ASPECTO VERBAL: UMA CATEGORIA REVELADORA - Andrea T. Diesel

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 ASPECTO VERBAL: UMA CATEGORIA REVELADORA  NO ENS INO/AP RENDIZ AGEM D E LÍNG UA MATERNA Andrea Tatiana DIESEL (UNISINOS) ABSTRACT: The assignment presents a reflection about mother language teaching starting from data revealing difficulties of the students in questions that cannot be solved based on a divided teaching model as the traditional one. This reality provides questions that pass through the former language conception. KEYWORDS: teaching/learning; mother language; verbal aspect; functionalism 0. Introdução  No discur so dos/as ed ucador es/as, é comu m ouvir que a produ ção escri ta de um/a aluno /a é a melhor forma de verificar sua capacidade lingüística. Assim sendo, a princípio, os conteúdos e as tarefas escolares das aulas de Português deveriam ter como objetivo desenvolver a produção text ual dos/as educandos/as. Curioso, no entanto, é observar como a escola imagina alcançar esse objetivo. Parte-se de  palavr as isolad as, estuda m-se as formas e a estru tura da língu a, acred itand o-se na transferên cia automáti ca por parte dos/as alunos/as daquilo que foi aprendido fora de uma situação de uso.  No ca so espe cífico do ver bo, é prática tradicional apresentar seu c onceito enquanto classe de palavra, para que os/as educandos/as o identifiquem em frases e textos. Em seguida, os/as aprendizes devem classificar essa palavra em relação à conjugação e à transitividade, exercitar a conjugação das formas regulares e, mais tarde, das irregulares e, por fim, realizar atividades em que as formas aprendidas devem ser empregadas de maneira adequada. Nessa perspectiva, é natural que, na produção escrita dos/as alunos/as, os/as educadores/as cobrem exatamente aquilo que ensinaram: a adequada utilização morfológica e sintática das formas verbais. O que se espera é que as palavras sejam grafadas de acordo com as normas ortográficas, que estejam conjugadas de acordo com os quadros passados, que as correlações entre alguns tempos e modos especialmente problemáticos sejam respeitadas. Essa prática tem se verificado na escola, nas aulas de Português, e dominado os livros didáticos, como constatou Silva (2001: 50) em uma amostragem que “reflete a predominância de um trabalho estruturalista e pouco funcional” (idem). Segundo a avaliação da autora, “isso representa a  predom inânci a dos concei tos gramaticais , em detrimento das informaçõe s fornecidas pela Lingüísti ca” (ibidem). O resultado desse tipo de prática, todavia, não pode ser considerado satisfatório, uma vez que, ao avaliarem redações escolares, professores e professoras constatam o pouco domínio que os/as alunos/as mostram ter da linguagem escrita. Para aqueles que entendem a linguagem como uma atividade humana, a ineficiência das  práticas tradicionais de ensino de língua materna é algo compreensível. Isso porque a língua não foi estudada no uso. Na visão funcionalista, o uso determina a forma e a ela se sobrepõe. Qualquer palavra só adquire significado se inserida em um contexto. A forma, por si só, tem pouco a dizer sobre como utilizar cada palavra ao se escrever um texto, ou seja, não revela a intenção que se tem, o público a que se dirige, a modalidade pretendida. Ao se compreender a língua enquanto atividade social, inserida em um contexto específico e produzida a partir de intenções e expectativas de resposta, as palavras não podem ser estudadas de maneira abstrata. Cada forma pode adquirir significados diferentes, dependendo do uso que dela se faz. Por isso, características morfológicas e sintáticas são insuficientes para se desenvolver a capacidade lingüística do/a aluno/a. É necessário promover a reflexão sobre as características semânticas e  pragmáticas de cada palavra em situ ações concretas de uso . Além disso, se buscarmos apoio também em Vygostky (1998), o desenvolvimento da língua enquanto atividade sociodiscursiva implica o desenvolvimento da autonomia da pessoa, identificável nas marcas de autoria que o/a usuário/a utiliza ao construir seu discurso. Um ensino essencialmente taxionômico, como o tradicional, jamais oportunizará esse desenvolvimento. Também os Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Língua Portuguesa, publicados em 1998, orientam os/as professores/as a trabalharem a língua materna a partir dessa visão: O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem (PCNs Língua Portuguesa, 5ª a 8ª séries: 22).  Anais do 6º Enc ontro Cels ul - Círculo de Estud os Lingüísticos do Sul

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ASPECTO VERBAL: UMA CATEGORIA REVELADORA NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

Andrea Tatiana DIESEL (UNISINOS)

ABSTRACT: The assignment presents a reflection about mother language teaching starting from data

revealing difficulties of the students in questions that cannot be solved based on a divided teaching model

as the traditional one. This reality provides questions that pass through the former language conception.

KEYWORDS: teaching/learning; mother language; verbal aspect; functionalism

0.  Introdução

 No discurso dos/as educadores/as, é comum ouvir que a produção escrita de um/a aluno/a éa melhor forma de verificar sua capacidade lingüística. Assim sendo, a princípio, os conteúdos e as tarefasescolares das aulas de Português deveriam ter como objetivo desenvolver a produção textual dos/as

educandos/as. Curioso, no entanto, é observar como a escola imagina alcançar esse objetivo. Parte-se de palavras isoladas, estudam-se as formas e a estrutura da língua, acreditando-se na transferênciaautomática por parte dos/as alunos/as daquilo que foi aprendido fora de uma situação de uso.

 No caso específico do verbo, é prática tradicional apresentar seu conceito enquanto classede palavra, para que os/as educandos/as o identifiquem em frases e textos. Em seguida, os/as aprendizesdevem classificar essa palavra em relação à conjugação e à transitividade, exercitar a conjugação dasformas regulares e, mais tarde, das irregulares e, por fim, realizar atividades em que as formas aprendidasdevem ser empregadas de maneira adequada. Nessa perspectiva, é natural que, na produção escrita dos/asalunos/as, os/as educadores/as cobrem exatamente aquilo que ensinaram: a adequada utilizaçãomorfológica e sintática das formas verbais. O que se espera é que as palavras sejam grafadas de acordocom as normas ortográficas, que estejam conjugadas de acordo com os quadros passados, que ascorrelações entre alguns tempos e modos especialmente problemáticos sejam respeitadas.

