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11 MARA REGINA TRIPPO KIMURA AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS A VIDA EMBRIONÁRIA E O PATRIMÔNIO GENÉTICO HUMANO À LUZ DA REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL DOUTORADO EM DIREITO PUC/SP SÃO PAULO 2006

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MARA REGINA TRIPPO KIMURA

AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS – A VIDA

EMBRIONÁRIA E O PATRIMÔNIO GENÉTICO

HUMANO – À LUZ DA

REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL

DOUTORADO EM DIREITO

PUC/SP

SÃO PAULO

2006

12

MARA REGINA TRIPPO KIMURA

AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS – A VIDA

EMBRIONÁRIA E O PATRIMÕNIO GENÉTICO

HUMANO - À LUZ DA

REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial para

a obtenção do título de Doutor em Direito (área de

Direito das Relações Sociais, sub-área de Direito

Penal), sob a orientação do Professor Doutor Dirceu

de Mello.

PUC/SP

SÃO PAULO

2006

13

Banca Examinadora

______________________________ Professor Doutor Dirceu de Mello (orientador)

______________________________

______________________________

______________________________

______________________________

14

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a meu filho, muito esperado

e muito amado.

15

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, sempre.

Agradeço ao meu Mestre, Professor Doutor Dirceu de Mello,

pelo incentivo, pela confiança e pelos ensinamentos.

Com carinho, agradeço ao parceiro de todas as horas, meu

marido, Alexandre. Minha gratidão à minha família,

especialmente à minha mãe.

16

RESUMO

A genética evolui rápido, com ênfase na manipulação de genes e

de células, facilitada pela reprodução assistida. Ao lado de benefícios (ou

expectativas), agrega novos riscos, porque as técnicas são experimentais. Para

controle das atividades, o Direito Penal é reclamado e, a fim de coibir excesso,

apresenta-se a regra da proporcionalidade, mediante seus elementos:

necessidade, adequação e proporcionalidade estrita.

Na aplicabilidade desta regra, a noção central é o bem jurídico.

Entre eles, destaca-se a vida, cuja tutela a partir da fecundação se afigura mais

razoável em face da atualidade científica. Atrelados à dignidade humana,

emergem novos bens, como a integridade genética.

Iniciado pelo conceito de bem, o juízo da necessidade penal é

complementado pelas exigências da subsidiariedade e da fragmentariedade. Na

adequação, perquire-se a idoneidade da norma para evitar infrações e suas

vantagens e desvantagens perante a impunidade. Nas conexões com a pesquisa

científica, estes juízos aceitam a atuação preventiva da lei penal, imposta pela

importância dos bens, irreversibilidade e dimensão imensurável do dano e

dificuldade probatória do nexo causal. A proporcionalidade estrita preocupa-se

com a justiça da pena para o delito, valendo-se, na comparação entre as

categorias, de subsídios de ordem prática.

Palavras-chave: Bioética – Biodireito – Manipulação Genética - Proporcionalidade – Bem jurídico –

Vida - Patrimônio Genético

17

ABSTRACT

Genetics develops rapidly, with emphasis on

genes and cells manipulation, facilitated by assisted

reproduction. Besides its benefits (or expectations), new risks

are added, because it deals with experimental techniques. In

order to control such activities, an appeal is made to Criminal

Law, which in order to control abuse or excess, makes use of

the proportionality theory, through its basic elements, such as

need, adequacy and strict proportionality.

While applying this rule, the main point is the tutelage of legally

protected rights, among which, human life should be pointed out, whose

protection, starting from fecundation, seems to be more reasonable in view of the

current scientific trends. From the human dignity concept, new approaches

emerge, such as genetic integrity.

Starting from life protection concept, the judgement of Criminal

Law requirement is complemented by subsidiary and fragmentary demands. While

adjusting the situation to the norm, an analysis is made on the suitability of the

norm to avoid infringements, as well as its advantages and disadvantages before

impunity. While connecting such judgements with scientific research, they admit

the Criminal Law preventive action, imposed by the importance of such rights, as

well as by the irreversibility and immeasurable extent of damage therefrom, as well

as the difficulty of proving the causality link. Strict proportionality concerns with

justice of the penalty to be imposed to the tort or delict, taking advantage of

comparisons among the various categories, of subsidies taken from practise.

Key words: Bioethics – Biolaw – Genetic Manipulation – Proportionality – Legal right – Life –

Genetic heritage.

18

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11

1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO .....14

1.1 A ciência da vida e a ética ................................................................................................14

1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco” ......................................................14

1.1.2 Conceitos científicos básicos ..................................................................................20

1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade..................................................................23

1.2 A bióetica...........................................................................................................................26

1.2.1 A origem da bioética................................................................................................26

1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos .......................................................30

1.2.3 As relações da bioética com o Direito.....................................................................32

1.3 Formas de controle das ciências biomédicas ..................................................................34

1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional...................................................................34

1.3.2 A tutela administrativa das atividades.....................................................................36

1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina .....................................................................40

1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina ....................................................................40

2. AS MODERNAS TÉCNICAS DA GENÉTICA E SUAS

APLICAÇÕES NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA......43

2.1 A experimentação no homem...........................................................................................43

2.1.1 Experimentação terapêutica....................................................................................44

2.1.2 Experimentação não-terapêutica ............................................................................46

2.1.3 Experimentação pura ..............................................................................................46

2.2 A terapia gênica ................................................................................................................47

2.2.1 Terapia genética em células somáticas ..................................................................49

2.2.2 Terapia gênica nas células da linha germinal.........................................................50

2.3 A reprodução humana assistida .......................................................................................51

2.3.1 O indivíduo e as distintas fases do seu desenvolvimento ......................................51

2.3.1 Noções gerais ..........................................................................................................55

2.3.2.1 Inseminação artificial (IA) ..........................................................................56

2.3.2.2 Fecundação in vitro (FIV) ..........................................................................57

19

2.3.2.3 Variantes comuns da fecundação in vitro .................................................58

2.3.2.4 Pontos controvertidos ................................................................................59

2.4 A manipulação genética aplicada às técnicas de reprodução humana...........................61

2.4.1 A seleção genética: eugenia ...................................................................................61

2.4.2 A clonagem..............................................................................................................63

2.4.2.1 Clonagem reprodutiva................................................................................65

2.4.2.2 Clonagem terapêutica e as células-tronco................................................66

2.4.3 Hibridação, quimeras e partenogênese..................................................................74

3. A PROPORCIONALIDADE ...............................................................................76

3.1 Os princípios e as regras como normas jurídicas ............................................................76

3.2 A proporcionalidade como regra.......................................................................................79

3.3 A nomenclatura .................................................................................................................81

3.4 A origem e a evolução histórica da proporcionalidade ....................................................83

3.5 A consagração constitucional ...........................................................................................87

3.6 A proporcionalidade e os direitos fundamentais ..............................................................90

3.7 Conteúdo da regra da proporcionalidade no direito penal ...............................................94

4. A SUB-REGRA DA NECESSIDADE ..........................................................98

4.1 Linhas gerais .....................................................................................................................98

4.2 A exclusiva proteção dos bens jurídicos ..........................................................................98

4.2.1 Considerações preliminares....................................................................................98

4.2.2 Breve evolução histórica .......................................................................................101

4.2.3 O enfoque sociológico: a fragilização do conceito ...............................................104

4.2.4 O enfoque constitucional: a recuperação do conceito..........................................110

4.2.5 Nossa posição .......................................................................................................114

4.3 A intervenção mínima.....................................................................................................116

4.3.1 Os postulados: a fragmentariedade e a subsidiariedade .....................................116

4.3.2 A concretização: os conceitos de dignidade e carência de tutela penal..............122

4.3.3 As funções do direito penal...................................................................................124

4.3.3.1 A função promocional ..............................................................................125

4.3.3.2 A função simbólica...................................................................................127

4.3.3.3 A função de satisfação de expectativas sociais......................................128

4.3.3.4 Relações com a genotecnologia: nossa posição....................................129

4.4 O bem jurídico supra-individual ......................................................................................132

20

5. A SUB-REGRA DA ADEQUAÇÃO ...........................................................138

5.1 Seus traços comuns........................................................................................................138

5.2 Os obstáculos no exame da idoneidade penal ..............................................................141

5.3 O delito de perigo ............................................................................................................144

5.4 As normas penais em branco.........................................................................................148

6. OS BENS JURÍDICOS (1): CONSIDERAÇÕES SOBRE A

DIGNIDADE HUMANA E A VIDA ..............................................................152

6.1 A dignidade humana .......................................................................................................152

6.1.1 Ponderações preambulares ..................................................................................152

6.1.2 O plano do direito positivo .....................................................................................156

6.1.3 A relação com os direitos individuais e a impossibilidade da sua identificação

como bem jurídico................................................................................................160

6.2 A vida...............................................................................................................................162

6.2.1 As teorias sobre o começo da vida .......................................................................163

6.2.1.1 As posições clássicas: gregos e romanos ..............................................163

6.2.1.2 A doutrina da Igreja Católica: a teoria da animação ...............................164

6.2.1.3 A teoria da fecundação ou formação do genótipo ..................................168

6.2.1.4 A teoria da nidação..................................................................................172

6.2.1.5 A teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central.........179

6.2.1.6 Nossa posição..........................................................................................181

6.2.2 Perfil internacional .................................................................................................184

6.2.3 Perfil constitucional................................................................................................186

6.2.4 Parâmetros para a intervenção penal ...................................................................192

6.2.4.1 A vida humana “in vivo”: algumas considerações sobre o aborto ..........194

6.2.4.2 A vida humana “in vitro”...........................................................................199

7. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O DIREITO À VIDA..................203

7.1 A seleção pré-implantatória ............................................................................................203

7.2 A fecundação de óvulos com fins distintos da procriação .............................................212

21

7.3 A criopreservação de embriões ......................................................................................217

8. OS BENS JURÍDICOS (2): CONSIDERAÇÕES SOBRE O

PATRIMÔNIO GENÉTICO ...............................................................................230

8.1 A dupla faceta: a individual e a coletiva .........................................................................230

8.2 Perfil internacional...........................................................................................................235

8.3 Perfil constitucional .........................................................................................................237

8.4 Parâmetros para a intervenção penal ............................................................................239

9. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O PATRIMÔNIO

GENÉTICO .........................................................................................................................242

9.1 A manipulação genética..................................................................................................242

9.2 A clonagem humana.......................................................................................................251

9.2.1 Clonagem reprodutiva: aspecto individual ............................................................251

9.2.2 Clonagem reprodutiva: aspecto supra-individual..................................................256

9.2.3 Clonagem terapêutica ...........................................................................................260

9.3 A seleção de gametas e de embriões: a escolha do sexo.............................................264

9.4 Os híbridos e as quimeras....................................................................................................267

10. A SUB-REGRA DA PROPORCIONALIDADE ESTRITA.......271

10.1 Considerações gerais ...................................................................................................271

10.2 Proporcionalidade das penas e os delitos referentes à genotecnologia .....................274

10.3 Relação entre os ilícitos disciplinar, administrativo e penal.........................................280

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ........................................ 288

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................294

22

INTRODUÇÃO

A busca pelo conhecimento motiva continuamente a humanidade

para mudanças, que nem sempre representam formas de progresso. A ciência da

vida ou biomedicina, em virtude da interferência da tecnologia em incessante

evolução, amplia, com celeridade, seus horizontes. Nessas circunstâncias,

atormenta conceitos pouco questionados, como o começo da vida humana e o

padrão genético da espécie.

Os riscos relacionados às práticas científicas são, em certas

ocasiões, obscurecidos, em razão de interesses escusos movidos pelo egoísmo,

pelo interesse no lucro ou pela vaidade. Em outras ocasiões, são dramatizados,

graças ao sentimento social de insegurança, não constantemente calcado na

realidade. O medo, porém, não pode inibir a criação científica, porquanto, do

contrário, muitas melhoras à saúde nunca teriam sido conquistadas, como se

notou no passado com as vacinas.

No esforço pelo equilíbrio, o Direito é chamado para disciplinar os

comportamentos. Partindo de dados científicos, o jurista, sob lente cultural,

formula normas que, no âmbito penal, objetivam proteger subsidiariamente bens

jurídicos, sem prejuízo de promoverem valores.

Posta assim a questão, o presente estudo se propõe à análise da

tutela jurídico-penal sob o prisma da proporcionalidade, noção que remotamente

adentrou neste ramo jurídico. Assentados na Constituição Federal brasileira, os

seus elementos serão introjetados nas práticas biomédicas, a fim de que se apure

a legitimidade da intervenção penal.

23

O ponto de partida se resume à discussão do formato atual da

sociedade abalada por novas modalidades de risco, da responsabilidade no

exercício da atividade científica, do papel da bioética e das formas de controle,

institucionalizadas ou não. A seguir, para ampliar a esfera de conhecimento e,

portanto, de compreensão sobre as novas técnicas da biomedicina, serão

traçadas suas linhas gerais, sem a pretensão de esgotar o tema.

A fim de estabelecer nosso entendimento acerca da idéia de

proporcionalidade, será explicitada a correlata categoria normativa que ocupa,

qual seja a de regra, bem como serão expostos seus elementos: a necessidade, a

adequação e a proporcionalidade estrita.

Decodificando o juízo da necessidade, ingressaremos no conceito

de bem jurídico e, aspirando a alcançar seu sentido material, será percorrido o

caminho de sua evolução histórica e das teorias atuais. Na complementação do

raciocínio, serão examinados os postulados da intervenção mínima

(subsidiariedade e fragmentariamente) e de suas noções concretizadoras

(dignidade penal e carência de tutela). Fixada a proteção de bens jurídicos como

função primária do direito penal, serão explanadas as paralelas, dotadas de

crucial importância na seara da biotecnologia.

Dada a insuficiência da positividade da necessidade penal para a

tipificação legítima do comportamento, será ponderado o juízo de adequação,

quando se esquadrinharão as bases para a suscetibilidade da conduta à tutela

penal, sob o ângulo das condições reais do sistema jurídico e da sociedade.

Delineados tais parâmetros, a etapa seguinte compreenderá a

identificação dos bens jurídicos afetados pela engenharia genética em si mesma,

bem como em suas relações com a reprodução assistida. Seriam infindáveis as

24

discussões se todos os bens fossem abordados neste trabalho. Por isso, com

base no quadro vivenciado atualmente, marcado pela preocupação em torno do

estatuto do embrião e das conseqüências provenientes da alteração do genoma

humano para a espécie, o debate restará restrito aos bens que os afligem

diretamente.

Ato contínuo, mister se faz embrenhar no estudo da dignidade

humana à vista do conceito de bem jurídico e, após, da vida, suporte ontológico

de todos os demais bens, com destaque para as teorias explicativas de seu início.

Para não perder de vista as ponderações, será, após, demarcada a relação entre

a vida e as técnicas biomédicas, sempre sob o enfoque das sub-regras da

proporcionalidade.

A seguir, a análise adentrará na integridade genética humana, um

novo bem jurídico. Como procedido com a vida, também será abordada a relação

entre o genoma humano e a biomedicina. Ainda na investigação da vida e do

patrimônio genético, serão descritos os perfis internacional e constitucional dos

respectivos bens, como também os parâmetros para ius puniendi.

Finalizando, não podemos olvidar do juízo da proporcionalidade

estrita, em que se almeja a justa resposta ao crime para combatê-lo, e cuja

análise consignará sua relação com os delitos referentes à tecnologia genética.

A importância de um estudo mais acurado sobre a presente

temática salta aos olhos face ao estágio da ciência atrelado à postura da

sociedade perante ele, ora entusiasmada, ora temerosa. Ao aceitar os avanços ou

ao pugnar por medidas restritivas, o indivíduo, o Estado e a humanidade, num

plano mais abrangente, exteriorizam a postura diante de fatores essenciais para a

existência e a dignidade humana.

25

1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO

1.1 A ciência da vida e a ética

1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco”

O impulso pelo conhecimento, a ânsia pela cura de enfermidades

ou por uma melhor qualidade de vida, a imposição de interesses financeiros e

políticos ou até mesmo a vaidade humana conduziram o homem a inovações

científicas que, paulatinamente, dissiparam a distinção entre o natural e o

artificial.1

Nesse contexto, está situada a biomedicina ou ciência da vida,

que se ocupa do estudo científico da vida e de sua qualidade, com destaque para

a medicina e a biologia, sobretudo na área da genética.2 Trata-se de campo do

conhecimento radicalmente marcado por duas transformações, a saber: I) a

revolução terapêutica que, deflagrada com a descoberta das sulfamidas,3 em

1936, e da penicilina, em 1946, decorreu da aplicação de novos medicamentos na

prevenção, no tratamento de doenças e na pesquisa clínica; II) a revolução

biológica que, processada por meio de descobertas sobre os genes, tem

propiciado alternativas para a reprodução humana, além de, em paralelo à

1Cf. CANABARRO, Nelson Souza. Prefácio. In: BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética:

aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. e pref. por Nelson Souza Canabarro. Bauru/SP: EDUSC, 1997. p. 11.

2Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção. São Paulo: IBCCrim, 1999. p. 4.

3As sulfamidas são medicamentos eficazes contra infecções e foram descobertas por Domagk, na Alemanha, e por Tréfouel, em França (1936-1937).

26

prevenção e à cura, almejar a eliminação de propensões a enfermidades

agregadas à composição genética.4

A última das revoluções foi impulsionada em 1944, quando

Oswald Avery, Mc Lead e Mac Carty descobriram o DNA (ácido

desoxirribonucléico), que é o mensageiro molecular responsável por toda a

informação genética do indivíduo. A estrutura do DNA, em dupla hélice de quatro

bases nitrogenadas, foi descrita por James Watson e Francis Crick, em 1953,

quando se revelou que cada espécie carrega patrimônio genético próprio e que

cada ser vivo é formado por um patrimônio único, salvo no caso de gêmeos

monozigóticos.

Na atualidade, sobressai o “Projeto Genoma Humano” que,

iniciado em meados de 1980, nos Estados Unidos, tinha como primeiro objetivo o

estudo do efeito da exposição dos genes humanos a baixas intensidades de

radiação. Mais adiante, em razão das visíveis vantagens das pesquisas,

especialmente para a medicina preditiva, que está centralizada em investigações

sobre a predisposição genética a doenças, seguiram propostas de outros estudos,

voltados para a cartografia dos genes, os quais impulsionaram, mais e mais, o

projeto, quando países desenvolvidos decidiram se incorporarem a ele. Entre eles

estão Canadá, Japão, vários países da União Européia e, recentemente, o Brasil.

Na Europa, simultaneamente, foram lançados os projetos “Biomed” e “Biomed 2”.

Graças aos estudos empenhados, vários “mapas” foram

elaborados com diferentes qualidades de resolução, trazendo a localização de

genes responsáveis por enfermidades, bem como a seqüência de fragmentos de

DNA medicamente relevantes. Em 14 de abril de 2003, os pesquisadores do

4Cf. BERNARD, Jean. Da biologia à ética. Trad. por Reina Castilho. Campinas/SP: Psy II, 1994. p.

29.

27

“Projeto Genoma Humano” anunciaram oficialmente o seqüenciamento de

3.000.000.000 de bases do DNA da espécie humana. Atualmente, grandes

esforços são despendidos na aquisição de técnicas e instrumentos para o traçado

de mapas, com o fim de reduzir o custo e aumentar a eficácia da investigação,

quando a contribuição da informática desponta como decisiva.5

O contexto científico contemporâneo acena para a concretização

de antigas idéias de ficção científica de Aldous Huxley, reveladas na obra

Admirável mundo novo, cuja primeira edição remonta ao ano de 1932. Mais

importante, demonstra que o progresso da genética deriva da aproximação entre

a ciência e a técnica, e desnuda o fenômeno cultural intitulado tecnociência,

caracterizado pela tendente homologia entre o conhecer - pesquisa ou

investigação pura (ciência) - e o fazer - emprego dos resultados das descobertas,

consumado mediante a aplicação técnica do conhecimento.6 Nesta seara, situa-se

a biotecnologia que significa o conjunto de técnicas em que são usadas as

propriedades do material biológico para múltiplos fins, como segurança ambiental,

alimentar, agronegócio, terapia gênica, alimentos geneticamente modificados,

vacinas e clonagem.

Sem embargo dos benefícios que apresenta para a sociedade

presente e das inúmeras expectativas para o porvir, a biotecnologia agrega novos

riscos, porque as descobertas, além de idealizarem um contexto até então apenas

cogitado, não poucas vezes estão calcadas em procedimentos que trafegam pela

fase experimental, com projeção de efeitos não dominados ou inimagináveis.

5Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Genética e direito. In: ROMEO CASABONA, Carlos

María (Org.). Biotecnologia, biodireito e bioética: perspectivas em direito comparado. Trad. por José Carlos Sampaio Rodarte. Belo Horizonte: Del Rey; PUC-MG, 2002. p. 24-25.

6A palavra técnica provém do grego teknicas , que significa fazer bem algo.

28

Preocupado com o tema, Ulrich Beck debruçou-se sobre o

modelo macrosociológico da era pós-industrial, desenhando seus caracteres,

entre os quais, por ora, são pontuados os mais enfáticos. O primeiro reside na

diferenciação entre a causa e o potencial dos grandes perigos atuais e os de

épocas pretéritas. Enquanto outrora os perigos decorriam de desastres naturais

ou pragas, no presente são marcados pelo artificialismo, pois fabricados pelo

homem, dependentes de sua decisão e atuação. A par disso, porque ligados à

exploração da energia nuclear, de produtos químicos, de recursos alimentícios,

ecológicos ou, frise-se, genéticos, os novos riscos afetam a humanidade como um

todo e, sendo assim, tendem a uma difusão avassaladora, incluindo

possibilidades de autodestruição coletiva, acentuadas pelo fenômeno da

globalização.7

A segunda peculiaridade, também apontada por Beck, está nas

conseqüências dos riscos da modernização, posto que, além das primárias, se

verificam outras, secundárias (Nebenfolgen), que correspondem a efeitos

indesejados, não previstos ou imprevisíveis, desencadeados nas esferas social,

econômica e política, os quais, na opinião do sociólogo, correspondem ao

potencial político das catástrofes. Na sua ótica, os perigos anteriores à

industrialização eram passíveis de imputação ao destino, às forças da natureza,

aos deuses, enfim ao fatalismo, e por isso nenhuma resposta se esperava do

Direito, ao passo que, nos perigos artificiais, onde as respectivas decisões partem

do ambiente industrial ou técnico-econômico, abre-se margem para a

responsabilidade pela conseqüência indesejada, campo onde, ao lado das

7Ulrich Beck, Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne, Frankfurt am Main 1986, p.

31, 48, 52 e 103, e Revista de Occidente, n. 150, nov./93, p. 25-33, apud MENDONZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 24-28.

29

pessoas individualizadas, figuram, como possíveis alvos, as autoridades

administrativas e as empresas implicadas. 8

Não são poucas as dificuldades a serem trabalhadas no universo

jurídico, porque, como ainda adverte Beck, são insuficientes as regras tradicionais

de causalidade e de responsabilização, o que se denota na maioria das atividades

que exigem a inter-relação de tecnologias, em funcionamento dentro de contextos

coletivos intricados, quando, muitas vezes, a multiplicidade das ações confere azo

à irresponsabilidade. 9

Baseado em tais ponderações, Beck distingue três sociedades: I)

a tradicional, em que a origem e os efeitos dos riscos são individualizados e

facilmente constatáveis; II) a industrial, em que a ordem dos riscos segue

individualizada, mas os efeitos são coletivos; III) a de risco, referente à etapa atual

(pós-industrial), em que, além dos perigos tradicionais e industriais, se instalam

outros, cuja origem é, desde logo, generalizada e os efeitos são coletivos,

residindo, nesses atributos, os seus principais entraves.10

Em decorrência da nova ordem, a sociedade atual, para Jesús

María Silva Sánchez, padece de sensação de insegurança subjetiva (“sociedade

do medo”), que pode advir independentemente de riscos reais, seja em razão da

velocidade das mudanças, seja em função do acesso quase que instantâneo de

sua ocorrência, em virtude da evolução dos meios de comunicação, o que se

traduz numa demanda pública ascendente por normas de controle.11

8MENDONZA BUERGO, Blanca. op. cit. 9Id. Ibid. 10Ulrich Beck, Die Erfindung des Politische, Frankfurt am Main 1993, p. 39-41, apud LÓPEZ

BARJA DE QUIROGA, Jacob. El moderno derecho penal para una sociedad de riesgos. Poder Judicial, Madrid, n. 48, 3. época, p. 293, 1997.

11Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión de derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999. p. 21-28.

30

Essas reflexões revelam, na precisa lição de Figueiredo Dias, a

superação de uma era em que os riscos provinham de forças da natureza ou de

ações individualizadas, próximas e definidas, para a contenção das quais era

bastante a tutela dispensada aos bens clássicos (vida, corpo, saúde, patrimônio).

É anunciada uma nova sociedade, exasperadamente tecnológica, massificada e

global, onde os riscos, globais ou tendentes a tanto, podem ser produzidos em

tempo e lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles

contribuiu e podem gerar, como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção

da vida.12

A mudança instiga reformas nas estruturas política e jurídica que,

se efetivadas, provocariam a passagem do Estado Liberal Clássico para o Estado

de Prevenção, que é mais permeável à expansão desmedida do direito penal,

como admoesta Alessandro Baratta.13 A grande missão do penalista está na

busca do equilíbrio, para, de um lado, evitar a exclusão do direito penal em

questões fundamentais, como a preservação do Planeta e das espécies, e, de

outro, para banir ingerências meramente simbólicas, inócuas na prática, e que

conferem às normas penais o papel equivocado de compensar o déficit estatal e

social de controle da tecnologia. A noção de proporcionalidade apresenta-se

como aparato valioso na tarefa, auxiliando no balanceamento de bens.

12Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da

doutrina penal. Sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., 2001. p. 158. 13BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal: una discusión

en la perspectiva de la criminología crítica. Trad. por Mauricio Martínez Sánchez. Pena y Estado: función simbólica de la pena, Barcelona, n. 1, p. 44-45, sept./dic. 1991.

31

1.1.2 Conceitos científicos básicos

O controle jurídico das atividades científicas depende do manejo

de certos conceitos inerentes à biologia, porque são com freqüência importados

pelo legislador diretamente do campo fenomênico para o mundo normativo.

Desde logo, são expostos os mais usuais.

O cromossomo consiste em estruturas cuneiformes situadas no

núcleo de uma célula que armazenam e transmitem informação genética: é a

estrutura física portadora dos genes. Está composto essencialmente de DNA ou

ADN.14 Cada espécie tem um número próprio de cromossomos. O gene é a

unidade de informação hereditária, situada no cromossomo, e que determina as

características de um indivíduo.15 O genoma é o conjunto de genes, ou seja, o

conjunto da informação genética do cromossomo. O genótipo significa a

constituição genética do indivíduo, isto é, a classe de genes que pessoalmente

herdou, formando uma espécie em particular. Da interação do genótipo com as

condições ambientais, resulta o fenótipo, que configura o aspecto ou aparência do

indivíduo em relação à espécie.16

14O DNA é um filamento alongado, formado por dois filamentos paralelos, enrolados em eixo

imaginário, em forma helicoidal de escada. Cada filamento é composto por uma cadeia de moléculas ou bases nitrogenadas seqüenciais, quais sejam A, T, C e G (adenina, tinina, citosina e guanina). Cada base de filamento se emparelha de forma precisa e determinada com a base de outro filamento ou cadeia, ou seja, A-T, T-A, C-G e G-C. Não é possível a combinação, por exemplo, A-G, quando se está diante de erro ou mutação. No DNA humano, há cerca de três milhões de pares de bases. A linguagem (estrutura química) é a mesma, pois, como ensina Dussaut, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1980: “É apenas a ordem com que estas quatro letras se sucedem o que diferencia a roseira ou o milho de uma bactéria, de um elefante ou de um homem”.

