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AS VISÕES DA MORTE NA CAPITAL CEARENSE ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX PEDRO HOLANDA FILHO Introdução O presente trabalho deseja dialogar com novos objetos da História Social. Partindo das perspectivas apontadas por autores como Arlette Farge (2011) e Michel Serres (2001), para quem a descoberta das sensibilidades ainda é um desafio para o historiador, nos interessamos por analisar as diferentes visões sobre a morte e morrer entre o final do século XIX e primeira metade do século XX. O estudo das Sensibilidades trouxe para os domínios da História o problema da subjetividade, revelando a presença do “eu” como agente e matriz das sensações e sentimentos. A sensibilidade é compartilhada, é “produto social historicamente construída, que existe à medida que se explícita em atitudes, em práticas.” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2006. p.123). As sensibilidades são problemas de outro (e do outro no) tempo, são formas de agir e pensar, de apreensão, de ser e estar no mundo, se traduz em sensações e emoções deixadas em marcas objetivas do mundo sensível (PESAVENTO, 2005 e 2011). Enfim, as sensibilidades são as formas de se relacionar com o tempo, a partir da sensibilidade podemos reconfigurar as emoções, sentimentos, ideias, temores ou desejos; como os homens de outro tempo representavam a si próprios e o mundo. Deste modo, desejamos compreender como se entendia, vivenciava, expressava ou escondia e circulava o conhecimento e a experiência da morte e do morrer. Acreditamos que os caminhos propostos pela História das Sensibilidades podem relevar muito sobre como os sujeitos constituíam seus modos de viver e morrer. Aliás, como afirma o historiador José de Souza Martins, “a concepção da morte revela a concepção da vida”. (MARTINS, 1983. p. 09). Metodologicamente, seguiremos os caminhos propostos pela historiadora Barbara H. Rosenwein, para quem a história das emoções não é apenas possível, mas é importante para compreensão da condição humana. Emoções são, acima de tudo, instrumentos de sociabilidade. Cursando Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Membro dos Grupos de Estudo e Pesquisa História e Documento: Reflexões sobre Fontes Históricas” GEPHD e “História da Doença e da Saúde no Ceará” do diretório de grupos do CNPq. [email protected]

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AS VISÕES DA MORTE NA CAPITAL CEARENSE ENTRE OS

SÉCULOS XIX E XX

PEDRO HOLANDA FILHO

Introdução

O presente trabalho deseja dialogar com novos objetos da História Social. Partindo

das perspectivas apontadas por autores como Arlette Farge (2011) e Michel Serres (2001),

para quem a descoberta das sensibilidades ainda é um desafio para o historiador, nos

interessamos por analisar as diferentes visões sobre a morte e morrer entre o final do

século XIX e primeira metade do século XX.

O estudo das Sensibilidades trouxe para os domínios da História o problema da

subjetividade, revelando a presença do “eu” como agente e matriz das sensações e

sentimentos. A sensibilidade é compartilhada, é “produto social historicamente

construída, que existe à medida que se explícita em atitudes, em práticas.”

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2006. p.123). As sensibilidades são problemas de outro (e

do outro no) tempo, são formas de agir e pensar, de apreensão, de ser e estar no mundo,

se traduz em sensações e emoções deixadas em marcas objetivas do mundo sensível

(PESAVENTO, 2005 e 2011).

Enfim, as sensibilidades são as formas de se relacionar com o tempo, a partir da

sensibilidade podemos reconfigurar as emoções, sentimentos, ideias, temores ou desejos;

como os homens de outro tempo representavam a si próprios e o mundo. Deste modo,

desejamos compreender como se entendia, vivenciava, expressava – ou escondia – e

circulava o conhecimento e a experiência da morte e do morrer.

Acreditamos que os caminhos propostos pela História das Sensibilidades podem

relevar muito sobre como os sujeitos constituíam seus modos de viver e morrer. Aliás,

como afirma o historiador José de Souza Martins, “a concepção da morte revela a

concepção da vida”. (MARTINS, 1983. p. 09). Metodologicamente, seguiremos os

caminhos propostos pela historiadora Barbara H. Rosenwein, para quem a história das

emoções não é apenas possível, mas é importante para compreensão da condição humana.

Emoções são, acima de tudo, instrumentos de sociabilidade.

Cursando Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Membro dos Grupos de

Estudo e Pesquisa “História e Documento: Reflexões sobre Fontes Históricas” – GEPHD e “História da

Doença e da Saúde no Ceará” do diretório de grupos do CNPq. [email protected]

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A referida historiadora propõe a noção de “comunidades emocionais”, definindo-

as como “grupos sociais cujos membros aderem às mesmas valorizações sobre as

emoções” (ROSENWEIN, 2011. p. 07). No entanto, entendemos que as sensibilidades no

domínio da morte não que se constroem em linha reta, sem conflitos e desvios.

Aqui, serão analisadas as visões sobre a morte e o morrer de diferentes

personagens, tais como membros da classe médica e do clero, e de intelectuais e

memorialistas que escreveram no/sobre o período. Além disso, são contempladas também

construções tumulares do Cemitério São João Batista1.

Esses diversos tipos de fonte ― científicas e religiosas, individuais e coletivas,

clivadas entre o público e o privado ― são produções discursivas que apontam para a

experiência da morte e que podem, enfim, nos ajudar numa problematização e

entendimento das questões das sensibilidades, quando essas são vistas com as lentes do

tempo.

