo escravista, R. Schwarz considera-o"fora de lugar", por no ser ainda adequado realidade social e poltica dopas(5). Enfatiza assim o hiato entre inteno e realizao, a posio estranha

    de idias aqui chegadas antes do desenvolvimento das foras scio-eco-nmicas que as tinham gerado na Europa, ou seja, enfatiza o descompasso,mais uma vez.

    Esses dois conceitos parecem ser, ento, as duas faces de uma mesmamoeda: a idia de que a vida cultural brasileira sempre foi pautada pelatentativa de harmonizar o nacional atrasado e o estrangeiro adiantado,simbolizando a vontade de se sentir avanado sem as condies materiaispara tanto. A histria da nossa literatura tem muito a ensinar sobre isso,desde sempre.

    A insero do Brasil no capitalismo tardio, ainda que na periferia, cria,num primeiro momento, a iluso de que esse descompasso finalmente vaideixar de existir, na medida em que, a partir de ento, as mesmas idiaspassam a circular quase ao mesmo tempo em quase todo lugar, veiculadaspela mdia, num processo de sincronizao nunca alcanado antes. Asincronia das idias, porm, no elimina a realidade do atraso em relao aochamado Primeiro Mundo, nem as desigualdades regionais, embora procureneutraliz-las mediante um discurso homogeneizante. Esse contedo velhoconhecido, na multiplicidade de suas formas. O que mudou foi o medium: odiscurso eletrnico agora muito mais poderoso.

    De maneira geral, poderamos afirmar que o perodo que se inicia em1964 constitui um momento de importantes reformulaes tambm para o

    Ianni,A sociedade global, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1993, e Renato Oniz,Mundializao e cultura, SoPaulo, Brasiliense, 1994.

    4. R. Schwarz, "A Carroa, o bonde e o poeta modernista", in Que horas seio?, So Paulo, Duas Cidades, 1987.

    5. R. Schwarz,Ao vencedor as batatas, So Paulo, Duas Cidades, 1977.

    72 .ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    5/23

    sistema cultural, no sentido de sua organizao em termos empresariais,sendo que, a partir da "abertura" de 1979, pode-se constatar que j existetoda uma nova estrutura em funcionamento e em constante expanso.

    Assim, a periodizao desse trabalho tem marcos precisos no incio: osgovernos militares dos anos 60 e 70; a dcada de 80, em bloco, coloca-se

    como sua conseqncia. Escolher fechar com ela o trabalho apenas umaquesto de mtodo, pois as transformaes ainda esto em processo.No que diz respeito sobretudo aos anos 70, o desenvolvimento do

    mercado de bens culturais coincide com a elevao do padro de vida dascamadas mdias (propiciada pelo clima do "milagre brasileiro"). Almdisso, esse desenvolvimento carregou-se com toda uma implicaoideolgica que se expressava na censura: esta, mal ou bem, representava otipo de orientao que o Estado pretendia conferir cultura e acaboufuncionando como uma espcie de emblema da poca, por meio do qualseria possvel interpretar toda a produo cultural, como se interpreta umcdigo cifrado, acessvel apenas aos iniciados.

    Entretanto, a censura no agiu de modo uniforme, o que significa que

    seus efeitos tambm no o foram; foi seletiva: impedia um tipo deorientao, mas incentivava outro. Assim, textos especficos (de teatro,msica, literatura, cinema) foram censurados, mas no a produo geraldesses bens, que cresceu e se solidificou, amparada inclusive pelo interessede um pblico ampliado nesse perodo.

    Alm do mais, houve fases diferentes na sua vigncia: o golpe de 64tentara constranger a criao artstica, sem consegui-lo num primeiromomento, porque ela vicejava forte entre uma intelectualidade preocupadacom seus aspectos sociais, voltada para um iderio de esquerda. Osmecanismos de estrangulamento cultural, ento, constituam ainda umaespcie de movimento que procurava criar bases slidas para o poderrecm-instaurado. Pode-se afirmar que ainda havia relativa flexibilidade emuitas contradies. O verdadeiro golpe para a cultura, sabe-se, veiodefinitivo com o AI-5(6).

    Quando comeam a se fazer sentir as primeiras crises oriundas dofracasso do "milagre", o Estado, alm de tentar recuperar o terreno perdidodiante da insatisfao popular, da classe mdia e do empresariado,estabelecendo a poltica de distenso do governo Geisel, comea tambm ainvestir no terreno cultural. Passa a intervir diretamente, criando umaPoltica Nacional de Cultura, em 1975. Extremamente contraditria, pois sepropunha a incentivar mediante subvenes, ao mesmo tempo que coibiacom a censura, tal Poltica refora a necessidade de organizao da culturaem moldes empresariais, em que a profissionalizao e a conquista do

    mercado so pontos cruciais.

    6. Ver R. Schwarz, "Cultura e poltica 1964-1969", in Opai de famlia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

    CRTICA MARXISTA . 73

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    6/23

    O produto cultural vai cada vez mais acentuando seu carter demercadoria e reacendem-se discusses sobre at que ponto ele imune sinfluncias do dinheiro. Assim, citando mais uma vez uma repetida - porquefeliz - afirmao: "(...) por opes de carter ttico ou no, o fato que oEstado, seja pela sua 'flexibilidade' ideolgica, seja pelo investimento naprecariedade material que rege o trabalho cultural no Brasil, conseguetomar-se o grande mecenas da cultura brasileira nos anos 70"(7).

    Ento, a preocupao em saber se a censura teve um papel determinantena produo cultural da poca, sem ser equivocada - pois a censura tambm elemento constitutivo -, atinge apenas a superfcie de uma questo bemmais profunda: o que na verdade ocorre, a partir de 64, a gradualadequao do artefato cultural ao circuito nacional e internacional damercadoria.

    A grande reformulao pela qual passa o processo cultural, nesses anos,confere-lhe, ento, feies especficas. Uma delas parece ser uma espcie denovo ufanismo, assentado na idia de que (enfim!), apesar da censura,atingimos a "maioridade" da indstria cultural e ingressamos na"modernidade-mundo" (para usar um termo caro a Renato Ortiz): um

    sentimento de superao do descompasso bem fundado nas aparncias.Se os anos 70 foram propcios criao de condies para que uma novaestrutura se instalasse, os anos 80 vo assistir ao seu funcionamento em largaescala, com todas as conseqncias.

    O horizonte poltico-cultural do final dos anos 70 introduzira inmerasquestes novas, geradas j nas novas condies de produo, isto , aconsolidao do mercado de bens culturais, alm do papel do Estado comomecenas implcito ou explcito. Tais questes diziam respeito sobretudo sposies divergentes no tocante s relaes entre os intelectuais e o poder,expressas nas discusses a respeito da "cooptao", termo ento bastanteusado. No banco dos rus, aqueles intelectuais e produtores de cultura queacabavam optando por formulaes culturais "neutras", socialmente

    asspticas, buscando o "intimismo sombra do poder", ou seja, nodiscutindo mais os fundamentos desse poder cuja sombra estavam livrespara cultivar a prpria "intimidade"(8). Choveram bolsas, empregos,financiamentos e facilidades para publicaes, de acordo como o beneplcitodo poder estatal aos que no se mostrassem "indesejveis". Para estes,desemprego e censura, representada pela impossibilidade de circulao deseu trabalho artstico ou terico.

