As virtudes

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Plotino: teurgia e negatividade Prof. Dr. José Carlos Marçal (UNINASSAU – Recife – PE – Brasil) [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar que o conceito plotiniano de Uno possui como elemento principal a ideia de negatividade. O Uno é entendido como para além do conceito de ser. Esta compreensão remonta a Filon de Alexandria e aos cabalistas e é fundamental para se entender uma tradição que elabora uma ontologia para além das determinações da tradição metafísica onto- teo-lógica. . Palavras-chave: Uno, Negatividade, Neoplatonismo. O Neoplatonismo 1 teúrgico traz em si três matizes fundamentais: uma base doutrinária e metafísica assentada sobre as ideias principais de Platão e sua escola; práticas mágico-teúrgicas e dos mistérios que se fundam no misticismo grego e em suas Escolas de Mistérios, bem como nas práticas das escolas platônicas; e, a compreensão da diferença entre o Uno e o ser manifesto, além do percurso que a alma deveria fazer para atingir o Princípio-Intelecto e o próprio Uno. O principal representante do nascimento desta corrente foi Ammonius Saccas – entre os séculos II e III d.C. – que a funda sobre três pilares: o médio-platonismo, o neopitagorismo e alguns elementos do pensamento filoniano 2 . Ammonius Saccas tomou parte no grupo conhecido como Filaleteianos, ou seja, os “amantes da alétheia” advindos dos filósofos alexandrinos ou theodidaktos (), os ensinados por Deus. Ao assumirem para si este caminho, pensadores como Porfírio, Plotino, Orígenes e Longinus amalgamaram diferentes tendências – tendo sido os dois últimos integrados ao que hoje se chama de Escola Eclética 3 . 1 “O neoplatonismo é, inequivocamente, um fenômeno da antiguidade tardia. Certamente podemos afirmar que foi a derradeira das filosofias helenísticas, engendrada pelas demandas éticas, morais e espirituais do complicado contexto histórico em que nasceu: o terceiro século”. (NETO, 2010. p.129). 2 Disto sabemos através dos escritos de seus discípulos, como o foram Eusébio, Origenes, Herênio, Hierócles e Nemésio e, por via indireta, através da obra Vida de Plotino de Porfírio. Cf. a esta última obra ver BRISSON, 1982 e 1992. 3 Cf. ao tema e sobre Saccas ver WILDER, 1980. Revista Estudos Filosóficos nº 10/2013 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 16- 28

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  • 1. Plotino: teurgia e negatividade Prof. Dr. Jos Carlos Maral (UNINASSAU Recife PE Brasil) [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo demonstrar que o conceito plotiniano de Uno possui como elemento principal a ideia de negatividade. O Uno entendido como para alm do conceito de ser. Esta compreenso remonta a Filon de Alexandria e aos cabalistas e fundamental para se entender uma tradio que elabora uma ontologia para alm das determinaes da tradio metafsica onto- teo-lgica. . Palavras-chave: Uno, Negatividade, Neoplatonismo. O Neoplatonismo1 tergico traz em si trs matizes fundamentais: uma base doutrinria e metafsica assentada sobre as ideias principais de Plato e sua escola; prticas mgico-tergicas e dos mistrios que se fundam no misticismo grego e em suas Escolas de Mistrios, bem como nas prticas das escolas platnicas; e, a compreenso da diferena entre o Uno e o ser manifesto, alm do percurso que a alma deveria fazer para atingir o Princpio-Intelecto e o prprio Uno. O principal representante do nascimento desta corrente foi Ammonius Saccas entre os sculos II e III d.C. que a funda sobre trs pilares: o mdio-platonismo, o neopitagorismo e alguns elementos do pensamento filoniano2 . Ammonius Saccas tomou parte no grupo conhecido como Filaleteianos, ou seja, os amantes da altheia advindos dos filsofos alexandrinos ou theodidaktos (), os ensinados por Deus. Ao assumirem para si este caminho, pensadores como Porfrio, Plotino, Orgenes e Longinus amalgamaram diferentes tendncias tendo sido os dois ltimos integrados ao que hoje se chama de Escola Ecltica3 . 