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Resumo: As novidades introduzidas no CPC despertaram o debate sobre os critérios para a aplicação subsidiária do processo comum ao processo do trabalho. Este artigo recupera conceitos de “lacuna” pro- postos pela filosofia do direito e adverte para as cautelas a serem obser- vadas pelo julgador antes de constatá-la em um caso concreto. O pro- blema é transplantado ao direito processual sob a regência dos princí- pios da “duração razoável do processo” e do “devido processo legal”. O estudo culmina com a análise das peculiaridades do processo do trabalho, especialmente os artigos 769 e 889, da CLT, e oferece explica- ções razoáveis para casos cotidianos. Palavras-chave: ordenamento jurídico; lacuna; subsidiariedade do pro- cesso civil; efetividade; segurança jurídica. Sumário: 1 Introdução; 2 Existem lacunas? O problema da (in)completude do sistema jurídico; 3 Admitidas as lacunas. O pro- blema da constatação; 4 O problema na seara processual; 5 Um proble- ma adicional no processo do trabalho; 6 Apontando soluções para casos ilustrativos; 7 Conclusões; 8 Bibliografia. Adhemar Prisco da Cunha Neto * ASPECTOS DA APLICAÇÃO DO PROCESSO COMUM AO PROCESSO DO TRABALHO 1 INTRODUÇÃO A ausência de critérios cien- tíficos rigorosos para orientar a aplicação do processo comum ao processo do trabalho é ponto que, *Juiz do Trabalho Substituto da 15ª Região. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Graduação e Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba. 1 CHAVES, Luciano Athayde. As lacunas no Direito Processual do Trabalho. In: CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Direito Processual do Trabalho: reforma e efetividade. LTr, 2007, p. 52-96. há muito, causa inquietação. Re- cente trabalho publicado pelo juiz Luciano Athayde Chaves 1 trouxe nova luz aos debates e cla- ramente influenciou o pensamen- to jurídico, como se observa, à guisa de exemplo, na abordagem de Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 31, jul./dez. 2007.

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Resumo: As novidades introduzidas no CPC despertaram o debatesobre os critérios para a aplicação subsidiária do processo comum aoprocesso do trabalho. Este artigo recupera conceitos de “lacuna” pro-postos pela filosofia do direito e adverte para as cautelas a serem obser-vadas pelo julgador antes de constatá-la em um caso concreto. O pro-blema é transplantado ao direito processual sob a regência dos princí-pios da “duração razoável do processo” e do “devido processo legal”.O estudo culmina com a análise das peculiaridades do processo dotrabalho, especialmente os artigos 769 e 889, da CLT, e oferece explica-ções razoáveis para casos cotidianos.

Palavras-chave: ordenamento jurídico; lacuna; subsidiariedade do pro-cesso civil; efetividade; segurança jurídica.

Sumário: 1 Introdução; 2 Existem lacunas? O problema da(in)completude do sistema jurídico; 3 Admitidas as lacunas. O pro-blema da constatação; 4 O problema na seara processual; 5 Um proble-ma adicional no processo do trabalho; 6 Apontando soluções paracasos ilustrativos; 7 Conclusões; 8 Bibliografia.

Adhemar Prisco da Cunha Neto*

ASPECTOS DA APLICAÇÃO DO PROCESSO COMUMAO PROCESSO DO TRABALHO

1 INTRODUÇÃO

A ausência de critérios cien-tíficos rigorosos para orientar aaplicação do processo comum aoprocesso do trabalho é ponto que,

*Juiz do Trabalho Substituto da 15ª Região. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP.Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Graduação e Pós-Graduação daUniversidade do Vale do Paraíba.

1CHAVES, Luciano Athayde. As lacunas no Direito Processual do Trabalho. In: CHAVES, LucianoAthayde (Org.). Direito Processual do Trabalho: reforma e efetividade. LTr, 2007, p. 52-96.

há muito, causa inquietação. Re-cente trabalho publicado pelojuiz Luciano Athayde Chaves1

trouxe nova luz aos debates e cla-ramente influenciou o pensamen-to jurídico, como se observa, àguisa de exemplo, na abordagem de

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Carlos Henrique Bezerra Leite2 arespeito do assunto. De imensa va-lia, o estudo partiu da teoria daslacunas no ordenamento jurídicopara mostrar como ela é pouco exa-minada no direito processual e, me-nos ainda, na seara trabalhista.Culminou com a sólida argumen-tação de que as normas processuaistrabalhistas possuem lacunas nãoapenas normativas, mas axiológicase ontológicas, que, detectadas, de-vem ser preenchidas pelo julgador.A partir daí, identificou nas novi-dades introduzidas no CPC umaferramenta de integração a serviçodo juiz do trabalho.

Ao tempo dessa publicação,eu elaborava um despretensiosoensaio para defender o uso da pe-nhora on line na execução provisó-ria. Influenciado pela ousadia doartigo 475-O, do CPC e instigadopelas históricas discussões sobre oalcance da parte final do artigo899, caput, da CLT (“permitida aexecução provisória até a penho-ra”), havia encontrado na interpre-tação extensiva a resposta que pro-curava. Tomando contato com asidéias do eminente juiz potiguar,deparei-me com a oportunidade deaprofundar minha análise original.

Este artigo é resultado desseconjunto de fatores e serve ao pro-pósito de contrapor os claros fun-damentos apontados por LucianoAthayde Chaves. A narrativa mos-trará como o autor citado logrouseus objetivos científicos, ao desper-tar indagações inconvenientemen-te adormecidas. As respostas?

Aponto algumas, que me parecemadequadas, embora bastante dife-rentes daquelas defendidas no tex-to que me motivou a escrever. Mascomo a temática das lacunas suge-re, elas não são propriamente cer-tas ou erradas. Nossas idéias, aliás,partem do mesmo ponto e, até cer-to momento, trilham o mesmo ca-minho. Distancio-me ao identificaras figuras jurídicas envolvidas nadecisão de adotar uma norma ine-rente ao processo comum.

Embora meu discurso se mos-tre mais conservador, ele não im-pede a aplicação de algumas novasdisposições do CPC. Pelo contrário,aquele ensaio a que me referi noinício – sobre a penhora on line emexecução provisória – servirá, aolado de outros casos ilustrativos,para revelar critérios para a apli-cação do processo comum ao pro-cesso do trabalho, mas distintosdaquele que a propõe como resul-tado da colmatação de lacunas.

2 EXISTEM LACUNAS? O PRO-BLEMA DA (IN)COMPLETUDEDO SISTEMA JURÍDICO

Para que se desenvolva qual-quer teoria vinculada à integraçãode lacunas, é necessário antes veri-ficar se elas realmente existem. Afilosofia do direito é fértil a respei-to. Busco subsídios em apenas trêsautores: Hans Kelsen3 , KarlEngisch4 e Norberto Bobbio5. É osuficiente para demonstrar que otema, em si, já é controvertido.

2LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 5. ed. LTr, 2007, p. 93-103.3KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. 1. reimpr. Martins Fontes, 1995.4ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.5BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. UnB, 1999.

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A iniciar por Kelsen, sua teo-ria pura do direito pregou acompletude do sistema jurídico, apartir do raciocínio de que “umaordem jurídica pode sempre seraplicada por um tribunal a um casoconcreto, mesmo na hipótese deessa ordem jurídica, no entender dotribunal, não conter qualquer nor-ma geral através da qual a condu-ta do demandado ou acusado sejaregulada de modo positivo”6 . Issoconsiste na defesa da possibilidadede regulamentação negativa daconduta. Nessa linha, o que não éjuridicamente proibido, seria permi-tido.