Essa prática tem se verificado na escola, nas aulas de Português, e dominado os livros

didáticos, como constatou Silva (2001: 50) em uma amostragem que “reflete a predominância de umtrabalho estruturalista e pouco funcional” (idem). Segundo a avaliação da autora, “isso representa a

 predominância dos conceitos gramaticais, em detrimento das informações fornecidas pela Lingüística”(ibidem). O resultado desse tipo de prática, todavia, não pode ser considerado satisfatório, uma vez que,ao avaliarem redações escolares, professores e professoras constatam o pouco domínio que os/asalunos/as mostram ter da linguagem escrita.

Para aqueles que entendem a linguagem como uma atividade humana, a ineficiência das práticas tradicionais de ensino de língua materna é algo compreensível. Isso porque a língua não foiestudada no uso. Na visão funcionalista, o uso determina a forma e a ela se sobrepõe. Qualquer palavra sóadquire significado se inserida em um contexto. A forma, por si só, tem pouco a dizer sobre como utilizarcada palavra ao se escrever um texto, ou seja, não revela a intenção que se tem, o público a que se dirige,a modalidade pretendida.

Ao se compreender a língua enquanto atividade social, inserida em um contexto específico

e produzida a partir de intenções e expectativas de resposta, as palavras não podem ser estudadas demaneira abstrata. Cada forma pode adquirir significados diferentes, dependendo do uso que dela se faz.Por isso, características morfológicas e sintáticas são insuficientes para se desenvolver a capacidadelingüística do/a aluno/a. É necessário promover a reflexão sobre as características semânticas e

 pragmáticas de cada palavra em situações concretas de uso. Além disso, se buscarmos apoio também emVygostky (1998), o desenvolvimento da língua enquanto atividade sociodiscursiva implica odesenvolvimento da autonomia da pessoa, identificável nas marcas de autoria que o/a usuário/a utiliza aoconstruir seu discurso. Um ensino essencialmente taxionômico, como o tradicional, jamais oportunizaráesse desenvolvimento.

Também os Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Língua Portuguesa, publicados em1998, orientam os/as professores/as a trabalharem a língua materna a partir dessa visão:

O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo

com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem(PCNs Língua Portuguesa, 5ª a 8ª séries: 22).

 Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

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Todas estas contribuições, no entanto, parecem não chegar às salas de aula. Neves (1990:12-14) registra que as áreas do Programa de Língua Portuguesa mais trabalhadas são essencialmente asclasses de palavras, a sintaxe e a morfologia; a semântica recebe espaço pequeno, enquanto a pragmáticasequer é registrada. Sabe-se que o guia da grande maioria dos programas para a disciplina é a Gramática

 Normativa; portanto, pode-se afirmar que os limites dos programas refletem os limites dessa gramática.Os motivos desta resistência são de muitas origens, e não se pretende fazer aqui um levantamento deles.Crê-se, todavia, na necessidade de empenhar tempo de pesquisa na busca de algumas soluções, com oobjetivo de diminuir a distância entre os estudos lingüísticos e as práticas escolares. Assim, este trabalho

 pretende colaborar com a educação, de maneira mais específica com ensino de língua materna, ao mostrarde que maneira uma visão de linguagem baseada nos usos efetivos da língua pode favorecer a construçãode uma proposta de prática de ensino da língua materna voltada para o desenvolvimento da competênciacomunicativa1 dos/as alunos/as.

A escolha do foco deste trabalho – o aspecto verbal - deve-se às observações feitas nodecorrer do trabalho docente da pesquisadora e das colocações de Neves (2000: 23) de que todas as

 palavras da língua podem ser analisadas dentro da predicação, e de que sua base – o predicado – éconstituída geralmente por um verbo. Acrescenta-se a isso o fato de essa categoria verbal exigir o

domínio dos elementos extralingüísticos, tão desprezados nas práticas tradicionais de sala de aula a quenos referimos anteriormente. Como tentaremos mostrar neste trabalho, o aspecto verbal concretiza-se nalíngua portuguesa através da relação entre elementos de diferentes níveis de funcionamento da língua.Dessa forma, uma concepção de linguagem que se retém ao que é interno à linguagem jamais terácondições de descrever e explicar essa categoria verbal no Português. Também o ensino baseado nessaconcepção não encontrará formas de oportunizar a aprendizagem do aspecto verbal, uma vez que nãoconsidera a interação e os elementos extralingüísticos componentes da atividade de linguagem.

1.  Perspectiva teórica

Quando nos propomos a estudar o aspecto verbal em Português, enfrentamosimediatamente uma dificuldade: essa categoria verbal é desconhecida de muitos. Professores e

 professoras, estudantes dos cursos de Letras e até acadêmicos/as de pós-graduação em Lingüística não

raro jamais ouviram falar em aspecto verbal. De fato, o assunto não é abordado na maioria das obras queenvolvem estudos lingüísticos e/ou gramaticais, o que Comrie (1981:1) ratifica, afirmando que o termoaspecto é “menos familiar para estudantes de Lingüística que outros termos de categorias verbais, taiscomo tempo e modo” (idem). Se isso é uma realidade no estudo das línguas em geral, para o Português

 pode-se dizer que pouco se sabe sobre o aspecto verbal e seu funcionamento em nossa língua. Os estudosainda são insuficientes e constituem uma pequena amostra do que já se pesquisou sobre como essacategoria se concretiza na língua portuguesa. Na opinião de autores que mais recentemente se debruçaramsobre o enigma, alguns trabalhos estão repletos de confusões e enganos que em nada colaboram para acompreensão do assunto. Aparentemente, essa confusão está fortemente ligada às concepções lingüísticasmais voltadas ao chamado ‘núcleo duro’ da Lingüística, isto é, às áreas mais tradicionalmenteencontradas nas gramáticas e que estão diretamente relacionadas com o que é inerente, interno ao sistema:Fonética, Fonologia, Sintaxe, Morfologia e, de maneira menos rígida, Lexicologia e Semântica. O aspectoverbal não consegue ser abordado nestes estudos, porque não se manifesta unicamente através de marcas

fonéticas, fonológicas, morfológicas ou sintáticas, tampouco se restringe à semântica dos verbos. Dessaforma, não encontra espaço para ser compreendido dentro dessas concepções. Em outras palavras, parece-nos correto afirmar que, ao olhar apenas para dentro da língua, para o funcionamento das partes dosistema de maneira rígida, como elementos independentes, as escolhas que envolvem relações entre oselementos e principalmente os próprios elementos que se estabelecem na interação, no uso da língua,