1 O neoplatonismo , inequivocamente, um fenmeno da antiguidade tardia. Certamente podemos afirmar que foi a derradeira das filosofias helensticas, engendrada pelas demandas ticas, morais e espirituais do complicado contexto histrico em que nasceu: o terceiro sculo. (NETO, 2010. p.129). 2 Disto sabemos atravs dos escritos de seus discpulos, como o foram Eusbio, Origenes, Hernio, Hiercles e Nemsio e, por via indireta, atravs da obra Vida de Plotino de Porfrio. Cf. a esta ltima obra ver BRISSON, 1982 e 1992. 3 Cf. ao tema e sobre Saccas ver WILDER, 1980. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 2. Para nossos estudos, entretanto, iremos nos centrar apenas na doutrina metafsica de Plotino que nos legada atravs de sua clebre obra, as Eneadas. Aqui, por ora, trataremos do conceito de Uno, o Princpio-Intelecto, as hipstases e a unio da alma e do Intelecto, ou seja, o percurso espiritual desta em direo ao Uno. Sobre o Uno, lemos na Quinta Enada: O Uno todas as coisas e nenhuma delas; a fonte de todas as coisas e nenhuma das coisas todas; todas as coisas so sua possesso [...]. Mas um universo de uma unidade inquebrantvel, em que a diversidade no surge, nem mesmo a dualidade? Precisamente porque no h nada dentro do Uno que todas as coisas vm dele; para que o ser seja provocado, a fonte deve ser no o ser, mas o gerador do ser, que deve ser pensado como a fonte primordial de gerao. Nada procurando, nada possuindo, nada faltando, o Uno perfeito e, em nossa metfora, cheio, e sua exuberncia produziu o novo: este produto volta-se novamente para seu progenitor e preenche-se e torna-se seu contemplador e ento o Princpio- Intelectual (PLOTINO, 1952, V, 2, 1). Trs pontos devem ser ressaltados aqui: 1. O Uno fonte de todas as coisas, todas as coisas e nenhuma delas; 2. A origem do ser manifesto anterior a este prprio ser, o que Plotino chama de gerador e 3. O que o Uno produz, o fenmeno, o mundo, todas as coisas, voltam novamente para sua fonte. O paradoxo filosfico aquele mesmo que nos fala do Um e do Mltiplo no Dilogo Parmnides de Plato entre o Uno e o Mltiplo, entre aquele que d forma a tudo e , em si mesmo, sem forma, a base da compreenso plotiniana da realidade. Explica-nos Santa Cruz: Plotino concebe a realidade como um dinamismo de natureza espiritual. A realidade uma produo contnua do inferior pelo superior, produo que se verifica mediante a contemplao. Mais ainda, a contemplao, a , produo, . Tudo quanto existe tem um ponto de partida, um primeiro produtor que paradoxalmente produz sem produzir, permanecendo em si mesmo. unidade e unicidade absoluta, alm de toda dualidade. Quanto surge dele, surge sem que ele o queira, nem que se incline, nem o proponha. A perfeio mesma que lhe propcia faz que algo Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 3. surja dele, como um desborde. O primeiro produto nascido do Uno, em duas etapas (processo e converso), a Inteligncia (Intelecto), primeiro grau ou nvel em que se estrutura a realidade depois do Uno (SANTA CRUZ, 2006, p. 34). O produto primeiro que nasce do Uno surge em dois nveis: processo () e converso (). Aqui temos o primeiro grau da manifestao, o Princpio-Intelecto; e da autocontemplao deste princpio surge a alma. E esta, a alma, produz como imagem de si mesma as formas que habitaro o mundo sensvel. A matria (), por fim, a ltima produo desta processo, ou seja, o suporte para estas formas. Compe-se, neste esquema, uma estrutura ontolgica que comporta em si um nvel para o pensamento e para o conhecimento: Como a realidade de natureza espiritual, cada nvel ontolgico simultaneamente um nvel em que o pensamento e o conhecimento se estruturam de determinadas maneiras, cada vez mais mltiplas, mais complexas e cada vez mais imperfeitas. Deste modo, cada nvel