Apesar de não admitir um sis-tema jurídico com lacunas, Kelsentambém não ignorou a hipótese deum tribunal constatar, no momen-to do julgamento, que a ausênciade uma norma jurídica positiva eaté mesmo a aplicação da ordemjurídica vigente pode resultar emsoluções não eqüitativas ou desa-certadas. Para dirimir o problema,sugeriu uma técnica legislativa ca-paz de autorizar o juiz a criar nor-ma jurídica individual adaptada àscircunstâncias não contempladasna lei geral. No entanto, salientouque uma solução dessa ordem équase sempre fundada em uma“presunção não demonstrável”,pois depende unicamente de umcritério valorativo do magistrado.Essa é a razão pela qual foi enfáti-co ao afirmar que “o juiz – e espe-cialmente o juiz de carreira que estásob o controle de um tribunal su-

perior –, que não se sente facilmen-te inclinado a tomar sobre si a res-ponsabilidade de uma criação doDireito ex novo, só muito excepcio-nalmente aceitará a existência deuma lacuna no Direito e, por isso,só raramente fará uso do poder,que lhe é conferido, de assumir olugar do legislador”7 (g.n.).

Engisch, por seu turno, admi-tiu a incompletude do ordenamentojurídico8. Classificou que ele possui“deficiências”: lacunas e incorre-ções. E desde logo advertiu que “alinha de fronteira entre o preenchi-mento de lacunas e a correção jurí-dica nem sempre é nítida e segu-ra”9. Haveria incorreção quando ojuiz é instado a decidir contra legempor causa de contradições técnicas,normativas, valorativas, teleoló-gicas ou principiológicas. Já as la-cunas somente existiriam quando ainterpretação (julgamento secun-dum legem) não bastar para respon-der às questões jurídicas10. Consi-dero importante destacar, portan-to, que o preenchimento de lacunasé uma atividade praeter legem, o queimpõe diferença entre integrar einterpretar.

O autor identificou duas es-pécies principais de lacunas: de legeferenda e de lege lata. “Uma lacunade lege ferenda apenas pode motivaro poder legislativo a uma reformado Direito, mas não o juiz a um pre-enchimento da dita lacuna. Acolmatação judicial de lacunaspressupõe uma lacuna de lege

6Ob. cit., p. 2737Ob. cit., p. 2768”Incompletude insastifatória”, cf. op. cit., p. 2819Ob. cit., p. 27510Ob. cit., p. 280

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lata”11. Seguindo esse raciocínio,observou que as lacunas de lege latapodem ser inerentes à própria re-gulamentação legal, ditas “primá-rias”, ou se manifestarem superve-nientemente, por força da modifi-cação das circunstâncias, hipóteseem que são identificadas como “se-cundárias”.

Dessa abordagem, verifica-seque Engisch estabeleceu diferenteslinhas divisórias: entre lacuna(praeter legem) e incorreção (contralegem), nem sempre nítida e segu-ra; entre a solução através da in-terpretação (secundum legem) e dacolmatação de lacunas (praeterlegem); e entre as lacunas de legeferenda, de interesse exclusivo dolegislativo, e de lege lata, que auto-riza a ação do juiz. Assim, antes deapontar a existência de uma lacu-na, em especial de uma lacuna “se-cundária”, o julgador deve estarseguro sobre o território em queatua, para que não tome uma deci-são de um lado da fronteira, acre-ditando estar do outro. Precisa es-tar certo de que não está sanandouma incorreção ou, diante de umalacuna de lege ferenda, fazendo asvezes do legislador. Não é por ou-tro motivo que o autor tornou cla-ro que, de regra, nos assentamos no“pressuposto de que a interpreta-ção ou qualquer outra utilizaçãometodologicamente adequada dalei nos oferece uma determinada so-lução para uma questão jurídicacomo sendo a única aceitável emface da lex lata”12 , antes de exce-pcionar que “se deixarmos comple-

11Ob. cit., p. 282.12Ob. cit., p. 327.13Ob. cit., p. 329.14Ob. cit., p. 133.

tamente de parte o acordo unâni-me dos adeptos da teoria do Direi-to Livre que, de qualquer modo, es-conjuram toda a vinculaçãoescravizante do juiz à lei, veremosque também certos autores muitomoderados consideram defensável,em casos excepcionais, julgar con-tra legem”13 (g.n.).

A terceira abordagem sobre omesmo problema é feita sob influ-ência do pensamento de Bobbio.Para compreender sua avaliação arespeito das lacunas no orde-namento jurídico, é necessário, an-tes, identificar o critério que ado-tou para classificar as normas. Pararevelar que as normas podem ser“inclusivas” e “exclusivas”, primei-ramente narrou os embates havi-dos entre os adeptos do positivismoe da escola do Direito livre. Descre-veu que, fruto dessa divergência, aspropostas lançadas no início doSéculo XX pelos juristas Zitelmanne Donati trataram a questão dacompletude sustentando que “to-dos os comportamentos não-com-preendidos na norma particular sãoregulados por uma norma geral ex-clusiva, isto é, pela regra que exclui(por isso é exclusiva) todos os com-portamentos (por isso é geral) quenão sejam aqueles previstos pelanorma particular”14. Em suma,uma norma particular, cuja natu-reza é inclusiva, seria sempre acom-panhada de uma norma geral ex-clusiva. À noção de Zitelmann eDonati, Bobbio acrescentou umaterceira espécie de norma, que éinclusiva, mas também é geral, a

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qual denominou “norma geral in-clusiva”. Ilustrou com um disposi-tivo da lei italiana que autoriza ojuiz, em caso de lacuna, a recorreràs normas que regulam casos pare-cidos ou matérias análogas, talcomo ocorre com os artigos 4º, daLICC e, em certa medida, 8º, daprópria CLT. Desse modo, sugereo autor que um determinado com-portamento pode ser regulado: a)pela norma particular (norma in-clusiva); b) de forma oposta, quan-do se trata de um caso não com-preendido na primeira (norma ge-ral exclusiva); c) ou, ainda, de for-ma idêntica, na hipótese de umcaso não compreendido na normaparticular, mas em outra semelhan-te (norma geral inclusiva).

Essa abordagem preliminarsobre o pensamento de NorbertoBobbio é fundamental para que secompreenda sua concepção de la-cuna: “a lacuna se verifica não maispor falta de uma norma expressapela regulamentação de um deter-minado caso, mas pela falta de umcritério para a escolha de qual das duasregras gerais, a exclusiva ou a inclu-siva, deva ser aplicada”15. Esse é o seuconceito de lacunas chamadas pró-prias ou reais. Ao lado delas, tam-bém reconheceu a ocorrência delacunas impróprias ou ideológicas.

Haveria lacuna imprópria ouideológica quando não faltar umasolução, mas uma solução satis-fatória. Em dizeres seus, quando seconstatar “a falta de uma normajusta, isto é, de uma norma que se

15Ob. cit., p. 137.16Ob. cit., p. 140.17Ob. cit., p. 140.18Ob. cit., p. 144.

desejaria que existisse, mas que nãoexiste”16. Essa espécie de lacunasurgiria da comparação entre oordenamento jurídico “como ele é”(real) e “como deveria ser” (ideal).E nesse particular, a conclusão foiclara: “se é óbvio que cada orde-namento tem lacunas ideológicas,é igualmente óbvio que as lacunascom as quais deve se preocuparaquele que é chamado a aplicar oDireito não são as ideológicas, masas reais”17.