    Correndo paralela a essa discusso, surgem algumas formas alternativasde produo cultural, como, por exemplo, a poesia dita marginal e os grupos

    7. H. B. Hollanda, e M. A. Gonalves, Anos 70: Literatura. Rio de Janeiro, Ed. Europa, 1980, p. 37. 8. Ver C. N.

    Coutinho."Cultura e democracia no Brasil," in Encontros com a Civilizao Brasileira. N 17. nov. 1979.

    74 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    7/23

    experimentais de teatro ou cinema, todos ainda procurando criar umcircuito de produo que passasse ao largo do j slido mercado cultural edos centros de poder.

    Nos anos 80, essas questes so eliminadas pela lgica implacvel dosistema mercantil e pela dinmica da mdia. A palavra "cooptao" logocaiu em desuso (sem que desaparecesse a prtica), levada de roldo nasreclamaes de "patrulhamento ideolgico". A poesia marginal encontrou

    uma poderosa editora, ampliou seus leitores, profissionalizou-se, vestiu"temo e gravata", segundo um dos integrantes; os grupos experimentais deteatro aos poucos desapareceram ou foram incorporados pela TV.

    J no governo Figueiredo, o quadro de relaes entre cultura e poderparece definido em bases solidamente assentadas: com algumas portasabertas, os intelectuais e produtores de cultura puderam sentir que seampliara o espao para a produo. S que esse espao j estavadimensionado pelos parmetros da indstria cultural, sendo que o fatordecisivo dessa nova dimenso fora a simbiose operada entre a mdia e omercado. Apagando limites, esbatendo nuances, estabelecendo umaindiferenciao completa entre o que cultura e o que mercadoria(9),difundiu-se uma esttica "internacional-popular", fundada na proliferaodas imagens, via televiso: a do espetculo.

    O problema da cultura como mercadoria no novo e suasambigidades requerem cuidado no trato; o que novo, no perodo, ocasamento entre mdia e mercado, que introduz indiferenciaes antesimpossveis de conseguir. O uso da imagem eletrnica passa a estabelecernexos e a estimular percepes antes sequer pensadas. Num nvel maisimediato, percebe-se que os produtos vendidos no mercado (sejam sabo,disco, desodorante ou o aurtico livro) tomam-se, entre outras coisas, overdadeiro contedo da imagem transmitida pela TV; eles passam a serveiculados no interior dos programas, no enredo das novelas, embutidos namatria, a ponto de s vezes no ficar muito claro se se trata ou no de umcomercial. Mas isso faz parte da estratgia e j vai bem longe o tempo emque, por exemplo, com o folhetim, considerava-se que a literatura perderadefinitivamente sua aura...

    Os anos 80, ento, caracterizam-se por uma agudizao de traos j pre-sentes no perodo anterior, a ponto de, no novo contexto, passar a haveruma nfase de outro tipo na dimenso internacional da cultura (atitudeoposta nfase na sua dimenso nacional, trao constante) que, de fato,dadas as novas condies, nada mais do que a legitimao da mdia.Trata-se, agora, de superar o descompasso pela imerso num mundosupostamente universal e eletronicamente unificado, onde todas as diferen-

    9. "(...) o capitalismo tardio inverte habilmente sua prpria lgica, proclamando que, se o artefato uma mercadoria, a

    mercadoria sempre pode ser um artefato". In: Terry Eagleton, "Capitalismo, modernismo e ps-modernismo", p. 55desta edio (no original:New Left Review, n 152, jul./ago. 1985, p. 62).

    CRTICA MARXISTA . 75

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    8/23

    as so abolidas; "so os novssimos termos da opresso e da expropriaocultural"(10).

    Todos esses elementos aqui esboados traduzem-se em traos formaisnos produtos culturais, em mudanas de estilo que funcionam comodetectores das mudanas econmicas e sociais em processo; como traosemergentes, passam a conviver com resduos de outro tipo de produo

    cultural, caracterstica de estgios anteriores, sendo que assim sempre estopresentes solues diversas que atestam as contradies que operam nasociedade. H inmeros exemplos no cinema, na msica, na literatura e naprpria televiso, dos quais uma anlise cuidadosa pode ser bastante eficaz;no o caso, porm, de faz-lo aqui, por motivos bvios.

    A imagem

    Como se pde perceber at aqui, o dado decisivo para a vida culturalbrasileira no perodo abordado o desenvolvimento da indstria cultural, emespecial a TV. Esse desenvolvimento foi resultado da evidente colaboraoentre o regime militar e os grupos privados que atuavam no setor,

    possibilitando a superao das dificuldades tecnolgicas que a televisosofria desde o seu comeo, nos anos 50. importante mencionar alguns dados objetivos: em 1965, cria-se a

    EMBRA EL e o Brasil associa-se ao sistema internacional de satlites,INTELSA T. Inicia-se a construo do sistema de redes, em 1968,completado em 1970, com a incluso da Amaznia, permitindo a almejada"integrao nacional"; efetiva-se, assim, uma grande transformao na esferadas comunicaes, que corporifica a ideologia da Segurana Nacional.Segundo Renato Ortiz(11), essa integrao ocorre em duas esferas: a da"unificao poltica das conscincias", desejada pelos militares e operadapela censura, e da integrao do mercado, efetivada pelos empresrios.Pode-se dizer, ento, que, a despeito da censura, agindo topicamente, os

    interesses gerais do Estado e dos empresrios culturais so os mesmos; ditode outra forma, a questo da censura conjuntural, ao passo que a formaoe o fortalecimento de um mercado integrado (incluindo os bens culturais) jfaz parte de uma nova estrutura econmica que se desenvolve no pas.

    10. "Ao nacionalista, a padronizao e a marca americana que acompanham os veculos de comunicao de massa

    apareciam como efeitos negativos da presena estrangeira. claro que gerao seguinte, para quem o novo clima era

    natural, o nacionalismo que teria de parecer esteticamente arcaico e provinciano. Pe la primeira vez, que eu saiba. entra

    em circulao o sentimento de que a defesa das singularidades nacionais contra a uniformizao imperialista umtpico vazio. Sobre o fundo da indstria cultural. o mal-estar na cultura brasileira desaparece, ao menos para quem

    queira se iludir." R. Schwarz, "Nacional por subtrao", in Que horas so?, op. cit., p. 33.11. In A moderna tradio brasileira. So Paulo. Brasiliense. 1988.

    76 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    9/23

    Todavia, como apontamos antes, a questo da cultura como mercadoria velha de muito tempo; remonta pelo menos ao sculo XVI europeu, seolharmos por esse ngulo o mecenato, por exemplo, e adquire contornosbastante claros com o surgimento do j citado folhetim, no sculo XIX,gnero inicialmente no legitimado por escolas ou instituies acadmicas,mas pelo prprio jogo do mercado.