ontolgico assim mesmo um nvel notico ou teortico (Ibidem, p. 34). O problema reside, todavia, na possibilidade do pensamento atingir a diferena entre o Uno e o mundo manifesto. A compreenso plotiniana do Uno anterior ao ser, aquilo que est em todas as coisas, mas no coisa alguma e gerador do ser j est presente na doutrina filoniana da gerao do ser a partir do no-ser4 . Filon assim nos demonstra no seu De Vita Mosis, j que se trata especialmente de manter ativa uma aproximao, atravs da linguagem, com esse Deus vivo que surge para Moiss e que deve ser conhecido por todos. O que se opera, ento, o choque entre uma tradio criacionista, a hebraica, e a tradio 4 Sobre Filon, comenta Brehier: A obra de Filon vibra com todos os ecos; ligado lei judaica, vendo nos esticos os melhores dos filsofos, ntimo dos cultos dos mistrios, conhecedor de Plato e dos pitagricos, usando, para comentar a Bblia, um mtodo tal que pudesse inserir nela elementos diversos, ele no podia ser estudado sem que de todos os lados se abrissem horizontes; nele se refletia toda a histria da filosofia grega at nossa era bem como a situao religiosa de seu tempo; nele se anunciava a mstica pag e crist que se seguiriam (BREHIER, 1955. p. 2-3). Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 4. grega, centrada num imanente perene e que, mesmo tendo elaborado a figura do primeiro motor, no o pensava como um Deus criador separado do mundo criado por Ele mesmo. A separao entre aquele que cria e a obra de sua criao um privilgio da tradio hebraica e que penetra o mundo helnico exatamente atravs da figura de Filon. Deste modo, entender-se-, diferentemente do modo grego, que o cosmo no pode ser compreendido como o primeiro Deus, como o Criador em si, mas sim como sua obra, sendo um Deus sem forma, mas que torna todas as coisas visveis, construindo a natureza. Este Deus, para Filon, que ama a virtude, a piedade e a excelncia [De Vita Mosis I, XXVII, (148)], Pai e Criador do Universo [De Vita Mosis I, XXVIII, (158)] e possuidor de um abismo em que Ele mesmo invisvel, sem forma, sendo um mundo incorporal, a essncia, que o modelo de todas as coisas existentes. Alm deste importante ponto de contato, Plotino, ainda na sua Quinta Enada, traz aquela compreenso filoniana de que Deus - em Plotino, o Uno, no pode ser definvel, aquilo que compreendido dentro da teoria hebraica dos atributos de Deus como o Ein-Sof, a negatividade5 . Por ser em si mesmo incognoscvel, este atributo no pode ser pensado ou mesmo posto em termos de proposies da linguagem fala-se, outrossim, sobre aquilo que ele no o em si mesmo uma das caractersticas da via negativa. Trata-se de uma aproximao insuficiente para o pensar, mas que em Filon e Plotino permitem estruturar a base concisa de seus sistemas. Explica Plotino nas Eneadas que: O Uno, Intelecto transcendente, transcende o conhecer: sobre toda necessidade, esta necessidade de conhecer que pertence somente Segunda Natureza. Conhecimento uma coisa unitria, mas definida: o primeiro o Uno, mas indefinido: um Uno definido no seria o Uno Absoluto: o absoluto anterior definio (PLOTINO, 1952, V, 3, 12). 5 Sobre o conceito de negatividade entre os cabalistas, comenta Scholem: Deus em Si, a Essncia absoluta, est alm de qualquer compreenso especulativa ou mesmo exttica. A atitude da Cabala para com Deus pode ser definida como um agnosticismo mstico, formulado de uma maneira mais ou menos extremada e perto da posio do neoplatonismo. A fim de expressar este irreconhecvel aspecto do Divino os antigos cabalistas da Provena e da Espanha cunharam o termo Ein-Sof (Infinito). Esta expresso no pode ser remontada a uma traduo de um termo filosfico em latim ou rabe. , antes, uma hipostatizao que, em contextos que lidam com a infinitude de Deus ou com Seu pensamento que se estende sem fim (le-ein sof ou ad le-ein sof), trata a relao adverbial como se fosse um nome e a usa como um termo tcnico. (SCHOLEM, 1989. p. 80). Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 5. Lembremos, alm do mais, que em Plotino o Uno infinito e isso traduz, de certo modo, um retorno ao pensar grego dos filsofos da physis (. Diferentemente de Plato e Aristteles, Plotino d um carter positivo ao infinito imaterial. Em Plato prevaleceu a compreenso de que o primeiro Princpio fosse dado como limite ( peras indica j o limite e, portanto, aquilo que produz o delimitado e o determinado; o eidos (e a ousia ( platnicas circunscreviam temtica e conceitualmente a compreenso de ser, o que leva naturalmente compreenso do fundante como Ideia (). Em Aristteles, o infinito s pode ser dado como puramente potencial e isso circunscreve tal conceito na esfera da categoria da quantidade e, ainda mais, necessrio pensar o perfeito como aquilo que implica um fim e um limite, o que no poderia ocorrer dentro do infinito que traduziria, deste modo, um plano em que a imperfeio fosse comportada, conduzindo a uma compreenso do mesmo como incompleto e indeterminado. Ao colocar o Uno no patamar do infinito, Plotino revive no s os preceitos gregos dos filsofos pr-socrticos, mas retoma um dos pontos chaves dentro da filosofia filoniana. O infinito plotiniano no est atrelado compreenso da infinitude do espao nem prpria quantidade. O infinito entendido como ilimitada, inexaurvel e imaterial potncia produtora (REALE, 1994, p. 444). a potncia adquire no a significao de potencialidade, mas a de atividade. Esta mudana plotiniana visa distanciar- se da ideia aristotlica de potencialidade atrelada matria, portanto, ao ser corporal, ao sensvel. Esta mudana neoplatnica se faz necessria porque Plotino quer dar ao Uno um carter transcendente que extrapola todos os nveis e possibilidades de linguagem. H, portanto, a estruturao entre o nvel ontolgico do Uno e o nvel ntico do mundo, cabendo linguagem lidar com o segundo, sendo o primeiro a fonte da prpria linguagem e, portanto, terreno infrutfero para conceituao assim como ocorre inversamente na esfera ntica. Ao lado da infinitude do Uno, Plotino retoma a abordagem filoniana da Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 6. impossibilidade de descrever ou nomear o Uno. Ele, o Uno, inominado porque no sabemos dizer nada a seu respeito. Este ponto de extrema importncia quando pensamos numa teologia da negatividade ou teologia negativa: Plotino, assim como Filon, trata o Uno ou Deus como Inefvel, alm de toda possibilidade de determinao pela linguagem, criando uma diferena entre o que , o mundo, os entes, e aquele que , mas foge a toda aproximao conceitual, j que esta esfera do no se d como fenmeno, como fato ntico. Ainda no canto de sua Quinta Enada percebemos o que Plotino traduz por inefvel ou inominvel: Entretanto o Uno em verdade alm de toda afirmao: nem a afirmao de uma coisa, mas todo-transcendente, estando alm mesmo da augusta e divina Mente ()possuidor nico de todo ser verdadeiro, e no uma coisa entre coisas; ns no podemos lhe dar nome porque isto implicaria predicao: podemos apenas indic-lo em nosso dbil modo, algo concernente a ele quando em nossa perplexidade ns objetamos: Ento ele sem autopercepo, sem autoconscincia, ignorante de si mesmo; ns devemos lembrar que estamos considerando-o apenas em suas oposies. Se ns o fazemos conhecvel, um objeto de afirmao, ns o transformamos numa multiplicidade (PLOTINO, 1952, V, 3, 13). Na metafsica plotiniana h uma processo deste inefvel em direo ao sensvel. As hipstases so de suma importncia dentro do sistema plotiniano porque justificaro no apenas sua tica e esttica, mas o solo geral de sua ontologia, ou melhor, de sua teologia negativa6 . Esse ponto crucial se d quando Plotino, afastando-se das ideias de procedncia seja platnico-aristotlica, seja neopitagrica, atm-se aos novos conceitos forjados por ele (REALE, 1994, p. 460), erige a compreenso da passagem