15Recorrendo à representação gráfica de agrado dos biólogos, pode-se dizer que o código genético seria um dicionário; as bases nitrogenadas do DNA seriam as letras; os aminoácidos, compostos por três bases agrupadas que, combinadas, formam as proteínas, corresponderiam às palavras.

16Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1998. p. 23-24.

32

O certo grau de maleabilidade que caracteriza o genoma permite

nova combinação de genes mediante dois mecanismos naturais: a recombinação

genética e a mutação. A recombinação genética cons titui o intercâmbio de

informação hereditária entre 2 dois organismos independentes, o que acarreta

combinação diferenciada de genes e facilita o aparecimento de organismos

variantes dentro de uma espécie. Opera nos ciclos de reprodução humana, de

modo que o novo ser possuirá 50% (cinqüenta por cento) da informação genética

de cada um dos seus progenitores. A mutação genética é o mecanismo pelo qual

um gene sofre uma transformação repentina, que resultará em nova forma.17

A recombinação e a mutação podem ocorrer artificialmente

graças aos avanços tecnológicos da genética, entre os quais avulta a

manipulação genética que assume dupla acepção.

Em sentido estrito, corresponde à engenharia genética ou à

manipulação genética molecular, cujo material de trabalho está nas seqüências

de DNA onde se encontram os genes. A engenharia genética engloba o conjunto

de técnicas do DNA recombinante, conforme o art. 3º, V, da Lei Federal n. 8.974,

de 5 de janeiro de 1995 18 e o art. 3º, IV, da atual Lei Federal n. 11.105, de 24 de

março de 2005.19

17MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23-25. 18Cf. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo. Direito ambiental e patrimônio

genético. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 151. 19Em 31 de outubro de 2003, foi apresentado Projeto de Lei de autoria do Executivo à Câmara dos

Deputados, estabelecendo novas regras sobre a segurança e a fiscalização de organismos geneticamente modificados. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro de 2004. Enviado ao Senado, a Casa aprovou o projeto substitutivo do senador Ney Suassuna, em 6 de outubro daquele mesmo ano, por 53 (cinqüenta e três) votos a favor, 2 (dois) contra e 3 (três) abstenções. Retornando a Câmara, em 3 de março de 2005, foi aprovado o substitutivo do deputado Darcísio Perondi, por 352 (trezentos e cinqüenta e dois) votos a favor, 60 (sessenta) contrários e 1 (uma) abstenção. Finalmente, foi sancionado em 24 de março daquele ano, e consubstancia a Lei n. 11.105/05, que atualmente regula a matéria.

33

Descobertas em 1972 por Paul Berg, as técnicas do DNA

recombinante são operacionalizadas pela modificação, inserção, substituição ou

supressão de genes (fragmentos de DNA). A inserção ou adição consiste na

introdução na célula de um gene ausente no genoma. A modificação transforma o

gene defeituoso. Na substituição, extrai-se o gene anômalo e coloca-se o normal

em seu lugar. Na supressão, o gene é retirado ou neutralizado.20

Em sentido amplo, a manipulação genética inclui, ao lado da

manipulação molecular, a análise dos genes e as intervenções não-moleculares,

que se consumam sobre as células, os tecidos e os órgãos, especialmente na

fase embrionária, com destaque para a hibridação e clonagem.21

Em outro posto, estão as técnicas de reprodução assistida que,

em si mesmas, não alteram o patrimônio genético humano nem o recombinam

fora dos padrões naturais da espécie. Promovem, exclusivamente, o manuseio de

gametas e embriões, para a concepção de um ser humano por meios não-

naturais, pelo que são chamadas, em seu todo, de manipulação ginecológica.22

Entretanto, é patente a proximidade entre as técnicas em apreço e a manipulação

genética, porquanto aquelas colocam, em laboratório, à disposição dos cientistas,

os gametas, as células e os embriões, facilitando, à saciedade, a manipulação de

suas propriedades biológicas.

20Cf. HOMS SANZ DE LA GARZA, Joaquin. Avances en medicina legal ingeniería genética,

alteraciones psíquicas y drogas. Barcelona: Bosch, 1999. p. 22. 21Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. Aspectos jurídico-penales de la reproducción

asistida y la manipulación genética humana. Madrid: Edersa, 1997. p. 31-32. 22Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23.

34

1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade

Nos últimos 500 (quinhentos) anos, graças ao processo de

secularização e modernidade, o homem paulatinamente passou a ser

considerado como o sujeito, o senhor e o proprietário do mundo. Na percepção de

Anselmo Borges, o giro consagrou a razão técnico-instrumental que, centrada no

manejo de meios para o controle do universo, exclui considerações teleológicas,

resumindo-se na lógica do domínio da ação.23

Sob tal ótica, as ciências da natureza, entre as quais a

biomedicina, podem ser imaginadas de forma desapegada do meio social, como

se estivessem numa redoma envolvida pelo manto da neutralidade. O

pensamento estimula aventuras técnicas ilimitadas, como aquelas dirigidas à

substituição da casualidade, em que as aleatórias combinações naturais cedem

enorme espaço para a seleção intervencionista (escolha arbitrária de gametas ou

embriões para a fecundação assistida, clonagem reprodutiva para cópia de uma

determinada pessoa).

Embora o determinismo mecanicista deposite nas mãos dos

homens poderes antes impensáveis, o desprezo científico pelo fim é apenas

provisoriamente sustentável. Conquanto a investigação pura (técnicas para as

descobertas) seja, em princípio, imparcial porque voltada para o conhecimento,

sempre está condicionada por certas finalidades, as quais integram um processo

impregnado de escolhas. De fato, a seleção do objeto investigativo e a eleição de

um entre múltiplos meios englobam uma opção valorativa entre os benefícios e os

custos de dada pesquisa. 23BORGES, Anselmo. O crime económico na perspectiva filosófico-teleológica. Revista

Portuguesa de Ciências Criminais, Coimbra, ano 10, fasc. 1, p. 13-15, jan./mar. 2000.

35

Em meio às preferências, a lógica do conhecimento interage com

fatores históricos, culturais, financeiros e políticos, ou seja, com os caracteres do

meio social. Destarte, não há ciência totalmente neutra e, ante a conscientização

dessa realidade, a razão instrumental, porque em extrema penúria de fins e

deserto de sentido, entra, nos dizeres de Anselmo Borges, em colapso.24 O

embaraço nos dias de hoje é flagrante no âmbito das novidades genéticas,

porque muitos dos riscos que provocam nunca foram pensados.

Para superar a crise, o autor português propõe, com acerto, a

conscientização de que as novidades científicas, se ameaçam, fazem-no a todos,

cabendo à humanidade presente, se quiser ter futuro, portar-se como sujeito

comum da responsabilidade pela vida.25 Via de conseqüência, no exercício de

atividade científica, cada um dos seres humanos deve fiscalizar e ser fiscalizado,

de maneira que delimite seu comportamento pelo binômio liberdade-

responsabilidade, salientado por Maria Garcia.26

O binômio não se impõe para cercear o desenvolvimento

científico, o que seria negativo para todos, senão para destacar critérios

humanitários que orientem as pesquisas e a técnica e, nesse propósito, a ética

ganha espaço. A palavra, dotada de forte carga emotiva, é empregada nos mais

variados contextos, o que lhe confere aparente confusão de sentido27 que pode

ser diluída pela diferenciação entre ética e moral.

Segundo Marco Segre e Cláudio Cohen, a moral assume as

seguintes características: “1. seus valores não são questionados; 2. eles são

24BORGES, Anselmo. op. cit., p. 23-24. 25Id. Ibid., p. 31. 26Cf. GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da

responsabilidade. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 260. 27Cf. NALINI, Renato. Ética geral e profissional. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001.

p. 5.

36

impostos; 3. a desobediência às regras pressupõe um castigo”.28 Já a ética é

recoberta por outros atributos: “1. percepção dos conflitos (consciência); 2.

autonomia (condição de posicionar-se entre a emoção e a razão, sendo que essa

escolha de posição é ativa e autônoma); 3. coerência”.29

Guy Durand apresenta a moral como termo que, associado à

prática (ao comportamento), forma um sistema fechado de normas, de ordem

religiosa ou confessional. A ética aparece como ciência da conduta, que tem por

objeto a moral e opera em questionamento secular, pluralista, prospectivo e

aberto.30

Pode-se afirmar que a norma moral é um imperativo de conduta,

consagrado como tal, cuja violação redunda em sanção. A ética, por sua vez, é o

estudo sobre as normas morais, que permite preencher vazios normativos ou

questionar o motivo pelo qual uma conduta é considerada boa para dada

concepção axiológica de partida e não para outra, a fim de que, expostos os

fundamentos, seja possível externar objetivamente a preferência.31

Em meio à tensão valorativa despertada pela biotecnologia, toma

assento a ética, ou melhor, a bioética, não a bio-moral, porque os

comportamentos, conquanto envolvam opções valorativas, são social ou

religiosamente controvertidos, bem como dificilmente reguláveis por ditames

precisos e fechados.

28COHEN, Cláudio; SEGRE, Marco. Definição de valores, moral, eticidade e ética. In: SEGRE,

Marco (Org.). Bioética. São Paulo: Edusp, 1998, p. 15-16. 29Id. Ibid., p. 17. 30DURAND, Guy. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumento. Trad. por Nicolás

Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2003. p. 74-75. 31Segundo Nicola Abbagnano, a palavra ética permite as seguintes acepções: 1ª) a ciência do fim

para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzido tanto o fim quanto os meios da natureza do homem (ética teleológica); 2ª) ciência do móvel da conduta humana, com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta (ética deontológica), cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 380 e 682.

37

O raciocínio é complementado por Peter Singer ao explicar que o

desafio ético não está no oferecimento de ditames comportamentais para

diferenciar o bem e o mal, mas em “preparar homens e mulheres para tomar a

decisão”.32 O debate ético alimenta a esperança de que a sociedade não

compreenda a genética “unicamente por su valor cognoscitivo (...) sino por lo que

significa para el hombre y desde el hombre”.33

Enfim, as ponderações éticas atuam como suporte da ciência,

com o intento de conscientizar pesquisadores, clínicos e pacientes sobre a

essência humana, ao avultarem que a liberdade, retrato mais fiel da imagem

humana, não se realiza no plano individual, mas na convivência entre as pessoas,

no mundo naturalmente social, o que obriga cada um à atitude de respeito

perante o outro e de solidariedade perante o todo, implicando atribuição de

responsabilidade, postura essa que consubstancia a denominada ética da

responsabilidade, defendida por Maria Garcia.34

1.2 A bióetica

1.2.1 A origem da bioética

O termo Bioética deriva da fusão de vocábulos de origem grega –

bio (vida) e ethos (ética). As raízes semânticas remetem às preocupações

daquela civilização: a relação entre a natureza, criadora da força física, e a 32SINGER, Peter. Perito em dilemas de vida e morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 jan.

2005. p. J-3. 33GONZÁLEZ, Juliana. Valores éticos de la ciencia. In: VÀZQUEZ, Rodolfo (Comp.). Bioética e

bioderecho: fundamentos y problemas actuales. México: Itam - Instituto Tecnológico Autónomo de México; Fondo de Cultura Económica, 1999. p. 28.

34Cf. GARCIA, Maria. op. cit., p. 213 e ss.

38

sociedade, artífice de regras de conduta. O vocábulo foi introduzido, no léxico

contemporâneo, pelo oncologista Van Renssealer Potter, de Wisconin, ao

escrever um artigo intitulado The science of survival, publicado em 1970 e, no ano

seguinte, na obra Bioethics: bridge to the future, quando empregou o termo com

sentido ecológico (“ciência da sobrevivência”). O pesquisador holandês André

Hellegers, fundador do Kennedy Institute of Ethics, na Universidade de Georgetown,

e o teólogo protestante Paul Ramsey contribuíram para o neologismo, introduzindo o

significado atribuído na atualidade: ética da ciência da vida.

O movimento bioético é recente, pois deflagrado há cerca de um

século, embora suas bases sejam bem mais longínquas, sediadas na ética

médica, na ética deontológica e na ética teleológica.35

Na ética médica, Hipócrates (460-370 a.C.), grego pertencente a

uma das corporações médicas mais antigas, elaborou o primeiro código de

comportamento médico. Em seu famoso juramento, com tom paternalista,

concebeu o médico como “guardião inapelável, acima da lei e de qualquer

suspeita”.36 Em maior consonância com o mundo contemporâneo, em 1901, na

Prússia, foi editada a Instrução sobre intervenções médicas com objetivos outros

que não diagnóstico, terapêutico ou de imunização, quando foi exteriorizada, de

modo singelo, a preocupação com o respeito à autonomia da vontade do

paciente, garantida pelo consentimento.37 Seguiram-se as Diretrizes para novas

terapêuticas e pesquisas em seres humanos, publicadas na Alemanha, em 1931,

35Cf. DURAND, Guy. op. cit., p. 22. 36Cf. SGRECCIA, Elio. Manual de bioética: fundamentos e ética biomédica. Trad. por Orlando

Soares Moreira. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. v. 1, p. 37. 37Proibia as intervenções médicas com objetivos outros que não diagnóstico, terapêutico ou de

imunização quando: a) pessoa fosse menor e não estivesse completamente em sua capacidade; b) a pessoa não tivesse declarado de forma inequívoca que consentia com a intervenção; c) a declaração não tivesse sido dada com base em explicações apropriadas das conseqüências adversas que pudessem resultar das intervenções propostas (cf. DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem: aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru/SP: Edipro, 1999. p. 221).

39

responsáveis pela pontuação da necessidade de balanceamento entre riscos e

benefícios.38

Finda a “Segunda Guerra Mundial”, o holocausto estimulou a

aprovação de vários códigos de ética médica. Entre eles, o Código de Nuremberg,

de 1946, e o Código de Ética Médica, de 1948, publicado em Genebra pela

Associação Médica Mundial. É celebre o Código ou Declaração de Helsinque,

sobre a experimentação e as pesquisas biomédicas, igualmente emanado da

Associação Médica Mundial em 1964, com as subseqüentes alterações ocorridas

na 29ª Assembléia Médica Mundial, sediada em Tóquio, em 1975, na 35ª, sediada

em Veneza, em 1983, na 41ª, sediada em Hong-Kong, em 1989 e na 48ª, sediada

na África do Sul, em 1996.39 Associam-se as Diretrizes éticas internacionais para

a pesquisa envolvendo seres humanos, publicadas em 1993, pelo Conselho

Internacional da Organização Mundial de Ciências Médicas, em colaboração com

a Organização Mundial de Saúde.40

Na ética filosófica, os pilares mais remotos da bioética são

evidenciados sob três expressões. A primeira, ligada a Aristóteles e à sua obra

Ética a Nicômacos, aproxima a ética da política, ao preconizar o atuar contínuo

das virtudes no âmbito cívico.41 A segunda, de tradição anglo-saxônica

38Para as novas terapêuticas, exige-se: a) balanceamento entre risco e benefício; b) realização de

testes prévios em animais; c) consentimento informado; d) emprego não consentido apenas para salvar vidas ou prevenir danos severos em circunstâncias especiais; e) especial consideração em casos que envolvam menores; f) rejeição à exploração de necessitados; g) cuidados especiais no uso de microorganismos vivo; h) aceitação da res ponsabilidade total do médico da instituição; i) documentação por escrito; j) publicação com respeito à dignidade dos pacientes. Para as pesquisas, acrescem-se aos anteriores, os seguintes pressupostos: a) prévia disponibilidade de dados em animais e de laboratório; b) não usar menores; c) não usar pessoas mortas (cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222).

39Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 41-42; DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222-250. 40Cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 251. 41Para Aristóteles, as virtudes são uma excelência moral. Discorre que a excelência moral, quanto

ao gênero, cuida de disposição, a qual significa “os estados da alma em virtude dos quais estamos bem ou mal em relação às emoções – por exemplo, em relação à cólera estamos mal se a sentimos moderadamente, e de maneira idêntica em relação às outras emoções”. Quanto à

40

(utilitarista), confere o valor à ação em proporção direta ao número de pessoas

beneficiadas. A terceira, de índole kantiana, amarra-se à oposição entre coisa e

pessoa: aquela com preço e esta com dignidade, de modo que impõe que a

atuação de cada indivíduo seja produto de suas próprias leis, racionalizadas pela

moral universal, isto é, pela possibilidade de se tornarem leis adotadas por

todos.42

Ingressa, novamente, a codificação que adveio em resposta aos

horrores chefiados por Hitler, a começar pela Declaração Universal dos Direitos

do Homem e pela Convenção sobre o genocídio, ambas da Organização das

Nações Unidas, datadas de 1948. Não obstante, o mundo continuou assistindo,

nos anos seguintes, a experimentos desvairados em seres humanos, ocorridos,

em especial, nos Estados Unidos da América,43 e que, em razão do escândalo,

impulsionaram a retomada de reflexão filosófica na biomedicina, que fez do país o

berço do movimento intelectual em apreço.44

Na reconstrução retrospectiva da bioética, estão ainda as

religiões, sobretudo a judaica, a cristã e a mulçumana, que trazem à colação a

ampla valorização da pessoa humana e do amor ao próximo.

natureza específica, decorre do “meio termo”, um equilíbrio entre dois vícios extremos, duas formas de deficiência moral (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego, introdução e notas de Maria da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1999. p. 40-41).

42O imperativo universal do dever, imperativo categórico, foi enunciado por Kant nos seguintes termos: “Age apenas segundo a máxima tal que possas querer ao mesmo tempo em que ela se transforme em lei universal” KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes . Textos sel. por Marilena de Souza Chauí e trad. por Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela e Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 129-130. (Os Pensadores).

43Em 1963, no Hospital Israelita de Doenças Crônicas (Jewish Chronic Disease Hospital) do Brooklin, nos Estados Unidos, foram realizadas experiências com pacientes idosos, com injeção de células tumorais vivas em seus organismos, sem que houvesse o correspondente consentimento. Entre 1950 e 1970, o Hospital Estatal Willowbrook (Willowbrook State Hospital), de Nova York, promoveu uma série de estudos sobre hepatite, através da inoculação do vírus vivo em crianças com retardo mental que se encontravam internadas (cf. BARCHIFONTAINE, Christin de Paul de; PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioétieca. São Paulo: Loyola, 2000. p. 22-23 e 44).

44Cf. FROSINI, Vittorio. Derechos humanos y bioética. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1997. p. 75.

41

1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos

Na Encyclopedia of Bioethics, resultado da colaboração de 285

especialistas e 330 supervisores, a Bioética foi conceituada como “estudo

sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da

saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais”.45 Transita

entre a ética geral (filosófica) e a ética aplicada, configurando ferramenta de

reflexão e de elaboração de critérios de orientação para a tomada de decisões

oponíveis aos excessos estatais e aos poderes fáticos e difusos de pressão

(financeiros, econômicos, industriais).46

A bioética principialista nasceu nos Estados Unidos, quando o

governo, visando estatuir parâmetros pragmáticos destinados à prática clínica,

criou a Comissão Nacional para proteção dos seres humanos em pesquisa

biomédica e comportamental, a qual elaborou o Belmont Report, publicado em

1978, no qual estão os princípios mais difundidos: I) a beneficência, dirigida ao

médico e destinada a garantir as máximas vantagens e os mínimos riscos, além

de não causar dano (não-maleficência); II) a autonomia, que determina o respeito

à vontade do paciente, à opção terapêutica mais adequada a seus valores

culturais e aos custos e benefícios, bem como a tutela daqueles cuja liberdade de

vontade é reduzida (vulnerabilidade); III) a justiça, que implica eqüidade na

distribuição dos riscos, benefícios e enganos, decorrentes dos serviços de saúde

em geral, o que encontra relevância nas sociedades do terceiro mundo, onde

milhares de pessoas morrem de doenças com forma de cura consagrada, como a

45Reich, W.T. (Ed.). Encyclopedia of bioethics. New York- London: The Free Press-Collier

Macmillan Publishers, 1978, apud CLOTET, Joaquim. Por que bioética? Bioética, Brasília, v. 1, n. 1, p. 15-16, 1993.

46Cf. LEGA, Carlo. Manuale di bioetica e deontologia medica. Milano: Giuffrè, 1991. p. 103.

42

diarréia. O Brasil acolheu expressamente e sem descriminação prévia de ordem

de preferência os princípios em tela na Resolução n. 196, de 10 de outubro de

1996, do Conselho Nacional da Saúde, e, conforme seu art. 1º, eles refletem a

eticidade na pesquisa.47

Em outubro de 2005, foi aprovada pela Organização das Nações

Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) a Declaração Universal

sobre Bioética e Direito Humanos, texto que demandou 2 (dois) anos e 6 (seis)

meses de intensos debates diplomáticos. Os países ricos (Estados Unidos,

Alemanha, Canadá, Reino Unido, Japão e China) queriam reduzir o documento a

temas médicos e biotecnológicos, em razão do interesse no livre comércio de

patentes de medicamentos e de tecnologia. O Brasil defendeu a ampliação do

escopo além desse campo, para atingir o social e o ambiental, costurando acordo

com os países latino-americanos e africanos, a Índia e a Síria, a fim de atingir

uma posição mais larga que, finalmente, foi aprovada.

Para a Unesco, havia a necessidade de que a comunidade

internacional contasse pelo menos com "princípios universalmente aceitáveis" na

vasta e mutável zona da bioética. Por isso, os temas mais delicados, que

mobilizam imensos interesses políticos, econômicos, científicos, jurídicos,

religiosos e sociais, como a clonagem, a eutanásia, os transplantes de órgãos e a

pesquisa com embriões, foram excluídos da minuta da declaração já em janeiro

de 2005.

47Diz o inciso III, do art. 1º: “A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e

esclarecido dos indivíduos-alvo e proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia); b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se ao máximo de benefícios e o mínimo de danos ou riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência); IV) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização dos ônus para os sujeitos vulneráveis”.

43

O documento aborda "questões éticas colocadas pela medicina,

as ciências da vida e as tecnologias associadas aplicadas aos seres humanos,

tendo em conta suas dimensões sociais, jurídicas e ambientais", segundo a

Unesco. O primeiro preceito enunciado é o "respeito à dignidade humana e aos

direitos humanos", complementado pela prevalência dos "interesses e o bem-

estar do indivíd uo" sobre "o interesse da ciência ou da sociedade". Está previsto

que se a aplicação dos princípios enunciados e aclamados pela comunidade

internacional tiver que ser limitada, sê-lo-á por lei. Estabelece ainda que a

declaração deve ser compatível com as legislações nacionais. Outros direitos

clássicos, tais como o respeito à privacidade, a confidencialidade ou à não-

discriminação, e conceitos inovadores, como a "responsabilidade social”, prevista

no art. 14, lembram que o progresso das ciências e das tecnologias tem como

objetivo promover o bem-estar do indivíduo e da espécie humana.

1.2.3 As relações da bioética com o Direito

A bioética e o Direito ostentam, como nota comum, o fato de

estarem no plano deontológico do dever ser, pois servem para a formulação de

programas destinados a cumprir certas finalidades a partir de dadas condutas.

Contudo, não se confundem. A distinção está na forma de abordagem e na força.

A bioética é a reflexão ética sobre o impacto da revolução tecnológica na vivência

humana. Envolve meditação ontológica: o que é a vida? Qual o valor do homem?

Qual o destino da humanidade? Suas considerações, abertas, servem, ao lado de

outros fatores, como base de sentido (fonte material) para a elaboração ou a

44

aplicação de normas de comportamento, entre as quais estão as normas

jurídicas, emparelhadas às morais e às sociais.

A norma moral, segundo Norberto Bobbio, é “cumprida por

nenhuma outra razão além da satisfação íntima que nos leva à sua adesão, ou da

repugnância à insatisfação também íntima que nos causa a sua transgressão”.48

A sanção é interna, porque se desenvolve no âmbito da consciência pessoal. A

norma social, com possível fundo moral, é dotada de sanção externa,

representada pela reprovação, eliminação do grupo, expulsão ou linchamento. É

falha na proporção entre a violação e a resposta, uma vez que não é

institucionalizada, ou seja, não é regulada por regras fixas nem executada por

membros do grupo expressamente designados. Em contrapartida, a norma

jurídica, além de externa, é institucionalizada, porque emanada do seio da

organização estatal, e é dotada de caráter coercitivo.49

Nem todas as considerações sobre preceitos morais relacionadas

à biomedicina necessitam ou têm dignidade jurídica. Não são todos os

comportamentos que precisam ser resguardados por instrumento de controle

social formal, como o Direito. “Uma coisa é a formação do pensamento ético

comum que trace as pautas dentro das quais terão de caminhar a investigação e

a experimentação nesse campo, e outra, totalmente diversa, é estabelecer a

necessidade de atuação do direito, em seus diversos ramos, para assegurar a

adequação da conduta dos cientistas a essas pautas aceitas por toda a

sociedade”, escreve Stella Maris Martínez. 50 Os comportamentos de menor

48BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno

Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001. p. 156. 49Ib. Ibid., p. 157-161. 50MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 62.

45

importância para o convívio social são relegados à esfera em que se processam

as normas morais.

1.3 Formas de controle das ciências biomédicas

O controle das ciências biomédicas não advém para impedir ou

dificultar o progresso, mas para estabelecer o que significa progresso, afinal

conhecer algo novo não significa necessariamente avançar se o avanço não

trouxer proveito para a humanidade. O aludido controle opera sob quatro

vertentes: a) o autocontrole pessoal ou profissional; b) o controle da

administração; c) as reparações civis; d) a criminalização.

1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional

O autocontrole pode ser, em primeiro plano, realizado pelo próprio

cientista, em sua intimidade, conforme os ditames de sua consciência. A

transgressão à moral pessoal, no exercício do poder trazido pelo conhecimento

especializado, restrito a alguns, acarreta remorso ou arrependimento, cuja

ocultação social é fácil e, daí, sua fragilidade: “Siendo la natureza humana como

es, no cabe esperar que el detentador o los detentadores del poder sean capaces,

por autolimitación voluntaria, de liberar a los destinatarios del poder y a si mismos

del trágico abuso del poder”, diz Karl Loewenstein.51

51LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona:

Ariel, 1964. p. 149.

46

Em segundo plano, o autocontrole agrega-se a normas aplicadas

pelo órgão de classe, ditas deontológicas, sob a forma estatuída no art. 22, da Lei

Federal n. 3.268, de 30 de setembro de 1957, e no art. 17, do Regulamento do

Conselho Federal de Medicina, aprovado pelo Decreto n. 44.045, de 19 de julho

de 1958.52 Conforme esses dispositivos, o médico infrator fica sujeito às sanções

disciplinares previstas em lei, quais sejam: a) advertência confidencial; b) censura

confidencial; c) censura pública, com publicação oficial; d) suspensão do exercício

profissional, por até 30 (trinta) dias; e) cassação do exercício profissional.

As decisões do colegiado de classe são baseadas na Resolução

n. 1.358, de 19 de novembro de 1992, também do Conselho Federal de Medicina,

a qual funciona como Código de Ética Médica.

O procedimento administrativo está regulado pelo Código de

Processo Ético-Profissional (Resolução n. 1.464, de 6 de março de 1996, do

Conselho Federal de Medicina), com direito a contraditório (apresentar razões,

arrolar testemunhas, perguntar) perante a autoridade competente (Câmara do

Conselho Regional de Medicina) e direito de recorrer para o Pleno do Conselho,

caso a decisão não seja unânime.53

A decisão é vinculante, de maneira que, se o médico for cassado,

o posterior exercício da profissão será ilegal. A obrigatoriedade da observância

das regras do Código de Ética no julgamento, bem como da decisão para o

condenado, confere ao controle o cunho jurídico, embora não jurisdicional, de

modo que eventual vício da decisão poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário,

no exercício do amplo acesso à justiça.