É nesse contexto que Bobbioclassificou as lacunas próprias oureais em subjetivas ou objetivas. As“lacunas próprias subjetivas” ocor-reriam quando o sistema jurídiconão define o critério de solução deum caso não regulamentado pornorma particular, se através de nor-ma geral exclusiva ou norma geralinclusiva, por motivo imputável aolegislador. Já as “lacunas própriasobjetivas” também surgiriam quan-do o sistema jurídico não define ocritério de solução de um caso nãoregulamentado por norma particu-lar, se através de norma geral ex-clusiva ou norma geral inclusiva,mas por motivos que “dependemdo desenvolvimento das relaçõessociais, das novas invenções, de to-das aquelas causas que provocamum envelhecimento dos textoslegislativos e que, portanto, são in-dependentes da vontade do legis-lador”18.

Como salientei de início, aquestão é essencialmente contro-vertida. Essa divergência aumenta

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proporcionalmente ao número deteorias sugeridas pelos diferentesjuristas que se puseram a estudar otema. Daí Maria Helena Diniz terresumido muito bem: “A problemá-tica das lacunas no direito é umaquestão sem saída; sobre ela não háresposta unânime, devido àpluridimensionalidade do direito,que contém inúmeros elementos he-terogêneos, o que dificulta umaabordagem unitária do tema. Se le-vantarmos todas as concepções desistema – dinâmico ou estático;aberto ou fechado; unitário ou com-posto de vários subconjuntos – de-vido à íntima conexão entre ele e alacuna, ‘teríamos um amontoadode opiniões incapaz de nos guiarno labirinto do problema’, o que de-monstra que a questão das lacunascontinua aberta. De forma que,quando o jurista se põe a pensarsobre o que se deve entender porlacuna, parece-nos que não podetomar as posições doutrináriascomo definitivas, nem tampoucoadotar uma posição, excluindo asdemais, mas sim lançar mão de umexpediente muito simples: expor otema sob uma forma problemáti-ca.”19

3 ADMITIDAS AS LACUNAS. OPROBLEMA DA CONSTATAÇÃO

Acolhendo o ensinamento deMaria Helena Diniz, proponho-mea prosseguir a partir de uma abor-dagem problemática. Admitir a exis-tência de lacunas no sistema jurídi-

co é a primeira questão a ser supe-rada pelo julgador, como ficou far-tamente demonstrado. Aceita aincompletude do sistema jurídico, osegundo problema está em iden-tificá-las para, posteriormente,preenchê-las. Esse desafio apareceno instante em que o julgador ava-lia a adequação da norma ao caso.Para Kelsen, há ficção de lacunaquando a norma ou a ausência delapossa conduzir a resultado, que soba concepção ético-política do juiz,pareça inadequada. Na lição deEngisch, haverá lacuna passível deser suprida pelo juiz quando não forpossível solucionar a questão jurídi-ca com a interpretação, mesmo queextensiva. Segundo Bobbio, é neces-sária a ausência de critério de solu-ção de conflito entre norma geral ex-clusiva e norma geral inclusiva.

A avaliação do magistradosobre o conteúdo da norma possuiverdadeiro cunho valorativo ou,por assim dizer, “axiológico”. Emi-tir um juízo de valor a respeito doconteúdo normativo não o exime,porém, de adotar uma abordagemlógica. Atendendo a essa exigênciae considerando que não existemrespostas absolutas para o proble-ma das lacunas, mostram-se úteisao julgador as chamadas “lógicasdo concreto”20 . Esses mecanismoslógicos se levantam contra a redu-ção do raciocínio jurídico a umasimples aplicação dedutiva da lei aofato. Por tal razão, não objetivamdemonstrar, mas investigar e des-cobrir uma solução plausível para

19DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 3. ed. Saraiva, 1995, p. 119-120.20MONTORO, André Franco. Lógica jurídica, ferramenta do jurista. In: DI GIORGI, Beatriz;

CAMPILONGO, Celso Fernandes; PIOVESAN, Flávia (Coordenadores). Direito, cidadania ejustiça: ensaios sobre lógica, interpretação, teoria, sociologia e filosofia jurídicas. Revista dosTribunais, 1995, p. 20.

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o caso. Nelas se encontram a “ar-gumentação tópica”, resgatada porTheodor Viehweg, e a “Lógica dorazoável”, de Luís Recaséns Siches.

A tópica se exprime pela téc-nica do “pensar através de proble-mas”. Apresentada a questão a sersolucionada, “procura assinalar su-gestões e indicar possibilidades,desvendando caminhos, tendo porfim uma decisão”21. A respostaalcançada não será verdadeira oufalsa, mas aceitável ou inaceitável,defensável ou indefensável. E, pornão se prender a um raciocínio pu-ramente silogístico, concorda que seutilize a intuição como guia. Comisso, a busca pelo justo se opera pri-meiro pela convicção, o que com-preende os sentidos e emoções dojuiz. O raciocínio ou demonstraçãovem depois, para legitimar a deci-são.

A importância da intuiçãotambém é salientada na Lógica dorazoável, como ilustra Lídia Reis deAlmeida Prado22:

“Relativamente à sentença éessa também fruto de estimativa,que alguns autores, como JeromeFrank, denominam de valoração in-tuitiva: segundo a posição desseautor, corroborada por Siches, ojuiz, para chegar à intuição sobre ajustiça do caso concreto, não sepa-ra sua opinião sobre os fatos dasdimensões jurídicas desses fatos: aintuição é um complexo integral eunitário, que engloba os dois aspec-tos: ‘fatos’ e ‘Direito’.

Quanto a esse aspecto, formu-la Siches duas observações: primei-ramente entende que a intuição dojuiz acha-se embasada na lógica dorazoável. Por isso, adverte (é essa asegunda observação), que quando sefala em o juiz procurar uma justifi-cativa para o que pressentiu intuiti-vamente, tal não significa que devarecorrer àquelas pseudo-motivaçõeslógico-dedutivas, de que se serviramos juristas no séc. XIX. Basta ofereceruma justificação objetivamente váli-da, com embasamento na lógica dohumano.

Além dos critérios axiológicosextraídos do ordenamento jurídicopositivo, o nosso autor aponta paraas valorações complementares, noscasos de lacunas que devam serpreenchidas, apesar de não contero ordenamento valor aplicável. Emtais hipóteses o juiz deverá decidirrecorrendo ao que considera ‘jus-to’, isto é, de acordo com os princí-pios da estimativa jurídica que achaválidos. Constitui esta a única ex-ceção à regra de que o juiz devavalorar de acordo com os princípiosaxiológicos da ordem jurídico-po-sitiva vigente.”

A busca pela solução maisjusta possível através da lógica dorazoável é, como se lê no trechotranscrito, uma tarefa impregnadade juízo axiológico. De se registrar,porém, a observação que MariaHelena Diniz tece a respeito dessaidéia, e sem a qual o leitor poderiaextrair conclusão equivocada a res-peito do pensamento de Siches:

21DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 123-124.22PRADO, Lídia Reis de Almeida. Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do

direito (Segundo a visão de Luís Recaséns Siches). In: DI GIORGI, Beatriz; CAMPILONGO, CelsoFernandes; PIOVESAN, Flávia (Coordenadores). Direito, cidadania e justiça: ensaios sobre lógica,interpretação, teoria, sociologia e filosofia jurídicas. Revista dos Tribunais, 1995, p. 68.

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“nem por sombra sua doutrina tema veleidade de propugnar um di-reito livre contra legem, pois a ativi-dade interpretativa e integradorado juiz não está autorizada a sal-tar além do ordenamento jurídicovigente, terá que se ater ao âmbitodo mesmo, devendo, contudo, darao caso concreto a solução que fora mais justa possível”23.