A morte no espaço fronteiriço: a classe médica e a Igreja.

É possível afirmar que as sensibilidades acerca da morte e do corpo sofrem

alterações profundas entre final do século XIX e começo do século XX. A concepção do

corpo e os cuidados para com este são modificados com as recomendações médico-

sanitaristas, pois se antes, como afirma a historiadora Claudia Rodrigues (2011), o

objetivo dos cuidados com o corpo morto eram a salvação da alma, cada vez mais este

passaria a ser identificado como capaz de causar doenças em decorrência do processo de

putrefação, o que proporcionaria um afastamento progressivo da memória dos vivos, uma

ótica mais “biologizada” do que sacralizada.

A separação entre Estado e Igreja, o fim do padroado régio e a oficial

secularização da morte ganham destaque. Esse último processo é proporcionado pela

transformação da concepção do corpo morto e a proibição dos sepultamentos no interior

ou aos redores das igrejas, a construção de cemitérios extramuros, a partir da segunda

metade dos oitocentos, influenciada pela propagação do discurso médico-sanitarista,

provocando uma fuga da convivência com os mortos, afastando-os da memória dos

1 Inaugurado em 1866, após o fechamento do antigo cemitério São Casemiro, que se deu, entre outros

motivos, pela sua localização, em uma área muito central da cidade, argumento defendido por sanitaristas

e com o agravante de que estava sendo soterrado, pela proximidade com a praia (BATISTA, 2002). O São

João Batista foi o principal cemitério da cidade até meados do século XX.

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sobreviventes, ainda que essas necrópoles permanecessem sob a jurisprudência

eclesiástica2.

Levando em consideração essa transformação da concepção do corpo morto, é

preciso atentar-se para os discursos sanitaristas, presentes, por exemplo, em relatórios da

Comissão de Socorros Públicos, em Fortaleza, no ano de 1878, propõe a construção de

muros para o cemitério, a fim de evitar a profanação onde já existia sepultamentos.

Portanto, percebem-se a preocupações imbricadas entre aspectos racionais e religiosos,

soterrados no campo santo de São João Batista.

Esta comissão, no ano seguinte, ainda propõe a construção de outro cemitério na

cidade: “atendendo, pois, às razões expostas de acordo com os preceitos da ciência,

pedimos à V. Ex.ª que tome em consideração a urgência de adotar uma resolução pronta,

como o caso requer.” Essa construção não chegou a se concretizar, mas a preocupação da

referida comissão, com um discurso alinhado ao saber médico, era devido a epidemias e

ao período de grande seca que a Província do Ceará vivia. A inquietação também se dava

em evitar o trânsito de cadáveres pelas ruas centrais da cidade, ou seja, preocupação com

o constrangimento causado pelos mortos e cortejos fúnebres. Essas informações cruzadas

com outras fontes podem nos ajudar a elucidar o entendimento sobre a sensibilidade no

enfretamento da morte de um outro tempo.

Ainda no século XIX, através de jornais independentes da época, como O unitário

e O cearense, encontramos o diálogo mais próximos entre os médicos-sanitaristas e a

população. O historiador Henrique Sérgio (2002) demonstra com os artigos do Dr. Castro

Carreira, no jornal “ O cearense”, um dos defensores da proibição das inumações no

interior das igrejas, como se insere nas discussões, se utilizando da imprensa local para a

propagação das ideias higienizadoras, num processo de âmbito nacional que culminou no

que entendemos como secularização da morte3.

Entre o final do século XIX e início do XX, a capital cearense foi marcada por

mudanças que caminharam em direção a um projeto de modernização, materializado nas

modificações estruturais, cuja face mais visível é a remodelação dos espaços públicos.

Essa nova realidade acarretou mudanças urbanísticas concomitantes a um crescimento

2 Para Claudia Rodrigues, as necrópoles permaneciam sob a jurisprudência eclesiástica “em virtude da

necessidade de serem bentas pela autoridade episcopal do lugar, antes de entrar em funcionamento, segundo

a lei imperial de 1828.” (RODRIGUES, 2011. p 181). 3 Por secularização da morte entende-se o fim da ingerência da Igreja Católica em torno dos assuntos da

morte, incluindo os cemitérios e ritos fúnebres, passando para a responsabilidade das municipalidades.

(RODRIGUES, 2005).

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urbano e populacional, redefinições das paisagens; além de modificações de costumes e

mentalidades, que podem ser percebidas nas transformações que incorrem sobre as

práticas fúnebres. É nessa conjuntura que surgem novos valores na sociedade

fortalezense, inclusive novas formas de lidar com a morte.

O processo de modernização, embora limitado em sua efetividade, redefiniu não

apenas a aparência, como também o uso dos espaços. Esse novo uso pressupunha a

racionalização dos lugares determinados para o bem viver e o bem morrer. Portanto, a

discussão desta pesquisa se desenrola em meio a um processo de racionalização, que tem

como uma das suas vertentes a secularização das práticas vinculadas à morte.

No século XX, percebemos, a partir da investigação das revistas médicas Norte

Médico e o Ceará Médico, que circularam entre 1913 e 1918 e 1928 a 1963

respectivamente, uma diferença discursiva no interior do saber médico: de um lado o

saber técnico, do profissional que deve exercer sua função; e de outro as crenças desses

próprios médicos.