52O Conselho Federal de Medicina constitui autarquia, isto é, pessoa jurídica de direito público,

criada por lei, para desempenhar serviços públicos. 53Cf. SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade médica: civil, criminal e ética. Belo Horizonte: Del

Rey, 2003. p. 291-293.

47

A sanção disciplinar pretende a tutela de interesses da categoria,

com o intento de manter o decoro, o prestígio e a independência da profissão. A

preocupação com o ressarcimento dos pacientes e com o impacto da atividade

sobre os direitos do indivíduo e da coletividade, neste campo, é secundária. Por

essa razão, precisa ser complementada por outros meios formais de controle,

exercidos pelo Estado, para o resguardo cabal dos direitos fundamentais

envolvidos.

1.3.2 A tutela administrativa das atividades

A tutela administrativa de atividades sanitárias e investigativas

consiste em exigências que disciplinam o exercício das profissões envolvidas,

para que se mantenham harmônicas com os demais setores sociais, além de

úteis.

É concretizada, num primeiro plano, pelas garantias

administrativo-processuais, de tonalidade manifestamente preventiva: I) a

autorização para o funcionamento de clínicas e de centros de pesquisa

(concessão, renovação ou cassação de licenças); II) a autorização e

acompanhamento de pesquisas (protocolos e relatórios periódicos); III) a

regulação da divulgação ou do sigilo de dados (disciplina dos seus registros); IV)

o controle da capacitação técnica do pessoal biomédico.54

Em segundo plano, a tutela em epígrafe é efetivada pela

disciplina da atividade em si mesma, com cunho preventivo ou repressivo. A

aplicação de sanções administrativas, dotadas de coercibilidade, representa das 54Cf. GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. Límites penales a los últimos avances de la ingeniería genética

aplicada al ser humano. Prólogo de Jaime Peris Riera. Madrid: Edersa, 2001. p. 139.

48

mais importantes expressões do poder de polícia conferido à Administração

Pública.

A modalidade em epígrafe está consagrada na Constituição

brasileira, onde é conferida competência ao poder público para regulamentar,

fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde (art. 196), bem como as

entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (art. 225,

§1º, II e V).55

A matéria foi originalmente regulamentada pela Lei n. 8.974/95

que, inspirada nas Diretivas 90/219 e 90/220, ambas da Comunidade Européia,

autorizou a criação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio),

regulamentada pelo Decreto n. 1.752, de 20 de dezembro de 1995. Após, o

aludido diploma legal foi revogado pela Lei n. 11.105/05 que, reestruturando a

mencionada Comissão, inseriu-a no âmbito do Ministério da Ciência e da

Tecnologia, resguardando sua competência consultiva e deliberativa, inclusive

para propor a Política Nacional de Biossegurança.56 A nova lei também criou o

Conselho Nacional de Biossegurança (CNBio), órgão de assessoramento

vinculado à Presidência da República.

Repetindo o equívoco da Lei de Biossegurança de 1995, a Lei n.

11.105/05 mescla as intrincadas questões éticas relativas aos embriões humanos

às técnicas sobre plantas transgênicas. Os temas nem sequer são equiparáveis

em sua operatividade. A transgenia envolve, principalmente, a manipulação do

DNA de plantas para torná-las mais resistentes a herbicidas e a pragas, enquanto 55Na mesma linha, a Constituição espanhola incumbe aos poderes públicos a proteção da saúde

(art. 43). A Constituição italiana reza, na mesma esteira, que à República cabe a tutela à saúde. 56Biossegurança é o conjunto de normas legais e regulamentares que estabelecem critérios e

técnicas para a manipulação genética, no sentido de se evitarem danos ao meio ambiente e à saúde humana. O conjunto de normas é estabelecido pela CTNBio (cf. SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela penal do patrimônio genético. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 90, v. 790, p. 475-494, ago. 2001).

49

as pesquisas com células-tronco abarcam o cultivo de células para pesquisas de

doenças e possíveis tratamentos em seres humanos, sem desenvolvimento de

engenharia genética.

A junção dos assuntos num único texto obscureceu as

implicações filosóficas, científicas e religiosas que permeiam biotecnologia

relacionada à genética humana, como também as celeumas científica,

ambientalista, de mercado e de saúde que rodeiam os transgênicos. Em

contrapartida, atendeu aos interessados na liberação da soja transgênica, eis que

poderiam contar com a dor das mães que têm crianças com deficiência e dos

próprios enfermos que compareceram nas Casas Legislativas e que foram aos

meios de comunicação propalar suas esperanças de cura. É inegável ainda que

se colocou o interesse dos pesquisadores na aprovação do projeto da forma com

que se encontrava, já que, separadas as matérias, quiçá fosse retardada a

esperada autorização para pesquisas com células-tronco embrionárias

congeladas.

Nos incisos do art. 6º, da Lei n. 11.105/05, estão relacionados os

ilícitos administrativos. A maioria refere-se aos organismos geneticamente

modificados: I) implementação de projeto para sua obtenção sem manutenção de

registro de seu acompanhamento individual (inciso I); II) sua destruição e seu

descarte no meio ambiente, incluindo seus derivados, em desacordo com as

normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e

fiscalização, ou sua liberação no meio ambiente ou no mundo comercial, sem

aprovação da CTNBio (incisos V e VI); III) utilização e comercialização, registro,

patenteamento e licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso, que

se reportem a vegetais (inciso VII). O inciso II alude à engenharia genética de

50

organismo vivo que, segundo a lei, pode ser um vírus , e ao manejo in vitro de

ADN/ARN natural ou recombinante, punindo os casos que se façam em

desacordo com a lei. No ramo específico da genética humana, a engenharia

genética, em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano (inciso

III); e a clonagem humana (inciso IV) restam punidas administrativamente .

Entre todas as modalidades, apenas as previstas nos incisos I e II

não estão tipificadas como ilícitos penais, o que implica reincidência do que se

verificou com a Lei n. 8.974/95, que praticamente estabelecia equivalência entre os

ilícitos administrativos e penais, previstos, respectivamente, em seus arts. 8º e 13.

As sanções seguem a disciplina imposta pelo art. 21, da Lei n.

11.105/05, própria para pessoas jurídicas (salvo a advertência), variando entre a

multa, a interdição ou intervenção no estabelecimento e a perda de possibilidade

de contratação com a Administração Pública ou de incentivos fiscais. Nesse

ponto, o diploma atual supera em muito o regime instituído pela Lei n. 8.475/95,

que se restringia à multa.

A par disso, a Resolução n. 196, do Conselho Nacional de Saúde,

ligado ao Ministério da Saúde, ao disciplinar as pesquisas com seres humanos,

regula a atuação dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e a Comissão

Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS). A pesquisa relativa à genética ou à

reprodução assistida está condicionada a parecer favorável do Comitê e à

posterior aprovação pela referida Comissão (capítulos VII.13 e V III. 4.c.1).

Ao Comitê cabe o acompanhamento dos projetos aprovados, o

recebimento de denúncia de abuso ou notificação sobre fato adverso que possa

alterar o curso do estudo, decidindo sobre a continuidade, modificação ou

suspensão da pesquisa. Deve ainda requerer a instauração de sindicância à

51

direção da instituição em caso de denúncia de irregularidades de natureza ética

nas pesquisas (capítulo VII.13).

1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina

A tutela civil é exercida principalmente pela reparação do dano.

Dentro de seus contornos, está o erro médico ou científico que, sob a ótica

jurídica, corresponde ao mau resultado involuntário, oriundo de imprudência,

imperícia ou negligência (Código de Ética Médica, art. 29).

O direito brasileiro é expresso em relação aos organismos

geneticamente modificados (OGMs), sobre os quais o art. 20, da Lei 11.105/05,

na esteira do art. 14, da Lei n. 8.975/95, estabelece responsabilidade

independente da existência de culpa para indenizar ou reparar danos causados

ao meio ambiente e a terceiros afetados.

1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina

Na seara da biotecnologia, é tendência mundial aquela segunda a

qual o legislador opta pelo recurso ao direito penal, na medida em que os

sistemas extrapenais revelam-se insuficientes ou inadequados na tutela dos bens

jurídicos da mais alta hierarquia constitucional ameaçados, como lembra Silva

Franco.57

57Cf. FRANCO, Alberto Silva. Genética humana e direito. Bioética, Brasília, n. 4, p. 3, 1996.

52

No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei n. 11.105/05 regula os

crimes relativos à manipulação genética humana lato sensu, fazendo-o em 3

(três) artigos.

O art. 25 tipifica a conduta de praticar engenharia genética em

célula germinal humana, zigoto ou embrião. A figura guarda relação com o art. 13,

I, da Lei n. 8.974/95, onde se vedava a manipulação genética de células

germinais humanas, embora o supere tecnicamente ao trazer o verbo praticar em

substituição ao substantivo manipulação, além de contar com definição, em seu

próprio texto, das expressões engenharia genética e, ainda, de célula germinal

humana, melhor respeitando o princípio da taxatividade.

No art. 24, a Lei n. 11.105/05 veda o uso de embrião em

desacordo com seus preceitos e, em virtude de alteração promovida pelo Senado

Federal, inova de modo bastante polêmico ao permitir a utilização, em pesquisas,

do embrião inviável e do embrião já congelado por mais de 3 (três) anos. As

primeiras pesquisas com as células-tronco embrionárias foram autorizadas em

setembro de 2005, estreando porém de modo tímido, porquanto entre os 41

(quarenta e um) projetos aprovados, apenas 3 (três) trabalharão exclusivamente

com células-tronco de embriões humanos.58

Finalmente, no art. 26, é vedada a realização de clonagem

humana e, não obstante as várias definições do termo trazidas no art. 3º

(clonagem, clonagem para fins reprodutivos, clonagem terapêutica), nenhuma

delas abrange indubitavelmente a presente. A polêmica técnica, em seu todo, na

58Os 3 (três) projetos sobre células-tronco embrionárias versam sobre: I) mecanismos de

diferenciação e uso terapêutico; II) uso de nanopartículas magnéticas na expansão in vitro de células-tronco embrionárias humanas; III) controle de aneuploidia e diferenciação neural em células-tronco embrionárias humanas. Para a totalidade dos projetos, foram despendidos R$ 11 milhões, advindos da pasta e do Fundo Setorial de Biotecnologia (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 07 set. 2005. p. A-25).

53

Lei n. 8.974/95, era proibida, na medida em que o art. 13, II, ao tipificar a

intervenção não-terapêutica em material genético humano in vivo, englobava, na

sua inadequada amplitude, quaisquer manejos na linhagem germinal que não

alterassem a estrutura genética da célula (seqüência do DNA).

Outrossim, foram extirpadas do espectro legal as formas

qualificadas previstas na Lei n. 8.974/95, que remetiam ao art. 129, do Código

Penal, o que consistia, na linguagem de Silva Franco, em pervertido “transplante

jurídico”.59 Além disso, o antigo texto não definia como se comprovaria a

causalidade entre os procedimentos laboratoriais em células e as lesões físicas

futuras, de modo que se inclinava para a figuração meramente retórica, em face

da dificuldade de aplicação.

59FRANCO, Alberto Silva. op. cit., p. 24.

54

2. AS MODERNAS TÉCNICAS DA GENÉTICA E SUAS

APLICAÇÕES NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

O presente estudo não pretende esgotar o tema, o que se justifica

até mesmo por razões de ordem técnico-profissional, mas tão-somente ampliar o

conhecimento sobre as perspectivas atuais da ciência, na esperança de contribuir

para que o operador do direito, ao manejar a matéria, dispa-se de certos temores

infundados, permitindo que a razão aflore na mais elevada forma.

2.1 A experimentação no homem

O termo experimentação, oriundo do latim experimentum

(comprovação por experiência), significa a observação provocada de um fato ou

de um fenômeno para a investigação de suas propriedades. A experimentação é

dita humana quando seu objeto for o corpo humano, os órgãos, tecidos, as

células ou suas propriedades. A essência da técnica está assentada no risco do

procedimento, que a diferencia de tratamentos comuns cujo desenrolar e efeitos

são dominados pela ciência, salvo desvios casuais. Por isso, sua licitude não se

vincula ao sucesso do procedimento, mas depende do correto emprego da lex

artis (elemento objetivo) e do intento curativo (elemento subjetivo).60

Sob o prisma da finalidade perseguida, a Declaração de

Helsinque, de 1964, diferencia a pesquisa clínica com propósito essencialmente

60Cf. ESER, Albin. Genética humana: aspectos jurídicos e sócio-políticos. Trad. por Pedro Caeiro.

Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 1, p. 64, e n.r. 39, jan./mar. 1992.

55

terapêutico para o paciente da pesquisa clínica cujo objetivo principal é

puramente científico e sem valor terapêutico para a pessoa submetida. Deste

modo, a experimentação pode ser terapêutica, não-terapêutica ou pura.

2.1.1 Experimentação terapêutica

O gérmen da experimentação terapêutica vem a lume em 1980

quando se consegue, com a ajuda da enzima da restrição, parcelar o DNA. Em

1982, Palmiter introduziu um gene do hormônio do crescimento de um rato numa

fêmea de camundongo, que duplicou o volume normal deste animal. A partir daí,

as mais diversas técnicas são utilizadas na busca de que células de mamíferos

incorporem novos genes.61

A experimentação terapêutica está marcada pelo caráter

metodológico-experimental, porque ensaia novas substâncias farmacológicas ou

novos procedimentos cirúrgicos, com eficácia não demonstrada. Pretende,

primeiramente, a cura do paciente ou o diagnóstico de enfermidade e,

secundariamente, as descobertas científicas.62

Suas balizas éticas estão traçadas na Declaração de Helsinque e

constituem um guia para os médicos de todo o mundo, ficando a responsabilidade

jurídica jungida às leis internas, conforme expressa a introdução do documento.

Consoante o capítulo II, da Declaração, o médico deve estar livre para usar novo

método de diagnóstico ou terapia no tratamento de doentes, se houver esperança

de salvar a vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento. Os possíveis

61Cf. COHEN, Jean; LEPOUTRE, Raymond. Todos mutantes . Trad. da 1. ed. francesa publ. em

1987. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 61. 62Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética. Lima: Idemsa, 1998. p. 30.

56

benefícios, riscos e desconfortos do novo método devem ser contrabalançados

com as vantagens dos melhores métodos correntes de diagnóstico e de terapia.

Caso o médico entenda que o consentimento não é essencial, deve justificar as

razões no protocolo do experimento para conhecimento da comissão responsável

pela pesquisa.

No Brasil, a Resolução n. 196/96, do Conselho Nacional de

Saúde, traça as diretrizes sobre as pesquisas envolvendo seres humanos.

Admite-as sob as seguintes condições: I) ofereçam elevada possibilidade de

conhecimento para entender, prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-

estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indivíduos, II) o risco se justifique pela

importância do benefício esperado, III) o benefício seja maior ou no mínimo igual

ao de meios alternativos convencionais estabelecidos para a prevenção, o

diagnóstico e o tratamento (capítulo V.1).

Autoriza a experimentação sem consentimento se acolhidas as

explicações pelo Comitê de Ética em Pesquisa (capítulo VI.2.c). As propostas de

intervenção ou manipulação em seres humanos devem ser aprovadas pelos

Comitês de Ética em Pesquisa, além de avaliadas pela Comissão Técnica

Nacional de Biossegurança, respondendo aos quesitos regulados em instruções

normativas.

Em qualquer dos documentos, os preceitos são bastante

genéricos, não se referindo a hipóteses particulares que são despertadas pela

revolução genética. A própria Resolução ressalva que cada área temática de

investigação e cada modalidade de pesquisa “deve cumprir com exigências

setoriais e regulamentações específicas” (preâmbulo).

57

2.1.2 Experimentação não-terapêutica

A modalidade, conhecida como no-therapeutic research, mantém

o caráter metodológico experimental mas, divergindo da anterior, prioriza o

conhecimento científico para o desenvolvimento de novas medidas terapêuticas,

de maneira que o eventual benefício para a saúde do indivíduo submetido será

acidental.63

A Declaração de Helsinque, no seu capítulo III, exige que os

indivíduos sejam sadios ou voluntários, ou seja, pressupõe que gozem de plena

capacidade psíquica e jurídico-civil. Além disso, o médico deve atuar como

protetor da vida e da saúde da pessoa submetida à pesquisa. Por fim, as

considerações sobre o bem-estar dos participantes da pesquisa devem prevalecer

sobre os interesses da ciência e da sociedade.

No Brasil, a Resolução n. 196/96 estatui que as pesquisas sem

benefício direto ao indivíduo devem prever condições de serem bem suportadas

pelos sujeitos da pesquisa, considerando sua situação física, psicológica, social e

educacional (capítulo V.2). Novamente, não é feita remissão à manipulação

genética humana em especial.

2.1.3 Experimentação pura

A experimentação exclusivamente científica ou experimentação

pura não se destina à cura do sujeito (distinguindo-se da experimentação

terapêutica) nem se dirige à busca de tratamentos alternativos (como a

63Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 31.

58

experimentação não-terapêutica). Os resultados dirigem-se meramente ao

aumento de conhecimento científico, sem preocupação com eventual utilidade

imediata para o bem da humanidade.64

As finalidades podem ser múltiplas: industrial (cosméticos em

geral), militar (armas biológicas), farmacológica (reserva biológica para a

supressão de lacunas em caso de guerra biológica) ou cirúrgica (fonte para

futuros transplantes de seus órgãos, tecidos ou células). Não há como ponderar

riscos e benefícios aos pacientes, pois estes são casuais, uma vez que a meta é

o conhecimento ou o progresso na investigação a serviço de terceiros

pertencentes a um futuro não palpável. Se o indivíduo for o alvo, poderá figurar

como mero instrumento da atividade cientifica.

2.2 A terapia gênica

A terapia gênica ou geneterapia consiste na deliberada

transferência, por intermédio de vetores, de material genético para as células de

um paciente, com a intenção de curar ou até mesmo de prevenir uma

enfermidade de ordem genética. A técnica opera mediante a: I) correção de parte

de gene anômalo para que volte a funcionar (modificação genética), II) troca de

gene anômalo por outro normal (substituição genética), ou III) introdução de gene

normal, para obtenção do produto genético desejado, mantendo o gene anômalo

em seu lugar (inserção genética).65 Em decorrência, a terapia em questão é

caracteristicamente uma modalidade técnica de engenharia genética.

64BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 47. 65Cf. Herman Nys (Catedrático de Direito Médico da Universidade de Louvain, na Bélgica), - NYS,

Herman. Terapia gênica humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). op. cit., p. 66.

59

Os defeitos genéticos têm origem múltipla: I) hereditária, quando

transmitidos pelos genes dos pais aos filhos; II) não-hereditária, se produzidas

anomalias por erros imprevistos na formação das células sexuais; III) congênita,

quando ocorrem durante o desenvolvimento embrionário por diversas mutações.

Por ora, a terapia gênica alcança tão-somente as doenças monogenéticas,

devidas à disfunção de um único gene, que pode ser atacado em sua

especificidade.66 Os defeitos genéticos atingem 3% (três por cento) da população

brasileira e causam enfermidades como a fibrose cística e doenças

neuromusculares, além de mais de 30 (trinta) outras.67

A técnica permanece no estágio experimental porque é parcial o

conhecimento sobre o funcionamento dos genes que dirigem o corpo humano, de

maneira que não são totalmente controlados os efeitos das alterações artificiais.

As tentativas clínicas trouxeram mais problemas do que soluções. Quem trabalha

com a técnica, patina em sua complexidade.68

A repercussão biológica, o dilema ético e o tratamento jurídico

conferidos à técnica em questão dependem do nível de intervenção: germinal ou

somática.

66Cf. Amelia Martín Uranga (Bolsista de Pesquisa da Cátedra Interuniversitária de Direito e

Genoma Humana, Fundação BBV, Universidade de Deusto, em Bilbao, na Espanha), MARTÍN URANGA, Amélia. O quadro legal da terapia gênica na Espanha. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). op. cit., p. 86.

67Os dados foram expostos por Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (ZATZ, Mayana. Quando a ciência múltipla a vida. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 06 fev. 2005. p. J-4).

68O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. A-21.

60

2.2.1 Terapia genética em células somáticas

As células somáticas humanas são formadas por 23 (vinte e três)

pares de cromossomos haplóides (46 [quarenta e seis] cromossomos diplóides).

São diferenciadas para uma função, por exemplo, cardíaca, hepática, muscular ou

nervosa, mas não têm potencialidade natural para gerarem outro ser.

Se estas células forem objeto de terapia gênica, a meta será a cura de

enfermidades, a prevenção de doenças relacionadas à propensão genética ou, num

futuro próximo, a administração, de modo mais prático, de produtos para tratamento.69

Portanto, a técnica pretende eliminar a malformação genética do

paciente (adulto ou embrião com células diferenciadas). Se eficaz, a doença

genética ou a tendência a ela seria extirpada definitivamente. Não havendo

interferência nas células reprodutivas, os efeitos resumem-se ao sujeito-alvo e,

bons ou maus, são irreversíveis.

Cuida-se de procedimento que permanece em estágio

experimental, sobretudo no que diz respeito aos vetores, eis que é incerta sua

incorporação ao DNA das células visadas e sua ativação para o desempenho

exclusivo da função corretiva desejada, sem a reversão a estágio patogênico.70

Dada a falta de domínio sobre o destino do construído genético, a técnica

69Cf. ARCHER, Luís. Terapia génica e engenharia genética de melhoramento. In: ARCHER, Luís;

BISCAIA, Jorge; OSSWALD, Walter (Coord.). Bioética. São Paulo: Editorial Verbo, 1996. p. 237. 70Cf. Eliane Azevêdo (Ph. D em Genética e Pesquisadora do CNPq, “Terapia gênica”), in

AZEVÊDO, Eliane. Terapia gênica. Bioética: revista de bioética e ética médica, v. 5, n. 2, p. 158-159, ano 1997. A estudiosa explica que o retrovírus, preferido em 80% das experiências genéticas, apresenta vantagens, como a eficiente integração ao genoma da célula e expressão duradoura. Contudo, a técnica se limita às células que se dividem, excluindo as cerebrais, e contém riscos de infecções viróticas ou de câncer. De fato, embora a parte patogênica seja eliminada, não se exclui o perigo de reversão do retrovírus ao estado selvagem patogênico, seguido de multiplicação viral. Demais disso, a integração do retrovírus ao genoma é casual, criando o risco de transformação neoplásica (tumoral) de células do paciente. Em contrapartida, se associado um adenovírus ao gene, a alteração será transitória e, se reiterada a terapia, os efeitos são quase inócuos. Finalmente, os vetores não vitais, como os complexos lipídicos-DNA, podem causar intoxicação lipídica da célula tratada.

61

comporta riscos, a saber, mutações genéticas espontâneas imprevisíveis,

provocadas pela ativação de genes desencadeadores de tumores ou pela rejeição

orgânica ao material.71

A primeira autorização para a terapia gênica nas células

somáticas foi dada nos Estados Unidos da América, pela Food and Drug

Administration, em 14 de setembro de 1990, a fim de que se tentasse o

tratamento de uma menina com sistema imunológico comprometido, mediante

implante de células produtoras da enzima adenosine-deaminase.72

2.2.2 Terapia gênica nas células da linha germinal

A terapia gênica nas células da linha germinal consiste na

manipulação das células de reprodução (o espermatozóide, o óvulo e suas

células precursoras)73 ou das células das primeiras fases do desenvolvimento

embrionário, desde que antes de qualquer diferenciação. Em face da natureza

das células atingidas, a técnica é caracterizada pela aptidão de alterar todas as

outras que advirão das sucessivas divisões do resultado da fecundação entre o

óvulo e o espermatozóide, de maneira que a mutação se incorporará

definitivamente ao genoma da nova vida e de sua progênie, caminhando para um

número indeterminado de pessoas, em virtude dos cruzamentos procriativos.

71Cf. MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas

de control y técnicas de tutela. Trad. por Jaime Peris Riera. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 1, p. 101, jul./dic. 1994.

72Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 247. 73O espermatozóide e o óvulo são formados por 23 (vinte e três) cromossomos haplóides. São

responsáveis pelos processos de reprodução e de transferência do patrimônio genético dos progenitores. Da união entre os gametas masculino e feminino, origina-se o ovo.

62

A transmissibilidade da alteração para as futuras gerações torna a

terapia gênica nas células germinais muito mais problemática do que a alteração

de células somáticas. Entretanto, a técnica configura a única esperança para o

tratamento de certas anomalias, como as do cérebro, às quais o acesso é restrito

a etapas prematuras,74 ou para o impedimento de tantas outras patologias

genéticas (cerca de 3.000 são conhecidas),75 bem como para o fortalecimento da

genética humana, a fim de torná-la mais resistente a certas doenças, como o

câncer, a diabetes e outras moléstias produzidas por vírus. Em decorrência, não

merece ser descartada de plano, convindo prosseguir na discussão de suas

implicações éticas e jurídicas.

2.3 A reprodução humana assistida

A reprodução assistida consiste na obtenção de novos indivíduos

prescindindo ou substituindo o processo natural de fecundação da espécie por

técnicas desenvolvidas pelo homem.76 O tema demanda o estudo das etapas do

desenvolvimento embrionário humano.

2.3.1 O indivíduo e as distintas fases do seu desenvolvimento

O desenvolvimento embrionário, embora seja um contínuo,

percorre fases que foram diferenciadas pela ciência. O processo é iniciado pela

74Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 235. 75Cf. MANTOVANI, Ferrando. op. cit., p. 98. 76Cf. CUESTA AGUADO, Paz M. de la. La reproducción asistida humana sin consentimento:

aspectos penales. Valencia: Tirant to Blanch, 1999. p. 22.

63

fecundação, que parte dos gametas masculino e feminino, os quais são formados

por um pronúcleo haplóide. Nas trompas de Falópio, a cabeça do espermatozóide

penetra no citoplasma do óvulo, donde surge a célula-ovo. Num primeiro

momento, os pronúcleos de cada gameta comportam-se de modo independente,

porém sincronizado. Nas 24 (vinte e quatro) horas subseqüentes, os pronúcleos

fundem-se (singamia), formando a primeira e grande célula diplóide.77 A partir daí,

principia a etapa pré-implantatória, que perdura até por volta do 14º (décimo

quarto dia). Nela ocorrem as primeiras divisões celulares (mitose),

correspondendo cada uma das novas células ao blastômero.

Atingindo uma massa celular constituída por 12 (doze) a 16

(dezesseis) células, o conjunto é chamado mórula que, enquanto se divide em

novas células, caminha livre pela trompa e desce para o útero, num percurso com

duração aproximada de 4 (quatro) dias. As células, indiferenciadas, originarão

todos os tecidos e órgãos, por mecanismo desconhecido. É ainda possível que a

mórula se divida ao meio, originando conjuntos independentes, quando nasceriam

gêmeos idênticos. No útero, o líquido destrói paulatinamente a zona pelúcida que

rodeia a mórula, até que, provavelmente no 6º (sexto) dia após a fecundação,

está formado o blastócito. 78

O blastócito, composto por 32 (trinta e duas) a 64 (sessenta e

quatro) células, é integrado por uma capa externa de células, (trofoblasto ou

trofoeactordermo) com uma cavidade interior (blastocele), onde se situam outras

células, que constituem o embrioblasto ou massa celular interna (MCI) e se

mantêm indiferenciadas. Enquanto o trofoblasto converte-se no córion, que é a

77Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. Nuevas formas de procreación y el derecho

penal. Buenos Aires: Ad-Hoc SRL, 2001. p. 30-31. 78Id. Ibid., p. 32.