1  Hymes (1964) já se referia à competência comunicativa ao falar da etnografia da comunicação: “... deve tomarcomo contexto uma comunidade, investigando seus hábitos comunicativos como um todo, para que qualquer uso docanal e do código tome seu lugar como parte dos recursos de que os membros da comunidade fazem uso... O ponto de partida é a análise etnográfica dos hábitos comunicativos da comunidade em sua totalidade, determinando o que podeser tomado como acontecimento comunicativo, como componentes do mesmo; e concebendo o comportamento não-comunicativo como independente do grupo que compartilha um contexto e conhecimentos implícitos. Oconhecimento comunicativo, portanto, é central”. Em obra de 1995, afirma: “A aquisição de tal competência se

nutre, a saber, da experiência social, das necessidades e dos motivos, temas cadentes, que por si só são uma fonterenovada de motivos, necessidades e experiências”. (Hymes, 1995: 34 - tradução livre).

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ficam de fora, o que implica excluir o aspecto verbal, justamente porque esta categoria se concretiza, nalíngua, através das relações entre elementos de diferentes níveis.

Assim é que o aspecto verbal não costuma ser abordado nas gramáticas tradicionais ou,conforme Azeredo (2000), deixa de ser mencionado, apesar de os gramáticos a ele se referirem. TambémTravaglia (1985) destaca a pouca atenção que tem sido dada à categoria de aspecto no estudo do verbo emPortuguês. Segundo o autor, “evidência disto é o fato de nossas gramáticas tradicionais, com raras

exceções, quase não tratarem desta categoria.” (Travaglia, 1985: 21). Isso se explica talvez pelo fato de alíngua portuguesa não apresentar marcadores (morfológicos) do aspecto verbal e, por isso mesmo, ele tersido deixado à margem nas pesquisas, já que grande parte dos estudos desenvolvidos no século XXmantiveram um forte compromisso com uma visão mais engessada de língua e linguagens em geral. Emcomparação com outras línguas, a portuguesa não salienta a questão aspectual de maneira incisiva,utilizando, por exemplo, desinências específicas ou construções próprias para essa categoria do verbo.

1.1.  O Funcionalismo

O Funcionalismo surgiu como escola lingüística em resposta ao estruturalismo, criticandoos limites da visão de língua presa ao sistema, como uma estrutura suficiente em si. Os pensadores doFuncionalismo com que nos identificamos nessa pesquisa destacam, acima de tudo, o caráter social dalinguagem, sendo esta concebida como uma ferramenta criada pelo e a serviço do ser humano em suas

relações na sociedade. Dessa forma, qualquer linguagem desempenha, em primeiro lugar, uma funçãocomunicativa à qual a forma se adapta. Aquilo que é interno, portanto, surge de atividades humanas quese localizam fora da estrutura lingüística e geram os diferentes usos.

Portanto, quando falamos que perceber o aspecto como uma categoria verbal significacompreendê-lo enquanto responsável por uma função específica na língua estudada, estamos resgatandoos ensinamentos de lingüistas como Givón e Halliday. Para entendermos o que significa enxergar afunção que uma categoria tem dentro da língua, encontramos em Givón (1995) uma referência a Halliday(1973), que nos alerta para o fato de que considerar a função de um elemento lingüístico significa, em

 primeiro lugar, investigar seu uso:

[...] Uma pesquisa funcional para a linguagem significa, antes de tudo, investigar como alinguagem é usada: tentando achar quais são os propósitos para os quais ela é usada, ecomo estamos aptos a obter esses propósitos através do falar e do escutar, do ler e do

escrever. Mas isso significa mais do que isso. Significa tentar explicar a natureza dalinguagem em termos funcionais: observando se a própria linguagem é moldada no uso, ecaso seja, de que maneira – como a forma da linguagem tem sido determinada pela funçãoem que ela está inserida para servir [...] (Halliday,1973, p. 7, apud Givón, 1995, p.2 –tradução livre).

O próprio Givón explica “...todas as pressões funcionais -adaptativas que formam aestrutura sincrônica – idealizada – da língua são usadas na performance atual. É nela que a linguagem éadquirida, que a gramática emerge e muda” (Givón, 1995: 7 – tradução livre). Na citação, Givón estáesclarecendo uma premissa do Funcionalismo, à qual se juntam outras:

•  a linguagem é uma atividade sócio -cultural;•  a estrutura cumpre uma função cognitiva ou comunicativa;•  a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica;• 

mudança e variação estão sempre presentes;•  o significado é dependente do contexto e não atômico (não casual e não mecânico);•  categorias são menos-que-discretas (less-than-discrete);•  a estrutura é flexível, não rígida;•  a gramática é emergente;•  as regras da gramática permitem algumas fugas (distorções).Essas premissas, segundo o próprio autor, são válidas, mas seguidamente degeneradas,

 porque tratadas como leis fechadas. Ele lembra, no entanto, que elas são válidas até um certo ponto e emcontextos bem definidos, já que qualquer sistema processual biológico é tipicamente interacional. Dessaforma, se o funcionalismo atribui um valor maior à função, sendo a forma dependente dela, tambémtemos considerar que qualquer generalização fica submissa ao contexto, ou seja, ao uso. Assim é que, nas

 palavras do lingüista, “o surgimento e a subseqüente mudança nas estruturas gramaticais é sempremotivada funcionalmente” (Givón, 1995: 10). Ao contrário do que pode parecer, isso não significa rejeitara estrutura formal. Afinal, se há uma ritualização e uma gramaticalização, então ocorre o surgimento deuma estrutura formal. A diferença da visão funcionalista em relação à estruturalista, no entanto, é