Assim, a comissão editorial do periódico Ceará Médico, em março de 1929, na

seção “Crônicas – variedades – informação”, traz um texto intitulado “O reconhecimento

objetivo da morte”. Demonstrando uma naturalidade com esse fenômeno, discorre sobre

as características reveladoras da morte biológica do corpo. Na edição de julho do mesmo

ano, há um artigo assinado pelo Dr. João Octávio Lobo, com o título “A vida e a morte”,

que discorre sobre a morte do Dr. Demosthenes de Carvalho, referindo-se à agonia e

silêncio no domínio desse fenômeno, além de reforçar a piedade religiosa. A dupla face

dos discursos desses médicos, em sua imensa maioria católicos declarados, sobre a morte,

indica que a secularização não é um processo que se constrói em linha reta, sem conflitos

e desvios.

Memorialistas e as visões da morte, os mortos e o morrer.

A visão memorialística pode ser definida como discurso intelectual ou, como

afirma Raimundo Girão, crônicas históricas ou de cunho memorialístico, pois seus

autores demonstram atitudes de compreensão íntima e se pode entender essas crônicas

como representações da cidade de Fortaleza entre os séculos XIX e XX (Oliveira apud

Girão. p. 11).

Os memorialistas escrevem sobre aspectos que lhes chamam mais atenção, aquilo

que está em vias de modificação, de desaparecimento, além de escreverem sobre aquilo

que seja “visto”. Dito de outra forma, os memorialistas escrevem em um tempo

historicamente demarcado, referindo a este mesmo tempo ou outro tempo (passado) com

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vistas ao futuro, como se a perenidade da escrita garantisse a permanência do tempo em

que falam.

Esses escritos permitem debater essas representações de uma forma mais ampla,

além, e especificamente, das fúnebres. Pois “as representações expressam códigos sociais

que conferem sentido e significado às práticas coletivas. Discutir as formas de

representação da cidade [...] – através dos memorialistas – permite abordar as

representações sociais e a experiência de cidade do seu grupo social4.” (MONTEIRO,

2008, p. 278).

A partir destas crônicas podem-se vislumbrar as nuanças do cotidiano da cidade,

mas, em consonância com José Arimateia (2010), sobre tais crônicas históricas:

Não seriam todas e quaisquer crônicas que se incluiriam nesse afã de

rememoração/memorização da cidade. Nesse ponto, especificamos que as

crônicas que se prezam a tal intento devem se fazer acompanhar,

sobremaneira, de aspectos que as deixariam com as características mesmo de

similitude (ou verossimilhança, se preferimos) com a história, merecendo

assim tais crônicas a pomposa dignificação de ‘crônicas históricas’

(OLIVEIRA, 2010, p. 11).

É bastante interessante como o historiador José Arimateia legitima o uso das

crônicas como fontes, entendendo-as como “cartões-postais” da cidade ou mesmo como

lugares de memória, visto que estas tem a função de administrar o passado no presente.

Assim, o passado é lugar de outra cidade e as crônicas são os “cartões-postais” dessa

cidade (OLIVERIA, 2010). É o que o historiador Antonio Luiz Macêdo (2007), define

entende como memória urbana,

que implica maneiras próprias de ligar com a duração e o instante,

pois, mais intensamente que noutras configurações sociais, a cidade

moderna se inscreve como ponto de tensão onde se negociam

diuturnamente as pressões da mudança e das demandas de

permanência. Ali a textura do passado e as projeções de futuro avultam

numa magnitude sem precedentes (p. 54).

A partir destas crônicas ou trabalhos de cunho memorialísticos percebe-se a visão

de mundo cada autor, pois direcionam o seu olhar para algo que lhe chama mais atenção,

que lhe tem maior significado. Com esses modos de visão diferentes, não se trata de

afirmar que há memórias autênticas ou mentirosas, pois na escrita dos memorialistas, há,

com certa evidência, muitas aproximações e distanciamentos, afinal, trata-se de

memórias, com suas conhecidas artimanhas, sempre seletiva, não raro arbitrária, sem

4 O historiador Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho (2007), ainda reafirma que “nela [na cidade], cada

sujeito desenvolve percursos, atitudes, práticas, afetos que, embora idiossincráticos em seus traços mais

evidentes, reportam também a crenças, valores e opiniões que tecem o mundo social” (p. 53).

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esquecer que a escrita memorialística é também uma escrita de si5, na qual permite

conhecer o autor, seu modo de enxergar e rememorar o mundo, enfim, suas sensibilidades.

Alguns intelectuais se destacam na arte de escrever e pensar sobre a relação vida-

morte, como João Nogueira, Eduardo Campos, Otacílio de Azevedo, Gustavo Barroso;

ou, mesmos que não toquem na relação morte-vida, permitem “refletir sobre as

sensibilidades dos homens de um outro tempo, sobre a alteridade do passado e sobre a

natureza das marcas de historicidade que nos permitem reconfigurar o tempo do

acontecido” (PESAVENTO, 2007. p 09).

Na obra Fortaleza Velha, cuja primeira edição é publicada em 1954, portanto,

póstuma, João Nogueira6 imprime um tom nostálgico, com enlevo memorialístico,

ilustrando sobre as décadas iniciais do século XX, seus costumes, diversões e espírito da

cidade. Nogueira demonstra um cotidiano urbano que passa pela experiência de ruptura

com a tradição e de luto em relação ao passado.