64

porção embrionária da placenta, a massa celular interna evoluirá até a futura

criança.

Minúsculo, o blastócito tem aspecto de um pacote menor do que a

ponta de uma agulha. Ele, no útero, implanta-se na mucosa, em processo

denominado nidação - considerada, por muitos, o marco inicial da gravidez - que

perdura aproximadamente entre o 7º (sétimo) e o 14º (décimo quarto) dia depois

da fecundação, quando o embrião se apresenta como um disco com 0,5 mm

(meio milímetro) de diâmetro e 2000 (duas mil) células.79 Aparece, por volta do

15º (décimo quinto) dia, a linha ou estria primitiva que permite identificar o eixo

craniocaudal, as extremidades, as superfícies dorsal e ventral, a simetria direita-

esquerda, em outras palavras, o plano construtivo do embrião.80 Entre o 14º

(décimo quarto) e o 16º (décimo sexto), surge também a crista neural, que

corresponde ao esboço do sistema nervoso,81 não obstante o início da atividade

cerebral só ocorra após a formação das primeiras sinapses nervosas, o que pode

ser reconhecido a partir da 6ª (sexta) semana da gestação. Em face desses

acontecimentos, o 14º (décimo quarto) dia é considerado a cifra de ouro da

embriologia.

A fase seguinte, pós-implantatória, envolve o período entre o 14º

(décimo quarto) dia de evolução e a 11ª (décima primeira) ou 14ª (décima quarta)

semana. Entre a 3ª (terceira) e 4ª (quarta) semana, o disco embrionário bilaminar

transforma-se em trilaminar, com o crescimento para 2,3 mm (dois vírgula três

79Cf. Juan R. Lacadena (Catedrático da Cadeira de Genética na Universidade Complutense, em

Madrid, na Espanha), RAMÓN LACADENA, Juan. Embriones humanos y cultivos de tejidos: reflexiones científicas, éticas y jurídicas. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 12, p. 193, n. 5 e p. 194, ene./jul. 2000.

80Cf. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 115.

81Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 31. Não obstante, Jussara Maria Leal de Meirelles aponta o 18º (décimo oitavo) dia.

65

milímetros) de longitude. Começa a organogênese (esboço da formação dos

órgãos) e a formogênese (consolidação da forma).

A etapa final – fetal – abrange o desenvolvimento humano desde

aproximadamente o 3º (terceiro) mês (11ª a 14ª semana) até o parto. É

caracterizada pela maturação progressiva dos órgãos, sistema e funções, com a

diferenciação histológica de esboços e o crescimento corporal.

Na fecundação in vitro, partindo do óvulo, que se funde ao

espermatozóide, obtém-se o zigoto em 20 (vinte) horas. Em 26 (vinte e seis)

horas, formam-se 2 (duas) células, em 38 (trinta e oito), 4 (quatro), e em 46

(quarenta e seis), 6 (seis) a 8 (oito). Com 100 (cem) horas, constitui-se a mórula.

Com 120 (cento e vinte) horas, está composto o blastócito, formado por células

totipotentes, traço que, segundo estudos clínicos, se preserva até o 14º (décimo

quarto) dia. Aguarda-se a formação de mais 200 (duzentas) a 300 (trezentas)

células, conjunto esse que será implantado na mulher.82

É comum que as legislações atribuam epígrafes distintas a cada

uma das etapas, quando são usuais os termos zigoto e embrião. Este, sobretudo,

representa mais do que palavra de cunho meramente científico, porquanto, na

praxe, revela-se carregada de densidade axiológica e, por isso, não é

conceituável de modo universalmente aceito. Dentro da diversidade, a Resolução

n. 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina brasileiro, alude ao pré-embrião em

capítulo que cuida de sua doação ao lado dos gametas. Na atual Lei de

Biossegurança (Lei n. 11.105/05), as referências são exclusivas ao zigoto e ao

embrião. Contudo, nos projetos de lei sobre a Reprodução Assistida é freqüente o

82MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 31.

66

emprego da expressão pré-embrião (PL ns. 3.638/93, 2.855/97 e 1.135/03) para

indicar a fase pré-implantatória.

2.3.1 Noções gerais

Uma percentagem mundial de casais - entre 10 (dez) a 15%

(quinze por cento) - deseja ter filhos, mas não pode ver satisfeita naturalmente tal

aspiração.83 Os fatores de infertilidade são absolutos ou relativos, causando

subfertilidade ou esterilidade.84 As novas técnicas de reprodução assistida

tendem, fundamentalmente, a transpor essa barreira física.

No Brasil, estão reguladas unicamente pela Resolução n.

1.358/92, do Conselho Federal de Medicina. Seu capítulo 1º, item I, prevê, in

verbis: “As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na

resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de

procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para

a solução da situação atual de infertilidade”. No capítulo VI, estatui-se que, in

verbis: “As técnicas de RA também podem ser utilizadas na prevenção e

tratamento de doenças genéticas e hereditárias, quando perfeitamente indicadas

e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica”. A dupla vertente foi

mantida nos referidos projetos de lei sobre o tema.

A reprodução será homóloga quando os gametas provierem do

casal, heteróloga quando originários de pelo menos um doador ou mista quando

83A estatística foi trazida por Javier Gafo Fernández (GAFO FERNÁNDEZ, Javier. 10 palavras -

chaves em bioética. São Paulo: Edições Paulinas, 2000. p. 147). 84Segundo a OMS, Organização Mundial de Saúde, infertilidade é a ausência de concepção por

pelo menos 2 (dois) anos de relações sexuais não-protegidas.

67

advierem de um coquetel de gametas. As técnicas comportam outras

classificações. Vejamos, de modo sucinto, as mais difundidas.

2.3.2.1 Inseminação artificial (IA)

A inseminação artificial exprime a introdução, por meios

mecânicos e com auxílio médico do sêmen do homem na vagina ou no útero da

mulher, após o que a fecundação prossegue seu curso natural. A percentagem

das chances de êxito é de cerca de 80% (oitenta por cento).85 É indicada em

certos casos de esterilidade86 ou perante enfermidades transmissíveis pelo

material genético masculino, quando contará com um doador de esperma.

Longínquas são as tentativas de inseminação artificial na espécie

humana. No século XV, Henrique IV de Castela, impotente generandi,

pretendendo um sucessor para a coroa, consentiu na inseminação artificial da

esposa, tentativa que resultou fracassada, por se constatar, posteriormente, que a

rainha era estéril também. Em 1791, Jonh Hunter, Diretor do Hospital de Saint

George, em Londres, inseminou uma mulher com sêmen do marido, do que

resultou um filho. Em França, em 1804, Thouret fez as primeiras inseminações,

após o que a técnica se desenvolveu com entusiasmo. A seguir, a posição da

Igreja Católica impôs freio aos avanços.87

A técnica reassumiu grande importância com a criação dos

bancos de sêmen, formados para o congelamento ou a criopreservação dos

85Cf. Dr. Pinotti, deputado e médico, em análise feita no projeto de lei n. 1.135/2003, de sua

autoria. 86Vaginismo, malformações e patologias inflamatórias na vagina ou no colo do útero (esterilidade

feminina) ou retroejaculação e hipospadia (esterilidade masculina). 87Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. Alguns problemas jurídico-criminais da procriação medicamente

assistida. Coimbra: Coimbra Ed., 1999. p. 24, n.r. 19.

68

espermatozóides a - 196ºC (cento e noventa e seis graus Celsius negativos) em

nitrogênio líquido. O sêmen pode ser descongelado posteriormente, mantendo,

pelo menos relativamente, a capacidade fecundante. O óvulo, em contrapartida,

se congelado, perde a capacidade reprodutiva, embora seja possível a

criopreservação do óvulo fecundado enquanto não se fundiram os 2 (dois)

pronúcleos distintos.

2.3.2.2 Fecundação in vitro (FIV)

As primeiras fecundações in vitro foram efetuadas em 1944, pelos

americanos John Rock e Myriam Menkin, prosseguindo as investigações nos 10

(dez) anos seguintes por L.B. Shettler, mas, em todos os casos, os embriões

sucumbiram. Em 1978, o nascimento de Louise Brown, ocorrido em Oldham

General Hospital, correspondeu ao primeiro êxito completo anunciado da técnica,

por obra de Robert Edwards e Patrick Steptoe. Quando Louise completou 18

(dezoito) anos, haviam nascido no mundo mais ou menos 300.000 (trezentos mil)

bebês com concepção semelhante. No Brasil, o primeiro episódio data de 1984,

com o nascimento de Ana Paula.88

A fecundação in vitro tradicional, denominada fecundação in vitro

por transferência embrionária (FIVTE), percorre as seguintes fases: I) tratamento

hormonal da mulher para que produza simultaneamente um maior número de

ovócitos (óvulos não maduros); II) coleta dos ovócitos, feita por laparoscopia,

mediante introdução de aparelho na cavidade abdominal feminina e aspiração, ou

88O sucesso global da técnica encontra estatísticas oscilantes entre 10 (dez) e 25% (vinte e cinco

por cento), de acordo com Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa, médica e doutora em Saúde Coletiva (CORRÊA, Marilena Cordeiro Dias Villela. Ética e reprodução assistida: a medicalização do desejo de ter filhos. Bioética: revista de bioética e ética médica, v. 9, n. 2,p. 76, 2001).

69

por ultra-sonografia, ou pela coleta de óvulos via vaginal; III) fecundação in vitro,

quando os ovócitos são colocados em cultura com dezenas de milhares

espermatozóides, com a fecundação na placa de Petri, depois da qual o zigoto

começa a se dividir; IV) transferência embrionária (TE) mediante cânula ou cateter

para o útero, onde se realiza, naturalmente, a implantação e continua o

desenvolvimento embrionário.89

No Brasil, segundo anunciado em fevereiro de 2005, o Ministério

da Saúde passou a oferecer, na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), a

técnica para casais com problemas de fertilidade e para portadores de HIV que

desejam ter filhos.90 Como são implantados nas clínicas, em média, 2,5 (dois e

meio) embriões por ciclo,91 coloca-se o drama da gravidez múltipla sobretudo para

pessoas de baixa renda, cuja estimação gira em torno de 20% (vinte por cento).92

2.3.2.3 Variantes comuns da fecundação in vitro

Quando não ocorre a penetração do espermatozóide no ovócito,

porque o primeiro não consegue se mover ou não alcança a fusão com o

segundo, pode-se recorrer à injeção intracitoplasmática do espermatozóide (ICSI),

que consiste na inoculação do gameta masculino no citoplasma do ovócito. Além

de determinar uma taxa de fertilização maior do que a FIVTE, pode auxiliar a 89A técnica é indicada quando a inseminação artificial for infrutífera, em virtude de esterilidade

feminina devido a problemas fisiológicos para gestação (desvios insolúveis nas trompas de Falópio). Outras hipóteses são as anomalias cromossômicas, concretamente a síndrome de Klynefelter (XXY), o transtorno de ovulação, as lesões no colo do útero ou as alterações no muco cervical (Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 24; SGRECCIA, Elio. op. cit., p.432).

90O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 02 fev. 2005. p. A-6. 91Cf. Agnaldo Cedenho, chefe do Setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São

Paulo, in: O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 18 ago. 2004. p. A-14. 92Dado extraído do site: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Escola Paulista de

Medicina. Disponível em: <http://www.unifesp.br.grupos/rhumana/reprass2.htm>. Acesso em: 15 nov. 2005.

70

implantação através de técnicas que reduzem a resistência da zona pelúcida da

mórula.93

A modalidade tornou superada a transferência intratubária de

gametas (TIG ou GIFT), que corresponde à obtenção, pelo mesmo procedimento

da FIVTE, de ovócitos e de espermatozóides. Contudo, ao invés da fecundação

na placa de Petri, eles são introduzidos nas trompas, onde o processo de

fecundação ocorre naturalmente. É indicada para a esterilidade sem causa

aparente, por fator imunológico ou por aderências externas que prejudiquem a

capacitação do ovócito.94

A transferência de zigotos nas trompas de falópio (ZIFT) combina

a fertilização in vitro com a transferência de gametas e admite diversidades

conforme o momento de introdução do material. A eficácia do método é de 45

(quarenta e cinco) a 50% (cinqüenta por cento) de gestações por ciclo, sendo

recomendada nas mesmas condições que a TIG.95

2.3.2.4 Pontos controvertidos

A gestação extra-uterina ou ectogênese representa o

desenvolvimento embrionário e fetal humano fora do útero de uma mulher.

Contemporaneamente, é possível por certo período, desde que nos últimos

meses da evolução fetal (a partir do 5º [quinto] em incubadora).

93UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Escola Paulista de Medicina. Disponível em:

<http://www.unifesp.br.grupos/rhumana/reprass2.htm>. Acesso em: 15 nov. 2005. 94Cf. SCARPARO, Mônica Sartori. Fertilização assistida: questão aberta, aspectos científicos e

legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 13. 95Id. Ibid., p. 14.

71

Agregada à realidade, a polêmica figura da mãe substituta,

também chamada maternidade por sub-rogação de útero, não se insere na seara

da biotecnologia, porque não exige manejo de material genético. Resume-se ao

uso de útero de mulheres que se dispõem a carregar, para outrem, ou seja, a mãe

de desejo, o embrião em seu ventre durante a gestação, podendo ela ser ou não

a fornecedora do gameta feminino. Os problemas residem na onerosidade do

acordo e nos laços afetivos que podem emergir da gestação, com a subseqüente

recusa da gestante em entregar a criança à mãe de desejo.

Não pouco comum no Brasil, a seleção induzida de sexo é

executada mediante duas técnicas: I) seleção de sêmen, que requer inseminação

artificial e tem quase 70% (setenta por cento) de chance de acerto; II) diagnóstico

genético pré-implantacional que, demandando fecundação in vitro, é método mais

agressivo, embora com índice absoluto de acerto. Na seleção de sêmen, a mulher

faz tratamento hormonal para estimular a ovulação. Quando entra em período

fértil, recolhe-se o sêmen do homem. O sêmen é centrifugado para separar os

espermas que carregam o cromossomo Y, masculino (mais leves), dos que levam

o cromossomo X, femininos (mais pesados). Somente os espermas do sexo

escolhido são depositados no útero, por meio de um cateter. No diagnóstico

genético pré-implantacional, após um tratamento de estimulação hormonal,

retiram-se os óvulos da mulher num centro cirúrgico e recolhe-se o sêmen do

homem. O sêmen também é centrifugado. Cada óvulo recebe a injeção de um

único espermatozóide selecionado no processo de centrifugação e os embriões

são cultivados em laboratório. No 3º (terceiro) dia, retira-se uma célula de cada

embrião via biópsia. A análise desta célula indica o sexo do embrião do qual foi

72

retirada (bem como possíveis problemas cromossômicos). Apenas os embriões

saudáveis do sexo escolhido são implantados no útero materno.96

Por fim, em razão da submissão da mulher à estimulação

hormonal ovariana para aumentar o êxito das técnicas, são produzidos vários

óvulos maduros no mesmo ciclo e, se fecundados, serão obtidos vários embriões.

Segundo a experiência clínica, não é recomendável a implantação de mais de 4

(quatro), pois a gravidez múltipla reduz a chance de sobrevivência dos mesmos e

eleva o risco de afronta à integridade física e à saúde da gestante. Daí que

comumente, nas clínicas, sobram embriões e seu destino configura uma das

maiores celeumas ético-jurídicas da atualidade.

2.4 A manipulação genética aplicada às técnicas de reprodução humana

A manipulação genética é, como outrora mencionado, facilitada

pela exposição do material reprodutivo humano em laboratório, propiciada pelas

técnicas de reprodução assistida. Faz-se expressar sob múltiplas facetas.

Vejamos.

2.4.1 A seleção genética: eugenia

A expressão eugenia foi cunhada no Reino Unido, por Francis

Galton (1822-1911), matemático que a conceituou como a ciência dos fatores

socialmente controláveis que podem elevar ou reduzir, física ou mentalmente, a

qualidade racial das gerações futuras.

96VEJA, São Paulo, ano 37, n. 38, ed. 1.872, 22 set. 2004.

73

Nos primeiros trinta anos do século XX, idéias eugênicas

sustentaram políticas estatais, justificando medidas sociais e coletivas em prol da

“pureza racial”.97 As experiências vivenciadas durante a “Segunda Guerra

Mundial”, que aproximaram a eugenia do genocídio, impregnaram de carga

negativa o termo em epígrafe. As novas tecnologias biomédicas voltaram a trazer

a eugenia à ordem do dia, quando passou a ser denominada neo-eugenia, que se

biparte em eugenia positiva e negativa. Na primeira são escolhidos certos traços

genéticos considerados perfeitos e na segunda são eliminados os indesejados.

Ambas as formas podem ser viabilizadas pela seleção de embriões, de gametas

ou de seus doadores, bem como pela engenharia genética, quando se transfere

um gene para as células de um organismo sadio, com intento de melhorar

características, como sua estatura ou sua memória, ou de reduzi-los a homens-

robôs ou a seres inferiores.

As provocações éticas são constantes neste campo, sobretudo

após a fecundação. Preocupado com os abusos, Jacques Testart propõe as

seguintes condições: I) a decisão eugênica deve ser conferida às pessoas mais

interessadas, ou seja, aos pais, de modo que não caberia ao médico propiciar

seleções por si próprio; II) imposição de freios à ambição eugênica, centrada na

austeridade médica e na ponderação entre os custos e os benefícios; III)

propagação de valores não genéticos para a qualificação dos indivíduos

(afetividade, gostos, peculiaridades).98

97Nos Estados Unidos, foram criadas leis de esterilização obrigatória dirigidas aos débeis mentais

e aos portadores de tendência criminal. Na Alemanha nazista, a “superioridade ariana” legitimou socialmente leis de higiene racial (prevenção de doenças hereditárias na descendência), acompanhadas de milhares de esterilizações impostas pela força, como o programa eutanásico de 1939. Inclusive, em 1943, houve a permissão de aborto de mulheres não arianas.

98Cf. TESTART, Jacques. La eugenesia médica: una cuestión de actualidad. Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 8, p. 26-27, ene./jun. 1998. O autor é Diretor da Investigación INSERM Clamart (França).

74

2.4.2 A clonagem

A clonagem denota todo o processo que induz à duplicação de

uma célula ou de um organismo, sem recombinação genética. Permite a criação,

a partir de um único indivíduo, de outro geneticamente idêntico, mediante

multiplicação assexuada. Não é uma novidade na natureza entre os seres

inferiores, em que a reprodução ocorre por bipartição, como em bactérias e

plantas que evoluem por meio de brotos. Em contrapartida, o fenômeno não é

comum entre os seres mais evoluídos, como os vertebrados, eis que originados

de reprodução sexuada, onde há mescla de genes masculinos e femininos. No

último caso, é possível desde que ocorra o raro desdobramento de embriões em

períodos precoces de segmentação, quando nascem os gêmeos monozigóticos.

Ser um clone de outro significa unicamente que a herança

genética entre eles é igual, ou seja, o genótipo, mas não implica que o fenótipo ou

características exteriores, embora influídas pelo genótipo, também devam ser

mantidas idênticas por muito tempo.

O processo de clonagem opera sob duas formas: transferência

nuclear e gemelação artificial. A transferência nuclear, também denominada

clonagem verdadeira, opera mediante o deslocamento do núcleo de célula somática

(diferenciada) de embrião, feto ou adulto a um óvulo, cujo núcleo foi previamente

extraído (enucleação). O novo ser será geneticamente idêntico ao doador,

ressalvado o DNA mitocondrial que se encontra no citoplasma do óvulo- receptor.99

99Cf. Id. La clonación humana: presupuestos para una intervención jurídico-penal. In: GENÉTICA y

derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de 1995. Bilbao-Granada: Publicaciones da Cátedra Interuniversitaria; Fundación BBVA, Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y Genoma Humano; Editorial Colmares, 2001. p. 128.

75

A gemelação artificial expressa a partição (divisão) de embriões

recém-formados. Os indivíduos assim nascidos serão completamente idênticos

entre si, porém serão distintos de seus progenitores e de qualquer outro indivíduo

já nascido, salvo se distanciada a transferência dos embriões ao útero da mulher,

pois, nesta hipótese, os gêmeos proviriam de gestações e nascimentos

sucessivos.

Diversamente da transferência nuclear, a gemelação artificial é

aplicada há décadas de forma experimental sobre vegetais e animais superiores,

pelo que, sob o ponto de vista científico, não aporta novidade biológica. Com

relação ao material biológico humano, foi executada pelos professores norte-

americanos Jerry Hall e Robert Stillman, em 1993, na Universidade de Georges

Washingont, de Baltimore, Estados Unidos, quando empregados embriões

gerados para a fertilização in vitro que não foram implantados porque padeciam

de malformação genética: divididos 17 (dezessete) embriões, 48 (quarenta e oito)

novos resultaram, todos destruídos no final do experimento, com estágio máximo

de desenvolvimento de 32 (trinta e duas) células.100

A transferência do núcleo ou das mitocôndrias de um ovócito

(célula precursora do óvulo) ou de um óvulo a outro enucleado ou do qual se

extraíram as mitocôndrias, para ser fecundado depois por um espermatozóide,

não constitui clonagem. Embora nas etapas iniciais do procedimento recorra-se à

técnica de clonagem, nas finais participa o gameta masculino, de modo que o

procedimento perfaz uma modalidade de reprodução com dupla carga genética. A

100Cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 146.

76

técnica pretende evitar a transmissão de uma enfermidade derivada do núcleo

original ou das mitocôndrias.101

A clonagem pode ter duas aplicações possíveis, com diferentes

valorações éticas, pelo que recebe distintas epígrafes: reprodutiva e terapêutica.

2.4.2.1 Clonagem reprodutiva

A clonagem reprodutiva traduz a aplicação da técnica sob

qualquer uma de suas formas, para o desenvolvimento completo de um novo ser,

qual seja o clone, geneticamente idêntico ao clonado. Na criação da ovelha Dolly,

primeiro mamífero a ser clonado, nascido em julho de 1996, na Escócia, a técnica

foi empregada sob o método da transferência nuclear.102 O procedimento, de

simples feitura e de custo financeiro relativamente baixo, foi desenvolvido pelos

cientistas britânicos Ian Wilmut e Keith Campbell do Instituto Roslin, que

necessitaram de 277 (duzentas e setenta e sete) tentativas e produziram 29 (vinte

e nove) embriões.103

101Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una

intervención jurídico-penal, cit., p. 128. 102Foram percorridos os seguintes passos: I) da ovelha A, tiraram uma célula da glândula mamária

que, dotada de função específica, continha parte dos genes em funcionamento e outra parte desativada; II) em laboratório, todas as informações do núcleo celular foram apagadas; após, foi reativado integralmente o código genético e o núcleo foi extraído; III) da ovelha B, óvulos não fecundados foram extraídos e seus núcleos foram retirados (informação genética); IV) foram fundidos o óvulo vazio de B e o núcleo da célula de A e, através de uma descarga elétrica, o processo de divisão celular foi iniciado; V) a ovelha C recebeu o embrião desenvolvido e, após o período normal de gestação, ela deu à luz a uma ovelha geneticamente idêntica à ovelha A, ou seja, o clone (Cf. Silvio Valle [médico veterinário e pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz] - VALLE, Silvio. Clonagem – ainda bem longe dos seres-humanos. Diálogo Médico, p. 6-9, maio/jun. 1997).

103Feita a descoberta, a equipe de Ian Wilmut apressou-se em pedir a patente e, imediatamente após, a bolsa de Londres registrou uma alta de 56,7% na cotação das ações da PPL Therapeutics (Cf. Pe. LEPARGNEUR, Hubert. Bioética e clonagem humana. In: MARCÍLIO, Maria Luiza; RAMOS, Ernesto Lopes (Orgs.). Ética na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo, LTr, 1997. p. 165-169).

77

O evento representa importante inovação posto que, realizado

com sucesso, pela primeira vez, em animais superiores, o regresso biológico de

uma célula somática (especializada) à fase da indiferenciação, reservada aos

embriões mais precoces. O efeito alarmante decorre da possibilidade de repeti-lo,

futuramente, com a espécie humana, caso em que o embrião progrediria até o

estágio do blastócito e, então, seria transferido para a mulher receptora (doadora

do útero), onde cresceria até o nascimento.104

2.4.2.2 Clonagem terapêutica e as células-tronco

As células-tronco são um tipo de célula “curinga”, porque

comumente podem se diferenciar e constituir diferentes tecidos no organismo, o

que é uma capacidade especial, porque as demais células só podem originar

parte de um tecido específico, por exemplo, as células epiteliais só fazem a pele.

Outra aptidão especial das células-tronco está na auto-replicação, porque elas

podem gerar cópias de si próprias.

Tais traços tornam-nas objeto de intensas pesquisas, pois há

expectativa de que, no futuro, possam funcionar como células substitutas em

tecidos lesionados ou doentes (Alzheimer, Parkinson e doenças

neuromusculares) ou na permuta de células que o organismo paralisa a produção

por deficiência (diabetes).105 Segundo Jeffrey Macklis, pesquisador da Escola

Médica de Harvard, certas terapias são esperadas em 5 (cinco) anos, para

104Cf. Lygia V. Pereira (especialista em engenharia molecular e professora da USP) - PEREIRA,

Lygia. Parecer sobre clonagem humana reprodutiva e terapêutica. Revista Parcerias Estratégicas. São Paulo, n. 16, p. 125, out. 2002.

105Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.

78

problemas como a esclerose lateral amiotrófica, doença de neurônio motor e

lesão de medula, ao passo que, em enfermidades mais complexas, como o mal

de Parkinson, o tratamento pode levar até décadas.106 A colocação acentua o

evidente caráter experimental que permeia os trabalhos com células-tronco.

O procedimento demanda o mergulho das células-tronco em

banho nutritivo para multiplicação, com a subseqüente inserção de substância

química eleita conforme o tecido ou o órgão que se queira formar e, ao final, a

massa celular é enxertada no ser humano doente.107 Assemelha-se ao

transplante de órgãos, como de medula óssea em pacientes com leucemia, mas

no caso das células-tronco, além da pretensão de obter, a partir delas, em

laboratório, novos tecidos, os cientistas propõe injetá-las diretamente no órgão do

paciente, para que se especializem dentro do organismo.

As células-tronco são classificadas como: I) totipotentes, quando

conseguem se diferenciar em qualquer tecido humano, inclusive placenta e

embrionários; II) pluripotentes ou multipotentes, que conseguem se diferenciar em

quase todos os tecidos humanos, menos placenta e anexos embrionários,

havendo trabalhos que as distinguem, para catalogar as multipotentes com

aptidão para formação de menor número de tecidos do que as pluripotentes; III)

oligopotentes, que se diferenciam em poucos tecidos; IV) unipotentes, quando se

diferenciam num só tecido.108

As totipotentes estão presentes nas primeiras fases do

desenvolvimento embrionário, entre o 3º (terceiro) e o 4º (quarto) dia, quando

106FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 05 mar. 2005. p. A-18. 107Cf. PEREIRA, Lygia. op. cit., p. 125-126 e 128; Época, São Paulo, n. 212, 10 jun. 2002.

Disponível em: <http: //www.escolavesper. com.br/clonagem-terapeutica.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.

108Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.