Não obstante a clara observa-ção de que a procura do justo tenhaa lei como parâmetro, considerooportuno investigar um pouco maissobre o que se deve compreender por“justo”. A respeito, Goffredo TellesJunior24 perquire so-bre o que fazer quan-do a seca aplicaçãoda letra da lei leva aresultados que pare-cem iníquos. Aponta,então, duas dimen-sões para o “justo”: o“justo por conven-ção”, resultado deuma experiência devida, após um proces-so de convivência ede relacionamento humano; e o “jus-to por natureza”, que independe deconvenções porque decorre da sim-ples natureza das coisas. O “justo porconvenção” se reflete em normas, ju-rídicas ou não, nada tendo de uni-versal ou imutável. Daí indicar a ne-cessidade de extrair da lei sua verda-deira intenção, sugerindo o uso daprópria lógica do razoável. E, paraconfirmar o real alcance desse méto-do investigativo, sacramenta: “o quequeremos é nos submeter à lei, não aoarbítrio do juiz, não às teorias ou cren-

23Op. cit., p. 133.24TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. Saraiva, 2001, p. 360.

“...para legitimar sua decisão, o

julgador deve conhecer as teo-

rias que admitem essas espéci-

es de lacunas, sob o risco de,

em nome delas, proferir um jul-

gamento contra legem.”

ças subjetivas do juiz, à revelia da lei”.

Tudo isso revela que aceitar econstatar uma lacuna é tarefavalorativa do julgador. Se, utilizan-do a intuição para buscar a solu-ção que lhe pareça a mais justa,concluir pela existência e necessi-dade de preenchimento de uma la-cuna, tem a liberdade de adotaruma ou outra corrente doutrinária,pois não existem, a respeito, respos-tas definitivas. Essa opção, no en-tanto, depende da observação fieldas propostas contidas na teoriaadotada, sob pena de afastar a le-gitimidade da decisão.

De todo modo,é preciso que o juizesteja certo, antes deconcluir pela existên-cia de uma lacunanormativa, de queesgotou, pelo uso detécnicas interpre-tativas, as possibili-dades de extrair dopróprio texto legal asolução adequadaao caso. Com maior

razão, o juiz deve evitar abando-nar a investigação dos valores con-tidos na lei, sob pretexto de que es-tão ultrapassados. Isso sugere espe-cial cautela antes de propugnar aexistência de uma lacuna axiológicaou ontológica. É preciso, em primei-ro lugar, estar realmente certo deque os valores ou as práticas vigen-tes são diferentes daqueles contidosna norma. Além disso, para legiti-mar sua decisão, o julgador deve co-nhecer as teorias que admitem es-

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sas espécies de lacunas, sob o riscode, em nome delas, proferir um jul-gamento contra legem.

4 O PROBLEMA NA SEARAPROCESSUAL

O problema da existência ounão de lacunas é comumente estu-dado de forma abstrata. Os exem-plos dos juristas geralmente sãoextraídos do direito material, emespecial das áreas penal e civil. Pou-co se questiona sobre sua existên-cia no espaço do conhecimento ju-rídico destinado a cuidar do instru-mento de efetivação do direito ma-terial: o processo. É salutar, porém,verificar que existem processua-listas atentos à questão. Melhor ain-da quando se constata a orientaçãorevelada por Cândido RangelDinamarco25:

“É certo que o juízo do bem edo mal das condutas huma-nas é feito em primeiro lugarpelo legislador e depositadono texto da lei, mas tambémninguém desconhece queesta, uma vez posta, se des-taca das intenções de quem aelaborou e passa a ter o seupróprio ‘espírito’; a mens legiscorresponde, assim, ao juízoaxiológico que razoavelmen-te se pode considerar comoinstalado no texto legal. Aojuiz cabe esse trabalho de des-coberta.”

Mais adiante, contudo, o au-tor adverte26:

25DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. Malheiros, 2003, p. 360.26Op. cit., p. 362.27Op. cit., p. 364.

“Daí, porém, não deve ema-nar a idéia de uma carga ex-cessiva e perigosa de poderesentregues ao juiz. Legisladorele não é e, com as ressalvaspostas, sempre continua ojuiz sujeito à lei. Aquele que,a pretexto de dar a esta umainterpretação evolutiva, pre-tender impor soluções suaspersonalíssimas, decorrentesde suas opções políticas,crenças religiosas, preconcei-tos, preferências, etc., estarácometendo ilegalidade e suadecisão não será legítima.”

Observe-se como a fala doeminente processualista coincidecom as noções anteriormente des-critas. Os dois trechos demonstramque o estudioso do direito proces-sual deve estar absolutamente cons-ciente dos papéis reservados à lei eao magistrado. Admitem perfeita-mente que o juiz realiza uma tare-fa impregnada de valores (ativida-de axiológica), salientam a impor-tância de investigar a vontade dalei (lógica investigativa), mas nãoabandonam a exigência de condu-zir o raciocínio secundum legem ou,nas lacunas, praeter legem. Não épor outra razão que Dinamarco27

conclui que nada excluiria do direi-to processual os temas ligados à boainterpretação, já que o juiz é o in-térprete da ordem jurídica positi-vada e lhe cabe atuar segundo re-gras processuais.

Pois se a atividade do juizpersegue a efetividade através dasregras processuais, cumpre-me res-

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gatar seus princípios constitucio-nais mais importantes: o festejadoe recém-elevado a esse patamar“duração razoável do processo”(artigo 5º, LXXVIII); o antigo agen-te da segurança jurídica “devidoprocesso legal” (artigo 5º, LIV). Nãohá supremacia de um sobre o ou-tro. Na realidade, ambos coexisteme, como tal, devem ser conjunta-mente considerados no momentoda investigação sobre o verdadeiroespírito da lei processual. Como oprocesso tem um destino – aefetividade –, desde o início é co-nhecida a direção a seguir. Quemindica o caminho e omomento de ser maisou menos célere é odevido processo le-gal. Utilizando umalinguagem metafóri-ca, pode-se afirmarque o objetivo é fa-zer com que a jorna-da chegue ao fim nomínimo de tempopossível, mas semdesrespeitar os si-nais encontrados nopercurso ou tomar atalhos proibi-dos. Sob o pretexto de chegar maiscedo, aquele que não observou ossinais ou seguiu caminhos errados,agiu contra legem. E se a contrarie-dade à lei é genericamente encara-da com grande restrição, com mai-or razão quando se exige o respeitoao devido processo “legal”.

Não estou a postular a prima-zia da forma sobre a instrumen-talidade, pois o papel do processonão se exaure em si próprio. Noentanto, se o apego ao formalismo

28DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit. , p. 329.

“É evidente que a celeridade éparte essencial para a concre-tização do sentimento de “justi-ça” e não há quem, em sã cons-ciência, a renegue. O resultadoágil não será útil, todavia, seprovocar lesão, ao invés derepará-la.”

não pode transformá-lo em um ca-minho cheio de armadilhas, o mes-mo há de ser dito em relação ao des-respeito à forma, ignorada emnome de um procedimento presu-midamente mais célere. É evidenteque a celeridade é parte essencialpara a concretização do sentimen-to de “justiça” e não há quem, emsã consciência, a renegue. O resul-tado ágil não será útil, todavia, seprovocar lesão, ao invés de repará-la. Por isso, “o processo bem estru-turado na lei e conduzido racional-mente pelo juiz cônscio dos objeti-vos preestabelecidos é o melhor pe-

nhor da segurançados litigantes”28.