A obra citada perpassa, através das memórias de seu autor, por vários lugares da

Fortaleza em fins do século XIX e início do XX, como o passeio público, ruas, praças e

ressaltando obras que modificavam os costumes e mentalidades da época, como a

iluminação pública, também um símbolo da modernidade que chegava à cidade nesse

período.

Sempre em tom nostálgico, Nogueira faz um contraste entre os enterramentos e

demais práticas fúnebres em diferentes épocas. Lembra que os locais de sepultamento

eram nas igrejas, depois no cemitério São Casimiro e, por fim, com o fechamento deste

por vários motivos já demonstrados pelo historiador Henrique Sérgio Batista (2002), no

cemitério São João Batista. Ressalta as procissões em torno dos falecidos no caminho

para as suas últimas moradas, passando antes, claro, pela igreja da Sé. Todo o ritual, com

sua cadência ritmada pelas contas do rosário, anunciava rezas e penitências, choros e

silêncios, gestos de respeito e contrição diante da morte.

5 Para a historiadora Aline Monteiro Magalhães (2007), “o desejo de sobreviver à própria morte,

eternizando-se pelas obras e, sobretudo, pela lembrança, é uma das principais motivações de quem produz

uma escrita de si. [...] Trata-se de uma prática estimulada por várias razões, entre as quais podemos destacar:

a consciência de ruptura com um determinado passado, despertando saudade e nostalgia; o medo de perder

por alguma razão; o pavor de perder o controle sobre si, levando à construção de identidade; a proximidade

com a morte aliada à vontade de dar sentido à própria trajetória; a ideia de possuir uma história interessante

para o conhecimento do público” (p. 130). 6 João Paulino Nogueira nasceu e morreu (1867 – 1947) em Fortaleza, engenheiro civil de formação, foi

um cronista circunstancial, escrevendo sobre o que, da sua infância até a maturidade, foi vendo, amando,

anotando, na proporção em que os tempos, por sua vez, foram mudando, modificando-se a mentalidade

das gerações e, como consequência, a feição de sua cidade amada.

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Em contraste, Nogueira afirma que já nos anos de 1920 e 1940, os sepultamentos

já não tinham uma participação tão numerosa, nem tão divulgados e solenes: “atualmente

a sacramentação in articulo mortis se faz tão silenciosamente que a comunidade dos fiéis

já não toma parte, com suas orações e votos, neste passo doloroso.” (NOGUEIRA, 1981,

p. 80). Portanto, o trabalho de luto modifica-se em relação às décadas anteriores, ficando

cada mais vez mais solitária e íntima. Pois, ainda segundo Nogueira: “Outrora não era

assim. Misturava-se o Sacramento a quem estivesse in extemis, comum cerimonial caído

em desuso, há cerca de cinquenta anos.” (NOGUEIRA, 1981, 80).

Mais uma vez, voltando em torno de cinquenta anos que debruça a sua escrita,

Nogueira afirma que, por meio dos sinos da Matriz, todos sabiam da ocorrência de morte.

Os convites de enterro eram, segundo Nogueira, “impressos em larga folha de papel

tarjado, com figuras e dizeres bem acordes com o sentir do tempo.” (NOGUEIRA, 1981,

81).

Esses convites de enterro configuravam-se em uma mistura de símbolos

aglutinados, lembrando que “do pó viestes e ao pó retornarás”; a morte, representada por

um esqueleto humano, com sua foice; um anjo elevando-se ao céu que carrega uma forma

humana ao Padre Eterno, rodeado com anjos e serafins. Por fim e continuamente em tom

nostálgico, Nogueira resume que, “há cinquenta anos passados os enterros entre nós eram

verdadeiras procissões, que se estendiam, algumas vezes, por mais de um dos nossos

quarteirões”, acompanhado por irmandades que “marchavam em longas filas, solene e

silenciosamente”, o caixão levado a tiracolo, até à Catedral todos iam descobertos

“vestidos de rigoroso luto”, todos na cor preta, daí em diante, até o Cemitério, “todos se

cobriam porque já estava encomendado o corpo” (NOGUEIRA, 1981, p. 82-83).

Já nas primeiras décadas do século passado, João Nogueira aponta uma

“velocidade americana”, uma vida corrida, com certa agilidade. Relata sobre os tempos

modernos, que proporcionam o desaparecimento de certos costumes e o surgimento de

entretenimentos modernos. Os ritos fúnebres são caracterizados pela pouca solenidade,

puxados à máquina (anteriormente carregado nos braços), passando com certa velocidade,

convidados vestidos de todas as cores (antes sendo costume vestir apenas a cor preta).

Destacando-se ainda o enterro dos anjinhos, sempre festivos e risonhos, claro com a

presença de muitas crianças. (NOGUEIRA, 1981).

João Nogueira demonstra sua tristeza com os tratamentos dados àqueles que

descansam com Deus: “Como se explica que uma sociedade católica e de sentimentos

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religiosos tão vivos quanto aquela tratasse com semelhante desprezo aquilo que em toda

parte é venerada!” (NOGUEIRA, 1981, p. 75).

Do mesmo modo, em O Ceará (2011)7, livro organizado por Raimundo Girão e

Martins Filho, Nogueira escreve um capítulo intitulado Hábitos e costumes cearenses, no

qual afirma ser “uma série de apontamentos, tomados aos nossos cronistas, do que um

estudo de costumes, que seguisse a ordem cronológica da aparição e abandono desta ou

daquela usança” (p. 80). Neste escrito, Nogueira insere como faz em Fortaleza Velha, as

práticas fúnebres num universo de significações, retomando os variados hábitos e

costumes dos citadinos do século anterior ao de sua escrita, como o uso da cama apenas

em momentos capitais, como vida e morte, revelando como a morte fazia parte de um dos

eventos principais da vida, fazendo parte do universo particular; a medicina positiva e

remédios imaginários 8.