79

existem 16 (dezesseis) a 32 (trinta e duas) células. As pluripotentes

(multipotentes) surgem quando o embrião atinge a fase do blastócito, a partir de

32 (trinta e duas) a 64 (sessenta e quatro) células, ou seja, 5º (quinto) dia da

evolução embrionária aproximadamente.109 É necessário, segundo Mayana Zats,

que se atinja esta etapa para a extração das células-tronco embrionárias, que se

encontram na massa interna celular do blastócito. Conforme a geneticista, as

pesquisas indicam que, em até 14 (quatorze) dias após a fecundação, as células

embrionárias são capazes de transformação em quase todos os tecidos humanos,

perdendo, a seguir, a aptidão.110 As oligopotentes são ainda objeto de estudo,

sendo encontradas em tecidos restritos e, fi nalmente, as unipotentes estão

presentes no tecido cerebral e na próstata, por exemplo.111

Os adultos conservam pequena quantidade de células-tronco em

vários tecidos ou órgãos (cérebro, sangue, córnea, retina, coração, gordura, pele,

polpa dentária, medula óssea, vasos sanguíneos, músculo esquelético e

intestinos), onde ficam latentes até que ativadas por uma enfermidade ou um

ferimento. Elas estão presentes, também, no sangue do cordão umbilical.

Sem embargo das pesquisas prosseguirem tanto em relação às

células-tronco adultas quanto em relação às embrionárias, por ora somente as

primeiras foram ministradas na espécie humana. Para estas, entre os avanços,

destacam-se os estudos com pacientes de leucemia que, tratados com células-

tronco da medula óssea e do sangue do cordão umbilical, demonstraram

regressão da doença. Foram ainda empregadas em pessoas com cartilagem

109Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:

<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005. 110Cf. Mayana Zatz em entrevista ao oncologista Drauzio Varella. Disponível em:

<http://www.drauziovarella.com.br/entrevistas/celulastronco6.asp>. Acesso em: 17 out. 2005. 111Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:

<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 17 out. 2005.

80

erodida, quando mostraram alívio nas juntas.112 Desde os idos de 2005, o maior

estudo com células-tronco adultas extraídas da medula óssea para a injeção em

artérias coronárias realiza-se no Brasil, no Instituto Nacional de Cardiologia de

Laranjeiras, seguindo paralelos em São Paulo e em Salvador.113

Ao contrário do que ocorre com as embrionárias, não há

consenso científico sobre futuro êxito na conversão de células-tronco adultas em

todos os tipos de tecidos.114 Na atualidade, as pesquisas demonstram que as

embrionárias são bem mais versáteis. De fato, as células do sangue do cordão

umbilical mostram-se capazes para a produção de células sanguíneas e, segundo

descoberta recente, para a geração de ossos e de cartilagem. Todavia, não se

estendem a outros casos.115 O estudo norte-americano efetivado em 2004, no

Instituto Médico Howard Hughes, da Universidade de Harvard, mostrou que

células-tronco adultas não podem produzir as unidades fabricantes de insulina no

corpo, como antes se pensava. Foi verificado, em camundongos, que as células-

beta, responsáveis pela fabricação de insulina, não surgem de células-tronco

adultas, pois se duplicam em mecanismo mais simples: dividem-se elas mesmas.

Basta saber se pâncreas de camundongos e dos homens são iguais, mas a

tendência é de que sejam.116

Entretanto, muitos grupos de cientistas não se contentam em

reclamar por células-tronco embrionárias, prosseguindo com estudos para ampliar

o potencial das adultas. Nesta linha, foi publicado, na revista especializada Cell,

112Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:

<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 17 out. 2005. 113OESTADO de S. Paulo, São Paulo, 11 jun. 2005. p. A-24. 114O PODER de dividir. In: NATIONAL Geographic, ano 6, n. 64, jul. 2005. p. 55; HOMENS em

série. Super Interessante, ano 15, n.7, jul. 2001. p. 67. 115Idem, loc. cit. 116FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 06 maio 2004. p. A-18.

81

que o geneticista Rudolf Jaenisch, do prestigiado Instituto Whitehead, nos

Estados Unidos, desvendou, em 2005, o mecanismo que permite a certas células-

tronco adultas se comportarem como embrionárias, com a capacidade de se

multiplicarem em laboratório ao mesmo tempo em que se mantêm

indiferenciadas. O segredo, segundo o cientista, estava guardado numa chave-

molecular, o gene OCT-4 que, trabalhando no estágio inicial do embrião, “segura”

as células para que não se diferenciem antes da hora. No tempo certo, o gene

desliga-se e, então, são formados os tecidos. Com o controle do gene, seria

hipoteticamente possível fazer com que certas células-tronco adultas fossem

mantidas neste estágio sem diferenciação, o que poderia expandir seu campo de

atuação nas pesquisas voltadas para a terapia celular. Se, no futuro, a pesquisa

consolidar-se em mecanismo comprovado, seriam, no mínimo, menos cobiçadas

as células-tronco embrionárias, o que, nas palavras de Lygia Veiga Pereira, é “o

melhor dos dois mundos”, pois superaria todo o entrave ético em torno do tema,

que envolve a proteção da vida.117 Houve ainda uma pesquisa efetivada pela

Advanced Cell Technology, em Worcester, Massachusetts, onde os cientistas

descobriram que células únicas de embriões bastante jovens (blastômero), que

nem sequer tinham células-tronco, se retiradas e posteriormente cultivadas em

discos com células-tronco embrionárias, poderiam tornar-se o que parece ser

células-tronco embrionárias.118

Ressalve-se, porém, que quaisquer pesquisas não autorizam

conclusões ou expectativas acabadas para definitivamente excluir o potencial das

células-tronco, sejam embrionárias ou adultas. Cuida-se de tema recentíssimo (a

117O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 07 maio 2005. p. A-18. 118O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 08 jun. 2005. p. A-22.

82

capacidade de transformação das embrionárias foi descoberto em 1998)119 e que

evolui a cada dia.

Diante do exposto, na fase atual da ciência, infere-se que as

fontes de células-tronco são as seguintes: I) sangue do cordão umbilical; II) certos

tecidos adultos; III) blastócito (embrião com cerca de 5 [cinco] dias). Nos dois

primeiros casos, as células menos versáteis, conquanto compatíveis com o

paciente, não servem para o tratamento de doenças genéticas, porque terão a

mesma carga genética que a do o enfermo, eis que dele foram extraídas. Quanto

ao terceiro grupo, as células-tronco são obtidas de: I) embriões excedentes para a

fecundação assistida, criopreservados em clínicas de fertilização assistida; II) de

embriões clonados. Ambas as hipóteses deflagram o grande dilema ético que

envolve, pelo menos contemporaneamente, a necessidade da destruição do

embrião para extração do material.

Dois novos estudos divulgados em outubro de 2005 apontaram

para a possibilidade de extrair células-tronco totipotentes sem destruir o embrião

que as cede. Uma equipe de uma empresa americana conseguiu derivar uma

cultura de células-tronco embrionárias de camundongos a partir de uma célula da

mórula, ou seja, do blastômero. A mórula pôde ceder uma ou duas células e

continuar a desenvolver-se normalmente. A técnica estava sendo utilizada em

clínicas de fertilidade para averiguar a saúde do embrião antes dele ser

implantado ao útero. Paralelamente , outro grupo, sob o comando do Conselho

Consultor de Bioética do presidente Bush, desenvolveu um protótipo de pseudo-

embrião, ou seja, uma entidade geneticamente modificada para permitir tão-

somente a derivação de células-tronco por clonagem, ficando excluído seu

119O PRIMEIRO instante. Super Interessante, n. 219, nov. 2005. p. 63.

83

desenvolvimento como embrião normal. Como a alteração ocorre antes da

clonagem, o pseudo-embrião resultante, por não ter chance de converter-se num

feto, não poderia ser considerado um ser humano em potência.120

No caso da extração de células-tronco de embriões clonados,

porque feitos sob “encomenda”, suplantam o entrave da incompatibilidade

genética. Nesse âmbito, entra, finalmente, em cena a clonagem dita terapêutica.

A técnica configura modalidade de clonagem destinada à produção de células

para a pesquisa em futuras terapias celulares. O procedimento é idêntico à

clonagem reprodutiva, salvo quanto à implantação embrionária, que não ocorre,

pois está consumado com a obtenção do embrião clonado. Como ocorre com o

embrião decorrente de fecundação, do embrião clonado são extraídas as células-

tronco, com as quais são formadas, in vitro, as almejadas linhagens celulares, isto

é, colônias de milhões de células que continuam a se proliferar, permitindo sua

experimentação para aplicações terapêuticas.

Em fevereiro de 2004, a inexistência de obstáculos legais para

pesquisas com embriões permitiu que o cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang e

seus colegas da Universidade Nacional de Seul fossem os primeiros a anunciar a

clonagem de embriões humanos, conforme publicado pela revista Science. Em

2005, foi anunciada a primeira cópia britânica: 3 (três) clones que também

sobreviveram por, no máximo, 5 (cinco) dias. Ainda em 2005, os mesmos

cientistas noticiaram que, com a técnica em questão, criaram 11 (onze) linhagens

de células-tronco, a partir de 11 (onze) embriões clonados, criados com o uso de

185 (cento e oitenta e cinco) óvulos e o DNA de doentes, de onde teriam extraído

120FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 17 out. 2005. p. A-18.

84

células-tronco que poderiam ser usadas no tratamento dos mesmos pacientes,

sem perigo de rejeição.

Contudo, em dezembro, uma equipe de investigação da

Universidade Nacional de Seul conc luiu que o cientista Woo-Suk Hwang falsificou

pelo menos 9 (nove) linhagens das 11 (onze) linhagens. “Os dados foram

intencionalmente fabricados, não foi um erro acidental e isso constitui uma grave

falha de conduta”, afirmou a chefe dos investigadores, Jung-Hye Roe. Os

investigadores descobriram que a equipe não produziu 11 (onze) linhagens, mas

somente 2 (duas): 4 (quatro) delas foram contaminadas, 3 (três) não se

desenvolveram a tempo e 2 (duas) podem nem ter existido, pois não há registro

delas. O exame feito por Hwang para comprovar a autenticidade do material foi

forjado, porque, após separar as células do paciente em dois tubos de ensaio

para análise, comparou as mesmas amostras. Além disso, segundo Roe, muito

mais do que 185 (cento e oitenta e cinco) óvulos foram usados.121 Enfim, em

relação às 2 (duas) linhagens pendentes, foi averiguado que não haviam sido

produzidas por clonagem, mas por simples fertilização in vitro.122

Na terapia com células-tronco, o grande risco está em sua

degeneração em células cancerígenas,123o que é bastante provável para Alice

Teixeira Ferreira, Lilian Eça e Dalton Ramos,124 posto que não se conquistou

controle sobre o caminho que esse tipo celular percorre no organismo e o tipo de

121O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 24 dez. 2005. p. A-17. 122O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 02 jan. 2006. p. A-9. 123Cf. Elisete Antoniuk (mestre em Direito Comparado pela Universidade de Bonn) - ANTONIUK,

Elisete. Clonagem humana. Ciência jurídica, ano 16, v. 104, p. 288, mar./abr. 2002. 124Alice Teixeira Ferreira (livre-docente do Dep. de Biofísica, membro do Comitê de Ética em

Pesquisa da UNIFESP e membro do Núcleo de Fé e Cultura da PUC), Lilian Piñero Marcolin Eça (membro do grupo de pesquisa do Departamento de Biofísica da UNIFES), Dalton Luiz de Paula Ramos (professor de Bioética da Faculdade de Odontologia da USP e membro do Núcleo de Fé e Cultura da PUC) - EÇA, Lilian Piñero Marcolin; FERREIRA, Alice Teixeira; RAMOS, Dalton Luiz de Paula. Clonagem terapêutica. Revista de Cultura IMAE/UniFMU, São Paulo, ano 4, n. 10, p. 84, jul./dez. 2003.

85

tecido em que irá se transformar. Em verdade - reconhece Mayana Zatz -, é um

mistério a ordem que determina, durante o desenvolvimento embrionário, que

uma célula-tronco pluripotente se diferencie em tecido específico.125

2.4.3 Hibridação, quimeras e partenogênese

A hibridação consiste na fecundação transespecífica, ou seja, de

óvulos e espermatozóides de espécies distintas, com fins diagnósticos ou

procriativos. O novo ser, o híbrido, é incapaz de procriar.126 A quimera, em grego

khimaira (monstro mitológico que cuspia fogo com cabeça de leão, corpo de cabra

e cabeça de serpente), resulta da fusão de células presentes nas divisões

celulares após a fecundação entre 2 (dois) ou mais embriões da mesma espécie

ou de espécies diferentes. Pode-se produzir de modo natural.127

O caso mais antigo documentado, datado de 1736, trata do

nascimento de Maria Sabina, de cor negra, com grandes manchas brancas

espalhadas pelo corpo.128 Há risco de nascimento de hermafrodita se os embriões

fundidos tiverem sexos opostos, o que pode ocorrer, sobretudo, nas primeiras

fases de desenvolvimento embrionário, onde não se diagnostica o sexo.

Considera-se também quimera o nascimento de irmãos siameses, fruto de

gestação de embriões fusionados.

125Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:

<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 18 out. 2005. 126MANTOVANI, Ferrando. op. cit., p. 100. 127Para Beatrice Mintz, responsável pelo primeiro êxito de laboratório com essa técnica em ratos,

as vantagens são: analisar a evolução dos mais longínquos animais, detectar a zona do tecido onde se produz a lesão inicial no caso de síndromes complexas, mitigar doenças através da coexistência de células normais com as geneticamente defeituosas (apud MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 231).

128Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 89.

86

A partenogênese (parthenos - virgem; gênesis - produção) é a

reprodução mediante o desenvolvimento do gameta feminino, sem a intervenção

do macho da espécie. Este método é comum na natureza, salvo entre mamíferos.

Nestes, as cópias paterna e materna do genoma competem, de modo que o

vencedor fornece seus genes para uso no organismo, enquanto os

correspondentes do perdedor são “desligados” sem conflito (imprinting ou

processo de estampagem). Se efetivada a partenogênese, o genoma materno

briga com um igual e o resultado é a superativação de alguns genes e o

silenciamento de outros, fazendo com que o embrião tenha sobrevida limitada a

alguns poucos dias, o que foi constatado em experiências com camundongos. No

Japão, o entrave foi superado também em pesquisas com camundongos,

mediante a modificação genética da roedora: foi apagado, numa das cópias, um

gene que, em tese, não seria ativado no DNA paterno e o pacote foi combinado

com o de outra roedora, que tinha o genoma inalterado. O óvulo resultante foi

então induzido a se dividir e formar um embrião.129

129FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 2004. p. A-13.

87

3. A PROPORCIONALIDADE

3.1 Os princípios e as regras como normas jurídicas

Ao estudar os direitos fundamentais com fulcro em bases

normativas, Robert Alexy compreende tanto os princípios quanto as regras como

normas, uma vez que ambos dizem o que deve ser, podendo ser formulados com

o auxílio de expressões deônticas fundamentais, tais como o mandamento, a

permissão e a proibição. De conseguinte, a diferença entre regras e princípios

reside em peculiaridades entre duas espécies igualmente normativas.130

São numerosos os critérios propostos para a distinção. Alexy

expõe que o mais freqüente é o critério da generalidade, consoante o qual os

princípios são normas com elevado grau de generalidade, enquanto as regras têm

baixo grau. Exemplifica: a norma que diz que cada um tem liberdade de crença

seria um princípio, ao passo que a norma segundo a qual todo o preso tem direito

de converter outros em suas crenças seria uma regra. O professor alemão aponta

outros critérios: a) a “determinabilidade dos casos de aplicação” (Esser, Larenz e

Klami); b) a origem, que abrange a diferença entre normas “criadas” e “crescidas”

(Shuman, Eckhoff); c) a explicitação do conteúdo valorativo (Canaris); d) a

proximidade com a idéia de direito e a importância para o ordenamento jurídico

(Larenz); e) a característica dos princípios fundamentarem as regras (Esser).131

130Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales . Trad. por Ernesto Garzón Valdés.

Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2002. p. 83. 131Id. Ibid., p. 84-85.

88

Examinando tais critérios, Alexy extrai três teses. A primeira refuta

todos eles, pois, em função da heterogeneidade, não se prestam a fundamentar

uma diferenciação; funcionam, exclusivamente, para captar as similitudes e

diferenças, analogias e dessemelhanças que existem entre as normas, mas não

servem para justificar a divisão entre elas. A segunda tese situa a divergência

entre princípios e normas na generalidade, apondo a diferença exclusivamente no

grau. A terceira, que é a correta para Alexy, defende que, entre regras e

princípios, não existe apenas diferença de grau, mas também de qualidade. O

último critério – assinala o doutrinador - não se encontra na listagem apresentada,

porém fundamenta a maioria dos que nela estão contidos, que, outrora, eram

considerados tradicionais e definitivos.132

Explicando a eleição do critério qualitativo, Alexy compreende que

os princípios são mandamentos de otimização, quer dizer, normas que ordenam

que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades

fáticas, senão também jurídicas, cujo âmbito é determinado pelos princípios e

regras opostos. Em contrapartida, as regras são cumpridas ou não. Se uma regra

é válida, deve ser atendido exatamente o seu comando. Se inválida, deve ser

totalmente afastada. Portanto, as regras trazem, em si mesmas, o ajuste ou o

desajuste fático ou jurídico, nada havendo a ponderar.133

A diferença entre regra e princípio, prossegue Alexy, mostra-se

ainda mais explícita na colisão de princípios e no conflito de regras. Na colisão

entre regras, a solução é encontrada mediante a inserção de uma cláusula de

exceção ou a declaração de invalidez de uma delas, o que se obtém com o

emprego de outras regras, tais como “lex posterior derogat legi priori” e “lex

132ALEXY, Robert. op. cit., p. 85-86. 133Id. Ibid., p. 86-87.

89

specialis derogat legi generali”. Na colisão de princípios, o quadro é outro.

Quando entram em conflito – para um princípio, algo está proibido e para outro,

está permitido – um deles cede perante o outro, o que não significa que este seja

declarado inválido ou que haja a introdução de cláusula de exceção. Quer dizer

que um princípio, sob certas circunstâncias, precede em face de outros, embora

sob diversas condições, a precedência seja resolvida de maneira inversa. Por

outras palavras, à luz dos casos concretos, os princípios apresentam diferente

peso e prevalece o que dispor de maior peso num dado quadro. Em suma, o

conflito de princípios desenrola-se na dimensão de peso, ao passo que o conflito

de regras, na dimensão da validade.134 Nessa égide, Alexy explica que, entre os

princípios, existe uma relação de precedência condicionada, isto é, considerando-

se as circunstâncias do caso concreto, são indicadas as condições sob as quais

um princípio precede a outro.135

Na visão de Paulo Bonavides, a teoria de Alexy converge para a

jurisprudência dos valores e, neste ponto, reside sua inteira contemporaneidade,

bem como a importância vanguardeira do seu pensamento jurídico quanto ao

valor normativo dos princípios.136

Contra a argumentação sustentada por Alexy, ele próprio levanta

três objeções, as quais, seqüencialmente, contesta. A primeira traz à baila a

resolução de colisão entre certos princípios mediante a declaração de invalidade

de um deles. Alexy esclarece que, na hipótese, o princípio é sempre afastado na

colisão com outros, porque, extremamente fraco, está fora do ordenamento

jurídico, como o princípio da discriminação racial. A segunda objeção centra-se na

134ALEXY, Robert. op. cit., p. 88-89. 135Id. Ibid., p. 92. 136Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Ed., 2001. p. 252.

90

existência de princípios absolutos, o que, para o doutrinador, não se verifica,

porquanto os princípios, além de limites fáticos, conhecem, sem exceção, de

limitações jurídicas, sob pena de restar derrubada sua construção. Finalmente, a

terceira crítica concentra-se na amplitude do conceito de princípio, o que é

refutado com simplicidade pelo professor alemão.137

A diferenciação entre regras e princípios foi também trabalhada

por Ronald Dworkin. Sob sua ótica, a lógica das regras corresponde ao “tudo ou

nada”, sendo necessário, em seu enunciado, prescrever todas as exceções à sua

aplicação.138 Em contrapartida, os princípios ostentam dimensão particular, a

dimensão do peso, valor ou importância.139

Nessa linha, Canotilho enfatiza que os princípios permitem o

balanceamento de valores e interesses, na medida em que expressam standards

que, prima facie, devem ser realizados, mas, em sua concreção, respeitam seu

próprio peso e a eventual prioridade de outro princípio conflitante.140

3.2 A proporcionalidade como regra

Acolhendo a teoria de Alexy, o chamado princípio da

proporcionalidade não configura um princípio, pois, como defende Luís Virgílio

137ALEXY, Robert. op. cit., p. 104-111. 138Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. por Nelson Boeira. São Paulo: Martins

Fontes, 2002. p. 39. 139Id. Ibid., p. 42. 140Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:

Almedina, 1999. p. 1087-1088.

91

Afonso da Silva, “não tem como produzir efeitos em várias medidas, já que é

aplicado de forma constante, sem variações”.141

O próprio Alexy, após mencionar os elementos parciais da

proporcionalidade, assevera: “La máxima de proporcionalidad suele ser llamada

‘principio de proporcionalidad’. Sin embargo, no se trata de un principio en el

sentido aquí expuesto. La adecuación, necesidad y proporcionalidad en sentido

estricto no son ponderadas frente a algo diferente. No es que unas veces tengan

precedencia y otras no. Lo que se pregunta más bien es si las máximas parciales

son satisfechas o no, y su no satisfacción tiene como consecuencia la ilegalidad.

Por lo tanto, las tres máximas parciales tienen que ser catalogadas como

reglas”.142

Destarte, dentro do rigor técnico, é reconhecida a regra (não o

princípio) da proporcionalidade. Entretanto, novamente na esteira de Luís Virgílio

Afonso da Silva, não é possível fechar os olhos à prática jurídica brasileira. No

uso comum, fala-se, com freqüência, no princípio da proporcionalidade, mas a

epígrafe não se preocupa com a preciosa argumentação de Alexy, senão busca

realçar a importância que é devida ao conceito, como ocorre com as expressões

princípio da anterioridade e princípio da legalidade.143 O objetivo desta linguagem

está em destacar que a norma (verdadeiramente uma regra) refere-se a um

“mandamento nuclear de um sistema”.144 Sob tal enfoque simbólico, a regra da

141SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo,

ano 91, v. 798, p. 25, abr. 2002. 142ALEXY, Robert. op. cit., p. 112, n.r. 84. 143SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 26. 144Nesse sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. rev. e

ampl. São Paulo: Malheiros Ed., 1999. p. 95.

92

proporcionalidade é tratada como “princípio dos princípios”, como principium

ordenador do Direito.145

3.3 A nomenclatura

Aproximam-se a proporcionalidade e a igualdade. Para André

Franco Montoro, a igualdade simples ou absoluta implica equivalência entre dois

objetos e a igualdade proporcional ou relativa concretiza-se na distribuição de

benefícios e encargos entre os membros de uma comunidade.146

A lição remete à noção limitada (literal) da proporcionalidade, a

qual, na linguagem de Suzana de Toledo Barros, consubstancia a representação

mental do conceito de equilíbrio. ”Há, nela, a idéia implícita de relação harmônica

entre duas grandezas“. Porém, complementa a autora, “a proporcionalidade em

sentido amplo é mais do que isso, pois envolve considerações sobre a adequação

entre meios e fins e a utilidade de um ato para a proteção de um determinado

direito”.147

A idéia de proporcionalidade não se cinge a um ramo jurídico,

pois representa idéia de justiça imanente a todo o ordenamento. Atua como

diretriz inderrogável para a produção e a interpretação da ordem jurídica

contemporânea, obrigando o operador a alcançar o justo equilíbrio entre os

145Cf. GUERRA Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade. In: LEITE, George

Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 242.

146Cf. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2003. v. 1, p. 172.

147BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p. 70.

93

interesses em conflito, ficando o centro da balança no respeito à dignidade da

pessoa humana, razão última do Direito.

A regra da proporcionalidade carece de uniformidade

terminológica. A doutrina alemã utiliza indistintamente a nomenclatura

proporcionalidade (VerhältnismässigggkeitI) e proibição de excesso

(Übermassverbot), para aludir ao conjunto de conceitos parciais e elementos

constitutivos formados pela adequação, necessidade e proporcionalidade em

sentido estrito. Os americanos são mais afetos à expressão razoabilidade. No

caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal tende à expressão razoabilidade.148

Todavia, não se identificam proporcionalidade e proibição de

excesso. Não obstante a proporcionalidade “ainda seja predominantemente

entendida como instrumento de controle contra excesso de poderes estatais, cada

vez mais vem ganhando importância a discussão sobre sua utilização para a

finalidade oposta, isto é, como instrumento de omissão ou contra a ação

insuficiente de órgãos estatais”, como explica Luís Virgílio Afonso da Silva.

Também a proporcionalidade não se confunde com a

razoabilidade, uma vez que esta se restringe à compatibilidade entre o meio

empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição de legitimidade

dos fins, ou seja, a um dos elementos da proporcionalidade: a exigência da

adequação.149 De qualquer modo, o importante não é a nomenclatura, mas o

conteúdo atribuído à regra em epígrafe.

148Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 489-1/6000 – DF, Medida Cautelar, Rel. Min. Sepúlveda

Pertence, DJU 22.11.91; Agravo de Instrumento n. 141.916-4 – SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 22.03.94.

149Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 32-33. Diversamente, Willis Santiago Guerra Filho equipara a proporcionalidade à razoabilidade, em razão da sinonímia e origem comum na Matemática dos termos razão (latim ratio) e proporção (latim proportio) (GUERRA Filho, Willis Santiago. op. cit., p. 329).

94

3.4 A origem e a evolução histórica da proporcionalidade

A preocupação com a idéia da proporcionalidade no âmbito

jurídico perdeu-se no tempo. Sua referência mais longínqua remonta à Grécia

Antiga. Platão, em As Leis (capítulo IX, 857b), indaga: "Não temos que distinguir

entre o ladrão que rouba muito ou pouco, ou que rouba os lugares sagrados ou

profanos, nem atenderemos a tantas outras circunstâncias inteiramente

dessemelhantes entre si, como se dão nos roubos que, sendo variados, exigem

que o legislador se atenha a elas impondo castigos totalmente diferentes?".150 Os

romanos relacionaram a proporcionalidade com a utilidade e, nesse diapasão,

Ulpiano definiu o ius privatum como ius quod ad singularum utilitatem spectat (D

1, 1, §2º).151

Nos primórdios do direito penal, o homem fazia justiça pelas

próprias mãos, de maneira particular, violenta, desordenada e excessiva. O

ataque a um indivíduo era extensivo ao grupo a que ele pertencia, o que

desencadeava lutas entre os clãs, com dimensões de violência bem maiores do

que a ofensa originária. O esboço da idéia da proporcionalidade surgiu durante a

transição da vingança privada para a pública, graças à disciplina imposta pela Lei

de Talião - “olho por olho, dente por dente” - a qual buscava certa

correspondência entre o mal praticado e a repressão.152 O intento, em muito, era

150Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. por Ana Paula

Zomer, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 361, n.r. 150.

151Cf. GUERRA Filho, Willis Santiago. op. cit., p. 239. 152O talião, proveniente do vocábulo latino “talis”, que significa “tal”, serviu de base para a acepção

retributiva da pena, como compensação, de mesma natureza e intensidade ao mal do crime, manejada por Aristóteles e perdurou na Idade Moderna até Kant e Hegel. A disciplina do talião foi empregada no Código de Hamurabi (séc. XXIII a.C.), na Bíblia (Pentateuco, que apresenta os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) e no Código de Manu, da Índia (Cf. GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1959. v. 1, t. 1, p 12-13).