    O que se coloca agora como novidade, no Brasil, a amplitude desse

    ogo que, ultrapassando qualquer fronteira espacial ou temporal, viasatlite, tenta efetuar um consciente e inelutvel nivelamento da produo edo consumo de bens culturais, processo muito semelhante ao ocorridodcadas atrs nos pases do Primeiro Mundo, especialmente os EstadosUnidos. Temos, ento, definitivamente instalada, a indstria culturalbrasileira.

    Pensar a indstria cultural e suas ambigidades tarefa espinhosa,numa poca em que ela considerada dado natural, parte fundamental denossas vidas, provedora do nosso lazer mais fcil e trao mais visvel danossa "modernidade". Por trs das aparncias, contudo, est a realidade dopas perifrico, com irremovveis desigualdades, o que implica problemas

    de fundo.Existe toda uma linha de pensamento que v a indstria cultural comoresultado da iniciativa humana, do desenvolvimento e da liberdadeengendrados pelo avano tecnolgico(12). Esse pensamento se constricom base no conceito de pluralismo, de uma sociedade participativa, naqual no existe uma classe dominante e em que os velhos conflitos entrecapital e trabalho deixaram de ler significaao estrutural. Nesse tipo desociedade, a cultura no seria mais identificada a uma classe e considera-seque, pela primeira vez na histria, a populao passa a ter acesso a umacultura de massa democrtica em comparao com o passado, quando amaioria das pessoas era analfabeta. Os novos mass media, dessa maneira,ajudariam a reforar as instituies e os processos democrticos.

    Tal abordagem, que j tem significativa penetrao no Brasil, sobretudoentre os "modernistas da mdia"(13), faz supor uma mundialidade andinae prazerosa, propondo uma viso neutra da cultura - entretanto carregada deideologia -, calcada em padres internacionais de produo e consumo;considera-a separada de suas determinaes especficas no interior da for-

    12. Como exemplos: Daniel Bell, The cultural col1tradictiol1s or capitalism, Nova York, Basic Books, 1976, e Thecoming of post industrial societ)', Nova York, Basic Books, 1978; Edward Schils, "Mass society and its culture", in

    Peter Davison (org.),Literal)' taste, culture and mass communicatiol1, Cambridge, Chadwyck-Healey, 1978.

    13. Termo usado por R. Schwarz, "Naciona1...", in op. cit., p. 34. Pode-se dizer que a maioria dos "modernistas damdia" encontra-se sobretudo nas redaes dos grandes jornais e revistas semanais, opinando sobre cultura e arte em

    geral, praticando um tipo de crtica que j bastante influenciada pelos ditames do mercado.

    CRTICA MARXISTA . 77

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    10/23

    mao econmica e isolada das prticas e relaes sociais(14). Para osmodernistas da mdia, cultura, hoje, sinnimo perfeito de mercadoria.

    Na verdade, a indstria cultural opera como neutralizadora dospossveis conflitos que poderiam surgir de uma cultura efetivamentemoldada nas relaes sociais, coisa que hoje parece cada vez mais difcil.Contra as aspiraes de Walter Benjamin, no alvorecer da inocnciatecnolgica, as tcnicas de reproduo, gnese da indstria cultural, nocumpriram sua promessa de propiciar o surgimento de uma arte progressistaou mesmo democrtica. A "atrofia da aura" irreversvel(15), tambm nosentido de que est ligada inevitvel mutao das formas de percepohumana, que ocorre paralela transformao dos modos de produo dacultura.

    Em outras palavras, pode-se dizer que, com a mdia eletrnica, estgradativamente se modificando a natureza do conhecimento, que passa a sertraduzido em quantidade de informao transmitida, na grande maioriaatravs de imagens, a ponto de as coisas s existirem na mente depois de

    produzidas e/ou veiculadas por esses estmulos imagticos. Desse modo,altera-se a sensibilidade perceptiva, no mais atenta realidade concretacircundante, mas sua reproduo nas imagens. Por outro lado, devido asua presena "concreta" dentro da realidade, a imagem apresenta-se comoelemento constitutivo, um referente imediato como outro qualquer, sendoassim absorvida. essa a essncia do seu poder.

    Certamente esse um dos pontos centrais em tomo do qual devem sercolocadas as questes referentes produo cultural brasileiracontempornea: a nova estrutura de conhecimento que se vem efetivandoatravs da imagem e de sua proliferao ilimitada, introduzindo umadimenso perceptiva at ento desconhecida que, de uma certa forma, nocorresponde exatamente ao estgio de desenvolvimento econmico global

    da sociedade, em que ainda persistem a fome, a misria e o analfabetismo.Melhor dizendo, eis de volta o descompasso: sofisticao tecnolgica aservio da cultura, enquanto esta se assenta num modelo de excluso damaioria, desde as razes.

    Pode-se afirmar, ento, que, com o fortalecimento da indstria culturale basicamente da TV, cada vez mais a imagem se insinua em todas asdimenses da vida cotidiana, ubqua, surgindo como realidade auto-referencial, remetendo a si mesma, numa infinita cadeia de significantes.Justapondo todos as espaos do mundo, instaura a presena simultnea, a-

    14. "O pluralismo . portanto, a ideologia de grupos. um conjunto de representaes fantasmticas que triangula trspseudoconceitos fundamentais: democracia. mdia e mercado." F. Jameson, op. cit., p. 320.

    15. "Ao adotar a designao de Benjamin da obra de arte tradicional atravs do conceito de aura - a presena daquilo que

    no est presente -, a indstria cultural define-se no pelo fato de efetivamen te contrapor um outro princpio ao deaura, mas antes pelo fato de conservar a aura esmaecida como indistinta nvoa." T. W. Adorno, "Cultureindustry reconsidered", inNew Germany Critique. N 6. 1975. p. 15.

    78 .ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    11/23

    temporal e sem distncia de fatos totalmente dspares: tem-se uma realidadeoutra sem, todavia, qualquer espessura(16).

    Alm disso, a reproduo tcnica do real fabrica uma outra realidademuito mais interessante, uma realidade que Guy Debord chamaespetacular(17), devido intensificao de forma, cor e tamanho, queneutraliza a especificidade do referente. A imagem assim criada surgecomo duplo, como fantasmagoria, como simulacro. a imagem do que no

    existe, a imagem de outra imagem. Como tal, sua virtual capacidade demanuseio e manipulao ilimitada: funde-se, repete-se, justape-se,recorta-se, antecipa-se, prolonga-se, eliminando a possibilidade desurgimento de um significado novo e acentuando a presena do mesmo,sempre, ainda que muitas vezes refeito. Nesse jogo de espelhos, o horizonteentrevisto a conformidade.

    Pode-se dizer, inclusive, que esse jogo de espelhos" engloba o espaoprivado e o espao pblico, intermediados agora pela imagem, cujo novoestatuto lhe confere mais importncia que a prpria realidade, desde que,como vimos, enquanto imagem, ela pode ser eternamente rearranjada.Sendo elemento constitutivo das formas culturais contemporneas, assimcomo das formas de perceber e representar a realidade, a imagem, noimporta seu veculo, destaca-se hoje como configuradora da conscincia,dos valores e das prticas sociais, como um inequvoco sistema deadministrao.