No esteio detudo o que foi dito, omelhor a se fazer éconfiar à lei a tarefade oferecer o ferra-mental adequadopara que o magistra-do possa cumprir opropósito de alcançaros resultados espera-dos no menor espaço

de tempo possível. É claramente issoo que se pretendeu com as diversasinovações ao CPC. Dada a lei, ojulgador ficará incumbido de colhero que há de mais justo em seu con-teúdo. Não sendo possível decidiratravés da interpretação, atuará aolado da lei, como é possívelexemplificar no artigo 649, §2º, doCPC. Esse dispositivo afirma que osganhos decorrentes do trabalho nãoserão considerados impenhoráveisquando se tratar de pagamento deprestação alimentícia. A lei não es-tabelece um percentual para a rea-

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lização da penhora, mas é bastanteprovável que, no caso concreto, o juizverifique que o bloqueio integral con-duzirá a resultado indesejável. Nadaimpede, portanto, que exprimajuízo de valor sem afrontar a lei e,agindo praeter legem, restrinja a pe-nhora ao percentual que considerajusto e razoável.

5 UM PROBLEMA ADICIONALNO PROCESSO DO TRABA-LHO

O direito processual do traba-lho possui duas características queinteressam ao tema em análise. Pri-meiro que os instrumentos coloca-dos à disposição do juiz do traba-lho pela CLT possuem o propósitode conferir celeridade ao processo.Muito antes que o princípio da du-ração razoável fosse erigido ao pla-no constitucional, já era expressono artigo 765. Além disso, tacita-mente regia a disciplina de diver-sos institutos, como, por exemplo,a imediata designação de audiên-cia, a concentração dos atos em au-diência, a irrecorribilidade de ime-diato das decisões interlocutórias ea exigência de depósito para finsrecursais. A segunda característica,que ladeia o propósito de celeri-dade, corresponde à aplicação sub-sidiária do processo comum. O ar-tigo 769, da CLT se refere a casosomissos, enquanto o 889 prevê aaplicação, naquilo em que houverconvergência, da lei dos executivosfiscais. Como o artigo 1º, da Lei6.830/80 menciona a aplicaçãosubsidiária do CPC, é lá que o pro-cesso do trabalho também acaba

29Op. cit., p. 60.

desaguando em matéria de execu-ção.

As grandes indagações a se-rem respondidas são: a) se o silên-cio da CLT a respeito dos mais di-ferentes temas do processo configu-ra lacuna; b) em caso positivo, seos artigos 769 e 889 oferecem me-canismos de colmatação. LucianoAtahyde Chaves29 assinala que “nocampo do Direito Processual doTrabalho, somente seria possível sefalar em completude se se conside-rar, por ficção legal, a cláusula dasubsidiariedade prevista no art. 769da CLT como elemento integrativoformal do sistema”. Aqui pareceresidir o ponto mais importante so-bre o qual pretendo lançar um olhardiferente.

Está claro que existem leitu-ras que conferem completude aosistema jurídico. Não é menos evi-dente que o legislador é incapaz deprever todas as situações futuras,razão pela qual reputo correto afir-mar que a lei ganha alma ao entrarem vigor. Fica, então, desvinculadade seu criador, cabendo ao julgadorverificar seu significado mais ade-quado no instante da aplicação aocaso concreto. Em diversas ocasiõesvai se deparar com situações ines-peradas, quando, de um modo ououtro, será obrigado a lidar com aquestão das lacunas. Se as admite,ingressará no universo de alterna-tivas oferecidas pela ciência do di-reito. Se as nega, mesmo assim con-tinuará obrigado a buscar a deci-são, por não lhe ser dado negá-la,momento em que tangenciará a teo-ria das lacunas, nem que seja paraenxergar nelas uma ficção.

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Sob influência de um pensa-mento problemático, aceito que oordenamento jurídico possui lacu-nas e que é tarefa do juiz integrá-las. Ao adotar essa linha, devo ne-cessariamente admitir que isso seaplica ao direito material e ao di-reito processual. Apontei no artigo649, §2º, do CPC a possibilidade dedecisão praeter legem. Pois se o pro-cesso comum admite lacunas, nãohaveria de ser diferente com o pro-cesso do trabalho. Ocorre que nãovislumbro no silêncio legislativo daCLT, em primeiro plano, a hipóte-se de lacuna. É possível que ela ve-nha a ser constatada posteriormen-te, mas, para tanto, o juiz deve,antes, se valer das normas subsi-diariamente aplicáveis. Isso se tor-na perfeitamente compreensívelquando não se trabalha com a exis-tência propriamente de um “orde-namento jurídico processual traba-lhista” e outro “ordenamento jurí-dico processual comum”. Ao se re-conhecer que integram o mesmosistema jurídico, estará afastada aidéia de que a omissão da CLT equi-vale a lacuna e, conseqüentemen-te, que os artigos 769 e 889 estabe-lecem critérios para sua colma-tação.

Utilizo, então, dois vocábulosparecidos para expressar significa-dos bastante diferentes. A CLTpode assumir característica “lacu-nosa”, mas somente depois que oCPC, a Lei dos Executivos Fiscaisou até mesmo outras normas pro-cessuais, como é o caso de algumasdisposições do Código de Defesa doConsumidor ou da lei que regula aação civil pública, também não fo-rem capazes de apontar soluçãopara o caso concreto. Nesse caso,caberá ao juiz preencher o vazio

legal, utilizando técnicas de inte-gração, como a analogia, os costu-mes, os princípios gerais de direitoou, em última instância, a eqüida-de. Voltando ao exemplo da penho-ra de rendimentos, existe lacunaquanto ao percentual e ela está pre-sente tanto no direito processualcomum, como no trabalhista. Deoutra parte, se a CLT não oferecerresposta, mas ela for alcançada comauxílio do processo comum, serámeramente “lacônica”, pois basta-rá a atividade interpretativa. En-tende-se por “lacônica” o fato deser sucinta na descrição dos proce-dimentos específicos, remetendo aoprocesso comum a disciplina dosgenéricos. Logo, se adoto um pre-ceito do processo comum no pro-cesso do trabalho, não o faço poranalogia, em vistas ao preenchi-mento de uma lacuna, mas porqueele verdadeiramente regula a situ-ação concreta, por expressa auto-rização da CLT.

Situação especial ocorrequando a CLT e o processo comumtratam, ambos, do mesmo assunto,mas de formas diferentes. Esse con-flito de conteúdo entre normas ju-rídicas positivadas exige um crité-rio capaz de identificar qual delasé a aplicável. A saída não pode seresumir a um juízo exclusivamentevalorativo e casuístico do julgador.De regra, para a solução de umaantinomia se apresentam diferen-tes critérios válidos, como a hierar-quia e a cronologia, por exemplo.Nenhum desses é, a rigor, o maisindicado para dirimir contradiçõesentre disposições do processo dotrabalho e do processo comum.Mostra-se mais pertinente o crité-rio da especialidade, o que não dei-xa de ser uma conseqüência da pró-

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pria exigência normativa30 de com-patibilidade, prevista nos artigos769 e 889, da CLT. Tradicionalmen-te, aliás, houve certo consenso a res-peito. Como a CLT era mais “arro-jada” e o CPC, “tradicional”, nãoera comum questionar a opção pelaespecialidade da CLT. Hoje, porém,vivemos um momento paradoxal,em que as disposições processuaistrabalhistas se confrontam com umconteúdo processual comum supos-tamente mais moderno. É o queacontece nitidamente quando secomparam os artigos 880, 882 e 884,da CLT com o 475-J, do CPC.