95

dissolvido na prática, pois se, em certas hipóteses, havia relação direta entre

crime e pena (morte ao homicida), em outras, a referência era meramente indireta

ou simbólica (amputação da mão do réu falsário), caso em que os critérios de

justiça perdiam a consistência. Além disso, as medidas ignoravam as diferentes

sensibilidades das pessoas submetidas a punições aflitivas.153 De qualquer modo,

a disciplina reduziu a dizimação das tribos, permitindo a preservação de homens

em número suficiente para enfrentar as novas e contínuas batalhas tribais.154

Novo impulso à proporcionalidade penal, sobretudo sob o enfoque

da adequação dos meios aos fins (razoabilidade), foi conferido pela Magna Charta

Libertatum, de 1215, elaborada para proteger os barões, detentores de fortunas e

propriedades, contra os desmedidos privilégios do Poder Público à época

exercido pelo rei João "Sem Terra". O documento, ao estatuir que o homem livre

(os barões) deveria ser punido na medida da gravidade do delito, colacionava a

idéia de proporção entre a pena e a transgressão.155

Desta trilha limitativa, o direito penal foi desviado no curso da

Idade Média, época em que o monarca era uma figura sagrada, um representante

de Deus. A punição, com vistas à exemplaridade e à intimidação geral, destinava-

se a reafirmar o poder real e era legitimada em nome do resguardo a Deus. A

dignidade humana, a liberdade individual e a própria vida foram sacrificadas pelo

sistema punitivo, assentado no terror, em virtude da difusão de penas nefastas,

difamantes e excessivas. Esse estilo de repressão penal, que marcou toda uma

era, tinha respaldo popular. Grande parte das punições era considerada justa,

153Cf. FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 312-313. 154Cf. MARQUES, Oswald Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de Oliveira,

2000. p. 6. 155Cf. CORREA, Teresa Aguado. El principio de proporcionalidad en derecho penal. Madrid:

Edersa, 1999. p. 55, n 1.

96

porque enraizada em pregações religiosas, cujo corpo formava legítimo guia

diretivo de comportamento.156

Com a Idade Moderna, separaram-se religião e Estado que,

secularizado, passou de absolutista para Estado de Direito. Reflexamente, no

direito penal, a equação “crime = pecado” foi sucedida pela equação “crime = fato

danoso para a sociedade”.157 As bases para a transformação estavam no

Iluminismo, com reclamos por limite do poder real, e na teoria jusnaturalista, que

propugnava que o homem tinha direitos imanentes, anteriores ao Estado, a serem

respeitados por ele.

Entre os teóricos, Montesquieu, na obra O Espírito das Leis

(1721), enveredando pelo caminho da proporcionalidade, realça a valia da

liberdade, ao atribuir ao legislador o dever de estar “menos atento em punir os

crimes do que em preveni-los”.158 Inquieto com os excessos punitivos, ensina que

uma pena desmedida agride mais a sociedade do que a própria impunidade:

“Logo, a atrocidade das leis impede sua execução. Quando a pena não tem

medida, somos muitas vezes obrigados a preferir a impunidade”.159 E profetiza: “E

se virem outros países onde os homens só se retêm com suplícios cruéis, estejam

certos mais uma vez de que isto provém em grande parte da violência do

governo, que usou esses suplícios contra faltas leves”.160

156Tamanha a confusão entre religião e Direito que os crimes mais abjetos eram cometidos pelo

traidor da Coroa (lesa-majestade), pelo herege (sustenta posição contrária à Igreja), o apóstata (abandono da religião católica para ingressar em outra) e pelo blasfemador (descrença em Deus e nos dogmas da Igreja Católica).

157Cf. DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Corso di diritto penale. Milano: Giuffrè, 2001. v. 1, p. 429.

158MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Trad. por Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 93.

159Id. Ibid., p. 98. 160Id. Ibid., p. 95.

97

O Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana, em Dos delitos e das

penas (1764), remete à proporcionalidade em diversas passagens 161 e, no último

parágrafo do seu trabalho, professa, como teorema geral, a primeira formulação

teórica da regra em estudo: “para que a pena não seja a violência de um ou de

muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida,

necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional ao delito e

ditada pelas leis”.162

Na Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão,

de 22 de agosto de 1795, e na 8ª (oitava) emenda à Constituição dos Estados

Unidos (1791), foi proclamada expressamente a proporcionalidade: “a lei não

deve estabelecer senão penas estritamente necessárias e proporcionais ao

delito”.

No mesmo século XVIIII, a proporcionalidade migrou do direito

penal para o administrativo, como norma geral do direito de polícia, ou seja, como

medida para as restrições administrativas aos direitos fundamentais.

Posteriormente, ampliou-se para todos os âmbitos do Direito Público e, enfim,

tornou-se topos hermenêutico de todo o ordenamento jurídico.163

Presente em textos constitucionais bem anteriores à “Segunda

Guerra Mundial”,164 a atual feição da máxima da proporcionalidade foi bem melhor

delineada após o término do conflito bélico, quando a humanidade, embebida

161Entre as quais assevera: “para que uma pena seja justa, só deve ter aqueles graus de

intensidade que bastem para dissuadir os homens dos delitos” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 97).

162Id. Ibid., p. 139. 163CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 56-57. 164As Constituições do Rei da Sardenha de 1723 e de 1729 estabeleciam que "na fixação" das

penas "se observará uma justa e adequada proporção à quantidade dos delitos". O mesmo se verificou no art. 16 da Constituição francesa de 1793 e no art. 12 da de 1795, que requerem que as penas sejam "proporcionais ao delito" (Cf. FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 361, n. 152).

98

pelos horrores do holocausto, assistiu à transição do Estado de Direito, vinculado

tão-somente ao princípio da legalidade (com o apogeu positivo na Constituição de

Weimar), para o Estado de Direito, atado ao princípio da constitucionalidade.

Graças à transformação, os direitos humanos, outrora relegados a declarações

político-filosóficas, tornaram-se o centro de gravidade da ordem jurídica,

figurando, com cunho obrigatório, em textos constitucionais.165 Agregada à tutela

de tais direitos, a máxima da proporcionalidade passou a ser invocada para a

elaboração e aplicação de um ordenamento jurídico materialmente justo.

3.5 A consagração constitucional

A regra da proporcionalidade não está expressa na Constituição

brasileira, o que se repete em outros Estados, quando a doutrina e a

jurisprudência entendem que deflui da Carta Política, sobretudo dos artigos em

que se consagram direitos fundamentais.

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha inclina-se a

deduzir a proporcionalidade da norma que consagra o Estado de Direito: “en la

República Federal de Alemania, el principio da proporcionalidad tiene rango

constitucional. Se deriva del Estado de Derecho, en razón de la esencia misma de

los derechos fundamentales que, como expresión de la pretensión de liberdad

general de los cuidadanos frente al Estado, no pueden ser limitados por el Poder

Público más allá de los que sea imprescindible para la protección de los intereses

165Nessa linha: BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 362-363.

99

públicos”.166 A tendência é seguida pelo Tribunal Constitucional espanhol: “(...) el

problema de la proporcionalidad entre pena y delito es competencia del legislador

en el ámbito de su política penal, lo que no excluye la posibilidad de que en una

norma penal exista una desproporción de tal entidad que vulnere el principio del

Estado de Derecho, el valor de la justicia y la dignidad de la persona humana”.167

A Constituição brasileira também consagra o modelo do Estado

de Direito, mais especificamente, o Estado Democrático de Direito (art. 1º), cuja

essência determina que sejam asseguradas a liberdade individual e a tolerância,

para que se viabilizem os direitos fundamentais. O Estado há de garantir a

libertação de formas de opressão, materializada numa convivência pacífica em

sociedade justa, livre e solidária (art. 3º, I).

Entre as bases do Estado Democrático de Direito, está a

proporcionalidade, que opera como manivela política para a acomodação de

contrapostos interesses que se colocam no jogo da democracia. Dada a intensa

ligação entre o Estado Democrático de Direito e o resguardo dos direitos

humanos, a proporcionalidade decorre também da consagração da dignidade da

pessoa humana (art. 3º, III) e dos demais preceitos inseridos no art. 5º,168 entre os

quais sobressai o devido processo legal, para o qual não basta que o respeito às

restrições de caráter procedimental (procedural due processo of law), mas é

exigível que os direitos e as liberdades estejam protegidos contra qualquer

legislação despida do coeficiente da razoabilidade (substantive due process of

166BverGe 19, 342 (348 et seq.) apud STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos

fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 159-160.

167Sentença do Tribunal Constitucional n. 160/1987, FJ 7 apud CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 127-128.

168Nesse sentido: REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 88, v. 763, p. 415-431, maio 1999.

100

law).169 Por isso, não é dado aos poderes públicos, sob o manto da lei,

restringirem com excesso os direitos, convertendo o Estado Democrático de

Direito em Estado Legalista, que atenta exclusivamente para a forma da lei, sem

perquirir seus efeitos intra (para o direito) e extra-sistêmicos (para a sociedade).

A regra da proporcionalidade não corrói a norma igualmente

constitucional que institui a separação de poderes. Diz Canotilho: “Quando se

solicita a um tribunal que aprecie a legitimidade da busca e apreensão de um

jornal difusor de notícias desfavoráveis ao Governo, não se exige ao juiz que se

arvore em ‘censor’ e ‘administrador negativo’ mas que, através da utilização de

‘standards’ de controlo verifique se a administração se pauta por critérios de

necessidade, proporcionalidade e razoabilidade”.170

No controle da proporcionalidade (controle constitucional), a

atividade jurisdicional não invade esfera dos demais poderes na medida em que

está jungida a certos critérios, como a universalidade (a decisão poderá ser

aplicada em casos semelhantes, em respeito à isonomia),171 a comparação com

leis inseridas no sistema normativo e aceitas como razoáveis, ou os precedentes

jurisprudenciais. Servem, ainda, como base para nortear as decisões, os

parâmetros traçados pelo Tribunal Constitucional alemão: I) quanto mais sensível

se revelar a intromissão da norma na posição jurídica do indivíduo, mais

relevantes hão de ser os interesses da comunidade que com ele colidam; II) o

maior peso e preeminência dos interesses gerais justificam uma interferência

169Esse o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desencadeada por voto do

Ministro Moreira Alves, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 966-4 e 958-3, em 11.05.94. A tendência foi coroada em voto do Ministro Celso de Mello, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.158-8, de 19.12.94.

170CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 263. 171Cf. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. A nova interpretação constitucional:

ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, George Salomão (Org.). op. cit., p. 122-124.

101

mais grave; III) o diverso peso dos direitos fundamentais pode ensejar uma escala

de valores.172

O exposto conjunto de diretrizes - que, no âmbito penal, são

somadas à reserva legal - enfraquece as críticas fundadas na insegurança que a

regra da proporcionalidade traria. Ademais, como arremata Flórez-Valdés, “ni la

seguridad, con ser importante, es la única meta del Derecho, ni siquiera há de

estimarse como la primeira. Indudablemente tiene por encima a la Justicia”.173

A consagração constitucional da proporcionalidade é relevante na

relação entre direito penal e a política. Como explica Palazzo, o direito penal é

“instrumento privilegiado de política e controle social”,174 pois regula as relações

entre o Estado, titular do poder punitivo, e o indivíduo, acusado ou condenado por

agredir os valores sociais. Nesse emaranhado, as normas constitucionais atuam

para impor uma constante e insuperável “exigência de eticidade” ao sistema

punitivo.175 A proporcionalidade, como critério da justa medida, fornece substrato

material para a compreensão humanitária do direito penal.

3.6 A proporcionalidade e os direitos fundamentais

A manipulação genética em sentido amplo ostenta inúmeros

procedimentos dotados de caráter experimental e, por isso, consubstancia

atividade de pesquisa científica, cujo livre exercício foi alçado à categoria de

172Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 86. 173ARCES Y FLÓREZ-VALDÉS, Joaquim. Los principios generales del Derecho y su formulación

constitucional. Madrid: Civitas, 1990. p. 87. 174PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Trad. por Gérson dos Santos.

Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 16. 175Id. Ibid., p. 17.

102

direito fundamental pela Constituição Federal de 1988, nos incisos IX e XIII, do

art. 5º.

Além de interferir na atuação dos cientistas, a evolução genética

repercute na seara dos direitos fundamentais individuais ou coletivos,

consagrados nos arts. 5º e 6º da Constituição. As pesquisas incidem sobre formas

iniciais de vida resultantes da fecundação ou de clonagem, sobre a integridade

física e moral do embrião, do feto ou da pessoa nascida e, finalmente, refletem

sobre a saúde da humanidade presente ou futura.

Esses bens estão plasmados no texto constitucional, espelhando

nossa sociedade multifária, cujos anseios ou valores apontam, muitas vezes, para

pólos antagônicos. Uma análise apressada ou apaixonada dos conflitos pode,

equivocadamente, conduzir à solução errônea: o intérprete seria levado a optar

por um dos direitos, respeitando-o na íntegra, como se, na prática, fosse absoluto.

A resposta estaria calcada na lógica do “tudo ou nada”, que é própria das regras.

Porém, a lógica disjuntiva não se aplica aos direitos fundamentais, eis que, ao

merecerem ótima eficácia e mínima redução, são dotados de natureza

principiológica. Nenhuma conclusão radical, como quer parcela de religiosos ou,

em outra via, como quer parte dos cientistas, mereceria respaldo jurídico-

constitucional.

O exame imparcial e mais delongado do conflito leva a outras

ponderações. Os direitos fundamentais em voga (vida, saúde, liberdade científica)

não contêm limites explícitos, quer por cláusula restritiva direta (imposta

textualmente na própria Constituição), 176 quer por cláusula restritiva indireta

176Exemplo dessa ocorrência está no art. 5º, XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem

armas, em locais abertos ao público”, de modo que o direito de reunião está, desde logo, limitado pela pacificidade e desarmamento do movimento.

103

(delegada, pela Constituição, à lei infraconstitucional).177 Contudo, ao ser aplicado

no caso concreto, o direito fundamental pode entrar em rota de colisão com outro.

O critério hierárquico não se presta para solucionar o conflito, pois

entre as normas constitucionais não há hierarquia material.178 A ruptura do

sistema pelo conflito é evitada pela regra da proporcionalidade, que impulsiona o

balanceamento dos direitos fundamentais, segundo o peso que manifestam um

perante o outro, em face das circunstâncias colocadas no caso. Prevalecerá o

interesse que demonstrar maior valia para a sociedade, sempre sem perder de

vista a preservação do valor da pessoa, de sua dignidade. O outro interesse em

conflito não será minimizado em definitivo, pois, mudando as circunstâncias, o

peso pode ser alterado, com diferente conclusão.

Assim, o direito de liberdade científica inclui, a priori, no âmbito de

sua proteção, a livre atuação. Porém, na sua realização material, tal direito será

submetido à ponderação com outros assentados na Constituição, com os quais

pode colidir: direito à saúde, por exemplo. Se, em dada pesquisa, for

desconsiderado o bem-estar do sujeito-alvo, a saúde prevalecerá sobre a

liberdade científica, uma vez que, num Estado radicado na dignidade humana, a

sociedade prefere o respeito ao indivíduo a novas descobertas. Destarte, se for o

caso de tutela penal, a lei não protegerá a atuação do cientista, mas a integridade

física do paciente.

Na solução do conflito, o intérprete promove a coordenação dos

direitos fundamentais, mais especificamente, a coordenação proporcional, para,

conforme Hesse, gozarem de “eficácia ótima”, de modo que não se “prive uma

177Exemplo dessa hipótese está no direito ao sigilo de comunicação telegráfica ou telefônica que

pode, segundo a Constituição (art. 5º, XII), ser limitado pelos meios eleitos em lei infraconstitucional, respeitado o fim de persecução criminal (Lei n. 9.296, de 1996).

178Nesse sentido: CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1201.

104

garantia jurídico-fundamental mais do que o necessário, ou até completamente,

de sua eficácia na vida da coletividade”.179 Destarte, na hipótese supra, a tutela

da saúde corresponde à medida necessária para banir dispensáveis agressões.

De conseguinte, o limite máximo para restrição a direito

fundamental, quando em conflito com outro, é estabelecido in concreto pela

máxima da proporcionalidade que, figurando como limite dos limites, evita os

abusos ao pautar solução da refrega pela adequação, necessidade e equilíbrio

entre o peso e o significado do direito fundamental para dadas circunstâncias.180

O diálogo entre a regra da proporcionalidade e os direitos

fundamentais é uma constante na esfera penal, onde a pena, ao cercear a

liberdade de trânsito individual, não pode ultrapassar o limite do exigível e idôneo

para a defesa da segurança coletiva. Do contrário, a sanção infiltrar-se-ia

abusivamente no âmbito da dignidade humana.

O equacionamento do conflito punitivo na inusitada esfera da

genética humana é complexo, pois os valores e interesses são múltiplos, pouco

conhecidos e comumente não-consensuais, passo em que a regra da

proporcionalidade, embora não traduza a solução cabal, permite um norte

precioso para o legislador ou para o juiz.

179HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 255-256. 180Esse posicionamento autoriza a conclusão de que o conteúdo essencial do direito fundamental

– núcleo inviolável e essencial para não dissolver o direito – não é auferido abstratamente. Manifesta-se, com contornos palpáveis, tão-somente mediante a aplicação da regra da proporcionalidade. Desse modo, a idéia de proteção ao núcleo essencial tem, como explica Suzana de Toledo Barros, importância meramente retórica, na medida em que, sua concreção, depende de referência a outra norma (BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 98-102).

105

3.7 Conteúdo da regra da proporcionalidade no direito penal

A doutrina e sobretudo a jurisprudência alemã, no exame de

casos alheios ao direito penal, foram pioneiras no estudo do conteúdo da máxima

da proporcionalidade, identificando três sub-regras: I) a adequação; II) a

necessidade ou exigibilidade; III) a proporcionalidade em sentido estrito.181 Em

sentença sobre armazenamento de petróleo, datada de 16 de março de 1971,

pela primeira vez, o Tribunal Constitucional Federal alemão ofereceu uma

conceituação breve, mas precisa, do conteúdo do “princípio”: “el medio previsto

por el legislador tiene que ser adecuado y necesario para alcanzar el objetivo

propuesto. Um médio es adecuado cuado mediante él puede lograrse el resultado

deseado; es necesario cuado el legislador habría podido optar por un medio

distinto, igualmente eficaz que no limitara, o que lo hiciera en menor medida, el

derecho fundamental”. Sobre a proporcionalidade estrita: “en la comparación

entre la gravedad del ataque/injerencia y la importancia de los motivos que lo

justifican ha de aparecer (el ataque) como razonable para el afectado”.182

Sob este prisma, o conteúdo dos juízos da adequação e da

necessidade foi manejado nos mais variados países, na seara do direito

constitucional e do direito administrativo. Em linhas gerais, foi fixado: I) a 181Grande parte da doutrina, ao enunciar o princípio da proporcionalidade, alude exclusivamente

ao subprincípio da proporcionalidade estrita, mas, neste trabalho, sustentamos a existência de proporcionalidade em sentido amplo, seguindo a doutrina majoritária alemã (cf. CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 138). Entre os autores pátrios que aceitam a proporcionalidade em sentido amplo, tripartida em subprincípios: FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito penal no Estado democrático de direito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 101-102; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. passim. Entre os que concebem a proporcionalidade em sentido estrito, está NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 3. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 43. O espanhol Jesús María Silva Sánchez, por sua vez, advoga que a proporcionalidade se concretiza mediante os princípios da proteção de bens jurídicos e da fragmentariedade (SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992. p. 260).

182BverfGE 30, 292, apud CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 66.

106

adequação, idoneidade ou aptidão (Geergnetheit) remete à exigência de que,

dentro do faticamente possível, o meio seja hábil para a promoção da finalidade

perseguida;183 II) a necessidade (Erforderlichkeit) ou menor ingerência possível

reclama que a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio

direito ou de outro direito fundamental, porque não pode ser substituída por outra

menos gravosa e igualmente eficaz para a consecução do objetivo.184

No direito penal, porém, são imperiosas considerações

peculiares. Tendo em mente que sua meta essencial está na proteção subsidiária

dos bens mais importantes perante os ataques mais graves, a noção de bem

ocupa espaço central, em torno da qual as demais são desenvolvidas. Dito isto,

ao serem concretizadas pelo penalista, as sub-regras em tela ganham tonalidade

própria: I) a necessidade penal está presente desde que a medida se preste à

proteção exclusiva de bem jurídico, perante os ataques mais gravosos, e não

sejam suficientes outras formas de tutela menos lesivas à vista dos bens

envolvidos; II) a adequação requer que o direito penal seja apto para a tutela do

bem jurídico (produza a esperada proteção) e para atingir a finalidade última que

persegue (paz social).185

Perfilhando essa lógica, o condicionamento, exposto pelos

cultores de direito público em geral, entre o juízo da adequação e da necessidade

não se estende ao direito penal. A doutrina constitucionalista e a administrativista

advogam que sendo único o meio idôneo, será incondicionalmente necessário e,

183Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 78. Na lição de Gilmar Ferreira Mendes, “o

subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos” (g.n.) (MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 14, cader. 1, 2. quinz. p. 361-372, jul. 2000). Na linguagem de Luís Virgílio Afonso da Silva, basta que o meio funcione, pelo menos, para fomentar o fim (SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 36).

184Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 81. 185Nesse sentido: CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 147.

107

sendo necessário, será inexoravelmente idôneo.186 Em contrapartida, no direito

penal, conquanto haja somente um meio apto a oferecer tutela ao bem, é

imperioso o exame da necessidade, porquanto a proteção será ilegítima se, por

exemplo, o bem não apresentar dignidade penal. Em via oposta, mesmo que a lei

penal corresponda melhor à valia do bem jurídico e à situação de perigo ou de

lesão em que se encontra, não se descarta o exame da idoneidade, posto que a

tutela será, no mínimo, questionável se a massa da sociedade optar pela

impunidade, não aderindo à incriminação legal em respeito a valores

concorrentes, ou se a impunidade implicar impacto social menos negativo do que

o respeito ao ditame legal, em virtude de seus efeitos criminógenos.187

Percebe-se, pois, que, na esfera penal, a máxima da

proporcionalidade assume raios mais amplos, abarcando todo o contexto social

em que a pena incide, o que se explica na exata medida em que o direito em jogo

é dos mais elevados (a liberdade) e a projeção social da pena ou medida de

segurança é, pelo menos em tese, mais drástica do que outra sanção.

A adequação e a necessidade orientam, sobremaneira, a política

criminal, na medida em que permitem que sejam manobradas, com maior

objetividade, a conveniência e a oportunidade da pena ou da medida de

segurança. Na seara jurisdicional, a atuação das sub-regras, embora relevante, é

bem mais restrita, posto que exige a evidência da desproporcionalidade, sob pena

de invasão de competência constitucional atribuída ao administrador ou ao

legislador, com exclusividade.

186O condicionamento foi sintética e precisamente expressado por Gilmar Ferreira Mendes, quem,

citando Pieroth e Schlink, afirma: “apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado” (MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit., p. 371).

187Nessa linha: GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 79-80.

108

Diversamente dos juízos da necessidade e da adequação, que

estão atrelados à otimização com relação às possibilidades fáticas, a

proporcionalidade em sentido estrito (Angemessenheitsprüfung) está relacionada

às possibilidades jurídicas. “O princípio da proporcionalidade em sentido estrito

determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado

por uma disposição normativa e o meio empregado que seja juridicamente o

melhor possível”, como preleciona Willis Santiago Guerra Filho,188 ou, na

linguagem de Luís Virgílio Afonso da Silva, “consiste em sopesamento entre a

intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da

realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção

da medida restritiva”.189

Destaque-se que, diferentemente do juízo da idoneidade penal,

onde a capacidade da pena é avaliada com vistas à prevenção de delitos, a

proporcionalidade estrita reclama a justeza da medida da pena em face da

infração, tanto em termos abstratos (cominação legal) quanto em termos

concretos (sentença condenatória).

188GUERRA Filho, Willis Santiago. op. cit., p. 245. 189SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 40.

109

4. A SUB-REGRA DA NECESSIDADE

4.1 Linhas gerais

Na sociedade contemporânea – laica, pluralista e preocupada com a

dignidade humana –, seria um contra-senso que a mais drástica modalidade de

tutela jurídica almejasse meta transcendental ou, tão-somente, a observância de

certos padrões morais. A delimitação do âmbito da necessidade penal é

impulsionada pela noção de bem jurídico, na medida em que impõe à lei punitiva que

apenas proteja os mais eminentes e em face dos ataques mais gravosos.

Neste passo, quer no plano da política legislativa, quer no da

interpretação das leis penais, a necessidade ou economia das proibições penais190

serve de critério diretivo para o ius puniendi, concretizando-o sob dois aspectos,

quais sejam a exclusiva proteção de bens jurídicos e a intervenção mínima.

4.2 A exclusiva proteção dos bens jurídicos

4.2.1 Considerações preliminares

A noção de bem foi delineada na filosofia sob dois prismas

fundamentais: a) a teoria metafísica, lapidada por Platão, defende que o bem é “a

realidade, mais precisamente a realidade perfeita e suprema, e é desejado como

190Expressão empregada por FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 372.

110

tal”; b) a teoria subjetivista que é o inverso simétrico da anterior, porque o bem

“não é desejado por ser perfeição e realidade, mas é perfeição e realidade por ser

desejado”, conforme Aristóteles. Kant, enveredando para a última corrente,

compreende que o bem só o é em relação ao homem, ou, mais detalhadamente,

em face do interesse determinado pela razão. O filósofo não identifica o bem

puramente com o prazer (aquilo que agrada em si mesmo), na medida em que

vincula seu reconhecimento à valorização conceitual de sua eficiência em relação

a certos fins.191

A teoria do bem jurídico harmoniza-se com a visão aristotélica,

porquanto os bens, efetivamente, não estão prontos e acabados na realidade.

Assumem tal categoria com a projeção da consciência humana sobre o mundo

em que se vive, de modo que representam produto do homem, esboçados a partir

da razão e das necessidades humanas, como preconiza o pensamento kantiano.

A conclusão é evidenciada quando reparada a constante

modificação no conjunto de bens jurídicos: outrora, não eram valiosos, por

exemplo, a seguridade social e o patrimônio ecológico, mas, em função da

revolução industrial e, mais adiante, da revolução científica, ambos adquiriram

importância essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem

contemporâneo em sociedade. Os bens jurídicos flutuam com o perpassar do

tempo ou mesmo entre as comunidades contemporâneas porque, ao lado das

mudanças da natureza, altera-se o sistema de preferências, que parte de

variantes sociais e históricas.

A visão aristotélica, com tonalidade kantiana, foi observada pelos

cultores das ciências humanas, inclusive os penalistas. Para Francisco de Assis

191Cf. ABBAGNANO, Nicola. op. cit., p. 107-109.

111

Toledo, bem é “tudo aquilo que se nos apresenta como digno, útil, necessário e

valioso (...) Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de ‘valor’,

isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são,

‘valem’. Por isso, são, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos

e, pela mesma razão, expostos a certos perigos de ataques e sujeitos a

determinadas lesões”.192 A seguir, o doutrinador pátrio propõe sua conceituação

dos bens jurídicos: “são valores ético-sociais que o direito seleciona, como o

objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam

expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.193

Em suma, o bem jurídico é um interesse tutelado pelo Direito, que

assenta sua relevância no juízo positivo que a comunidade faz incidir sobre um

elemento do mundo em que se vive, onde se travam as relações humanas. Diz-se

a comunidade, não a autoridade, em respeito ao princípio do Estado Democrático

de Direito, que refuta imposições unilaterais. Esta conclusão, bastante aberta,

evidencia que o conceito não está adstrito ao direito penal, pois outros ramos

jurídicos também tutelam interesses e, por isso, é possível afirmar que o bem

jurídico é o gênero do qual o bem jurídico-penal é uma espécie.