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 perceber que essa estrutura tem uma motivação funcional, embora, muitas vezes, essa motivação se percano próprio uso. Por isso, Givón chama a atenção para o necessário equilíbrio que deve haver entre o

 processamento automatizado (mais categorial) e o consciente (attended  - mais contextual e flexível). Umacategoria pode apresentar uma certa regularidade de emprego que, no entanto, em um uso específico équebrada. Givón defende que esse sistema complexo é dominado pelo/a falante da língua em questãoatravés da ativação gramatical e semântico-lexical e pelo reconhecimento da palavra-forma. Um exemplo

que ilustra bem essas asserções de Givón é a possibilidade de um nome próprio masculino – João – sertranqüilamente substituído, em uma sentença qualquer, por um pronome pessoal – ele. Em um texto real, porém, essa substituição pode não ser possível, pelo simples fato de haver outros substantivos masculinosno texto, o que geraria ambigüidade. Ou seja, a substituição não se aplicaria a esse caso em especial, sobo risco de o texto não cumprir sua função comunicativa. Compreende-se, então, que a língua não serestringe à forma, envolvendo, segundo Givón (1995), três domínios distintos:

•  semântica lexical (significado das palavras);•  semântica frasal (informação proposicional);

•   pragmática discursiva (coerência tra nsfrasal). O autor salienta que essas três áreas se relacionam de forma a uma incluir a outra, o que

gera uma dependência que vai da maior para a menor. É assim que, para compreender o sentido de umtexto, sempre se inicia pela busca do contexto que o gerou. Nesse ponto, aproximamos as afirmações deGivón (1995) da visão de Halliday (1974) de que a linguagem é essencialmente um produto social, que

surge da interação entre os seres humanos. Ele defende: “A língua não se realiza em abstrato, mas serealiza como atividade dos homens em situações, como fatos lingüísticos manifestos em um determinadodialeto e registro” (Halliday, 1974: 113). Dentro dessa percepção é que Halliday destaca o caráter socialque a língua tem, no sentido de demarcar a posição social de um indivíduo. Aqui, como se vê, a questão

 pragmática recebe atenção especial, uma vez que um uso pode perfeitamente cumprir sua funçãocomunicativa, mas, ao mesmo tempo, salientar um ‘valor’ que o emprego recebe no grupo em que foiutilizado. O resultado é que o que foi compreendido pode ou não ser atendido, segundo critérios de

 prestígio social ligados ao uso específico de certas estruturas da língua.O estudo do aspecto verbal, para nós, insere-se nos marcos do Funcionalismo, em primeiro

lugar, porque acreditamos nesta visão de como a linguagem humana se realiza. De modo especial, porém, porque na língua portuguesa essa categoria não se restringe a nenhuma área específica, o que nos obriga aconsiderar vários elementos, tanto intra quanto extralingüísticos, para a compreendermos de fato. Essarealidade faz com que não se possa considerar a parte sem o todo, ou seja, não se possa estudar a

categoria verbal de aspecto sem considerar o contexto de produção que gera o discurso em que ela se estáinserida. Mesmo encontrando-se regularidades, o que deverá ser levado sempre em conta é o conjuntoconstruído para atingir um determinado propósito comunicativo, no qual as formas estão a serviço documprimento de uma função que tem como objetivo final uma intenção comunicativa. Assim é que,dialeticamente, o aspecto verbal compõe uma relação de dependência própria da atividade humana dalinguagem, sendo, ao mesmo tempo, independente de qualquer forma rígida ou previamente determinada.

1.2. Definindo aspecto verbal

Para melhor entendermos a categoria aqui estudada, convém defini-la com maior precisão.Essa tarefa, porém, não se constitui como algo fácil, uma vez que não identificamos consenso entre osautores que abordam de alguma forma o aspecto verbal.  Assim, foi necessário buscar em diferentestrabalhos e estudos lingüísticos, tanto em língua portuguesa quanto em outras línguas, um aporte mínimo

 para compreender melhor o funcionamento dessa categoria verbal. Quando dizemos que queremosentender de que maneira a categoria desempenha sua função na atividade que percebemos ser alinguagem, já estipulamos a que abordagens sobre o assunto recorremos: a autores e autoras que mantêmum compromisso com uma visão de linguagem como algo que ultrapassa o sistema, que considera,

 portanto, os elementos extralingüísticos na realização dessa atividade. Encontramos algum material emlíngua inglesa e poucos autores e autoras de língua portuguesa que abordaram as relações não-dêiticas detemporalidade que compõem o discurso. Por uma questão de espaço, apresentaremos apenas as definiçõesde dois autores que consideramos fundamentais: um que estudou a categoria na língua portuguesa e outro,na inglesa. Para iniciarmos com um autor brasileiro, queremos apresentar a definição de Travaglia (1985)dessa categoria:

Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca aduração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes

 pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realização dasituação (Travaglia, 1985: 53 – grifo e destaque do autor).

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 Como se vê, “o aspecto diz respeito ao tempo interno, de realização da situação”

(Travaglia, 1991: 78) que, portanto, não se relaciona com um ponto de referência externo à situação, pelocontrário, implica a observação do desenvolvimento da situação em si, como uma atividade que dispensaum certo tempo para se realizar. Nesse sentido, o aspecto se contrapõe a outra categoria verbal: o tempo.Enquanto o tempo marca a realização de uma situação em relação a outras situações presentes no texto,

sendo que essa relação se apóia em um tempo referencial, o aspecto determina a extensão interna dasituação, sem nada dizer sobre sua realização em consideração ao ponto de referência temporalestabelecido no texto. Outra diferença que o aspecto apresenta, quando comparado com o tempo verbal, éque este vem marcado morfologicamente de maneira clara, através de desinências temporais específicas,enquanto aquele, como já se afirmou, não depende exclusivamente dessas marcas.