A situação especial descritanão revela, porém, a existência delacunas, ao menos daquelas queinteressam ao jurista. Sob o prismade Kelsen, a aplicação da CLT éresultado direto da existência danorma vigente. A partir doensinamento de Engisch não cons-tato “lacuna de lege lata secundá-ria”. Para quem acredita que o CPCtornou-se mais moderno que a CLT,e essa é uma sensação bastante pre-sente neste primeiro momento, aexistência de um critério que indi-ca a aplicação da norma mais es-pecífica mostra que, na verdade,esse julgador alimenta o desejo deque a lei processual trabalhista fos-se diferente. A circunstância seaproxima muito mais de uma “la-cuna de lege ferenda”, o que se cor-robora pela existência do Projeto deLei n. 7.152/200631, cujo propósitoé justamente alterar a redação doartigo 769, da CLT. Por derradei-ro, na concepção de Bobbio, a res-posta se repete. Não vislumbro uma

30FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.2. ed. Atlas, 1996, p. 211.

31CHAVES, Luciano Athayde, op. cit., p. 86.

“lacuna própria objetiva”, masuma lacuna puramente “imprópriaou ideológica”. Relembre-se que ateoria desse jurista somente aceitaa presença de lacuna real quandoo caso puder ser solucionado atra-vés de uma “norma geral exclusi-va” e, ao mesmo tempo, de uma“norma geral inclusiva”, sem queexista critério que indique o cami-nho a se adotar. Não é esse o caso.

6 APONTANDO SOLUÇÕESPARA CASOS ILUSTRATIVOS

6.a Citação, nomeação de bens àpenhora e embargos à execução

O primeiro problema, e talvezde maior visibilidade, se refere aosincretismo do novo processo civil.A execução se transformou em fasedo processo, o que resultou na dis-pensa da citação para pagamento.De acordo com o novo artigo 475-J,do CPC, o devedor fica obrigado acumprir a sentença originalmentelíquida ou tornada líquida no pra-zo de quinze dias, sob pena de ar-car com multa de 10% sobre o mon-tante da condenação. Além disso,não terá oportunidade de oferecerbens à penhora, pois o §3º autorizao exeqüente a, desde o início, indi-car os bens a serem penhorados.Realizada a penhora, segue aintimação do executado, que podeser feita na pessoa do advogado,momento em que passa a correr oprazo de quinze dias para o ofere-cimento de impugnação, tal comodescreve o §1º.

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Ao mesmo tempo, o artigo880, da CLT, permanece formal-mente íntegro, inclusive após a al-teração introduzida pela Lei11.457/2007, ao dispor sobre a ne-cessidade de citação do executado.O §2º exige que a citação seja reali-zada por oficial de justiça e o §3º,que ela ocorrerá por edital, quan-do não encontrado. O prazo parao pagamento é de 48 horas e o arti-go 882 mantém a figura da nomea-ção de bens à penhora. A CLT nãomenciona a hipótese da multa pelonão cumprimento, nem a forma deintimação da penhora, mas estabe-lece no artigo 884 o prazo de cincodias para oposição dos embargos àexecução, a contar da garantia daexecução.

Os primeiros meses de vidado artigo 475-J, do CPC, têm sidointeressantes sob o prisma científi-co e confirmam a importância deuma técnica apurada de aplicaçãodo processo comum ao processo dotrabalho. Neste particular, háantinomia entre os conteúdos daCLT e do CPC, sendo certo que al-guns juízes refutam a aplicação doCPC, enquanto outros defendemardorosamente a substituição, porcaducidade, da disciplina previstana CLT. Há, ainda, os que impor-tam do direito material do trabalho,ainda que inconscientemente, no-ções da “teoria da acumulação”32

para justificar o aproveitamento departes de uma ou outra norma, oque acaba por transformar o pro-cesso em uma verdadeira “colchade retalhos”. No meio de tanta in-decisão está o jurisdicionado, queenfrenta dificuldade para visualizar

32PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. LTr, 1993, p. 57-59.

com clareza o “devido processo le-gal aplicável ao seu caso”.

Embora existam argumentosplausíveis independentemente daperspectiva adotada, as idéias de-fendidas neste estudo me condu-zem a sustentar que, sob o prismanormativo, a CLT é mais específi-ca. Isso indica sua aplicabilidade,em detrimento das inovaçõestrazidas pelo CPC. O uso desse cri-tério para a solução do problemasomente foi possível porque nãodetectei nesse confronto de conteú-dos normativos a hipótese de lacu-na, mas de antinomia.

Acrescente-se que a prudên-cia indica suspeita sobre a afirma-ção de que a CLT, sob os prismasaxiológico e ontológico, padece decaducidade. Há de se cuidar paranão estimular uma prática contralegem generalizada (desrespeito aocritério da especialidade), o que re-sultaria em grave risco de investiro juiz na condição de legislador.Não há como saber como o proces-so civil vai se comportar diante detamanha inovação. A imposição damulta de 10%, por exemplo, vai serevelar compensadora do ponto devista processual, mesmo quandocausar lesão àquele que deixou decumprir a sentença por não possuircondições para tanto? A falta de co-nhecimento técnico para questionara ordem judicial ou a má orienta-ção jurídica do devedor, dada a di-ficuldade de se desenhar a linhalimítrofe entre o processo do traba-lho e o processo comum, são pro-vas empíricas de que o procedimen-to é eficaz? A multa é boa puniçãopara o devedor que age de má-fé,

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mas isso não acontece em todos oscasos. Portanto, para fins investi-gativos, impõe-se uma indagaçãohipotética, sem importar, por ora,o que vai efetivamente acontecer:se o tempo se encarregar de mos-trar que as inovações do CPC nãopassaram de uma tentativa frustra-da de conferir efetividade ao pro-cesso, trazendo mais malefícios quebenefícios, a CLT recuperaria seuvalor e sua atualidade social? É umbom tema para reflexão.

6.b Remessa ex officio

O Decreto-Lei 779/69 dispõeexpressamente quenos processos peran-te a Justiça do Tra-balho, constituemprivilégio da União,dos Estados, do Dis-trito Federal, dosMunicípios e das au-tarquias ou funda-ções de direito públi-co federais, estaduaisou municipais quenão explorem ativi-dade econômica o “recurso ordiná-rio ex officio das decisões que lhesejam total ou parcialmente contrá-rias”. Discute-se se a Súmula 303,I, do TST, ao aceitar as exceções pre-vistas no artigo 475, §§2º e 3º, doCPC teria comprovado empirica-mente a existência de lacuna axioló-gica ou ontológica no texto do De-creto-Lei33. A partir da compreen-são de que o processo do trabalho eo processo comum integram o mes-mo sistema jurídico, defendi que oconflito de conteúdos entre normasreguladoras de um e de outro nãoconfigura lacuna, mas antinomia,

33CHAVES, Luciano Athayde, op. cit., p. 71.

“...se o tempo se encarregar de

mostrar que as inovações do

CPC não passaram de uma ten-

tativa frustrada de conferir

efetividade ao processo, tra-

zendo mais malefícios que be-

nefícios, a CLT recuperaria seu

valor e sua atualidade social?”

preferivelmente solucionada pelocritério da especialidade. Esse ca-minho ajudou a resolver o primei-ro caso ilustrativo. O leitor deve,então, estar se perguntando se aSúmula do TST não contrariariaesse raciocínio, já que, à primeiravista, o Decreto-Lei seria mais es-pecífico que o CPC. Em resposta,relembro, primeiramente, que o pro-blema tratado é uma aporia, poiscomporta diferentes conclusões vá-lidas, mesmo que contrárias. Nessetipo de pesquisa, não lidamos como verdadeiro e o falso, mas com oplausível. Ainda assim, pretendo

demonstrar que umsimples trabalho deinterpretação dasnormas envolvidas éo bastante para legi-timar a conclusãoalcançada pelo TST.