Eduardo Campos, outro cronista de vasta produção memorialística9, em uma de

suas obras que tocam na relação com a morte e as atitudes perante esta experiência, O

inventário do quotidiano – Breve memória da cidade de Fortaleza,10 a exemplo do que

ocorre na obra de Nogueira, também lança seu olhar em direção a vários lugares e modos

de vida da Fortaleza entre o final do século XIX e princípio do XX. Retratando a cidade

de Fortaleza em seu aspecto físico, seus bairros e sua ruas, tenta criar um mapa da cidade

por meio das suas memórias. Ainda ressalta os costumes, modos de vestir e

comportamentos de seus habitantes. A partir da escrita do romancista Oliveira Paiva,

Eduardo Campos reapresenta a situação urbanística e o próprio cotidiano daquelas

pessoas que residiam à cidade naqueles longínquos anos.

Sobre os anos de 1930, a sua escrita se torna mais íntima, revelando as suas

memórias. O contexto gira em torno da família, da casa, dos móveis, dos lugares de

sociabilidades, como a bodega, as festividades, mas também ressalta, assim como

Nogueira, obras públicas e inovações técnicas que modificam os costumes e mentalidades

7 Fac-simile da edição de 1959. 8 Expressão do próprio João Nogueira. 9 Nasceu em Pacatuba – CE, no ano de 1923, mudando-se pra Fortaleza ainda muito criança. Em entrevista

dada ao historiador Sebastião Ponte em virtude do projeto “História e memória do jornalismo cearense”,

Campos fala das suas influências, sejam na literatura – José de Alencar, Machado de Assis (leituras feitas

aos 14 anos de idade); sejam no teatro – Antônio Giullia Bragallia, Maiakovsky, Dostoievsky. É formado

pela Faculdade de Direito, exaltando a sua capacidade aguçada de ler e aprender. Foi diretor do jornal

“Correio do Ceará” entre os anos de 1940 e 1960, sendo também radialista da rádio “Ceará Rádio Clube”,

Presidente do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras. 10 Logo na justificativa do seu livro, Eduardo Campos, afirma que é “evidente o resgate da memória da

cidade de Fortaleza, tomada a seu passado, e, possivelmente, fugindo aos moldes tradicionais.” (CAMPOS,

1996).

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da época, sintomas da eminente modernidade, como a construção do aeroporto, o aumento

do número de bondes, a inserção de ônibus - gerando uma nova forma de locomoção,

mais rápida e eficaz; fogões a gás, telefone e tomadas de corrente elétrica.

Campos elucida sobre as práticas fúnebres o trabalho de luto, denominando-o

como a etiqueta do nojo, definindo as atitudes, os atos ligados a este fenômeno, até a

sepultura, como parafernália da morte11. Para Campos “Ir a enterro, fazia parte da

etiqueta do nojo, [...] o pesar da família obedecia regras especiais a partir do

estabelecimento do corpo na sala de visitas (os enfeites apartados dali), passando pelo

ritual medievalesco de os parentes, retornando do cemitério, entreterem os sofrimento

tomando café ou chocolate” (CAMPOS, 1996, p. 60-61). E “passada a missa de sétimo

dia, os de casa se preparavam para receber as visitas de condolências. Estas partilhavam

o sentimento de dor, apresentando-se vestidas de roupas escuras” (CAMPOS, 1996, p.

62), pois as orações fazem parte de uma prática coletiva, uma solidariedade da

comunidade dos vivos, preocupados com o destino do falecido, para que este repouse

com Deus e não se perca nos caminhos do Além-mundo.

Mais uma vez os sentimentos de dor e sofrimento são exteriorizados pelos que

sobrevivem, sem deixar de preocupar-se com o caminho da salvação dos que partiram

para a morada eterna. Ainda fazendo parte dessa etiqueta do nojo, a casa deveria ficar em

total silêncio, o fumo (tarja preta), subia para os retratos das paredes, que, aliás, os que

apareciam o falecido sorrindo, eram retirados das paredes, numa clara alusão a tristeza do

momento, pois, se trazia tanto sofrimento para os parentes, deveria trazer também ao que

já descansava com Deus. Nesse sentido, a morte traz um sentimento paradoxal, pois se

descansar com Deus deveria ser uma benção, deveria também trazer contrição, seriedade

e retidão.

Outros exemplos podem ser trazidos, como Gustavo Barroso, em Coração de

menino (2000), no qual se refere ao diabo e os pactos feitos com este por homens da

época, ou seja, releva as crenças e superstições de um tempo. Ou Raimundo Menezes, na

obra Coisas que o tempo levou (1938), tratando dos “gatos pingados”, como eram

chamados os carregadores de cadáveres, suas vestimentas e atitudes.

O mesmo tema é trazido por Otacílio de Azevedo, em Fortaleza Descalça (1980)

que descreve a atividade, bem como o trabalho de luto para os mais favorecidos

economicamente, demonstrando uma hierarquização da morte; e o trabalho de luto de

11 São expressões que o autor emprega, respectivamente, nos livros O inventário do quotidiano – Breve

memória da cidade de Fortaleza (2006) e A memória imperfeita (1993).