Comrie (1981), ao definir aspecto, o compara com o tempo, descrevendo este como umacategoria dêitica que se estabelece na relação com um ponto de referência. Destaca ainda que o momentode referência é chamado de tempo absoluto, em inglês, quando considerado, de maneira geral, o momento

 presente; quando a referência é um outro ponto, estabelecido no discurso, chama-se de tempo relativo.Percebe-se nessa menção, a compreensão da existência de diferentes momentos que interferem na

 produção discursiva, como destacou Reichenbach (1947): o momento da produção, o momento do processo e o momento psicológico de referência (apud Bronckart, 1999: 276). Já o aspecto é apresentado pelo autor, de maneira geral, da seguinte forma: “aspectos são diferentes maneiras de observar a

constituição temporal interna de uma situação” (Comrie, 1981: 3). Acrescenta, buscando esclarecer essadiferença, que aspecto não é dissociado (unconnected ) de tempo (time), ou seja, tanto a categoria detempo (tense) quanto a de aspecto se relacionam com tempo (time), mas de maneiras muito diferentes.

 Nas palavras do próprio autor:

[...] tempo (tense) é uma categoria dêitica, i.e., localiza as situações no tempo (time),comumente com referência ao momento presente, mas também com referência a outrassituações. Aspecto não tem o papel de relacionar o tempo (time) da situação a um outro

 ponto temporal, mas, pelo contrário, com a constituição interna de uma situação; podemoscolocar a diferença como estando entre ‘tempo interno da situação’ (aspecto) e ‘tempoexterno da situação’ (tempo) (Comrie, 1981: 5 – tradução livre).

Conclui-se, portanto, que o aspecto mantém uma estreita relação com o tempo verbal.

Além de ambos serem categorias do verbo, relacionam-se com a temporalidade. No entanto, é necessáriodestacar a diferença no tipo de relação que cada uma estabelece: enquanto o tempo verbal se apóia em um ponto de referência estabelecido no discurso e, a partir dele, localiza a situação em uma linha de tempo,marcando anterioridade, simultaneidade ou posterioridade em relação ao momento tido como referencial,o aspecto apresenta uma noção de temporalidade interna ao próprio evento, que determina odesdobramento da situação, independentemente de sua localização na linha de tempo, dentro do espaçotemporal do discurso. O que fica claro é o caráter não dêitico da categoria verbal de aspecto em oposiçãoà característica dêitica do tempo. Ainda é importante salientar que, conforme destacado pelos/asautores/as estudados/as, o aspecto verbal não apresenta uma forma única de concretização, manifestando-se de modos diversos nas diferentes línguas e, especialmente, combinando uma série de elementos na suarealização. O tempo verbal, ao contrário, é geralmente marcado por desinências específicas, apresentando,

 portanto, formas mais fixas.

1.3. O Aspecto como categoria textual-discursiva

Completando o que se disse anteriormente, convém lembrar que, a respeito dascaracterísticas aspectuais, por mais que possam ser esquematizadas e alguns empregos típicosdeterminados, apenas a ocorrência das formas em atividades reais de uso da língua pode nos fornecerinformações confiáveis sobre a noção aspectual pretendida em cada caso. Travaglia (1991) estabeleceuuma relação entre algumas tipologias textuais e o uso das categorias verbais, entre elas o aspecto,

 baseando-se em um levantamento feito a partir de textos tirados de diferentes meios de circulação. Nesselevantamento é possível observar a incidência de cada noção aspectual nos diferentes tipos de textoatravés de uma tabela. Nela, vemos que o aspecto indeterminado está bastante presente nas dissertações edescrições, e que o pontual é freqüente nas narrações presentes, por exemplo.

Outro autor importante nessa discussão é Bronckart (1999), que, assim como Travaglia(1991), aponta o aspecto verbal como um dos elementos responsáveis pela coesão verbal, ou seja, como

um mecanismo de textualização. Ao destacar as controvérsias suscitadas no estudo do aspecto verbal, justamente por ser uma categoria complexa e multiforme, o autor afirma:

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 [...] o conjunto dos constituintes do sintagma verbal podem marcar [...] uma ou

várias propriedades internas  do processo (sua duração, sua freqüência, seu grau derealização, etc). É essa expressão de uma propriedade interna ou não relacional do

 processo, expressa pelos constituintes do sintagma verbal, que é chamada de aspecto ouaspectualidade  (Bronckart, 1999: 278 – grifos do autor).

Travaglia (1991), apresentando uma abordagem mais funcionalista, analisou de quemaneira a categoria verbal de aspecto colabora na coesão textual, sendo, portanto, essencial para que odiscurso atinja seu objetivo comunicativo. O autor concluiu que o aspecto verbal atua de maneira decisivano estabelecimento da continuidade, na relevância, na definição de primeiro e segundo planos, nadistinção de trechos de progressão dos de elaboração de um ponto e, inclusive, na concordância no nívelfrasal.

Essas colocações mostram claramente o que se pretende dizer ao defender que aaspectualidade é um fator de contextualização, que exige, portanto, noções semânticas e pragmáticas. Noentanto, isso não significa afirmar que seja impossível identificar os elementos que alteram o aspectoverbal em nossa língua. Dentre eles podemos destacar (Oliveira, 2003:133):

•  natureza semântica dos predicados;•  afixos que contêm também informação temporal;

• 

construções com auxiliares e semi -auxiliares (tem lido, começou a ler, está lendo);•  certos adverbiais e a natureza sintático-semântica dos sintagmas nominais.Dessa maneira, é possível definir algumas regularidades e tendências, que apontarão os

usos mais freqüentes em cada caso, sem, porém, esquecer que vários elementos podem interferir nadeterminação das noções aspectuais e que a relação entre eles colocará em evidência qual dos elementosem questão deverá sobrepor-se em cada caso, ou até que nuance original um determinado emprego pode

 passar a ter. Essa percepção reforça a capacidade do/a falante nativo/a de refletir sobre as escolhas queestão à disposição em sua língua e de criar situações em que melhor conseguirá expressar aquilo que

 pretende. Em outras palavras, a capacidade de perceber as noções aspectuais com precisão estáintimamente ligada ao desenvolvimento da competência comunicativa do/a falante.