Antes de qual-quer avaliação é im-portante observarque a norma destina-da a regular a re-messa ex officio no

processo do trabalho não integra aCLT. Diante do silêncio original doinstrumento normativo consolida-do, o Decreto-Lei não veio para criarregra especial, mas para dirimireventuais dúvidas interpretativassobre a aplicação das tradicionaisvantagens processuais concedidasaos entes públicos, tornando claroque elas também deveriam ser ob-servadas no processo do trabalho.A norma em comento não excep-cionou as hipóteses de condenaçõesde pequena monta ou fundadas emjurisprudência uniforme dos tribu-nais superiores simplesmente por-

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que o ordenamento jurídico nãooferecia, até então, outros parâ-metros. Posteriormente, as exceçõesforam introduzidas ao CPC, sem al-teração do antigo Decreto-Lei, cujaredação, se não excepciona, tam-bém não expressa que todas as de-cisões contrárias aos entes públicosdevem se sujeitar ao duplo grau dejurisdição obrigatório. Essa circuns-tância não criou lacuna axiológicaou ontológica porque a necessida-de de proteção do patrimônio pú-blico contra eventuais omissõesprocessuais do administrador con-tinua exigível e desejável. Houves-se caducidade, o CPC padeceria domesmo mal. Sendo o mesmo bemjurídico tutelado, não haveria comoentender que essa proteção fossejustificável no processo comum,mas não no processo do trabalho.Isso confirma que há aqui aparen-te antinomia entre as duas normas,o que comporta uma investigaçãomais detalhada sobre comosolucioná-la.

Posto dessa forma, o primeiroponto a ser debatido é se o critériodo artigo 769, da CLT, serve paradirimir esse aparente atrito. O pre-ceito é genérico em sua primeiraparte: “nos casos omissos, o direitoprocessual comum será fonte subsi-diária do direito processual do tra-balho”. Se o Decreto-Lei, emboranão sendo parte integrante da CLT,dirige sua disciplina ao processo dotrabalho, o critério examinado seapresenta como meio legal para sa-nar a controvérsia. A parte final dotexto do mesmo artigo 769, quandoveda expressamente a incompatibi-lidade “com as normas deste Títu-lo”, não impede a conclusão alcan-

çada. Ao contrário, essa redaçãofacilita sua aplicação, pois, de certomodo, separa o texto legal perten-cente do não-pertencente à CLT. Sea norma que conflita com dispositi-vo do processo comum está contidana CLT e, portanto, no Título quetrata do “Processo Judiciário do Tra-balho”, como ocorreu no caso ante-rior, sua própria existência represen-tará problema adicional à adoção dafonte subsidiária. Diferentemente, seo conflito ocorre exclusivamentecom norma não contida na CLT, oque é o caso, o problema pode serresolvido apenas com o exame daexpressão “nos casos omissos”.

A avaliação sugerida se resol-ve mediante exclusivo emprego detécnicas interpretativas. Conhece-dor do propósito original do Decre-to-Lei 779/69, o intérprete, na bus-ca pelo significado mais justo quese pode extrair da norma, saberáque seu objetivo não foi criar nor-ma especial para o processo do tra-balho, mas uniformizar os benefí-cios dirigidos ao ente público, inde-pendentemente de ser parte no pro-cesso do trabalho ou no processocomum. Por isso, o silêncio sobre aexistência de exceções para a re-messa ex officio é capaz de compa-tibilizar as normas em aparenteantinomia, pois, diferentemente daimpressão inicial, as normas não seexcluem, mas se complementam.Não há o que censurar no posi-cionamento jurisprudencial do TST,sem que isso necessariamente repre-sente a constatação empírica de queo problema foi resolvido através daintegração de uma lacuna. A cons-trução interpretativa ocorreu intei-ramente secundum legem.

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6.c A convalidação de ato proces-sual contrário à norma aplicá-vel ao caso

Como o leitor sabe e tive aoportunidade de salientar em ou-tra passagem, o processo persegueum resultado. Seu caráter instru-mental não recomenda que seja umfim em si mesmo, pois está a servi-ço da concretização do direito ma-terial. Vale aqui a advertência an-teriormente assinalada, atribuída aDinamarco34 , que propaga a segu-rança jurídica através de um pro-cesso bem estruturado na lei, con-duzido por um juiz cônscio dosobjetivos. Esses dois fatores confe-rem segurança porque, juntos, pro-porcionam uma “formalidade equi-librada”. Neste tópico, meu propó-sito é demonstrar como em algunscasos os princípios inerentes ao di-reito processual possibilitam que seutilize norma do processo comum,mesmo que exista disposição ex-pressa na CLT. Tudo sem desres-peitar o devido processo legal e tam-bém sem a necessidade de vislum-brar a ocorrência de lacunas.

A teoria das nulidades dosatos processuais é construída demodo a causar o mínimo de impac-to ao processo. Por isso, dentre osprincípios que a orienta exige-se oprejuízo35. Não é outra a propostado artigo 794, da CLT. Esse dispo-sitivo não foi concebido como cri-tério de solução de antinomias,menos ainda para preencher lacu-nas. Mas será invocado quandouma norma do processo comum forutilizada no lugar de outra expres-samente prevista para o processo

34Vide nota 28.35CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO; Cândido

Rangel. Teoria geral do processo. 23. ed. Malheiros, 2007, p. 366-367.

do trabalho, mesmo que sejam con-traditórias, caso o objetivo do atoseja alcançado. Nessa situação, aaplicação do processo comum nolugar do processo do trabalho éaceita não porque se constatou al-guma lacuna. Nem porque assimindicou algum critério normativode solução de controvérsia, como osartigos 769 e 889, da CLT. Em tese,decidiu-se contra legem, o que con-figura uma ilegalidade. Nãoobstante, a instrumentalidade dasformas convalida esse ato e impe-de que se declare a nulidade. A nãoser que a forma seja exigência deordem pública, caso em que a nuli-dade será absoluta.

A circunstância descrita aju-da a explicar o aparente abandonode determinadas formalidadesconstantes da CLT. São os casos dosartigos 830, que trata da forma deapresentação de documentos, e827, que se refere a “peritoscompromissados”. É até possívelque, de lege ferenda, se recomende arevisão. Enquanto o legislador nãoemite esse juízo valorativo, suainobservância é convalidada pelaausência de prejuízo na adoção deoutra forma lícita capaz de atenderseus objetivos. Trata-se de umanota característica do direito pro-cessual.

6.d Aplicação do Direito Proces-sual Comum como resultadoda interpretação extensiva

Como narrei na introdução,quando tive contato com as idéiasde Luciano Athayde Chaves e de-cidi aprofundar meu estudo, eu

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preparava um pequeno texto noqual defendia a ampliação do usoda penhora on line. Naquela oca-sião, com o propósito de legitimarmeu pensamento, abordei a atualdisciplina dada pelo CPC à execu-ção provisória. Pois confesso queapós considerar encerrado aqueletrabalho, temi me convencer deidéias contrárias às que havia an-teriormente defendido. Mas a aná-lise cuidadosa a que me propusmostrou que era infundado esse te-mor.

Os conceitos introduzidos aoCPC inegavelmente trouxeram no-vos elementos à tarefa interpre-tativa. O princípio da duração ra-zoável impregnou a norma proces-sual com valores que privilegiam aceleridade, muitas vezes em detri-mento de antigos dogmas. Os dife-rentes aspectos do processosincrético são bons exemplos do queafirmo. Por isso, mesmo não admi-tindo sua inteira aplicação, masaceitando que a maioria dos con-ceitos, regras e princípios são ine-rentes a uma teoria geral do pro-cesso, devo reconhecer que se fa-zem sentir seus efeitos no processodo trabalho.