O significado material do bem jurídico é o primeiro ponto a ser

estudado para o traçado de limites ao ius puniendi. Para apreciá-lo nas tensas

relações entre a política criminal e a revo lução biológica, será procedida breve

referência à evolução histórica do instituto na seara do direito penal.

192TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

1991. p. 15. 193Id. Ibid., p. 16.

112

4.2.2 Breve evolução histórica

Atribui-se a Birnbaum a noção originária de bem jurídico-penal,

assinalada no artigo Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des

Verbrechens, publicado em 1834, embora a expressão não tenha sido empregada

por ele. Refutando a doutrina iluminista, marcada pelo cunho intersubjetivo, eis

que centrada nos direitos subjetivos, no homem e em suas relações, Birnbaum

transfere a discussão para o mundo exterior e objetivo, onde as “coisas”

destacam-se.194

Para o autor, o bem jurídico transcenderia o Direito, porque “es

dado por la natureza y por el desarollo social”, de sorte que “el derecho y el

Estado solo puede reconocerlos”,195 quando lhes conferem tutela normativa. A

concepção, típica das fases de transição, não abandona o jusnaturalistalismo

anterior (ao remeter a dados da natureza), mas abre-se para o positivismo (ao

consignar a importância decisiva do reconhecimento do bem pelo legislador).

Para Binding, adepto ao discurso positivista-legalista, o bem

jurídico é “tutto ció che agli occhi del legislatore è di valore”.196 Diversamente de

Birnbaum, o bem não seria reconhecido, mas estabelecido dentro do conteúdo da

norma jurídica, de modo imanente a ela. Não era questão de lege ferenda, mas

194O título completo do artigo, aparecido em Archiv des Criminalrechtes, 1834, p. 149 e ss.: Über

das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff der Verbrechens mit besonder Rücksicht auf den Begriff der Ehrenkrännkung, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 51-52.

195Cf. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de derecho penal español: parte general. Barcelona: Ariel, 1984. p. 51.

196Die Normen um ihre Übertretung. Eine Untersuchung über die rechtmässige Handlung um die Arten des Delikts, Bd.1: Normen und Strafgesetze, 4, Aufl., 1922, (Neudruck, 1965), p. 353, apud ANGIONI, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giuridico. Milano: Giuffrè, 1983. p. 79, n. 20.

113

de lege lata.197 A norma constituiria a única e definitiva fonte de revelação do bem

jurídico, o que se assenta na crença da plasticidade das coisas do mundo e da

vida pelo Direito.198 A idéia, com sensíveis nuances, está presente em política

criminal de tendência autoritária, pois infirma o potencial garantista do bem

jurídico, uma vez que seu conteúdo ficaria submetido, completamente, ao Estado-

legislador.

Em outro passo, Franz Von Liszt, partidário da doutrina

naturalista-sociológica, preleciona: “el bien jurídico es el interés jurídicamente

protegido. Todos los bienes jurídicos son intereses vitales del individuo o de la

comunidad. El orden jurídico no crea el interes (...) los intereses vitales resultan

de las relaciones de la vida”.199 Aparta-se de Birnbaum ao despojar-se do

jusnaturalismo, posto que situa a raiz do bem jurídico exclusivamente na realidade

social (relações entre os indivíduos ou entre eles e a sociedade organizada). Não

exclui a construção de Binding ao manter a normatização como última medida

para a elevação do bem da vida à categoria de bem jurídico, com o que

remanesce o juízo de valor do Estado.200

A adesão ao pensamento de Binding, porém, não é integral, eis

que Liszt, mesmo depois da intervenção da lei penal, não espera a “total redução

da heterogeneidade das expressões da realidade”, confiando “mais na

plasticidade reflexiva do direito para responder às exigências de uma realidade

197Cf. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit., p. 53. 198Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 67-69. 199LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. 2. ed. trad. da 20. ed. alemã por Luis Jiménez de

Asúa. Madrid: Reus, 1927. t. 2, p. 2. 200Cf. GOMES, Luiz Flávio. Normas e bem jurídico no direito penal: normas penais primárias e

secundárias, normas valorativas e imperativas, introdução ao princípio da ofensividade, lineamentos da teoria constitucional do fato punível, teoria do bem jurídico-penal, o bem jurídico penal protegido nas falsidades documentais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 78.

114

múltipla e diferente”.201 Dada a prioridade que confere à realidade da vida sobre a

atividade legiferante, Liszt desperta a importância de fundamento social

(extrajurídico) para a legitimação da lei penal.

Para os neokantianos, que surgiram por volta dos anos 20 do

século passado, o bem jurídico é um valor da cultura e o delito é uma infração dos

valores culturais. Entre os partidários, destaca-se Honig (1919), para quem o bem

jurídico é síntese categorial empregada, pelo pensamento jurídico, para captar o

sentido e o fim dos preceitos penais.202 Do exposto, infere-se que o neokantista

transforma o conceito em espécie puramente interpretativa, sem conteúdo

próprio, de maneira que o legislador ficaria livre para a sua seleção.

A erosão da capacidade crítica do conceito de bem jurídico atingiu

o ápice nos anos 30 e 40 do século XX, com o advento do nazismo. O centro do

direito penal foi ocupado por conceitos morais - fidelidade, traição, atitude interior

-, provocando confusão entre ambos, pelo que as penas se reduziram a meio de

tutela da moral estatal. A essência do crime era a violação de dever de obediência

ao Estado, que se amoldava aos interesses do grupo comandante e era

legitimado sob a máscara do “sentimento do povo”.203 A nova ideologia política

(nacional-socialismo) carregou de subje tivismo o ordenamento jurídico alemão,

bem como o italiano, redundando na perda de identidade da noção de bem

jurídico que, mergulhada na fluidez, tornou-se suscetível à conformação com o

direito penal totalitário, como lembra Silva Sánchez. 204

Finda a “Segunda Guerra”, a partir dos anos 50, foram

deflagrados movimentos de reforma penal, em meio aos quais foi reacendida a

201Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 69. 202Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 24-32. 203Cf. DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. op. cit., v. 1, p. 439. 204Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 268.

115

necessidade de racionalização da incriminação ou descriminação de certos

comportamentos. Na busca de critérios para legitimar o poder do legislador

responsável pela lei penal, a noção de bem jurídico foi retomada sob as vestes

das concepções sociológica e constitucionalista, edificadas com o intento de

delinear, decisivamente, as fronteiras materiais do direito-dever estatal de punir.

4.2.3 O enfoque sociológico: a fragilização do conceito

São diversas as concepções sociológicas e, em síntese bastante

simplificada, o ponto comum entre elas, por óbvio, reside na aproximação da

ciência jurídico-penal à sociologia, passo em que o Direito é concebido como

redutor da complexidade e garante da funcionalidade dos sistemas sociais. As

propostas, baseadas na teoria sistêmica de Niklas Luhmann,205 não se atêm ao

conceito de bem jurídico, substituindo-o por outros, que são coroados como idéia

central para a justificativa da intervenção pena l.

Entre os partidários do enfoque, está Kunt Amelung, quem

rechaça o conceito de bem jurídico, porque, sob sua ótica, estaria enraizado em

parâmetros arbitrariamente eleitos pelo legislador, o que significaria “abrir porta a

um direito penal irracional e restauracionista, à margem de todo o controle

social”.206 Por isso, procura padrão alternativo para legitimar a intervenção penal,

205Luhmann foi responsável por importar, para as ciências humanas, a teoria autopoiética

desenvolvida pelos biólogos chilenos Maturana e Varela. A teoria sustenta, em apertada síntese, que a sociedade é um complexo sistema, formado por vários sistemas parciais, entre os quais o político e o jurídico. A ordem de cada um dos sistemas, fundamental para a sua preservação, exige clausura operativa (auto-reprodução) e abertura cognitiva (irritações externas interferem no sistema). Sobre o tema: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão. São Paulo: Max Limonad, 2002; GUERRA FILHO, Willis Santiago. A autopoiese do direito na sociedade pós-moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

206Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 5-6, apud ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 96.

116

passo em que advoga que os contornos materiais do ius puniendi são habilmente

determinados pelo critério da danosidade social: ”Enquanto a doutrina iluminista

da danosidade social se orienta para uma reflexão, em última instância

sociológica, sobre as condições da convivência humana, a doutrina da proteção

de bens jurídicos rompe de forma decisionística com tal reflexão. O decisivo para

a constituição do bem jurídico é um momento volitivo. Os bens jurídicos nascem

de um ato de valoração cujo objeto é estabelecido pelo legislador”.207

Parte de uma representação sistêmica da sociedade, a qual, para

sobreviver, cria estruturas cujos elementos têm função social definida, qual seja a

manutenção do sistema, pelo que são ditos funcionais. “Disfucionalidad es, por el

contrario, un fenómeno que amenaza a la subsistencia del sistema”.208 Associa a

funcionalidade sistêmica à danosidade social: “socialmente danoso é (...) uma

manifestação de disfuncionalidade, um fenónemo social que impede ou dificulta a

superação pelo sistema social dos problemas de sobrevivência e manutenção.

Tais fenónemos sociais podem revestir as formas mais diversificadas (...). O crime

é apenas uma forma especial dos fenômenos disfuncionais e, em geral, o mais

perigoso. O crime é disfuncional enquanto violação de uma norma

institucionalizada (déviance), indispensável para a solução dos problemas do

sistema, já que põe em questão a vigência de normas que podem contribuir de

alguma forma para esta tarefa. A função do Direito Penal, como mecanismo de

controlo social é, assim, a de contrariar o crime”.209

207Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 5-6, apud

ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 96 208Amelung, op. cit., p. 358, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime: uma

perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p. 92.

209Amelung, op. cit., p. 361, apud ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 97.

117

De um lado, a construção de Amelung tem o mérito de enfatizar o

diálogo travado entre o direito penal e o intrincado sistema pelo qual a sociedade

pretende organizar-se e manter-se. De outra banda, contém argumentos bastante

censuráveis. Com efeito, a construção acentua o risco de subalternização da

pessoa, na medida em que prefere o social ao individual.210 Diz Amelung: “Uma

vez que toda a solução de problemas tem os seus custos, é pensável a solução

de um problema do sistema à custa da tutela da pessoa e, se necessário,

mediante o sacrifício da existência dos cidadãos individuais”.211 Esse raciocínio

não exclui práticas eugênicas negativas, como a dizimação de embriões que

escapem do padrão cultural de normalidade, para a “melhoria” da espécie.

Outrossim, a neutralidade política do enfoque - nada diz sobre a

forma pela qual a sociedade deva organizar-se e muito mesmo sobre os valores

que a regem - reduz o crime a uma conceituação formal: fato disfuncional. Não

edifica uma barreira que impeça a proteção de valores puramente morais ou, mais

comum nos dias atuais, de estratégia política, permitindo que estes sejam

estimados como funcionais para dada sociedade,212 caso em que seria retomada

a tônica repressiva que impregnava o sistema penal no Estado absolutista ou o

subjetivismo do nacional-socialismo. A incerteza axiológica, ao tornar a teoria apta

a amoldar-se a qualquer regime político-social, nulifica o original intento crítico-

limitativo.

O vazio substancial em que é posto o delito conduz Amelung,

contrariamente ao que esperava, a admitir que sua doutrina não exclui, mas

210Nesse sentido: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo,

cit., p. 269. 211Amelung, op. cit., p. 363, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 93. 212Nessa linha: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo,

cit., p. 269; CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 175.

118

complementa o conceito de bem jurídico. Segundo o autor, cabe à danosidade

social fornecer subsídios para a meditação acerca das condições funcionais da

ordenação social, enquanto a decisão fundamental sobre os objetos de tutela

penal remanesce nas mãos do legislador. Novamente de maneira inusitada, para

coibir excessos que sufoquem o individual em nome do coletivo, Amelung admite

a incidência de limites jurídicos que advêm, frise-se, da Constituição de Bonn

(arts. 1 e 2), sobretudo do respeito à dignidade humana.213

Também Jakobs substitui o conceito de bem jurídico pelo preceito

da danosidade social, mas, de modo inovador, defende a “renormativização dos

conceitos”, quando coloca, cuidadosamente, a realidade sociológica entre

parênteses. Após sustentar que não é possível determinar com rigor os contornos

do socialmente danoso, compreende a danosidade social como referência de

intencionalidade última, não assumindo relevância dogmática autônoma. “Pelo

contrário são as normas – consideradas apenas em sua vigência e validade,

abstraindo o conteúdo – que aparecem no primeiro plano. São, aliás, as normas

que significativamente o autor concebe como bens jurídico-penais”, como explica

Costa Andrade.214

Nas palavras do funcionalista, “la tarea del derecho penal no puede

ser vista en impedir la lesión de bienes jurídicos. Su función es, en cambio, la

confirmación de la validez de la norma, en lo que lo validez es equiparable a

reconocimiento (...). Función de la pena es el mantenimiento de la norma como modelo

213Nesse sentido: CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 93; FIANDACA, Giovanni. O

‘bem jurídico’ como problema teórico e como critério de política criminal. Trad. por Heloisa Estellita Salomão. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 776,p. 424, jun. 2000.

214ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 114.

119

de orientación para la relación social. El contenido de la pena es una contradicción de

la negación de la autoridad de la norma, a costa del infractor de la misma”.215

A disfuncionalidade do delito não reside na lesão ao bem jurídico,

senão na expressão simbólica de infidelidade às normas (quaisquer que sejam).

Puramente normativista, o pensamento compreende o crime como conduta

qualitativamente idêntica a outro comportamento que vulnere a validade e

vigência das normas. A pena seria mais uma instituição para reforçar o

mandamento legal, na medida em que estabiliza as expectativas normativas e

reforça a confiança no Direito.

Infere-se que, embora Jakobs explique a razão imediata da pena,

não esclarece o motivo essencial pelo qual recorre a ela, não a outros meios de

controle concorrentes. Assim, como em Amelung, a presente construção mantém

aberta a possibilidade de sua adaptação a qualquer política criminal, mesmo

àquelas que promovam a expansão desmedida do direito penal. Diz

Schünemann: “la aportación del pensamiento penal de Jakobs consiste en cierto

modo en la apertura de todas las compuertas a las meras decisiones” que, sem

preocupação valorativa, são tomadas sob o pressuposto de modernização do

direito penal.216

Os abusos tendem à acentuação nos tempos modernos, onde a

violência e a insegurança rodam a sociedade, o que impulsiona o legislador, nem

215Günther Jakobs, Strafretch Allgemeiner Teil, Berlim, 1983, p. 7, apud BARATTA, Alessandro.

Integracion-prevencion: una ‘nueva’ fundamentación de la pena dentro de la teoría sistemica. Trad. por Emilio Garcia-Mendez e Emirio Sandoval Huertas. Cuadernos de Política Criminal, Madrid, n. 24, p. 541, 1984.

216SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana. Trad. por Manuel Cancio Meliá. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 49, fasc. 1, p. 209, ene./abr. 1996.

120

sempre bem preparado para representar o povo,217 a acolher os reclamos

maciços pela incriminação provenientes da vulnerável opinião pública, pendendo

para a intensificação desmensurada da legislação penal. Estimula-se a dissolução

ao respeito da dignidade da pessoa humana, pois os direitos individuais poderão

ser arranhados pelos excessos da lei penal, não obstante a irrelevância do

comportamento ou da suficiência de outros meios de tutela.

A tese de Jacoks, por exemplo, permitiria que fosse

obstacularizado o progresso científico, mediante a proliferação de tipos penais

incriminadores de atividades de pesquisa, inclusive em ações terapêuticas, os

quais, sem preocupação com a tutela de bens jurídicos essenciais, procurariam

convalidar padrões de funcionamento sistêmico aceitos pelos grupos dominantes.

É o que ocorre na Itália, onde o uso de gametas de terceiros é equiparado ao

adultério.

Ponderadas tais colocações, tem-se que a substituição do bem

jurídico pela danosidade social ou pela validade das normas, conquanto relacione

a tutela jurídica à ordem social, suscita grandes reservas e conduz a mau uso do

direito penal, incluindo seu retrocesso à proteção da moral dos grupos detentores

do poder. As falhas do enfoque reanimam a importância da noção de bem

jurídico, restando, para eliminar as investidas subjetivas, a eleição de um

elemento externo ao sistema punitivo que lhe direcione, servindo-lhe de

fundamento, donde surge a postura constitucionalista.

217O povo sinaliza para contexto humano mais abrangente do que a massa popular, pois remete

às tradições dos antepassados, aos presentes e aos seres vindouros.

121

4.2.4 O enfoque constitucional: a recuperação do conceito

Na investigação do limite material do ius puniendi, a doutrina

alemã e a italiana, desde o início dos anos 70, evidenciam a necessidade de

operar com um instrumento idôneo, externo e superior, para servir de

mediatizador na captação dos bens jurídicos, com vistas a banir escolhas

substancialmente arbitrárias. Nesta busca, muitos juristas elegeram a

Constituição.218 O acerto é manifesto, pois as normas constitucionais, firmando

raízes na vivência social, consagram positivamente valores essenciais e modelam

programas fundamentais de determinada comunidade num dado tempo, brilhando

como “esfera de justiça”.219

Aliás, a observância dos ditames constitucionais em qualquer

ramo jurídico é natural, pois, elaborada pelo povo (poder constituinte), a Carta

Política, pelo menos teoricamente, incorpora consenso social praticamente

ilimitado, pelo que, se não concordam, os destinatários conformam-se com seu

sentido, amoldando a ele os comportamentos.

Os constitucionalistas distinguem-se em estritos e amplos.

Segundo a corrente estrita, a Constituição delimita, na íntegra, o

direito penal. O objeto da tutela penal é deduzido diretamente da Constituição que

atua como um pré-dado ao legislador ordinário. Para Bricola, um dos partidários,

a Constituição é o instrumento capaz de ofertar um catálogo de bens

merecedores de tutela e também de estabelecer uma hierarquia de valores. Em

sua construção, o elemento central está sediado no art. 13, da Constituição

italiana, que declara a inviolabilidade da liberdade, donde o jurista deduz que a 218Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 148, n. 113. 219A expressão é de CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1080.

122

sanção penal pode ser adotada somente em presença da violação de um bem,

senão de igual grau relativamente ao valor sacrificado, ao menos dotado de

relevância constitucional, âmbito em que se compreendem os valores explícitos,

implícitos e, até mesmo, os instrumentais (privados em si de relevância

constitucional, mas ligados a um valor constitucional por relação de

pressuposição necessária). 220

A tese foi rebatida pela doutrina. Objeta-se que a natural

mutabilidade dos bens jurídicos não seria acompanhada pelo catálogo de bens

constitucionais que, envelhecido, restaria abandonado pela disparidade com a

realidade. Contudo, a mudança de bens jurídicos não é rápida. Além disso, a

possibilidade interpretativa de serem reconhecidos bens implícitos ou conexos

minimiza eventuais falhas na esperada cobertura recíproca.

Outras críticas são colocadas e, desta feita, mais difíceis de

serem refutadas. A textura aberta do sistema constitucional, que é própria do

Estado Democrático de Direito, impede a pretendida relação de identidade total

entre a Constituição e o direito penal. Explica Konrad Hesse que a Constituição é

obra incompleta e inacabada, porquanto não regula todas as matérias, nem

mesmo as penais, e permanece, por meio da interpretação, em constante

adaptação para acompanhar dinamicidade da vida, permeável ao decurso do

tempo.221 “Il testo costituzionale non è né uma tavola logaritimica che consenta

sveltamente di trovare soluzioni e risutalti, né um deus ex machina che conduca

per mano all’epilogo desiderato”, complementa Francesco Angioni.222 “Significa

220Franco Bricola, Teoria generale del reato, in: Novissimo Digesto Italiano, XIX, Ed. Torinese, p.

14 e seguinte, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 169-174; apud PALAZZO, Francesco. op. cit., p. 85-86.

221Cf. HESSE, Konrad. op. cit., p. 19. 222ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 157.

123

che non tutto é deciso e vincolato in rigide tavole di valori, ma che vi sono

questioni lasciate consapevolmente aperte, e spazi per um processo político

libero”, como assevera Domenico Pulitanò.223

Posto isto, foi edificada a postura constitucionalista ampla que

compreende a Constituição não como estatuto que vincula a escolha dos bens

jurídico-penais, mas como marco de referência. Ela divide-se em dois grupos.

Para a primeira parcela, a Constituição funciona como quadro

normativo onde estão os princípios sintetizadores de uma unidade mínima de

sentido, como o princípio do Estado de Direito Democrático. O legislador está

proibido de ferir esse espírito estatal, base da liberdade e igualdade, mas, além

desta área, lhe é resguardo vasto espaço livre.224 Nas palavras de Toledo Y

Ubieto: “la condición de limite del bien jurídico... procede de la condición

democrática del Estado”,225 o que é arrematado pelos dizeres de Dolcini e

Marinucci: “a Constituição, se, por um lado, vincula o legislador ordinário a

adoptar um modelo formalmente liberal de direito penal (...) por outro lado, tem

pouco a dizer no plano dos conteúdos das normas incriminadoras”.226

Para o segundo grupo, a referência à Constituição concretiza-se

pela conformidade entre os bens tutelados pelo direito penal e o sistema completo

de valores constitucionais. Nesta égide, Jorge de Figueiredo Dias entende que,

“entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal –

223PULITANÒ, Domenico. Obblighi Costituzionali di Tutela Penale? Rivista Italiana di Diritto e

Proceduta Penale, Milano, ano 26, p. 498-499, 1983. 224Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 129. São partidários do pensamento Roxin,

Sax, Rudolphi, Michael Marx. 225TOLEDO Y UBIETO, Octavio de. Función y límites del principio de exclusiva protección de

bienes jurídicos. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 43, fasc. 1, p. 9, jan./abr. 1990.

226DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Trad. por José de Faria Costa. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc.1, p. 191, jan./mar. 1994.

124

dos bens jurídicos tem por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua

referência. Relação que não será de ‘identidade’, ou mesmo só de ‘recíproca

cobertura’, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência

de sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins. Correspondência que

deriva, ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório

de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da actividade punitiva do

Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo direito

penal devem considerar-se concretização dos valores constitucionais expressa ou

implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só

por ela, em definitivo – que os bens jurídicos se ‘transformam’ em bens jurídicos

dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal”.227

A teoria estrita não exclui a ampla. Ajustam-se ao primeiro modelo

as disposições constitucionais que expressam bens jurídicos e, explícita ou

implicitamente, reclamam tutela penal. A Constituição de 1988, por exemplo,

exige expressamente proteção penal para a tutela ambiental e, de forma implícita,

para a integridade física e moral quando bane os tratamentos desumanos ou

cruéis. Contudo, a teoria estrita não responde a todos os casos de intervenção

penal. Na Constituição italiana, por exemplo, não há menção ao meio ambiente, o

qual, porém, não carece de dignidade penal no ordenamento respectivo,

porquanto encontra seu fundamento analógico na proteção atribuída à vida em

geral, na medida em que configura o substrato necessário para boa qualidade de

existência das espécies em geral e do planeta ou, em situações mais drásticas,

para a própria sobrevivência dos seres vivos o que, instintivamente, interessa a

cada um e a todos. De igual modo, nos delitos contra a fé pública, é protegida a

227DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões do direito penal revisitadas. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1999. p. 67.

125

confiança dos cidadãos na autenticidade ou veracidade de dado meio de prova,

bem despido de relevância expressa ou implícita na Constituição pátria, mas

dotado de correspondência de sentido e de fim com a fração do sistema

constitucional que, versando sobre segurança jurídica, impõe que as relações

sejam razoavelmente disciplinadas e que permitam expectativas sociais quanto à

sua certeza, calcada, inclusive, em instrumentos probatórios públicos. Para estes

casos, a teoria constitucional ampla confere o respaldo necessário para legitimar

a tutela penal, eis que, em ambos, há harmonia entre o valor protegido e o

sistema axiológico-constitucional.

Desde logo, impende salientar que a influência constitucional no

direito penal não é fator que encerra a fixação de limites ao direito de punir.

Explicam Dolcini e Marinucci que “as normas citadas [constitucionais] vinculam o

legislador ordinário, e os outros poderes públicos, a garantir, tutela, proteger o

bem, ou então a proibir, vetar ou reprimir ofensas, mas nenhuma prescreve o

modo como deverá realizar-se a tutela ou a repressão: cabe ao legislador

ordinário, e aos outros poderes públicos, no exercício da discricionariedade, a

escolha dos meios mais adequados aos deveres de tutela e repressão”. 228

4.2.5 Nossa posição

O bem jurídico não é, a priori, puro de valor, como adverte Aníbal

Bruno,229 nem está pronto no mundo naturalista como um dado. Decorre de

experiências concretas em que é aferida a utilidade de elementos corpóreos e

228DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, cit.,

p. 179-180. 229BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. 1, p. 17, n. 6.

126

incorpóreos que integram as relações humanas. Representa, pois, o interesse da

vida, de modo que não é criado pelo Direito, mas reconhecido. A sedimentação

das raízes do conceito no mundo social foi acentuada pela teoria sociológica,

sendo essa sua contribuição.

Porém, nem todos os interesses da vida são protegidos pelo

direito penal, porque este ramo está adstrito aos essenciais. É reclamada uma

filtragem, que é operada pela Constituição, instrumento hábil na medida em que

sintetiza objetivamente os anseios do povo e seus valores mais eminentes. A

Constituição presta-se a excluir do âmbito do direito penal os bens que não

condicionam a organização política e social nem a legítima realização de cada um

de seus membros. Feita a eliminação, restam os bens dignos de tutela penal. Eis

a contribuição decisiva do enfoque constitucionalista.

A Carta Política racionaliza a seleção dos ditos bens de maneira

expressa, implícita ou, até mesmo, mediante simples correspondência de sentido

e de fim, eis que não rege categoricamente todas as relações humanas nem

poderia, sob pena de perder a abertura que mantém com o sistema social e,

assim, a dinamicidade de seu quadro normativo. Esta perda redundaria em

reclamos constantes por ajustes normativos para adequação às inevitáveis

mudanças e, se atendidos, implicariam amargo enfraquecimento da credibilidade

do documento como retrato mais fiel do povo de um Estado.

No mecanismo de filtragem, as normas constitucionais atuam sob

três formas: I) obrigam a punição por meio de disposições expressas de

criminalização, como ocorre com os crimes de tortura, tráfico ilícito de

entorpecentes, terrorismo (art. 5º, XLIII) e contra o meio ambiente (art. 225,

127

§3º);230 II) proíbem a proteção criminal de certas posturas, tais como daquelas

que encarnam a negativa de liberdade de consciência e de crença; III) sujeitam à

oportunidade e à conveniência do legislador ordinário a tute la criminal de bens

constitucionais expressos (vida, liberdade, propriedade), de bens implícitos

(integridade física) e, graças à sua abertura normativa, de outros que nela

encontrem referencial analógico (fé pública).

No juízo de conveniência e oportunidade, o legislador pode

compreender suficiente a tutela administrativa ou o resguardo por meios não-

jurídicos. Portanto, a obtenção do bem digno de tutela penal não encerra os

limites para a intervenção penal. É indispensável prosseguir no exame de outros

parâmetros, quando se depara com a idéia da intervenção mínima.

4.3 A intervenção mínima

4.3.1 Os postulados: a fragmentariedade e a subsidiariedade

A intervenção mínima estabelece que o “Direito Penal só deve

atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos

homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos

gravosa”.231 Impulsionado pelo movimento Iluminista, que marca a passagem do

Estado absolutista para o Estado de Direito, a idéia foi consagrada textualmente

no século XVIII, pelo art. 8º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

230Trata-se da denominada obrigação constitucional de tutela. 231LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princ ípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed.