 Não convém aqui expormos a relação de noções aspectuais encontradas, mas cabe ressaltarque há consenso entre os/as autores/as que pesquisaram essa categoria verbal sobre a saliência dadicotomia imperfectivo/perfectivo. Enquanto o aspecto perfectivo desempenha um papel na construção do

texto/discurso – o de fazer a narrativa progredir -, o imperfectivo tem função diversa - fica responsável pela figuração, pelo plano de fundo, pelo cenário que dará suporte à narração. Essas funções bemdelimitadas foram discutidas por vários/as autores/as que abordaram a questão. De fato, o levantamentodas ocorrências de cada noção em textos narrativos ratifica a tese de Hopper (1979) de que as formasimperfectivas compõem o plano de fundo (background ) e as perfectivas, o primeiro plano ( foreground ),mas também demonstra que não se pode estabelecer empregos fixos e noções fechadas.

Ao fazermos um levantamento das noções já descobertas, no entanto, encontramosdiferenças que exigiriam um estudo maior, válido se o objetivo fosse estabelecer como essa categoriaverbal se realiza no português, apresentando uma proposta de classificação para as noções encontradas emnossa língua, como fez Travaglia (1985), por exemplo. Mas não é isso que se pretende aqui. Nossaintenção é destacar que o aspecto verbal exerce uma função na construção textual/discursiva, o queacreditamos ter ficado claro, para, a partir desse fato, fundamentarmos nossa proposta de aplicação

 pedagógica. Como já destacamos e explicaremos mais adiante, a proposta que construímos envolve uma

aplicação que almeja mostrar as implicações de uma concepção de linguagem no ensino de línguamaterna. Assim, buscamos oportunizar a reflexão dos/as eduncandos/as sobre essa categoriatradicionalmente esquecida em sala de aula; não havendo, portanto, qualquer preocupação comclassificações.

Dessa maneira, acreditamos suficiente considerar que as noções que destacam a perspectiva interna de uma situação, chamando a atenção para a realização do fato em si, se ligam aoimperfectivo – é o caso do habitual, do durativo, do iterativo, na maioria das vezes, do progressivo, doatélico; enquanto que aquelas noções que destacam a ausência dessa perspectiva – como o pontual, otélico, o acabado, o concluído – estão mais ligadas ao perfectivo. Essas relações, todavia, não são diretas,

 podendo ocorrer entrecruzamentos entre noções aparentemente contraditórias.

2.  A construção de uma proposta de aplicação

Dois fortes motivos nos fizeram crer na validade de estruturar a pesquisa a partir dessacategoria verbal: de um lado, o fato de os/as alunos/as mostrarem, em suas composições, bastante

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dificuldade no seu domínio; de outro, por ser o aspecto verbal uma categoria tão complexa e, por issomesmo, tão evitada nas abordagens tradicionais da gramática e de sala de aula.

Com o foco lingüístico da pesquisa estabelecido, tratamos de definir a coleta de dados.Utilizamos para isso o primeiro encontro no início do ano letivo de 2004 com turmas do 2º ano do EnsinoMédio. A escola na qual esses grupos, compostos, em sua maioria, por adolescentes, estudam é estadual elocaliza-se em um bairro popular de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre. A escola é a

segunda maior da cidade e sua comunidade é, do ponto de vista sócio-econômico, bastante mista. Nasturmas do Ensino Médio diurno, os/as estudantes que permaneceram na escola e nesse turno, no geral, sãoaqueles que se destacaram no Ensino Fundamental e apresentam um bom suporte familiar para

 prosseguirem os estudos. Já as turmas do noturno são compostas por alunos/as que trabalham durante odia. Apesar disso, nesse ano, as duas turmas do noturno com que trabalhamos não apresentaram muitasdiferenças relacionadas à idade ou à classe social entre os/as estudantes: ambas eram compostas

 basicamente por adolescentes vindos/as de famílias de trabalhadores/as, e moravam nas redondezas.Também boa parte dos/as alunos/as, tanto do diurno quanto do noturno, já freqüentavam essa escola hámais tempo.

Para verificar as dificuldades que os/as estudantes apresentavam em relação ao uso dasformas verbais, priorizamos a produção de um texto escrito da ordem do narrar, pois avaliamos que elesse prestam para denunciar as dificuldades do/a produtor/a em relação ao aspecto verbal. Baseamos-nosnos levantamentos de Travaglia (1991) que mostram que textos narrativos apresentam alto índice de

 presença de aspectos como o perfectivo, o imperfectivo, o durativo, o pontual, o cursivo. A ordem datarefa foi assim passada: “Relatar uma experiência significativa em relação à aprendizagem de LínguaPortuguesa, mostrando se ela marcou positiva ou negativamente”. O trecho abaixo ilustra as dificuldadesapresentadas pelas turmas:

(1) Estavamos debatendo um assunto e a professora fez uma pergunta ninguém respondia a pergunta nenhuma, e quando alguém respondia sempre achavam um motivo para rir.Levantei, o meu braço e respondi o que eu achava todos riram muito, minha professorafalava que naquela sala era bom de dar aula, pois todo mundo era o sabe tudo ninguémfazia pergunta então não p recisava explicar muito.

O fragmento apresenta vários problemas; a forma verbal destacada, porém, localiza umdesses problemas no aspecto verbal. Uma forma imperfectiva foi utilizada no lugar de uma perfectiva,

que seria adequada à situação narrada, já que a “fala” da professora se deu em um momento específico e já concluído no passado. A forma destacada deveria ser substituída por falou .Após a coleta dos dados e a constatação de que realmente havia problemas no uso das

formas verbais para expressar as noções aspectuais de maneira adequada, construímos uma proposta deaplicação baseada na concepção de linguagem aqui defendida. Nela o ensino só pode ser entendido comoum processo em que a língua não é uma forma a ser aprendida e respeitada enquanto abstração, mas umelemento ativo, vivo, capaz de transformações sociais. Assim sendo, qualquer prática que vise adesenvolver nos alunos a linguagem deve partir e ter como objetivo a língua enquanto atividade concreta.Sua produção deve ser considerada pragmaticamente, em todos os seus aspectos contextuais. Isso nosleva a duas questões, levantadas por Neves (2000a), que devem ser consideradas para que se consiga

 produzir sentido ao utilizar a língua:

1.  a compreensão daquilo que no funcionalismo [...] se chama “modelo de interação

verbal”, ou seja, o esquema efetivo e pleno da interação no evento da fala;2. a compreensão do jogo entre as determinações do sistema e as possibilidades de escolhadentro desse evento [...] (Neves, 2000a: 53). 