do Uno para a multiplicidade j que aqui o pensamento possui um objeto e a necessidade de que essa dualidade 6 A distino se faz pertinente se tivermos em mente a ontologia fundamental heideggeriana em mira e sua compreenso para a tradio onto-teo-lgica. Falar em teologia negativa ou em tradio do pensamento da negatividade significa apontar para um momento dentro da histria do pensamento Ocidental em que esta constituio foi suplantada por uma viso seja de Deus ou do Uno que extrapola suas determinaes nticas. Parece plausvel assinalar que estas determinaes, ou a impossibilidade das mesmas, apontam para uma esfera ontolgica seja de Deus ou do Uno, da a importncia dada por estes pensadores questo do conhecimento e da linguagem em sua ontologia metafsica. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 7. indeterminada possa ser novamente determinada como retorno ao Uno. H, ento, dois momentos constitutivos desta compreenso: um voltar-se ao Uno que ainda no Esprito, posto que causa, e um refletir, o espelhamento dessa potncia sobre si mesma, aqui j fecundada e potencializada. Nessa processo espelhada, o Esprito, de fato, no pode pensar o Uno, mas pode pensar a si mesmo como gerado em plenitude por ele. Ele, o Esprito, potncia infinita que o leva a transbordar e aqui temos a terceira hipstase: do Esprito para a alma. A processo do Esprito para a alma segue o mesmo molde dado por Plotino para explicar a primeira hipstase. Neste sistema metafsico, portanto, devemos compreender que a caracterstica essencial do Esprito pensar e aqui temos sua dualidade e multiplicidade: pensamento sempre pensamento do ser e este sempre multiplicidade de ideias. Todavia, o Esprito compreendido como Uno-muitos, ou seja, o Uno dado em sua multiplicidade e querendo se pensar e, portanto, deve se fazer Esprito. E a alma, advinda do Esprito este advindo do Uno ter como essncia no o pensar, mas o produzir e isto devido ao fato dela, a alma, estar tambm atrelada ao Primeiro Princpio. Como a alma Enada V, I entendida como imagem do Intelecto, ela da mesma natureza que seu princpio, apesar de estar num nvel ontolgico inferior, ou seja, mais sensvel. A alma possui intelecto, ela dotada de inteleco, mas a inteleco que lhe prpria inferior, discursiva. Enquanto que, no Intelecto, todo o pensamento est presente ao mesmo tempo, a alma pensa uma coisa aps a outra: num momento Scrates, em outro um cavalo etc.(BRANDO, 2007, p. 482). Esta distino propicia a linguagem que prpria da inteleco. A unio da alma com o Intelecto j que a primeira uma entidade dspare e inferior ao seu princpio explicada por Plotino em V, 2, onde afirmado que cada ser mantm identidade com seu antecessor e gerador enquanto mantm contato com o mesmo sendo, ele mesmo, individualidade. So as partes superiores da alma que a conectam com seu princpio superior. A identidade do eu, a sede de sua subjetividade, estaria, em Plotino, atrelada ao princpio-Intelecto. Indica Brando: Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 8. Pierre Hadot7 tambm tratou da questo em mais de um artigo. Em Les niveaux de conscience dans les tats mystiques selon Plotin, ele diz que, segundo uma tradio platnica, qual Plotino se liga, a alma possui diferentes partes que tendem a ser como que almas superpostas e constituem, por seu agrupamento, a realidade humana. A parte inferior exerce as atividades da alma animal, ou seja, a sensao e o movimento, e da alma vegetativa, que o crescimento. A central a parte racional, que realiza seu discurso interior ou exterior no tempo. Por fim, distanciando- se dessa tradio platnica, Plotino afirmaria que existe uma parte superior da alma, que exerce a atividade do pensamento puro, tpico do Intelecto. Essa seria a parte da alma mencionada em IV, 8, que no desceu ao mundo sensvel, permanecendo sempre no inteligvel (BRANDO, 2007, p. 482-483). H, portanto, uma diferena entre a alma