Tecido esse breve comentário,volto à questão da execução provi-sória, cuja regulamentação é dasque maiores poderes conferem aojuiz. Esse ponto mostra nitidamen-te como se dá, no plano legislativo,a interação entre “devido processolegal” e “duração razoável do pro-cesso”. O magistrado foi autoriza-

36Pela conotação de “segurança jurídica” adotada neste trabalho, mostra-se mais apropriadoutilizar, neste momento, o vocábulo “certeza” no lugar de “segurança”

37ALMEIDA, Isis de. Manual de Direito Processual do Trabalho. 9. ed. LTr, 1998, v. 2, p. 429.

do pelo artigo 475-O, III e §2º, doCPC, a usar a prudência para de-terminar o alcance da execuçãoprovisória. Nas situações previstas,poderá ou não, conforme sua intui-ção, autorizar o pagamento provi-sório ou a alienação do bem penho-rado. O mais importante é que foio próprio conteúdo valorativo danorma que decidiu privilegiar aceleridade, após sopesar os fatores“presteza” e “certeza”36. Isso sig-nifica que o juiz pode ser mais inci-sivo na execução provisória porqueisso integra o devido processo legal.A decisão de liberar o dinheiro oualienar o bem penhorado sem cau-ção pode até ser revista por causade seu conteúdo, mas não por con-trariar a forma legal.

O transporte dessa normapara o processo do trabalho exigeum esforço adicional. Fazendo usoda terminologia sugerida anterior-mente, pode-se dizer que a CLT é“lacônica” em relação à execução.Em especial à execução provisória,cuja única referência está na partefinal do artigo 899, caput, da CLTe, ainda assim, limitando-se a dizerque é “permitida a execução provi-sória até a penhora”. Levantar hi-póteses sobre o que se pode apre-ender do texto legal é o que preten-do fazer.

Nesse sentido, a primeira saí-da imaginada se prendia à estritaliteralidade da lei37 . A execuçãoprovisória serviria, então, apenaspara liquidar a sentença, se neces-sário, formalizar a citação e reali-

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zar uma penhora cuja validade se-ria discutida posteriormente. A bus-ca pelo significado mais justo danorma revelou, contudo, não seressa solução a mais satisfatória, poislhe conferiria pouca ou nenhumautilidade. Além disso, tornaria pra-ticamente letra morta a primeiraparte do caput do mesmo artigo 899,naquilo em que se refere ao efeitomeramente devolutivo dos recur-sos. Com base nessas constatações,defendeu-se a necessidade de umacompreensão mais ampla da ex-pressão legal, que passou a incor-porar os incidentes advindos dapenhora e respectivas decisões.38

Vê-se, então, que se consagrou umaleitura ampliativa da expressãoanalisada. Ocorre que os limitesoriginais desse debate foram pro-fundamente alterados, o que impli-ca novos questionamentos sobre oalcance dessa interpretação exten-siva.

Classifica-se como extensivaa interpretação que “desenvolve-seem torno de uma norma para nela com-preender casos que não estão expres-sos em sua letra, mas que nela se en-contram, virtualmente, incluídos, atri-buindo assim à lei o mais amplo raiode ação possível, todavia sempre den-tro de seu sentido literal”39. Ao dis-por sobre a aplicabilidade do pro-cesso comum à execução trabalhis-ta, o artigo 889, da CLT, pretendeuaproveitar todas as disposições con-vergentes com os preceitos que re-gem o processo do trabalho. Não setrata apenas de cobrir vazioslegislativos nos trâmites executóriosda CLT, mas de maximizar a atra-

38PINTO, José Augusto Rodrigues. Execução trabalhista. 9. ed. LTr, 2002, p. 54-56.39DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 181.

ção de normas processuais queatendam a propósitos afeitos a am-bos os segmentos do direito proces-sual. Isso indica como perfeitamen-te admissível que o sentido maisamplo alcançado pela parte finaldo artigo 899, caput, da CLT, incluaas hipóteses do artigo 475-O, III e§2º, do CPC.

Com esses quatro casosilustrativos, foi possível demonstrarcomo, alheio à idéia de que o pro-cesso comum serve de mecanismode integração de supostas lacunasexistentes na CLT, é possível apon-tar soluções plausíveis para proble-mas de diferentes ordens. Não te-nho a pretensão de realizar umaanálise exaustiva sobre casos pos-síveis, pois tornaria a leitura pordemais cansativa, sem considerarque dificilmente conseguiria alcan-çar esse propósito, dada a diversi-dade de possibilidades. Sigo, assim,para minhas considerações finais.

7 CONCLUSÕES

A questão das lacunas noordenamento jurídico não oferecerespostas unânimes. É impossívelacolher uma posição doutrináriacomo definitiva, pois, conformemudam as concepções de sistema,altera-se, igualmente, o conceito delacuna. No entanto, como geral-mente o estudo desse tema atraves-sa terreno árido, há de se cuidarpara não perder de vista as propos-tas lançadas na teoria que se pre-tendeu adotar. Essa observação éde especial importância para quem

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busca a solução através de lógicasintuitivas. O ato de se guiar pela in-vestigação do “justo”, usando sen-tidos e emoções, deve ser posterior-mente legitimado por uma demons-tração válida. E, dentro dessa liber-dade, o magistrado precisa ficaratento para a excepcionalidade dojulgamento contra legem, sob penade proferir decisão ilegítima. Esse éum raciocínio aplicável tanto aodireito material, quanto ao proces-sual. Neste último campo, porém,a preocupação deve ser redobradapor causa do princípio do devidoprocesso legal, cuja importâncianão pode ser mitigada pela eleva-ção ao plano constitucional doprincípio da duração razoável.

A existência de lacunas nodireito processual não indica pe-remptoriamente que os artigos 769e 889, da CLT, apresentem meca-nismos de integração. É perfeita-mente válido trabalhar com o con-ceito de que processo comum e pro-cesso do trabalho não constituemordenamentos jurídicos indepen-dentes, mas integram o mesmo sis-tema normativo. Nessa concepção,a CLT é meramente lacônica ao dis-ciplinar os pontos especiais do pro-cesso do trabalho e deixar a cargodo processo comum a disposiçãodos aspectos gerais. Assim, tais ar-tigos servem tanto para demonstraresse propósito, quanto para ditarcritérios de solução das antinomias.

Como se viu, isso indica umaforma diferente de investigar a re-lação entre leis processuais traba-lhistas e leis processuais comuns.Dessa análise decorre a conclusãosobre a incompatibilidade do arti-go 475-J, do CPC, com o processodo trabalho, sem que isso reveleeventual contradição com outros

casos em que a jurisprudência acei-tou a aplicação de normas nascidasno âmbito do processo comum.Métodos interpretativos, como oresgate histórico de determinadosinstitutos e a interpretação extensi-va dão conta de justificar tais con-clusões. Isso sem considerar os ca-sos em que o vício existe, mas a pró-pria lei processual se encarrega deconvalidá-lo a partir de princípiosque orientam a teoria das nulida-des.

Para encerrar, desejo regis-trar que meu objetivo maior não éconvencer o leitor de que as respos-tas indicadas são as corretas, masalertar para a importância de se le-gitimar a solução alcançada. Se asegurança jurídica é fator de desen-volvimento de uma nação e ela éobtida pela atuação de um juizconsciente dos propósitos de umprocesso bem estruturado na lei,espero ter colaborado para que issoaconteça, tornando mais claro ocaminho para a aplicação de legelata da lei processual na área tra-balhista. Sem prejuízo, que meusargumentos também sirvam de sub-sídio para mostrar ao legislador quealgumas alterações legislativas sãonecessárias.

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