    Assim, a crescente sofisticao e aperfeioamento dos transmissores deimagens no significam libertao em si: o importante no so os meios,mas o uso que se pode fazer e efetivamente deles se faz. J pertence a umlongnquo passado a imagem como lazer interessante e aindaamedrontador, como aquela da locomotiva saindo da tela e investindocontra a platia ingenuamente em pnico, durante a primeira projeo docinematgrafo...

    Para Jean Baudrillard(18), no existe mais, inclusive, um universontimo, projetivo, imaginrio e simblico, um espao/tempo privado,correlativo ao espao pblico, na medida em que, com TV, computadores evideo games (inclusive interativos), cada pessoa v a si mesma no controlede uma mquina, isolada numa posio de perfeita soberania, que eleva omundo domstico a uma espcie de metfora absoluta do espao. Todo ouniverso parece desdobrar-se aleatoriamente na tela domstica, fazendo

    16. Cf. Rodrigo Naves, "O novo livro do mundo", inNovos Estudos CEBRAP. N 23, mar. 1989,p.l77.17. "O governo do espetculo, que atualmente detm todos os modos de falsificar tanto o conjunto da produo quanto

    o da percepo, senhor absoluto das lembranas assim como o mestre incontrolvel dos projetos que enformam o

    futuro mais distante. Ele reina absoluto por toda parte e executa seus julgamentos sumrios." Guy Debord.

    Commentaires sur la societ du spectacle, Paris, Lebovici, 1988, p. 20.

    18. "The ecstasy of communication". in Hal Foster. (org.), The anti-aesthetic: Essays on postmodern culture. Seattle.

    Bay Press. 1983.

    CRTICA MARXISTA . 79

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    12/23

    com que desaparea um cenrio antes preservado pela separao entrepblico e privado, numa espcie de "obscenidade" em que os mais ntimosprocessos da vida individual tornam-se campo frtil para a mdia(19).

    A conseqncia dessa identificao entre pblico e privado, entre a vidaindividual e sua representao "obscena" a desvalorizao e adesrealizao da prpria existncia e da experincia individual (Baudrillardfala em passagem do "valor de uso" para o "valor de signo"). No hvnculos diretos entre a experincia e a imagem, pois esta se acha descoladada vida real, cuja possibilidade de apreenso por aquela toma-se remota.

    Em vez de nos relacionarmos com a realidade diretamente, dependemoscada vez mais de uma vasta gama de informaes mediatizadas, que nosalcanam com mais poder, facilidade e rapidez. como se ficssemossuspensos entre a realidade da vida diria e sua representao, atravs dadiversificada e mltipla edio efetuada via TV: "Vamos acompanhar na TVa contagem at meia-noite, para ento comemorar a passagem do ano!"(20).

    Perde-se, pois, aos poucos, o elo que liga o indivduo ao mundo, aomesmo tempo que se fortalece - paradoxalmente - um outro vnculo, que uneentre si todos os indivduos: a pobreza da experincia. A sensibilidade deBenjamin j prognosticara: "Nossa pobreza de experincias apenas umaparte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, ntido e precisocomo o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimniocultural se a experincia no o vincula a ns?"(21).

    Cultura para milhes

    Parece ser importante, neste ponto, considerar mais de perto o funciona-mento geral da indstria da cultura, alm dos seus efeitos mais evidentes.

    No novidade dizer que os esquemas de transmisso cultural, hoje, soefetivamente industriais, no sentido da estandardizao e racionalizao dastcnicas produtivas e de distribuio, com conseqncias bvias. A lgicadesse esquema assenta-se no nivelamento, visando um rendimento timoque aproxime de imediato consumidor e produto. Essa aproximao temcomo ponte o prazer do entretenimento. O Produto assim embalado coloca-

    19. Com efeito. segundo afirmava Benjamin, sem entretanto sonhar com a realidade de hoje, a preponderncia absoluta

    conferida ao "valor de exposio" atribui-lhe "funes inteiramente novas, entre as quais a 'artstica', a nica de que

    temos conscincia, talvez se revele mais tarde como secundria". Walter Benjamin, "A obra de arte ...", in op. cit., p.

    173.20. "Essa resposta mutante contribui para uma investida contra o conceito de eu como centro de uma realidade nica,

    com um nico ponto de vista. O que se acrescenta uma realidade artificial capaz de fazer com que nos percamos entreo eu privado e uma representao artificial da vida." Margot Lovejoy, Postmodern currents: Art and artists in the age

    of eletronic media. Ann Arbor. UM) Research Press, 1989.

    21. W. Benjamin. "Experincia e pobreza", in Obras escolhidas I, op. cit.. p. 115.

    80 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    13/23

    se como objeto de desejo, sentido como necessidade prtica e passa a terutilidade como bem de consumo. Transforma-se, pois, em fetiche(22).

    So conhecidas as teses de Adorno sobre a indstria cultural e, apesardas objees que se lhes tem colocado ("pessimistas" demais,

    principalmente quando cotejadas ao "otimismo" benjaminiano em relaoao tema, to "adequado" ao despontar do nosso desenvolvimentotecnolgico), parece cada vez mais claro que as anlises por eledesenvolvidas, na distante era do rdio americana, hoje quase adquiremsentido de profecia que aos poucos se cumpre, inclusive entre ns, naperiferia do capitalismo(23).

    Para ele, com a indstria da cultura, o prprio conceito de gosto, quepermitiria uma escolha pessoal entre os produtos oferecidos, estultrapassado; a escolha quase uma falcia; o gostar e o no gostar j nocorrespondem a um estado real, desde que, em vez do valor da prpriacoisa, o critrio de julgamento se baseia no padro mais difundido: o maisconhecido o mais famoso e tem mais sucesso. Nesse sentido, a existnciado prprio indivduo tomou-se problemtica, pois ele no consegue maisvivenciar completamente a prpria liberdade de escolha; a produopadronizada dos bens culturais oferece praticamente os mesmos produtos atodo cidado(24).

    Essas afirmaes de Adorno embasam seu conceito de regresso comoo anverso da cultura-fetiche, que no corresponde a um retrocesso do nvelcoletivo geral, mas perda da capacidade de um conhecimento conscienteda cultura pelo indivduo que foi sendo privado de sua liberdade deescolha(25).

    22. T. W. Adorno, "A indstria cultural: O esclarecimento como mistificao das massas", in Dialtica doesclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1986. Ver tambm "Culture industry reconsidered", in op. cit.