 Nesse sentido, ou seja, levando-se em conta tanto a interação em si quanto as escolhas quea língua permite, Pereira (2000) procura mostrar que é necessário promover a reflexão sobre a língua, semnegar a importância de se aprender como ela deve ser usada, ou seja, devem existir, nas aulas dePortuguês, momentos distintos: da ordem da ação – momentos em que se pratica a língua - e da ordem dareflexão – momentos em que se estuda a língua. Os dois momentos se fazem necessários, porque, aocontrário daquilo que alguns/mas professores/as imaginam, conhecer uma metalinguagem não equivaleautomaticamente a adquirir uma competência processual. Na obra, Pereira fala de malabarismos

conceituais  realizados por professores/as ao usarem os textos apenas como pretexto para um ensino bastante normativo e centrado nos aspectos micro -estruturais. Outra questão levantada é a crença de que a

motivação por si só pode garantir o sucesso da produção textual dos alunos. Embora muitas pesquisas játenham apontado a possibilidade de se confirmar essa hipótese – da eficiência da motivação -, Pereira

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acredita que não se pode reduzir o trabalho a isso. Muitas tentativas de se promover uma situação real de produção, como as correspondências interturmas e os jornais -murais, mostraram que, embora possa haverum estímu lo em relação à escrita, este não é suficiente para garantir o desenvolvimento da competênciacomunicativa. Além disso, o/a aluno/a sabe que, em última instância, o texto é produzido para a escola. Jáse estabeleceu até a existência do gênero escolar (Schneuwly, 2002). Nesse sentido, como não é possívelcriar de maneira virtual um espaço real, a autora crê na transparência, i. e., deve-se aproveitar essa

consciência que os/as alunos/as têm de que o texto escolar serve para se aprender a escrever e sistematizaresse ensino. Isso é essencial para que o/a aluno/a “compreenda o sentido e atribua sempre significação àtarefa que executa” (Pereira, 2000: 311). 

Travaglia (2003), seguindo a mesma linha, defende que o ensino deva ser plural, nosentido de envolver atividades que promovam tanto o uso da língua, quanto a reflexão sobre ela, odesenvolvimento cognitivo que ela propicia e, por fim, o domínio dos padrões de prestígio social dalíngua. O autor acredita que se deva assumir a postura de que gramática é tudo que afeta a produção desentidos por meio de textos da língua. Assim, a dicotomia tão presente no ensino texto x gramática perdeo sentido. Entender que a gramática é usada para se construir bons textos e não para ser estudadaenquanto objeto independente é o primeiro passo para que se efetuem mudanças na educação escolar. O

 passo seguinte é oferecer um estudo gramatical do texto, o que é muito diferente de usar o texto como pretexto para se estudar algum conteúdo programático que envolve a gramática tradic ional. A produção ea compreensão de texto serão, assim, desenvolvidas ao mesmo tempo que a gramática. Esse ensino

 preparará o/a aluno/a para a vida e para a conquista de uma melhor qualidade de vida e o resultado seráum/a usuário/a competente da língua, que não só recebe as formas da sociedade e da cultura, comotambém a elas dá forma.

Além disso, ao buscarmos uma aprendizagem que favoreça o desenvolvimento daautonomia, acreditamos que a educação lingüística desempenhe um papel fundamental para alcançar esseobjetivo, pois os/as alunos/as, uma vez senhores/as dos saberes da língua, tornam-se capazes de produzirseus próprios textos e de fazer escolhas conscientes, deixando de apenas reproduzir modelos que outras

 pessoas – que ocupam instâncias de poder – apresentam como ideais. Essa compreensão vai ao encontrodo conceito dialógico da linguagem de Bakhtin (1981), em que os interlocutores têm uma postura ativaem relação ao que recebem e produzem. Ora, ser ativo significa necessariamente colocar-se como autordos enunciados realizados.

Outra questão a se considerar é a existência de uma distância entre os saberes de referênciae os saberes a serem ensinados, i.e., aquilo que se sabe/conhece sobre o conteúdo a ser trabalhado com

os/as alunos/as não será transposto ipsis litteris em sala de aula, já que não é objetivo da Educação Básicaformar especialistas. Essa distância constitui a base do conceito de transposição didática, conceito que,segundo Garcia-Debanc (1998), foi inventado pelo sociólogo Michel Verret. É necessário, portanto, em

 primeiro lugar, transformar o objeto de estudo em objeto de ensino. Esse processo é conhecido comotransposição didática ou como práticas de referência.

Também Schneuwly e Dolz (2004) defendem a transformação do objeto de estudo emobjeto de ensino. Para eles, as transposições didáticas devem ser planejadas em forma de seqüênciasdidáticas, que eles definem como “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática,em torno de um gênero oral ou escrito” (Schneuwly e Dolz, 2004: 97). Segundo os autores, essasseqüências apresentam um número limitado e preciso de objetivos e são organizadas a partir de um

 projeto de apropriação de dimensões constitutivas do objeto de ensino. Apesar de o conceito estardirecionado para o trabalho com gêneros, acreditamos que as seqüências didáticas podem e devem seraplicadas também no ensino da gramática. Até mesmo porque esses autores, que defendem uma linha

totalmente voltada à produção discursiva, em que o objetivo primeiro da língua materna é ensinargêneros, afirmam que “é essencial reservar tempo para o ensino específico de gramática, no qual o objeto principal das tarefas de observação e de manipulação é o funcionamento da língua” (Schneuwly e Dolz,2004: 116). Essa afirmação reforça nossa convicção de que o trabalho com textos, voltado somente paraa compreensão e a interpretação de seu conteúdo, ou unicamente para um dos planos que compõem otexto – o macro-estrutural, por exemplo - sem o estudo de elementos lingüísticos é insuficiente para umaaprendizagem de língua materna. É necessário reservar espaço em sala de aula para a reflexão sobre o usodas categorias lingüísticas e a análise de sua função e de seu funcionamento, através de atividadesespecíficas. Do funcionamento da linguagem fazem parte, portanto, a atividade de linguagem como umtodo, o conjunto, mas também o papel de cada elemento inserido nesse todo, de forma que voltamos aoque já foi dito e repetido: é necessário, sim, trabalhar a gramática nas aulas de Português.