encarnada a esfera ntica de sua realizao e a alma unida ao Princpio-Intelecto, a base de sua estruturao ontolgica que permite que algo como o homem possa vir a ser. A alma, neste sentido, pode retornar sua origem por ser, ela mesma, tambm, em sua essncia, Intelecto. Todas as almas, ensina Plotino, advm desta mesma fonte originria, o Intelecto. Este, por seu turno, seguindo as hipstases, advm do Uno. A questo, todavia, no saber aqui se a alma estava, antes de encarnar, no inteligvel ou se a mesma era uma pura forma inteligvel, o que permitiria distinguir entre inteligvel e Intelecto (Cf. BLUMENTHAL, 1970, p. 203-19). O que nos interessa aqui saber que o prprio Plotino afirma que a alma, ao voltar-se para o Intelecto, harmoniza-se com ele. Lemos na Sexta Enada: Antes de nos tornarmos Aqui, ns existamos L [no inteligvel], sendo outros homens e, alguns, tambm deuses: ramos almas puras e intelectos unidos totalidade da essncia, partes do inteligvel, sem separao, sem diviso, integrados ao Todo (e nem mesmo agora estamos separados). E mesmo agora, verdade, no estamos separados; mas daquele homem primeiro introduziu-se outro homem, querendo ser, e nos encontrando, pois no estvamos 7Cf. ao texto de Hadot ver HADOT, 1980. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 9. separados do todo, ele se revestiu de ns e acrescentou a si mesmo aquele homem, o que cada um de ns era ento (PLOTINO, 1952, VI, 4, 14). O trabalho essencial da teurgia seria purificar a alma das suas relaes com o corpo, sublimar sua parte inferior e voltar-se plenamente para o Intelecto. Mas em Plotino, como entre os neoplatnicos, no podemos entender este retorno como uma unio mstica ao modo dos msticos cristos medievais. O sentido de unio mstica em Plotino carece das determinaes medievais. Explica Brisson: Tanto em Plotino, como em Porfrio, o termo mystiks, e seus derivados, , ento, utilizado para designar certo tipo de interpretao alegrica de mitos e de ritos que tm, como modelo, a prtica dos mistrios. Uma interpretao alegrica desse gnero prope-se a mostrar como os poetas que parecem falar da realidade sensvel evocam, de fato, a realidade inteligvel, que o objeto da filosofia. Quando Plotino e Porfrio utilizam o vocabulrio dos Mistrios, fazem, assim, referncia a certo tipo de interpretao alegrica e no unio da alma com o primeiro princpio (BRISSON, 2007, p. 459). Mas tanto em Plotino quanto em Porfrio a alma pode retornar e realizar a unio com sua origem. Mas o homem daimnico, aquele que opera constantemente em direo ao Intelecto e ao Uno graas s noes que se encontram no seu intelecto (tas ennoais) (Apud Op. Cit. p. 460), permitem que ele possa elevar-se em direo ao deus primeiro e que se encontra para alm (tn prton ka epkeina), seguindo as vias ensinadas por Plato no Banquete, que apareceu (ephne) este deus (ho thos) que no tem nem figura nem forma nenhuma (mte morphn mte tin idan khon) (BRISSON, 2007, p. 459); este deus, que aqui opera em unio com o Uno, est estabelecido (hidrymnos) acima do Intelecto e de todo o Inteligvel (hypr d non ka pn t noetn) (Op. Cit.). A questo natural que faz Brisson : mas em que consiste esta experincia de unio com o Uno que Porfrio diz que seu mestre realizou quatro vezes e ele, uma? Eis a resposta de Brisson: Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 10. Em tudo fazer, graas s noes que se encontram no intelecto (tas ennoais), para se aproximar do deus supremo (ti ep psi thei), ao descrita pelos verbos plesizein e pelzein, e em se unir a ele, em uma ao designada pelo verbo enon. Essa ascenso da alma lembra aquela descrita no Banquete (210a-212a), em que a alma ultrapassa as belezas sensveis e as belezas psquicas para atingir a contemplao da Beleza. Ento, aparece (ephne) para a alma este deus que s pode ser o Um, pois ele est estabelecido acima do Intelecto e de todo o Inteligvel (hypr d non ka pn t noetn), o que explica