    23. (...) As profecias de Adorno a respeito de um 'sistema total' finalmente tornaram-se reais, sob formas totalmente

    inesperadas. Com certeza, Adorno no foi o filsofo dos anos trinta (...) ou o filsofo dos quarenta e cinqenta; nem

    mesmo o pensador dos sessenta; (...) seu antiquado discurso dialtico era incompatvel com os anos setenta. Mas

    possvel que ele tenha se tornado o analista da nossa prpria poca, que ele no viveu para ver, e na qual o capita lismo

    tardio foi mais do que bem sucedido ao eliminar os ltimos basties da natureza e do Inconsciente, da subverso e da

    esttica, das prticas individuais e coletivas, e, com um piparote final, qualquer memria daquilo que, desse modo, a

    partir de ento, nunca existiu na paisagem ps-moderna." F. Jameson, Late marxismo Adorno, 01', the persistence

    ofthe dialectic, Nova York, Verso, 1990, p. 5. O autor fala do ponto de chegada de um caminho que, no Brasil.indiscutivelmente se procura seguir. Da as inegveis afinidades.

    24. T. W. Adorno, "O fetichismo da msica e a regresso da audio", in Os pensadores, So Paulo, Abril Cultural,

    1980, p. 174.

    25. Mais tarde, porm, ele reavalia esse conceito, aceitando a possibilidade de uma viso mais crtica por parte das

    pessoas em relao ao que escolhem como entretenimento: "Parece que, afinal. a integrao entre conscincia e lazerainda no completa. Os interesses reais dos indivduos ainda so bastante fortes (...) a conscincia no pode estar

    totalmente integrada numa sociedade em que as contradies bsicas permanecem irredutveis." Adorno, "Freizeit,

    Stichworte", p. 65, apud Andreas Huyssen. "Introduction to Adorno". inNew German Critique. N 26. 1975.

    CRTlCAMARXISTA . 81

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    14/23

    Esse conceito, se bem entendido em todas as suas nuances, lana luzsobre os inmeros debates que comearam a surgir, a partir dos anos 60,como tentativa de melhor entender e situar o fenmeno da indstria culturalentre ns. As anlises, elogios e crticas deixaram de ser preocupaoexclusiva de intelectuais e passaram a povoar tambm as pginas dos jornaise revistas semanais de notcias e variedades, como, por exemplo, Veja, Istoe Viso.

    Essa migrao de temas acadmicos para o mbito das discusses maistriviais, nessas revistas, um dado importante a exemplificar o alcance daindstria da cultura. Tais veculos, como agenciadores e difusores de umtipo de cultura no interior da qual no caberiam tais discusses, j se batemcom a contradio de empreend-las; ou seja, eles conservam "a auraesmaecida como indistinta nvoa"(26): existe, justamente por parte dasrevistas, que so tambm um veculo de cultura de massa, uma preocupaode discutir as questes culturais, atribuindo-se uma seriedade postia, naverdade tomada de emprstimo da seriedade do assunto.

    Assim, o conceito de regresso a que nos referamos, criado numa pocaem que a imagem ainda era resultado do simples processo de reproduoque enchia Benjamin de esperana, consegue colocar em xeque tanto asdiscusses sobre a produo da cultura (preocupao das dcadas de 60 e70), quanto aquelas sobre sua recepo, que vo ganhando espao a cadadia, principalmente nos anos 80.

    No parece fora de propsito pensar que a nfase que se vem dando questo da recepo da arte e da literatura seja decorrncia da importnciaque o pblico da indstria cultural tem adquirido como consumidor, nummercado internacional racionalmente organizado para massas. Nesse ponto,corre-se o srio risco de aceitar, medida que se considera acriticamente ohorizonte de expectativa de um pblico j em grande parte formado pelaindstria cultural, a lgica da mercadoria, sem levar em conta se nosprodutos a criados existem (ou podem existir) possibilidades de negaodessa lgica.

    As formas deliberadas criadas pelo mercado hoje so maioria no interiorda produo cultural e dificilmente funcionariam como negatividade de simesmas. Segundo a lio de Adorno, o significado esttico e social de umproduto cultural no pode ser reduzido a um processo externo decomunicao entre produo e consumo, pois ele deve residir nas relaessociais mediadas no interior do prprio produto cultural.

    Para Adorno, a tcnica, na indstria cultural, idntica tcnica nasobras de arte apenas no nome. Nesta, ela se refere organizao interna doprprio objeto, sua prpria lgica. J a tcnica da indstria cultural a dadistribuio e reproduo mecnica, portanto, externa ao produto. Assim, omercado assimila igualmente fins artsticos e tecnolgicos, fetichizando a

    26. T.W. Adorno. "Cultural industry reconsidered". in op. cit.

    82 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    15/23

    tcnica, de maneira a elaborar produtos em srie que sirvam a um gosto-padro desenvolvido por ele prprio junto a um pblico considerado comomassa.

    O conceito de massa tem sido a base necessria para a legitimaodesse tipo de cultura e parte integrante da ideologia do mercado. Eleelimina os fundamentos econmicos reais das instncias e processos quehoje produzem cultura, criando na conscincia dos consumidores a

    aceitao do inevitvel de sua mercantilizao, com todas as decorrncias:repetio de modelos j testados, superficialidade no tratamento da matria,concesses ao fcil e sedues baratas .

    Nesse sentido, pode-se dizer que no existe uma sociedade de massa,amorfa e indiferenciada, criadora desse tipo especfico de cultura, mas umaideologia produtora da cultura de massa, que serve a todos da mesmamaneira, satisfazendo as necessidades mais imediatas de entretenimento,tambm criadas por ela(27).

    A cultura de massa engendra um descolamento significativo entre aefetiva organizao social e a cultura que esta produz; periodicamenteassessorada pelas ltimas tcnicas de pesquisa de mercado, ela reflete ereafirma o status quo.

    As teorias que pressupem a indstria cultural como fator dedemocratizao da sociedade tentam apagar a ligao entre cultura eformao de classe, entre estrutura e ideologia, e no podem ser"inocentemente" aplicadas ao Brasil, onde os meios de comunicao estodeclaradamente a servio do poder(28). Por outro lado, considerar opblico a priori como massa tambm escamoteia as diferenas de classe equalquer possibilidade de uma produo cultural que respeite, trabalhe erealmente considere essas diferenas, tanto no nvel da produo quanto nodo consumo.

    Longe de ser "massa", todo pblico tem uma composio heterognea euma extenso ilimitada e isso quer dizer que os seus diferentes

    componentes participam de modos diversos na recepo de produtos,revelando elementos tambm diferenciados nos modos de seleo eapreenso, de acordo com o "capital cultural"(29) de que dispem. Ou seja,a apropriao desses bens como bens simblicos que suprem determinadasnecessidades pressupe a posse de instrumentos para isso, vistos comohabilidades especficas para fruio e entendimento, diferentemente ofere-

    27. Cf. Alan Swingewood, The myth or mass culture, New Jersey, Atlantic Highlands, HumanitiesPress, 1977.28. "Hoje parece claro ser impossvel identificar qualquer instituio de 'servio pblico' sem relacion-la imediatamente ordem social no interior da qual opera." R. Williams, "Culture and technology", inThe Politics or modernism, Londres, Verso, 1989, p. 124.29. O conceito de Pierre Bourdieu, "Cultural reproduction and social reproduction", in Knowledge,

    education and cultural change, Londres, Tavistock, 1973.