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“desoladas viúvas e viúvos que trajavam o luto fechado pelo resto da vida” (p.150). Na

mesma obra, Azevedo busca na sua memória de adolescente uma visita noturna ao

cemitério, com mais dois contemporâneos. As falas, as recitações de poemas presentes

nessa reminiscência, são entrecortadas por lágrimas, angústias e saudades ao pé do túmulo

visitado por eles.

Representações da morte e post-mortem na arte tumular do cemitério São João

Batista.

Outro indicativo das sensibilidades no domínio da morte está nas construções

tumulares do principal cemitério, o São João Batista, inaugurado, em 1866, foi o principal

cemitério da cidade até meados do século XX. As imbricações entre discursos religioso e

médico-sanitarista são denunciadas pela relação arquitetônica entre a murada do

cemitério e a igreja matriz da cidade. Criada no século XIX, a murada fica “porta-com-

porta” com a entrada principal da Matriz. Se de um lado isso denuncia a relação

simbiótica entre os dois “lugares santos”, por outro, esclarece um desejo de fazer o corpo

velado caminhar sem tortuosidades pelos espaços cada vez mais racionalizados da cidade.

A arte tumular, enquanto sistema simbólico, ganha destaque, pois esta carrega

sentido e, através dela, notamos as mudanças e permanências de atitudes socioculturais

diante da morte, existência de múltiplas temporalidades e significado de cada peça desse

imenso quebra-cabeça. É por meio da arte tumular que podemos discutir sobre o

imaginário, sistemas simbólicos, representações sociais. A arte tumular apresenta

diferentes significados em diferentes contextos históricos, portanto, podemos perceber

que, por meio dos monumentos tumulares, são expostas as representações sociais de cada

época.

O túmulo torna-se o reduto dos sentimentos não só daqueles que agora

“descansam em paz”, como também dos entes queridos que ficassem em vida. São

envolvimentos nesses sentimentos, os desejos de serem lembrados para eternidade, bem

como a utilização do túmulo como denúncia, para a exaltação do herói, demostrar

distinção socioeconômica e vários outros desejos como Henrique Sérgio já nos

demonstrou em seu trabalho sobre a arte tumular no cemitério São João Batista

(BATISTA 2002).

Padrões são também reconhecidos na arte tumular do Cemitério São João Batista,

porém, deve ser ressaltado que estes estilos não estão divididos em períodos tão

demarcados, pois se encontram construções de padrões diferentes em um mesmo período.

Em consonância com BATISTA (2002), “não é possível delimitar rígidas fronteiras

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cronológicas na arte funerária, pois o surgimento de um estilo não encera o anterior”

(BATISTA, 2002. p. 81). As artes de diferentes estilos convivem entre si e com outras

que não se identificam com nenhum padrão.

Henrique Sérgio (2002), explica resumidamente as características dos

monumentos tumulares desde primeiro plano do Cemitério São João Batista:

o primeiro [padrão] estilisticamente caracterizava-se pelo Neoclássico, tanto na

vertente ‘classicismo arqueológico’, influenciado pelas descobertas de Pompéia

e Herculano, como também pelo ‘neo-medievalismo romântico’, inspirado na

Idade Média. Já no de Transição (1889 – 1902), os padrões estatuários do período

monárquico são substituídos por cruzes, ou seja, um novo estilo decorrente do

surgimento de valores diferentes dos da monarquia. Procura-se negar a

ostentação dos túmulos da fase anterior. Aparecem cruzes (imitando galhos)

cravadas sobre pedras, tendo livros abertos ou pergaminhos. [...] Já no período

de Consolidação (1903 – 1930), há uma retomada da estatuária que exibe uma

sensualidade até então excluída na necrópole” (BATISTA, 2002. p. 76).

No primeiro padrão, o de Inauguração, percebe-se nas estátuas femininas, vestidas

com túnicas que escondiam as formas e partes do corpo, com expressões serenas,

contidas. Estas expressões revelam a alma do indivíduo, que devem ser brandas, sem

expressar sofrimento ou qualquer outro sentimento.

O padrão de Transição com símbolos como cruzes e livros ou pergaminhos

decorriam dos ideais do positivismo, como o cientificismo e o culto ao saber. Há uma

quebra na ostentação do padrão anterior, com o desejo de demonstrar simplicidade ao

mesmo tempo em que, representado pelo livro aberto nessas construções fúnebres, se

ratifica a sofisticação em relação ao saber, conhecimento, intelectualidade.

O terceiro padrão, de Consolidação, retoma toda ostentação do primeiro padrão,

influenciado pela Art Nouveau, as vestes das estátuas femininas deixam a mostra partes

do corpo, além da demonstração de sentimentos através dos semblantes. (BATISTA

2002).

Podemos perceber, através da arte tumular, as atitudes diante da morte, como os

fortalezenses percebiam o além-mundo, já que essa sociedade fortalezense era

majoritariamente cristã. Sendo assim, entende-se que a essa mesma sociedade acreditava

na vida após a morte, que deixa de ser finitude, pois há sempre a preocupação com o

além-mundo e a imortalidade da alma. Por esta razão preocupa-se com a vida além da

morte e, desde modo, procura-se viver de maneira digna a merecer um bom lugar no além-

mundo.