que ele no tenha nem figura, nem forma nenhuma (mte morphn mte tin idan khon) (Op. Cit.). O primeiro problema, aqui, surge quando se pensa em como possvel contemplar aquilo que no possui forma. Plotino elabora um sistema de ao da alma que pode ser dividido em quatro sees principais: 1. A alma, inicialmente, deve praticar as virtudes cvicas que so um nvel menor das virtudes cardeais: moderao, coragem, sabedoria e justia; 2. Depois a alma deve se desligar das coisas terrenas atravs das virtudes purificativas, dirigindo a alma para seu ser verdadeiro; 3. As virtudes purificativas ainda se referem juno da alma com o corpo; 4. Agora preciso que a alma pratique as virtudes contemplativas que significam um desligamento gradual da alma com as coisas sensveis, recusando as paixes terrenas. Ao distanciar-se das coisas terrenas, a alma atinge uma esfera contemplativa que lhe permite vislumbrar o ser verdadeiro, ou seja, o inteligvel8 . Mas preciso compreender que este processo est atrelado alma unida ao corpo: As virtudes purificativas so virtudes da alma humana, ou seja, da alma unida a um corpo. Sua aquisio faz-se nesta vida. E seu objetivo liberar a alma de paixes que, at ento, receberam apenas uma medida (Op. Cit. p. 463). Sendo originalmente unida ao Intelecto, a alma atinge, agora, um nvel de realizao superior e que vai alm dela mesma: trata-se das virtudes paradigmticas. Estas virtudes (areta paradeigmatika) so virtudes do Intelecto enquanto Ele intelecto e separado da Alma. Elas encontram-se no Intelecto e so as formas inteligveis. Superiores s virtudes da alma, elas so os modelos dos quais as 8 Na gnosiologia platnica, podemos afirmar que esta esfera corresponde cincia do inteligvel em seu aspecto mais elevado, ou seja, a inteleco das Ideias. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 11. virtudes da alma so as imagens(Op. Cit). Este esquema plotiniano parece ligado diretamente quela ideia fundamental do Fdon de Plato que apresenta quatro perspectivas na relao entre o sensvel e o inteligvel: mimese (), mtexis (), koinona () e parusia ()9 . Esta aproximao se faz importante porque com as virtudes paradigmticas ou virtudes-modelo atinge-se um nvel que extrapola o nvel do humano, mas participa em seu mostrar-se a partir da relao que se estabelece entre o corpo, a alma, o Intelecto e o Uno. Assim, a alma vence o corpo em direo ao Intelecto e se assemelha a este. Mas o processo desta unio mstica no cabe prpria alma; o Intelecto que ascende em direo ao Uno. A ideia de Plotino que por alguma razo em funo de sua perfeio o Uno sai de si mesmo e produz outro, o Intelecto. Mas ao se por como Intelecto, ele, o Uno, torna-se mltiplo uma doutrina que pode ser derivada do dilogo Parmnides de Plato incapaz de ver o Uno como ele . O Intelecto s pode contemplar o Uno como mltiplo. O Intelecto possui uma primeira potncia para pensar que lhe permite ver o que h nele mesmo e uma segunda potncia capaz de permitir o contato com o que est alm dele mesmo, o Uno, atravs de um movimento de intuio que lhe conduz simplicidade. No final deste estgio, preciso que o Intelecto volte atrs, por assim dizer, e que ele se retire, de algum modo, de si mesmo, que ele prprio se abandone, de algum modo, ele mesmo a isso que se encontra atrs dele, pois ele tem duas faces. E, ento, se ele quer ver o Primeiro, preciso que ele no seja inteiramente Intelecto (PLOTINO, 1952, III, 8). Na Enada VI, lemos que, no mais alto grau deste estado de ascenso, a alma despreza o uso do seu intelecto, j que este uso indica certo movimento e ela no quer mais se movimentar. Da a distino plotiniana entre pensar e contemplar, j que no primeiro h movimento e no segundo h uma aproximao com o Princpio-Intelecto. A contemplao, aqui, significa tornar-se (a alma) uma com o Intelecto. Assim, o que para o Intelecto um estado permanente, para alma um estado excepcional, o qual implica que, antes, ela tenha conseguido se estabelecer no Intelecto (BRISSON, 2007, p. 465). 