    CRTlCA MARXISTA . 83

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    16/23

    cidos para cada classe social por meio do sistema educacional (ou pela faltadele).

    Ento, o pblico da indstria cultural (que no s, mas tambm o da"alta" cultura) composto por uma estratificao multifacetada e gradual;esta corresponde ao "gosto pessoal" permeado pela capacidade crtica(elementos pertencentes ao capital cultural), que tm ntida conotao declasse. O ponto em que opera a indstria cultural justamente na

    transformao de mercadorias em "bens simblicos", quando ento elaspassam a representar necessidades e a funcionar como suas provedoras.Assim, a posse desses "bens" smbolo de posio social e fonte de prazer.

    No difcil inferir disso que a inteno de padronizar a recepopadronizando a produo tem efeitos palpveis, mesmo em pases onde adiferenciao de classes no to acentuada. No Brasil, onde so notrias asdesigualdades, onde as taxas de analfabetismo recrudescem e grande parteda populao tem baixssimo nvel de escolaridade, o poder de manipulaoda indstria cultural notrio, pois ela assume as funes de plo educacio-nal, diretamente ligada aos centros de poder.

    A nova sensibilidade

    Sem pretender ser completa ou exaustiva, essa sucinta descrio do fun-cionamento da indstria cultural deixa claro que se trata de uma foraarticulada e mltipla a imprimir um novo movimento, uma nova espacialidade e uma temporalidade tambm nova ao funcionamento da estruturasocial, na medida em que seus efeitos penetram igualmente em todos ossegmentos sociais, procurando nivel-los enquanto massa consumidora.

    Atravs da mdia, o universo dos simulacros se infiltra nos acontecimen-tos dirios, nas normas de comportamento individual, na noo de bem-estar, no uso do corpo, no conceito de prazer, na conscincia poltica,reproduzindo-os e multiplicando-os, trocando entre si os sinais de maior ou

    menor importncia, reduzindo tudo a um espetculo onipresente. Assim, aexperincia ou a liberdade individuais passam a ser apenas variveis decondicionamentos e clichs previstos.

    O sentido ltimo do espetculo, pois, que ele vai se integrando realidade medida que fala dela e, enquanto faz isso, ele a reconstri, comovimos. essa a essncia do simulacro: uma cpia da imagem, uma imagemde segundo grau, cujo referente j inalcanvel. Desse modo, no aexperincia que liga o indivduo realidade, mas uma imagem projetada nasparedes da caverna do nosso tempo; no mago dessa imagem qualquer coisapode ser inserida.

    O fluxo imagtico carrega tudo consigo, como uma corrente cujos ritmoe intensidade tambm no dizem respeito ao indivduo, mas dinmica do

    espetculo; no h tempo para reflexo, tudo sempre uma surpresaarbitrria e inescapvel. Como afirma Guy Debord, nessa experincia con-

    84 .ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    17/23

    creta de submisso permanente encontra-se a raiz psicolgica da adeso togeral a isso que est a"(30), pois o discurso espetacular autoritrio e nodeixa margem a qualquer resposta.

    A mais evidente inteno de dominao espetacular a contnuatentativa de fazer desaparecer o conhecimento histrico geral, assim comoquase todas as informaes e comentrios sobre o passado mais prximoou mais distante; destri-se o passado como referente, deixando-nos apenascom os "textos" mediatizados, que so suas verses. Isso uma flagranteevidncia, se pensarmos na recente histria brasileira.

    No interior desse gradativo processo de perda de dimenso da realidade,da totalidade do mundo e da histria, substitudos pela miragem espetacularque opera, a despeito da aparente novidade e globalidade, com os velhosrecursos da fragmentao, colagem e montagem de informaes, oindivduo passa a fazer parte da imensa maioria que tem o consumo comomaior estmulo, o conformismo como trao de carter e a maleabilidadecomo formadora de hbitos e conceitos.

    As antigas e tradicionais possibilidades de realizao individual ou

    coletiva colocam-se hoje sob outro vis: valores tidos por imutveis comotrabalho, famlia ou religio esto profundamente permeados pelo consumoe pelo espetculo. Satisfao garantida ou seu dinheiro de volta, numtempo em que o passado o vento levou e o futuro a Deus pertence.

    Se as imagens no representam o real, mas o criam, visando aespetacularizao da vida e a seduo do sujeito, pode-se supor, ento, queo trao principal da condio contempornea seja a dificuldade de sentir,captar e representar o mundo em que se vive. Apatia, depresso e ansiedadetraduzem a impotncia diante do mundo indecifrvel, cuja totalidadefragmentada volta, em caleidoscpio, rearranjada nas telas da TV.

    A partir dos anos 80, um novo termo vem se juntar aos muitos outrosusados para qualificar a sensibilidade ps-moderna: alm de angstia,

    desajustamento, solido, neurose, depresso e violncia, tem-se"esquizofrenia"(31).Esse termo no elimina os outros; na verdade parece englob-los e cont-los em si, ou aprofundar alguns de seus muitos aspectos. A questo demaior ou menor adequao dos termos, ou mesmo de sua intensidade, deuma dcada para outra, fica a cargo das avaliaes cientficas; o queimporta reter aqui a persistncia de termos como esses nas anlises,interpretaes, panoramas e prognsticos das ltimas duas dcadas, seja notrabalho de intelectuais, seja na sua apropriao por jornais e revistas.

    30. Guy Debord, op. cit., p. 37.

    31. Nesse sentido, o termo foi usado pela primeira vez por F. Jameson, no art igo "Ps-modernidade e sociedade deconsumo", publicado em portugus emNovos Estudos Cebrap. N 12, jun. 1985.

    CRTlCA MARXISTA . 85

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    18/23

    A "nova sensibilidade" alimentada (criada, para Jameson) pelo consu-mism032 tido como contraface da degradao do trabalho (alm dacompensao para a impotncia econmica e ausncia de poder poltico): aeliminao do prazer e da habilidade individual do processo da produo,que se acrescenta antiga diviso entre trabalho manual e intelectual. Almdo mais, como afirma Baudrillard, "o consumo uma conduta ativa ecoletiva, uma imposio moral, uma instituio. Ele todo um sistema devalores, com tudo o que esse termo implica, isto , uma funo de integraogrupal e controle social". 33

    Para Christopher Lasch(34), num mundo onde tudo produzido, cria-secomo que uma multiplicidade de espelhos refletindo imagens semsubstncia, iluses cada vez mais indistinguveis da realidade. O efeitoespecular (e espetacular) transforma o sujeito em objeto, ao mesmo tempoque transforma o mundo dos objetos numa extenso ou projeo do eu; oapagamento da fronteira entre sujeito e objeto parece ser a base daproblemtica identidade individual contempornea.

    Uma marca importante na construo dessa identidade, para Lasch, onarcisismo, que ele define como a perda da individualidade de um euameaado pela desintegrao e pela sensao de vazio interior. Asubstituio do real por seu simulacro, da durao das coisas pelafungibilidade, a fuso de limites entre seres e objetos, criados em grandeparte pelo frenesi das imagens intercambiveis, tornam cada vez mais difcilo desenvolvimento de uma identidade estvel e coerente.