Dessa feita, considerando todas as contribuições acima destacadas de estudos voltados para o ensino de língua materna, chegamos a um denominador comum, que pode ser expresso em

 premissas seguidas na construção da proposta: 1) a língua deve ser sempre trabalhada a partir de situaçõesconcretas de uso, que nortearão a seqüência didática a ser desenvolvida; 2) esta deve ter como objetivo

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contribuir com os/as alunos/as na resolução de suas dificuldades; 3) para que os/as estudantes seapropriem de fato dos objetos de ensino, transformando-os mais uma vez – agora em saberes aprendidos -, faz-se necessário promover a reflexão sobre o funcionamento da língua e de seus elementos (situados emtextos e discursos); 4) somente a produção textual dos/as aprendizes poderá indicar até que ponto eles/asrealmente aprenderam. Seguindo essas premissas, acreditamos que o ensino de língua materna terá mais

 possibilidades de alcançar os objetivos expressos nos PCNs (1998), tanto em relação à aprendizagem da

língua portuguesa, quanto em relação à consolidação de uma educação que promova a autonomia. Foiassim que, observando essas orientações e acreditando nelas, construímos uma proposta de aplicação paratestarmos tanto sua aplicabilidade quanto os resultados advindos de uma prática baseada nessas

 premissas. Em outras palavras, considerando as reflexões acima expressas, que envolvem tanto aconcepção de linguagem quanto a visão sobre o objetivo do ensino da língua materna, tivemos a

 pretensão de repensar a prática de ensino, buscando a coerência entre proposta e prática, ao construirmosseqüência didática para o trabalho com o aspecto verbal.

A seqüência didática partiu de textos tirados de jornal (uma crônica, uma propaganda e umconto – todos relacionados ao tema “livro”). A partir deles, foram elaboradas questões que exigiam areflexão dos/as alunos/as a respeito do sentido das formas verbais em cada texto. As noções aspectuaiseram destacadas a partir de perguntas específicas que solicitavam dos/as estudantes a explicitação dosentido percebido no uso de cada forma, e também de questões que promoviam mudanças nas formasque implicavam alteração do sentido ou da intenção comunicativa do/a autor/a, fato que o/a aluno/a

igualmente deveria perceber e explicar. Após o estudo de cada texto e das formas verbais nelesempregadas, os/as aprendizes produziam uma redação. O resultado, após 20h/a, foi redações em que asformas verbais que expressam noções aspectuais foram utilizadas de maneira consciente, demonstrando aapropriação do saber ensinado.

Os textos a seguir ilustram o resultado do trabalho em relação ao domínio, por parte dos/asalunos/as, das formas adequadas para expressar as noções aspectuais pretendidas. O primeiro texto –exemplo (2) - é uma crônica. Sua autora utilizou o presente do indicativo para expressar a duração dassituações presentes no texto e seu caráter atemporal, em que as situações recebem um valor de norma, lei,e permanecem sendo válidas por tempo indeterminado.

(2) A importância da leitura em nossa vida

A leitura é um instrumento básico da educação e um dos hábitos mais importantes na vida

cotidiana. Através da leitura, podemos viajar, conhecer lugares incríveis, conhecer novos personagens e mexer com a nossa imaginação.

A Leitura nos desenvolve um vocabulário amplo e útil, é maravilhoso ler, tentar descobriros significados exatos, adquirir novos conceitos e avaliar a idéia do escritor.

Os livros nos proporcionam conhecimentos que nos ajudam de diversos modos.Para quem lê com facilidade e rapidez, o mundo dos livros oferece horas intermináveis de

 prazer e entretenimento variado.Os livros são uma fonte de inspiração e prazer; por isso, devemos cultivar esse hábito que

quebra a rotina e nos enche de sabedoria.

O segundo texto – exemplo (3) - também apresenta as formas verbais empregadas demaneira adequada. Trata-se de um conto, que envolve, portanto, um enredo, o que exigiu do aluno a

alternância entre formas perfectivas e imperfectivas.

(3) Revolta Literária

Um dia cheguei em casa cansado, por causa do colégio. Tomei um banho e fui dormir.Então tive um sonho muito estranho, onde os livros haviam criado vida, ficado rebeldes e se tornadoguerrilheiros.

Eles queriam mais atenção por parte das pessoas, pois elas estavam só olhando televisão.E eles eram bons guerrilheiros, tinham metralhadoras, e eram bem revoltados, no estilo

Rambo. Fizeram muitas pessoas reféns, elas eram obrigadas a lê -los.Quando me acordei, pensei melhor, e não queria que aquilo acontecesse na minha vida. E,

então, comecei a ler um deles.

Essa experiência nos mostra que a mudança que acreditamos ser necessária no ensino delíngua materna não passa simplesmente pela aplicação de novos métodos de ensino ou de projetos que

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motivam os/as alunos/as, mas, sim, pela concepção de linguagem que sustenta o ensino em nossasescolas. A compreensão do funcionamento da língua e do conjunto de elementos que envolvem aatividade de linguagem alteram as práticas escolares e possibilitam a construção de propostas commaiores chances de alcançar os objetivos do ensino de língua materna.

RESUMO: O trabalho apresenta uma reflexão sobre o ensino de língua materna, a partir de dados que

revelam dificuldades dos/as estudantes em questões que não podem ser resolvidas com base em umensino seccionado, como é o tradicional. Essa realidade gera questionamentos que perpassam a concepçãode linguagem subjacente.

PALAVRAS-CHAVE: ensino/aprendizagem; língua materna; aspecto verbal; funcionalismo  

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