9 Cf. PLATO. Fdon, 100 c-d. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 12. Plotino estrutura uma dinmica ontolgica assentada sobre o Uno, o Intelecto e a alma. Na esfera sensvel, a alma no se coloca na abertura que lhe permite, de modo autntico, abrir-se sua verdade mais radical, para alm do prprio Intelecto. Quando coloca a negatividade do Uno, Plotino forja uma abertura que se distancia daquilo que sensvel para atingir a radicalidade originria do homem. O direcionar-se do Uno ao Intelecto e, posteriormente alma, tambm possui o carter de apelo alma, do retorno sua casa. Nesta casa habita a verdade da alma que no pode ser entendida como algo da esfera sensvel. A impossibilidade da linguagem de nomear essa abertura e o Uno que se destina ao Intelecto sintomtica de uma viso ontolgica (distante de qualquer determinao ntica sobre o Princpio ou o ser) que fundamenta um dizer que fala mais daquilo que se mostra no seu ocultamento do que daquilo que, se mostrando, poderia ser entendido como o todo da compreenso do ser. Referncias: BLUMENTHAL, H. Nous and Soul in Plotinus: some problems of demarcation. In: Atti del Convegno Internazionale sul tema: Plotino e il neoplatonismo in Oriente e in Occidente. Roma: 1970. BRANDO, Bernardo. A unio da alma e do intelecto na filosofia de Plotino. Kriterion, Belo Horizonte, n. 116, Dez/2007. BREHIER, Emile. Comment je comprends lhistoire de la philosophie. Etudes de philosophie antique. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. BRISSON, Luc. Pode-se falar em unio mstica em Plotino? Trad. Loraine Oliveira. KRITERION, Belo Horizonte, n 116, Dez/2007. FILO de Alexandria. Completed Work. Resources Pages for Biblical Studies. Edio Eletrnica. Bilnge: Latim/Ingls. In: http://www.torreys.org. 2007. ______. The Works of Philo judaeus. v. I. Londres: George Bell & Sons, 1800. HADOT, P. Les niveaux de conscience dans les tats mystiques selon Plotin. Journal de Psychologie, n. 2-3, 1980. Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28
  • 13. MLLER, H. F. Dionysios. Proklos. Plotino. Ein Historischer beitrag zur Neoplatonischen Philosophie. 2 ed. Mnster: Aschendorffchen, 1926. NETO, Ivan Vieira. Filosofia, Religio e Misticismo na Antiguidade Tardia: Plotino, Porfrio e Jmblico e as Diferentes Nuances do Neoplatonismo. As Origens do Pensamento Ocidental, n. 5, Julho, 2010. PLATO. Fdon. Lisboa: Guimares Editores, 1999. PLOTINO. Eneadas. Chicago : University of Chicago, 1952. PORPHYRE. La vie de Plotin. BRISSON, L. et al. (Ed.). Paris: Vrin, t. I, 1982 e t. II, 1992. REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. v. IV. So Paulo : Loyola, 1994. SANTA CRUZ, Maria Isabel. Modos de conocimiento en Plotino. Estudios de Filosofia, n. 34, 2006. SCHOLEM, Gershom. Cabala. Judaica, v. 9. Rio de Janeiro: Koogan, 1989. SIMON, Jules M. Histoire de Lcole dAlexandrie. v. II. Paris: Joubert, 1845. ______. Du commentaire de Proclus sur Le Time de Platon. Paris: Moquet et Comp., 1839. TAYLOR, Thomas. Introduo. In: PROCLO. The six books of Proclus. v. I. Londres: Edio do Autor, 1816 WILDER, Alex. New Platonism and Alchemy. US: Wizard Bookshelf, 1980. Plotin: theurgy and negativity Abstract: The purpose of this article is to demonstrate that the concept of Plotinian One has as the main element the idea of negativity. The One is understood as beyond the concept of Being. This understanding goes back to Philo of Alexandria and the Kabbalists and it is fundamental for understanding a tradition which goes beyond the boundaries of the onto-theo-logical metaphysical tradition. Keywords: One, Negativity, Neoplatonism. Data de registro: 05/11/2012 Data de aprovao: 28/02/2013 Revista Estudos Filosficos n 10/2013 verso eletrnica ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME UFSJ - So Joo del-Rei-MG Pg. 16- 28