    Entre os muitos autores que se tm debruado sobre o problema, pareceser Eagleton o mais cauteloso, a despeito da contundncia e ironia de suasconsideraes sobre o "novo sujeito". Para ele, este poderia ser "umadispersa e descentrada rede de conexes libidinais, esvaziada de substnciatica e interioridade psquica, a funo efmera deste ou daquele ato deconsumo, experincia de media, relacionamento sexual, tendncia ou moda".Mas, continua, o lugar que esse sujeito ocupa na verdade o da contradio,pois ele ainda um "amlgama contraditrio" entre o "sujeito auto-regulador" do modernismo e a "descentrada rede de desejos" instaurada pelacondio ps-moderna(35).

    De qualquer modo, no parece fora de propsito afirmar que o novo su-jeito, basicamente urbano, habitante dos grandes centros de todo o mundo,

    32. "Com efeito, o consumo, em sentido social. especificamente a palavra para o que de fato fazemos com produtos

    reificados desse tipo, que ocupam nossas mentes e pairam acima do vazio mais profundo e niilista, criado em nosso ser

    pela incapacidade de controlar nosso prprio destino." F.Jameson, Postmodernism, op. cit.. p. 317.

    33. Jean Baudrillard.La Societ de consommation, Paris. Denol. 1970. p. 114.

    34. O mnimo eu. So Paulo. Brasiliense. 1986.35. T. Eagleton. op. cit.. p. 66-7 desta edio (p. 7 I do original). E ele acrescenta: "Talvez ainda estejamos equilibrados

    to precariamente, quanto o fIneur baudelairiano de Benjamin, entre o rpido desvanecimento da aura do antigosujeito humanista e as formas ambivalentes de energia e repulsa de uma paisagem urbana" (p. 68 desta edio: p. 72 do

    original).

    86. ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    19/23

    produto de um complexo processo em que a representao das relaessociais requer a mediao de uma estrutura comunicacional, numa espciede tringulo formado entre o sujeito, a mdia e a realidade. Esse processo,calcado na proliferao da imagem, absolutamente novo na histria e sfoi possvel de se efetivar por meio da simbiose ideolgica entre o mercadoe os meios de comunicao de massa.

    O novo e o velho

    Retomemos aqui, para fechar o crculo, a reflexo a respeito do semprepresente descompasso da cultura nacional. Ele no se coloca, com a mesmaintensidade de antes, numa relao de atraso/adiantamento com o exterior,pois, como vimos, a indstria cultural aqui introduzida j corresponde a umestgio mais adiantado do capitalismo global, embora permaneam nossasdesigualdades econmicas e sociais.

    Isso representa uma alterao na posio que ocupamos no circuitointernacional de bens culturais. Assim, a nossa indstria cultural noconstitui um aparato "fora do lugar", pois as condies materiais para suaexistncia (sua tecnologia especfica) j esto definitivamente implantadasno final dos anos 70, quando ento, inclusive, passamos a exportar produtosculturais(36).

    Se a relao dentro/fora mudou de qualidade, o mesmo no se podedizer da relao interna: o descompasso continua a existir, mas entre asofisticao da esfera cultural e a misria social, importante reiterar. Issopode ser explicado pela autonomia relativa da esfera cultural, sempremediada pela situao especfica dos produtores reais.

    Todavia, vendo por outro ngulo, pode-se dizer que a indstria culturalneutraliza essa autonomia, pois, alm de se expandir igualmente por todo odomnio social, funciona de acordo com as leis do mercado, o que, em vezde eliminar, acentua o descompasso: o mercado modernssimo produz paraconsumidores na maioria cada vez mais empobrecidos (sempreconsiderando a classe mdia como padro de consumo); j os pobres, comocategoria social, esto de sada excludos do universo da cultura... comexceo da TV. Desse modo, o que temos uma espcie de defasagem daindstria cultural em relao realidade scio-econmica, algo como sepensssemos, com perdo da obviedade, numa antena parablica instaladanum barraco.

    A razo para essa defasagem a desigualdade do nossodesenvolvimento interno que, aqui dentro, reproduz mais ou menos omovimento do capitalismo l fora, em termos de centro e periferia. Algunssetores da nossa economia ainda so arcaicos, enquanto a organizaoempresarial da cultura tem qualidade de Primeiro Mundo.

    36. principalmente o caso das novelas e da msica popular. O livro citado de Renato Ortiz rico em dados

    quantitativos a esse respeito.

    CRTICA MARXISTA . 87

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    20/23

    Em sntese, estamos em sincronia perfeita com o circuito da mercadoriacultural internacional, num nvel planetrio sequer sonhado anteriormente.McLuhan tinha razo: o mundo uma aldeia global.

    nesse sentido que se pode dizer j existirem interiorizados em setoresda sociedade brasileira muitos dos aspectos tidos como efeitos da cultura doespetculo, tais como conformismo e maleabilidade do pblico,

    consumismo, narcisismo, perda do sentido histrico do tempo etc.,convivendo porm com traos pertencentes a outros estgios do nossodesenvolvimento, grosso modo, a noo tradicional de famlia, aimportncia da religio, o passado como ncora, o futuro comoconseqncia, o valor do trabalho, a terra, para dar alguns exemplos, todosimpressos na forma dos produtos culturais.

    Em outras palavras, aqui convivem aspectos residuais pr-modernoscom traos emergentes ps-modernos, englobados numa incompletamodernidade, desde que na estrutura econmico-social coexistem realidadesoriginadas em momentos diferentes da histria, expressas no crescimentodesigual da indstria e da agricultura, nas diferentes regies do pas. Pode-se falar, ento, de uma nova forma de hierarquia, cujo poder se assenta na

    maior ou menor modernizao tecnolgica. A interiorizao dessadicotomia surge como um dilema que se expressa na convivncia do novo edo velho, que sempre esteve presente, mas hoje surge com aspectos econotaes "espetaculares" e "globalizantes" que enfatizam a idia deruptura irreversvel, numa profundidade antes nunca atingida. Essehibridismo pode ser encarado como linha bsica no mapeamento daproduo cultural brasileira contempornea.

    Pode-se dizer que o perodo em estudo apresenta-se, pois, como umcampo de fora no interior do qual se confrontam vrios tipos de impulsosculturais, com limites e presses especficos. importante assinalar queresidual no significa obsoleto; mesmo formado no passado, ainda continuaativo no processo cultural como elemento do presente, enquanto emergente

    pode ser visto, grosso modo, como novos significados e valores, novasprticas e novas relaes que se vo criando.

    No entanto, um trao emergente mais difcil de captar e definir, desdeque mantm uma relao de fora com as tendncias dominantes,envolvendo tenses, desvios e incertezas, desigualdade e confuso, nosendo uma forma completa e definitiva. Os traos emergentes estariam,pois, relacionados ao que Raymond Williams chama estruturas desentimento, "um tipo de sentimento e pensamento que realmente social ematerial, mas em fases embrinicas, antes de se tomar uma trocaplenamente articulada e definida"(37). So experincias sociais em soluo,que se relacionam com as que j existem com maior evidncia.