Os símbolos presentes nas construções tumulares têm diversas significações,

dependendo da religião, especificidade local, contexto histórico, ideologia. O

compromisso com a religião estabelecida, neste caso, católica apostólica romana, está

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exposto de forma evidente nos monumentos fúnebres do Cemitério São João Batista,

portanto, a maior parte da sua arte remeterá a sua religiosidade. A morte, desde modo, é

representação na concepção cristã, sendo sua arte carregada com os seus símbolos.

A arte tumular deve revelar a alma do indivíduo, seus desejos e sentimentos, assim

sendo, deve demonstrar o que a sociedade fortalezense pensava a respeito da morte e do

post mortem.

Os padrões das construções do São João Batista revelam uma mudança de

mentalidade perante a morte. Os monumentos demonstram as suas atitudes diante da

morte. No padrão de Inauguração, as expressões das estátuas são contidas, sem evidenciar

nenhum sentimento ou formas do corpo, ou melhor, sensualidade. Suas atitudes são

contemplativas, asas para baixo em meditação.

Esperar a justiça divina também é um desejo exposto nas construções funerárias

do São João Batista. No padrão de Transição, por exemplo, livros abertos nessas

construções funerárias remetem também ao juízo final, onde de um lado do livro estaria

todas as coisas boas que se fez em vida, enquanto do outro lado, todos os pecados

cometidos. Portanto, Deus julgaria se o indivíduo seria merecedor ou não das graças

eternas ou deveria passar pelo purgatório.

Michel Vovelle (2010) discorre sobre a constituição, busca, do terceiro local

(purgatório12) através de imagens cemiterias. Ainda demonstra a existência de outros

locais além do purgatório, para onde se vai após a morte, como por exemplo, o limbo.

Vovelle pondera que estes são locais da esperança pela salvação, para aqueles que,

julgados por Deus, ainda não são merecedores da morada eterna. Ainda sobre o

purgatório, pensa ser “mais do que um local: é um percurso subterrâneo no qual penetram,

por uma porta fortificada, almas ansiosas em oração” (VOVELLE, 2010. p. 57). Este seria

um local no qual a alma purgaria os pecados que não foram remidos em vida.

Porém, entendemos o purgatório como um tempo e não um lugar, pois a crença

no purgatório insere uma mudança na concepção católica de tempo no além. Seria um

tempo de espera pelo julgamento final e a salvação eterna. Tranquilizante e também

amedrontadora, a ideia de purgatório implicou em uma maior atenção a alma dos mortos,

especialmente para a execução de missas por essas almas para que estas pudessem ter sua

estada abreviada no purgatório. Deste modo, Vovelle acena que o esforço humano para

12 A Igreja Católica apresentava dois caminhos ao homem, a saber, um onde o cristão obediente aos

preceitos da fé encontrava o paraíso e o outro, o inferno, destinado aos transgressores. Nos séculos XII e

XIII emerge mais fortemente a noção de um terceiro local, o purgatório. (Le Goff, 1995).

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conviver com os mistérios do além-mundo e amenizar o trabalho de luto. A morte,

portanto, ensina o valor do tempo.

Já no período de Consolidação, constata-se mais uma mudança das atitudes diante

da morte. As estátuas femininas agora demonstram partes do corpo e certa sensualidade,

além de atitudes triunfantes, de superioridade, como homens visionários que venceram a

morte, o esquecimento, evocando a ressurreição, com braços e asas erguidas.

Portanto, essas novas atitudes são opostas às apresentadas nos padrões anteriores,

sem a tristeza e melancolia ou a espera do juízo final. Essa nova atitude releva a coragem

de enfrentar o além-mundo, na certeza que fizeram por merecer em vida.

Deve ser lembrado também que as construções tumulares não são formadas

apenas por objetos arquitetônicos, mas também por epitáfios e o seu teor discursivo, em

conjunto com esses objetos arquitetônicos, podem ser utilizados no sentido de perceber

as diversas expressões dadas a morte.

Em geral esses epitáfios esclarecem informações básicas dos que ali estão

sepultados, como datas de nascimento e morte e família. Expõe ainda o sentimento de

saudade de parentes e amigos. Reforçam ainda as qualidades dos que repousam na paz

eterna, colocando-os como heróis, grandes homens, portanto, estes monumentos

tumulares tem o poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, sendo um legado da

memória coletiva.

Há outras representações da morte e pós morte que devem ser ressaltadas, como

as tochas com as piras viradas para baixo, ou amarradas ou cruzadas por uma foice. A

tocha sobre o túmulo dá a impressão de avivar a memória do falecido e o fogo remete à

vida eterna. No São João Batista essas tochas estão invertidas, ou seja, o inverso da vida.

Mesmo amarradas ou cruzadas por uma foice releva que a vida foi interrompida, ceifada.

Também se encontra tais tochas sendo apagadas por uma mulher (a morte) com água, o

oposto ao fogo.

O fogo também é um símbolo notável de se analisar, sendo dubio, pois que ele

remete a vida e quando colocado em oposição a água, que remete a purificação e também

à vida, o fogo passa a representar o pecado, algo impuro. Vovelle (2010), discorre sobre

imagens do purgatório como local aonde se paga penitências, ou seja, em chamas.

Através da arte tumular, se evidencia a convenção com a religião e vários símbolos

que a fazem referência estão expostos nas construções fúnebres do cemitério aqui

estudado. São exemplos a âncora, símbolo da morada eterna, daquilo que coloco para

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sempre na morada eterna, assemelhando-se ainda com a cruz de Cristo, que paga os

pegados através da sua crucificação.

A ampulheta com asas, remetendo a questão do tempo e o quanto este é veloz,

lembrando que a vida é passageira, é rápida e que deve-se aproveitar ao máximo a sua

permanência no plano material. O cordeiro, outro símbolo presente no São João Batista,

marcando a sepultura de anjinhos, como são conhecidas as crianças falecidas, representa

a inocência e também o cordeiro de Deus que, segundo a doutrina católica, tira os pecados

do mundo.

Deve-se ainda levar em consideração os túmulos-capelas, destacando o estilo

gótico e barroco. As construções dessas capelas sinalizam também para a religiosidade,

especificamente católicas. O espaço cemiterial é por si só sagrado, ser sepultado em sua

própria capela parece revelar o desejo do recinto sagrado individual, aberto apenas para

familiares.

Uma das representações mais recorrentes são as esculturas de anjos, que são

aqueles que guiam o espírito e oram pela alma no purgatório, aparecem também em

alegorias, demonstrando diversos sentimentos como: desolação, êxtase, alegria, tristeza,

meditação, complacência.

Outras representações marcantes são aquelas que remetem a passagem da vida

terrena para a vida eterna, incidindo uma ideia de transcendência, passagem para o além-

mundo, como uma escultura de uma mulher com uma criança ao colo e uma moeda na

outra mão para o barqueiro e assim, transporta-lo para o outro plano espiritual. Essa

referência ao barqueiro que realiza o transporte das almas para o além, remete a cultura

grega.

Considerações finais.

Quando as questões de saúde pública começam a adentrar na esfera religiosa, é

que se travam as disputas em torno das práticas fúnebres e a regulação das ações nesse

contexto. A partir de meados do século XIX é que esse embate torna-se decisivo, tendo

as atitudes perante a morte e o corpo morto como território de disputas entre o público e

o privado, padre e o médico, o domínio religioso e o saber médico, culminando com a

oficial secularização das ações no domínio da morte.

Algumas considerações devem ser feitas acerca das crônicas históricas ou escritos

memorialísticos, pois não se pode esquecer que estas crônicas tem a possibilidade de

“mostrar como uma visão urbana pode estar carregada de emoções, valores e visão de

mundo” (DARNTON, 2014. p. 145).

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Um aspecto ressaltado nos seus dizeres é a secularização da morte, uma

experiência do sensível que eclode no século XIX, quando os sepultamentos deixam de

ser realizados dentro das igrejas e passam a serem realizados nos cemitérios afastados do

centro da cidade; modificando, assim, o enfrentamento da morte e o trabalho de luto.

Outro ponto a ser sublinhado a partir dos escritos de Nogueira é o aspecto

religioso. Nota-se a preocupação, segundo suas memórias, com ritos fúnebres: as

procissões, o silêncio, a vestimenta, os sinos das igrejas, as irmandades. Para João José

Reis, “as cerimônias e a simbologia que envolvia a morte eram produzidas para promover

uma boa viagem para o outro mundo. [...] O tratamento dispensado ao morto visava

integrá-lo o mais breve possível em seu lugar, para seu próprio bem e a paz dos vivos”

(REIS, 1997. p. 96.). Portanto, a preocupação se dava com a passagem para o Além

mundo, com a salvação eterna.

Estes memorialistas tratam dos hábitos e costumes, incluindo os do contexto da

morte; demonstrando suas práticas e seus significados. A característica diferenciadora das

obras dos memorialistas e cronistas é a temporalidade da escrita. Com os trabalhos de

cunho memorialístico podemos discutir uma forma de arrumação do tempo. Deste modo,

essa tipologia documental é uma das principais fontes, de caráter central para o

desenvolvimento da nossa pesquisa.

Os memorialistas ou cronistas escrevem em um presente histórico e socialmente

demarcado, remetendo ao passado igualmente demarcado, com vistas a administrar esse

passado no presente, a retomar, muitas vezes, a cidade idealizada. Essas memórias, ou

crônicas históricas, são escritas em condição de narrativas privilegiadas acerca de um

tempo passado, de uma realidade anterior apresentada pela urbe.

Percebe-se, ainda, através da arte tumular, tidas como representações, as

mudanças de atitude diante da morte, do morrer e do além-mundo. De um padrão das

construções tumulares para outro se evidencia tais transformações perante a morte. Da

ostentação a simplicidade e novamente o retorno à ostentação, da melancolia a atitude de

triunfo. Da tentativa de não revelar sentimentos a manifestação destes, do medo e tristeza

exposta nas estátuas à certeza da ressureição ou do merecimento na morada eterna.

A morte, portanto e como já mencionado, não é mais finitude, pois existe a certeza

do além-mundo, percebido através da arte tumular. A religiosidade tem papel central

nessa percepção da vida após a morte.

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Também como já aqui colocado, a meditação sobre a morte deve ser algo

constante em vida e se deve fazer por merecer a salvação durante a vida e não apenas no

momento da morte.

As sepulturas são símbolos de pertencimento a comunidade, é o local de

reencontro, após a morte, da família, sendo esta sagrada. Tal sensibilidade é sentida

através das construções e seus padrões de tumulares. Mas Philippe Ariès (1989) também

se refere à mudança de sensibilidade coletiva, também evidenciada com a mudança nos

padrões de construções fúnebres.

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