    37. R. Williams.Marxismo e literatura. Rio de Janeiro. Zahar. 1979. p. 135.

    88 . ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    21/23

    Assim, viajando na mesma velocidade da transmisso de imagens, asdiscusses sobre ps-modernidade desenvolveram-se tambm aqui,durante os anos 80. Envolto em incompreenses, dvidas, hesitaes,recusa e/ou aceitao, o ps-modernismo tomou-se tema de debatesacadmicos, alm de, como no podia deixar de ser, ganhar as pginas derevistas e jornais.

    O interesse pelo tema evidencia justamente o aflorar de estruturas de

    sentimento que j so materiais, convivem nas prticas sociais edespontam nos produtos culturais, embora ainda vagas e nocompletamente definveis.

    Vista sob essa tica, a idia de ps-modernidade, no Brasil, tambmno pode ser considerada "fora de lugar", pois j um elementoconstitutivo do panorama cultural como emergncia, como estrutura desentimento, como o embrio de algo que, aos poucos, provavelmente ireliminando ou modificando traos de processos arcaicos ou apenasmodernos, transformando-os em algo que tem como caractersticasprincipais o simulacro e a mercadoria. Isso porque, como Jamesonconsidera, no livro citado, o ps-modernismo seria, ento, o primeiro

    "estilo de poca" americano, na histria da cultura, a espalhar suainfluncia e caractersticas pelos quatro cantos do globo, atravs damdia(38).

    Em relao a isso, no Brasil ainda somos modernos, no sentido em que,aqui, o passado ainda existe como fora atuante e poderosa; em que o novo possvel porque o antigo ainda est l, vivo, para se contrapor a ele; emque o momento presente algo do futuro, em direo ao qual se move; emque ainda se fala de utopia, de transformao social ou transfigurao doeu; em que ainda se celebram os velhos modos de produo individual,mesmo em computador; em que ainda resiste a idia de "grande autor"; emque as pessoas mantm com relao tecnologia uma admirao um tantotemerosa; em que ainda persiste o choque e a excitao, to peculiares

    modernidade.A nossa modernidade, ento, est ligada nossa modernizao desigual

    e incompleta, o que ainda inspira o sentimento de que uma nova era podecomear, de que h algo de novo a esperar e de que ainda h tempo parafazer coisas. Ainda temos necessidade de nos perguntar "que horas so?".J os ps-modernos (que no somos, mas que muitos j gostariam quefssemos integralmente) sentem que "tudo alcanou a mesma hora nogrande relgio do desenvolvimento ou racionalizao"(39).

    Para esses, o antigo foi abolido, mas refeito como simulacro, em eternasnovas construes e restauraes; o passado no mais existe, s os "textos"

    38. Nas palavras de Jameson. "(...) o ps-moderno deve ser caracterizado como a situao na qual a sobrevivncia. o

    resduo, o remanescente e o arcaico foram finalmente varridos sem deixar vestgios. Assim. no ps-moderno. o

    prprio passado desapareceu juntamente com o conhecido 'sentido de passado' ou historicidade e memria coletiva)."

    In Postmodernism, op. cit.. p. 309.

    39. F. Jameson. Postmodernism ............op. cit., p. 310.

    CRTICA MARXISTA . 89

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    22/23

    que a ele se referem; sendo tudo sempre novo, no h choque, excitao ouruptura, a essncia do moderno. Tudo pode ser aceito, rearranjado, refun-cionalizado numa perspectiva de total cooptao. E o grande mediador desseprocesso a imagem, com seu malevel e infinito poder de reproduo.

    Tal como em todo o Ocidente, a modernidade brasileira tambm estligada transformao das cidades em plos de desenvolvimento industrial,

    claro que de acordo com a hora do nosso relgio temporal, e isso assunto,por exemplo, para os especialistas do modernismo. No perodo que nosinteressa, os conglomerados urbanos, como sempre centros de efervescnciacultural, expandiram-se de modo assustador, gerando uma gradual pormprofunda modificao nos espaos e nos modos de viver, em razo docrescimento desenfreado e sem planejamento, da favelizao das periferias,do crescimento da marginalidade e da violncia, da deteriorao daqualidade de vida.

    Ento, alm desse crescimento geogrfico e demogrfico serdeterminante dos modos de vida, as grandes cidades passam a exercer umainfluncia que no mais lenta e gradual, como antes do surgimento damdia, mas transmitida igualmente e ao mesmo tempo a todos os outros

    pontos do pas: uma influncia global. As cidades, hoje, em todo o mundo,so os poderosos transmissores das economias dominantes e tecnicamentemais adiantadas, cujos produtos so veiculados como valores universais.

    O desenvolvimento das cidades gerando transformaes culturaisimportantes, novas estruturas de sentimento que se sobrepem aos antigospadres no fenmeno novo; marcante desde o sculo XIX: basta relerBaudelaire e as percepes de Benjamin a respeito de sua obra, isso semfalar da fecundidade do modernismo brasileiro sobre o tema; no obstante, oque muda em cada poca e tem peso decisivo, alm das percepes urbanasrenovveis como temas das obras, o lugar especfico dos artistas eintelectuais como produtores, no sempre mutante meio cultural dasmetrpoles.

    O nosso perodo de estudo vai assistir, no Brasil, como vimos, a umaradical mudana do lugar do artista ou intelectual no interior do processoprodutivo. Esse lugar no mais, em definitivo, a repartio pblica e o seuquarto com sua mesa de trabalho, mas o escritrio da empresa produtorae/ou difusora. Com a cultura totalmente adequada circulao do capital, asempresas, geralmente localizadas nos grandes centros do Sudeste, passam aredimensionar a utilizao do "pessoal", buscando maior produtividade,alm de tentar adequar o produto vendido ao "gosto" do consumidor. Essanova racionalidade obriga definitiva e irreversvel profissionalizao.

    Sintetizando, enfim - se possvel ainda falar em snteses nessa pocaem que fragmentao e global idade combinam-se numa dinmica voraz -,como bem produzido e recebido nas condies especficas do Brasil

    contemporneo, muitas das quais radicalmente novas, a cultura com certezatraz embutidas nas formas prprias de cada produto as marcas das mudanas

    90 .ASPECTOS DA PRODUO CULTURAL BRASlLEIRA CONTEMPORNEA

  • 8/9/2019 aspectos da produo cultural brasileira

    23/23

    que tentamos explicitar.Ou seja, as profundas transformaes efetivadas nos modos de

    produo, reproduo e recepo cultural, recortadas num horizonte tcnicopleno de imagens que mudam segundo o ritmo vertiginoso do mercado,

    esto com certeza impressas nos temas, na estrutura e composio de todasas manifestaes artsticas e culturais. Cabe, ento, ao estudioso, a tarefa deanalisar e interpretar essas manifestaes, com vistas a compreendermelhor o mundo em que vive e, se possvel, tentar mud-lo para melhor...

    CRTICA MARXISTA . 91