Revista dos Tribunais, 1999. p. 92.

128

de 1789: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente

necessárias”.

Segundo Luiz Luigi, a noção de intervenção mínima está implícita

na Constituição brasileira de 1988, sobretudo em face da consagração da

dignidade humana como fundamento do Estado,232 e cujos postulados são a

fragmentariedade e a subsidiariedade.233

A fragmentariedade restringe a tutela penal às ofensas

intoleráveis aos bens jurídicos, ou seja, efetivamente lesivas à vida social, em

especial à segurança coletiva e à liberdade individual, entre as quais estão vários

comportamentos externados pela tecnologia genética. O conceito refuta a postura

exclusivamente retributiva das penas, posto que esta consideraria uma falha a

falta de castigo a todas as condutas ofensivas a bens jurídicos.

A subsidiariedade significa que o direito penal é a ultima ratio,

remédio extremo, que atua ante a insuficiência de todas as demais modalidades

de controle social: “o Direito Penal não deve ser um ‘remendo’ de desajustes

sociais incipientes, mas sim o último recurso da comunidade”.234 Preconiza que o

direito penal não é o único meio de proteção social, havendo, simultaneamente,

mecanismos distintos, menos lesivos ao cidadão e, por vezes, mais eficazes.

Rechaça, portanto, toda política social que escolha um meio mais grave, quando

os mesmos ou melhores resultados são esperáveis de meios mais suaves.235

232Cf. LUIGI, Luis. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 26. 233Nesse sentido: CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 223; FERRARI, Eduardo Reale. op. cit., p.

107-108. De modo mais restrito, outros autores limitam o princípio à subsidiariedade, ou ao caráter de ultima ratio do Direito Penal, tais como: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1, p. 11; NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 41.

234CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 216.

235Cf. MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. 2. ed. Montevideo-Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2003. p. 109.

129

A subsidiariedade e a fragmentariedade delimitam a função

primária do direito penal, que não corresponde à exclusiva tutela de bens jurídico-

penais, mas à exclusiva tutela subsidiária de bens jurídicos. Além disso, em

respeito à mínima intervenção penal e à máxima liberdade, associadas à

segurança jurídica que reclama a taxatividade penal, o bem jurídico-penal

demanda contornos precisos.

Diante das condições atuais da sociedade em que transitam

novos e inusitados riscos, deflagrados inclusive pelos avanços tecnológicos, que

são comuns no campo da biomedicina, a capacidade preventiva do Direito penal é

questionada, quando a noção da intervenção mínima é analisada sob prismas

diametralmente diferentes.

Sob o enfoque tradicionalista, partilhado nomeadamente pelos

adeptos da Escola alemã de Frankfurt, a preservação da mínima intervenção

demanda a retirada do direito penal da zona de medidas destinadas à

salvaguarda das gerações futuras perante os riscos advindos da revolução

tecnológica ou do modo difuso de produção da sociedade pós-industrial. Herzog,

um dos representantes do movimento, defende que a equiparação do direito

penal a um programa regulador de situação de perigo enseja problemas que,

sintetizados por Gunter Teubner, consistem no “trilema regulador”

(Regulatorisches Trilemma): I) mútua indiferença entre o Direito e a sociedade,

dada a banalização das leis pelo excessivo volume; II) desintegração social pelo

Direito, com a perda da consciência sobre a necessidade de modelos extrapenais

ou até mesmo extrajurídicos para a solução do problema; III) desintegração do

130

Direito pela sociedade, mediante maciças demandas oportunistas pela regulação

penal da matéria.236

Hassemer, também partidário da Escola de Frankfurt, após

acentuar o déficit crônico de realização prática do direito penal perante os riscos

contemporâneos que, difusos e universais, seriam impermeáveis aos postulados

individualistas, propõe a bipartição do controle jurídico em: I) direito penal básico

que seria destinado à proteção dos bens jurídicos individuais e de situações

evidentes de grave perigo (incêndio, condução de veículo sob o efeito de bebida

alcoólica), com normas erigidas sob as garantias liberais clássicas

(individualistas); II) direito de intervenção que se voltaria às respostas para as

modernas demandas da sociedade de risco, a ser postado entre o direito penal e

o direito sancionatório administrativo, entre o direito civil e o direito público, com

normas dotadas de garantias e formalidades de menor intensidade do que as

pertinentes ao Direito Penal.237

Em que pese o respeito a essa proposta da doutrina alemã, ela

legitima um contra-senso, porque, em última análise, autoriza, por exemplo, que o

direito penal proteja a propriedade contra o furto e, ao mesmo tempo, não

participe das garantias de condições de vida das gerações futuras, nos casos em

que presentes perigos intoleráveis para o planeta e para as espécies, como na

seara ecológica.

Neste passo, é precisa a reflexão de Schünemann: “pues ¿ en

qué ámbito podriá ser más imprescindible e acto de legítima defensa de la

236Cf. HERZOG, Felix. Límites al control penal de los riesgos sociales. Trad. de Elena Larrauri

Ijoan y Fernando Pérez Alvarez, trad. por Elena Larrauri Pijoan e Fernando Pérez Alvarez. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 46, fasc. 1, p. 319-320, ene./abr. 1993.

237HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en derecho penal. Trad. por Francisco Muñoz Conde y Maria del Mar Días Pita. Valencia: Tirant to Blanch, 1999. p. 67-72.

131

sociedad que en última instancia es el Derecho penal que para el aseguramiento

de las bases de la supervivencia de la Humanidad?238 E complementa: “Pues, ¿

como va a justificarse la ulterior persecusión intensa de la criminalidad aventurera

y de miseria, si se cierran los ojos frente a las necesidades de la persecución

efectiva de la criminalidad organizada moderna, generando de este modo una

presión desigual en la persecución, en perjuicio de aquellas formas de

criminalidad que en el fondo son menos graves?”.239

Proteger penalmente interesses individuais e recusar a mesma

tutela a interesses que colocam em xeque a humanidade significa “nada menos

que pôr o princípio jurídico-penal da subsidiariedade ou de ultima ratio de pernas

para o ar”, adverte Jorge de Figueiredo Dias.240 A dimensão global e irreversível

de certos riscos que a moderna tecnologia impõe não pode ser ignorada. “É hora

do Direito Penal sair do plano das abstrações para atender as necessidades reais

dos homens”.241

Imperiosa, portanto, a releitura do conteúdo da intervenção

mínima, mas desta feita efetivada mediante lente realista, consoante o contexto

vivenciado pela sociedade atual, que demanda a acentuação da tônica penal

preventiva. Não é possível que o direito penal permaneça apegado à dogmática

repressiva, vigente nos séculos passados, onde o embrião, o genoma, a espécie

humana ou mesmo as condições mínimas de preservação da vida na Terra não

eram ameaçados, em função do atraso científico, ou, pelo menos, quando as

238SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 197. 239SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 203. 240DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina

penal, cit., p. 167. 241CERVINI, Raúl. op. cit., p. 224.

132

ameaças eram ignoradas pela consciência comum, em razão da abundância de

recursos ou da falta de conhecimento técnico.

O novo enfoque não coloca em crise o postulado da intervenção

mínima desde que haja equilíbrio no campo da incriminação e da

descriminalização. Caberá, lembra Mantovani, “a redescoberta, por parte do

legislador, da irredutível diferença entre o ‘agir’ e o ‘agitar-se’, cuja ignorância

originou, nestes decênios, e continua a originar, tantos descaminhos, intelectuais

e operativos, no plano político-criminal”.242

Devem, pois, ser reduzidas as investidas em certas áreas, não

obstante seja necessário destemor para o enfretamento de fundamentalismos

religiosos ou de interesses eleitoreiros. Em outros campos, exige-se a

antecipação das barreiras do direito penal, pois transitam interesses fundamentais

para o desenvolvimento natural e digno da pessoa e da espécie humana, quando

a legislação penal desempenha papel único, em virtude de seu especial potencial

de intimidação e dissuasão.

De qualquer modo, em searas multidisciplinares, como o meio

ambiente e a biotecnologia, a legitimidade da tutela penal restringe-se à

operatividade em segunda linha, quer dizer, de maneira acessória às regras

extrapenais, nas quais é regulada, com especificidade, a configuração dos

pressupostos fáticos das condutas.

242MANTOVANI, Ferrando. Sobre a exigência perene da codificação. Trad. por Cristina Líbano

Monteiro. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, n. 2, p. 145, jan./mar. 1995.

133

4.3.2 A concretização: os conceitos de dignidade e carência de tutela penal

Ao optar pela tutela penal ante outros meios de controle social, a

atividade legislativa é operacionalizada concretamente por intermédio dos

conceitos de dignidade e carência de tutela penal, como percebeu Franz Von

Lizst: “si el Derecho tiene como misión principal el amparo de los intereses de la

vida humana, el derecho penal tiene como misión peculiar la defesa más enérgica

de los intereses especialmente dignos y necesitados de proteción por médio de la

amenaza y ejecución de la pena, considerada como un mal contra el

delincuente”.243

A dignidade penal, noção essencialmente valorativa, está

presente quando a conduta vulnera valores essenciais à preservação da

convivência humana pacífica e à realização individual e causa reprovabilidade

social suficiente para justificar a mais grave intervenção. Ao considerar a

importância do bem jurídico e o grau do ataque, a dignidade penal acolhe a idéia

retratada pela fragmentariedade penal.

Nas palavras de Manuel da Costa Andrade, “o juízo de dignidade

penal implica um limiar qualificado de danosidade ou de perturbação e abalo

sociais”.244 Prossegue o autor, explicando que, no plano trans-sistemático, a

dignidade penal assegura a eficácia do mandamento constitucional de que

somente os bens eminentes devem gozar de proteção penal. No plano axiológico-

teleológico, o juízo privilegia dois referentes materiais, que são a dignidade do

243LISZT, Franz von. op. cit., t. 2, p. 5. 244ANDRADE, Manuel da Costa. A ‘dignidade penal’ e a ‘carência de tutela penal’ como

referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 1, p. 185, jan./mar. 1992.

134

bem jurídico e a danosidade social da conduta, enquanto lesão ou perigo para o

bem jurídico. No plano jurídico-sistemático, distingue o ilícito penal dos demais.245

A dignidade penal de um bem jurídico não é, por vezes,

demonstrada em função do quantum da pena, mas do qualificativo social que ela

assume. Uma multa administrativa pode atingir valor mais elevado do que uma

multa penal, mas a reprovação desta será, ou pelo menos se espera que seja,

mais intensa em função da representação social criada em torno do direito penal

e de seu ritual.

O conceito não é decisivo. Mesmo que o bem esteja protegido

pela Constituição, ressalvadas suas cláusulas de criminalização obrigatória, a via

civil ou a administrativa podem ser suficientes para a tutela , como outrora

exposto. Servindo para excluir do âmbito penal os bens de pouca valia ou as

lesões insignificantes, a legitimação negativa, mediatizada pela dignidade, é

complementada pela legitimação positiva, que se consubstancia no conceito de

carência de tutela penal, nomeadamente pragmático e expresso em duplo juízo:

juízo de necessidade, quer dizer, ausência de alternativa mais eficaz de tutela

(juízo prognóstico sobre as possibilidades de controle social), e, após, juízo de

idoneidade do direito penal para assegurar a tutela do bem, com comparação

entre os custos da pena (sacrifício imposto a outros bens) e os benefícios.246 247

No primeiro (necessidade), está consubstanciada a noção de subsidiariedade e,

no segundo (adequação), a respectiva sub-regra da proporcionalidade que será

estudada.

245Id. Ibid., p. 184-185. 246ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 186. 247Jesús María Silva Sánchez vincula o merecimento a considerações de justiça (valorativa) e a

necessidade penal à satisfação em termos de utilidade social (Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 288-290).

135

Embora os juízos da dignidade e carência penal sejam

complementares, os mesmos não são estanques. Por exemplo, no homicídio, não

é questionada a carência de tutela penal, compreendendo-se tacitamente que, em

razão da importância do valor protegido e da gravidade da lesão, são irrisórias as

sanções civis. Em contrapartida, a reduzida danosidade social de uma conduta

indica a desnecessidade de tutela penal, como no adultério.

Diante disto, é possível reconhecer tendencial confluência entre o

elevado valor de um bem jurídico e o grau significativo do ataque, de um lado, e a

carência de tutela penal, de outro, o mesmo ocorrendo na hipótese inversa. São

casos em que, como assevera Maria da Conceição Ferreira da Cunha, se revela

uma “intensa interpenetração das duas categorias fundamentais da

criminalidade”,248 prestando-se a pena a reforçar a consciência da relevância dos

bens jurídicos, atuando como coadjuvante na luta contra a criminalidade futura.

Não há, porém, correspondência absoluta, eis que outra orientação pode provir de

circunstâncias específicas.

4.3.3 As funções do direito penal

A função social primária da norma penal está, repise-se, na

proteção subsidiária de bens jurídicos para possibilitar a vida em comum. Sem

prejuízo, a tipificação penal permite a concretização de outras funções que se

tripartem em promocional, simbólica e de satisfação das necessidades da

psicologia social.249

248CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 347 e 226-229. 249Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit.,

p. 298-299.

136

4.3.3.1 A função promocional

A função promocional da norma penal é concebida sob duas

perspectivas. Para a primeira, ao direito penal compete a consagração de

princípios éticos básicos (“mínimo ético”), propagando a “força configuradora dos

costumes” (expressão de Welzel), quando assume missão moralizadora ao lado

de tantas outras instâncias sociais.

Separando direito e moral, a segunda corrente abstém-se de

conotações moralizantes, para destacar o amplo efeito da norma penal sobre a

psicologia social, na medida em que a qualificação de um comportamento como

criminal estabeleceria ou confirmaria o símbolo da mais grave reprovação

jurídica.250 Mir Puig alude a integração do superego pelas normas e, entre elas,

destaca a penal, que atua em dois níveis. Em primeiro lugar, ao cominar a pena, a

norma dirige ameaça à coletividade, o que tende a motivar a adequação dos

cidadãos ao Direito. Em segundo e principal plano, as normas penais motivam

porque, em regra, clarificam a desvalia do comportamento e, assim, permitem

internalização do conteúdo normativo, operando menos pelo medo e mais pela

aceitação.251

Ambas as perspectivas conduzem a um ponto comum: a função

ético-social contribui para conscientizar ou reforçar a conscientização a respeito

da máxima importância de certos valores suscetíveis à violação pela conduta

humana. A postura, afeiçoada à dignidade penal, deita raízes em uma das teorias

250Cf. LUZÓN PENA, Diego-Manuel. Función simbólica del derecho penal y delitos relativos a la

manipulación genética. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de 1995. Bilbao-Granada: Publicaciones da Cátedra Interuniversitaria; Fundación BBVA; Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y Genoma Humano y Editorial Colmares, 2001. p. 50.

251Cf. MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoría del delito en el estado social y democrático de derecho. Barcelona: Bosch, 1969. p. 28-29.

137

da pena, qual seja a prevenção geral positiva que expressa o potencial diretivo

das normas jurídico-penais em relação ao comportamento social, contribuindo

para a integração axiológica da coletividade relativamente aos valores

fundamentais.252

A prática legislativa penal de signo educativo é bastante usual na

atualidade, embora alvo de uma corrente muito crítica. Entre os doutrinadores que

a contestam, está Jesús María Silva Sanchéz, que considera que a atitude

desborda os limites tradicionais do direito penal, jungidos à proteção de bem

jurídico, para transformá-lo em instrumento de sagração de uma dada ordem

moral.253 Em seus dizeres: “si se estima legítimo que alguna instancia estatal

cumpla en un Estado pluralista una función ético-social, tal función debería

cumplirse, en todo caso, en un ámbito diferente al de la intervención punitiva, no

condicionado por la vertiente aflictiva que define al mismo”.254

Em contrapartida, outros são favoráveis. Maria da Conceição

Ferreira da Cunha pondera que, não obstante uma norma manifeste reduzida

aplicação prática perante os delinqüentes, poderá “ter algum efeito preventivo em

sentido positivo, na medida em que continua a contribuir, embora de forma mais

frágil, para se manter e reforçar a consciência da comunidade quanto ao caráter

de dignidade penal da matéria incriminada”.255

Albin Eser assevera que o significado de uma norma não é

medido exclusivamente pelos números de processos penais pendentes nem de

condenações, pois neles não se computam os cidadãos que não delinqüiram

porque temem a pena e, mais ainda, porque foram sensibilizados pela disposição

252MIR PUIG, Santiago. op. cit., p. 31. 253Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 302. 254Id. Ibid., p. 303. 255CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 258.

138

penal que os despertou para a fundamentalidade do bem protegido ao conferir-lhe

um estatuto especial. Transpondo a idéia para a seara da biomedicina, “esta

função de reforço estabilizadora da protecção do direito penal – logo dada, na

verdade, pela sua mera existência – não deve ser minimizada precisamente

perante uma profissão como a do médico, que já pela sua imagem pública se

deve esforçar por ter uma conduta bastante fiel ao direito”.256

4.3.3.2 A função simbólica

A função simbólica, diversamente da promocional, não pretende a

mudança da realidade pelo Direito, mas somente a mudança da imagem da

realidade.257

Para Hassemer, a tranqüilidade social oferecida pela lei simbólica

contribui, na seqüência imediata, para o restabelecimento da confiança do

cidadão no ordenamento jurídico, que transparece a imagem de legislador pronto

e atento. Contudo, ultrapassada distância maior de tempo, a tendência será a

insuficiência da lei penal para solucionar ou, pelo menos, minimizar o problema

social, quando a credibilidade no Direito é fragilizada.258

Em contrapartida, Silva Sanchéz reconhece que, numa sociedade

de signos, não é de se estranhar que, com assiduidade, o direito penal cumpra

função simbólica ou retórica, de maneira que o entrave somente se manifesta

quando a lei penal é utilizada desmedidamente para produzir impacto social e

256ESER, Albin. Perspectivas do direito (penal) da medicina. Trad. a cargo da CPL LDA, rev. por

Jorge de Figueiredo Dias. Revista Portuguesa da Ciência Criminal, ano 14, n.. 1/2, p. 39-40, jan./jun. 2004.

257Cf. BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal, cit., p. 53. 258Cf. HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 35 e 59.

139

tranqüilizar o cidadão: “Lo problemático no es, pues, el elemento simbólico, sino

su absolutización”.259

Os exageros são freqüentes em épocas de crises ou de

convulsão social, quando o medo e a insegurança, que predominam entre os

sentimentos coletivos, permitem atitudes impensadas de detentores do poder em

troca da sensação de domínio do caos pelo Estado. A tendência confere bases

para o Movimento da Lei e da Ordem, cujos partidários criticam o tratamento mais

brando aos delinqüentes, sob o argumento de que configuraria o real fenômeno

aterrador e gerador de insegurança.260

4.3.3.3 A função de satisfação de expectativas sociais

A satisfação do instinto humano de vingança mediante a

incidência da pena foi comprovada pela psicanálise em estudos que concluíram

que “la impunidad incita a nuestro ello a rebelarse contra el control del super-

yo”.261 O castigo constitui idéia intrínseca à sanção penal, porque se o mal não lhe

fosse inerente, se apresentaria como benefício ou prêmio ao delinqüente,

estimulando a criminalidade, passo em que o direito penal se transformaria em

direito de assistência social.262

259SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 305. 260Cf. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: notas sobre a Lei n. 8.072/90. 3. ed. rev. e ampl.

São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995. p. 34, n. 3. 261JIMENEZ DE ASÚA, Luis. La ley e el delicto: principios de derecho penal. 2. ed. Buenos Aires:

Hermes, 1954. p. 45. 262Quando colocamos o termo castigo, o leitor pode ser conduzido a penas infamantes,

humilhantes ou abusivas, mas ressalvamos que conferimos à palavra – antiga – uma leitura atualizada, de maneira que, para nós, equivale ao cerceamento institucionalizado e coercitivo de direitos (direito de ir, vir ou ficar, nas penas privativas de liberdade; dispor do patrimônio, nas penas pecuniárias; exercer livremente a profissão, nas restritivas de direito), em conformidade com a proporcionalidade e ao princípio do Estado de Direito.

140

O problema não está na satisfação psicológica da pessoa por

meio da pena, mas em sua instituição com tal fim. A punição de comportamentos

não pode se apartar do intento preventivo de futuros delitos, para que seja útil à

paz e ao convívio social. Do contrário, a humanidade regressaria a tempos

remotos, a abusivas e humilhantes punições, comuns na era sombria da Idade

Média.263

4.3.3.4 Relações com a genotecnologia: nossa posição

A criação de normas penais limitadas às funções promocionais ou

simbólicas constitui prática rechaçável. Se a norma corresponder à salvaguarda

de valores secundários ou não-consensuais, ou à punição de ataques

insignificantes, em que bastariam sanções extrapenais, execução de políticas

públicas ou até mesmo nenhuma intervenção estatal, a penalização do

comportamento banalizará o direito penal, pois reduzirá sua força, que se assenta

na qualidade de ultima ratio. Se a norma não for suscetível de aplicação, com o

perpassar do tempo, perderá o potencial educativo ou tranqüilizador, fazendo com

que seja desprezada pelo cidadão e, nos casos excepcionais em que incidir, que

faça do condenado uma verdadeira vítima do sistema.

Paralelamente, a edificação de normas, em que a função

simbólica ou promocional da lei penal estiver associada à primária (proteção de

bens jurídicos), é aceitável desde que se refira à lesão ou à exposição a perigo de

elevados valores, fundamentais para o digno desenvolvimento da pessoa e da

263Cf. nosso Imprescritibilidade penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 18, em que

explicamos que, não obstante a pena seja castigo, não é aplicada pelo simples intento de castigar, na linha “pune-se porque pecou”. É castigo dirigido a um fim útil e específico à sociedade, qual seja a prevenção de futuros delitos.

141

humanidade, quando a dignidade e a carência de tutela penal inclinam-se para

um ponto convergente.

Essa idéia é de suma importância na seara da genotecnologia,

onde o aspecto promocional é quase inevitável em razão da importância dos bens

envolvidos, que nem sempre é captada pela sociedade em estímulos promovidos

por instâncias educativas menos incisivas do que o direito penal, em razão do

pluralismo cultural, que muitas vezes estonteia quem se propõe a formular uma

escala de valores, e da degradação axiológica que sombreia o mundo.

O rebaixamento axiológico facilita a assunção irrefletida de

comportamentos padronizados, com vistas à exibição da maior capacidade e

sucesso pessoal, acentuada pela inerente competitividade do capitalismo. O

quadro propende para tendências eugênicas, onde está situado o desejo pelo

“filho perfeito”. É reforçado pelo arraigado individualismo, incentivado pelo sistema

de produção, pela violência das ruas e pela sensação constante de insegurança

social e desconfiança do outro, fatores que afastam as pessoas e ocultam a

responsabilidade de cada um pelo todo (humanidade). A mídia também contribui

para a desintegração ética pois projeta sobre a massa estereótipos superficiais

que concretizam, de modo sonhador, a imediata mas leviana felicidade.

Ante o questionamento de padrões éticos, outrora impensável e

hoje provocado pelas recentes descobertas científicas, o direito penal, com

inegável poder evocativo, pode reafirmar, na consciência coletiva, a importância

de bens que atualmente são vulnerados por novas condutas, as quais muitas

vezes são aceitas com naturalidade devido a grande ignorância da população

sobre os reflexos éticos de muitos procedimentos inseridos nas técnicas de

reprodução assistida. Daí que, se protegerem bens jurídicos de suma relevância

142

contra significativos ataques, para o que não bastariam outras modalidades de

tutela, as normas promocionais ou simbólicas serão legítimas. Pelo menos como

sinal de alerta, o direito penal ainda tem impacto sobre a opinião pública, da qual

alguns cientistas, políticos e indústrias escondem as nuances negativas da

tecnologia genética ou, em outra mão, à qual os “moralistas” negam a

possibilidade de abertas discussões que evitariam reclamos por legislação penal

sacra.

Esta também é a linha de pensamento de Manuel da Costa

Andrade, quando aborda as modernas técnicas da biomedicina. Para ele, “bens

jurídicos que podem dar origem a um autônomo dever de tutela por parte do

Estado. Mesmo que esta tutela se esgote na função simbólica e promocional do

Direito Penal. E sem a qual estes bens jurídicos – afinal correspondentes às

novas dimensões dos valores da dignidade humana – dificilmente lograriam

impor-se no contexto das modernas sociedades plurais e secularizadas”.264

Cumpre, porém, salientar que a capacidade motivadora do direito

penal não se confunde com a imposição de particular moral ou da moral

dominante, pois, do contrário, conformaria um quadro normativo manifestamente

incompatível com a secularização do Estado e a pluralidade social. Com efeito, o

pervertido sistema penal, ao atuar na fronteira do output (orientar

comportamentos na sociedade), seria carente de sentido, porque sua gravidade

não se conformaria com a justiça, a igualdade, a liberdade e a máxima tolerância,

situadas na fronteira do input, onde as normas estão legitimadas socialmente.

Em suma, a aceitabilidade da intervenção penal permanece

restrita à proteção subsidiária de bem jurídico, enquanto a função simbólica e,

264ANDRADE, Manuel da Costa. Direito penal e modernas técnicas biomédicas. Revista de Direito

e Economia, Coimbra, p. 102-103, 1986.

143

sobretudo, a promocional interferem temperando os juízos de necessidade e

adequação penal na medida em que a elevada dignidade penal (destacada

importância do valor e grande reprovação das condutas) inclina a carência de

tutela penal para a positividade, havendo a esperada correspondência plena se

respeitados os outros critérios inerentes à proporcionalidade penal, como a

adequação.

4.4 O bem jurídico supra-individual

O bem jurídico pode ser classificado em individual ou supra-

individual, conforme o sujeito que o porte. A bipartição, porém, não é unanimidade

na doutrina, que assume três posições. A concepção monista-estatal ou monista-

coletiva defende que todos bens jurídicos projetam interesses do Estado ou da

coletividade (supra-individuais), porque não-individualizáveis e passíveis de gozo

por todos e por cada um, sem exclusão de quaisquer pessoas. Portanto, os bens

jurídicos são coletivos. A monista-pessoal sustenta que os bens, em sua

totalidade, são individuais ou, no máximo, reflexo de interesse de indivíduos

concretos. Finalmente, a corrente dualista reconhece a existência de bens

individuais e supra-individuais, não redutíveis uns aos outros.

Interessa, por ora, perquirir se existem bens jurídicos individuais

e, ainda, supra-individuais, ficando a classificação de cada um deles relegada

para os capítulos específicos. Historicamente, é longínqua a referência a bens

jurídicos supra-individuais. Birnbaum procurou distinguir os individuais dos

coletivos, entre os quais, sob sua ótica, avultavam os valores relacionados à

religião e à moral, alinhando-se à posição dualista. Diversamente, Binding, ao

144

propender para o tratamento homogêneo de todos os bens, restringiu a tutela

jurídica aos coletivos. Em sua formulação, “os bens assumem todos um valor

social (sozial-Wert)”, porque o Direito “só considera as pessoas, coisas e objectos

enquanto partes da vida da comunidade jurídica. Tudo aquilo a que adscreve um

valor jurídico só o tem para o todo. O bem jurídico é sempre bem jurídico da

totalidade, por mais individual que ele possa parecer ser”.265 Em linha similar,

Honig, in verbis: “Mesmo nas hipóteses em que a tutela jurídica aproveita, em

primeira linha, o indivíduo, não é a sua vontade que é determinante para a

afirmação da carência da tutela jurídica, mas tão-só e fundamentalmente, a

vontade da comunidade expressa na lei penal”.266 Atualmente, a corrente coletiva

está quase que superada, porque legitima regimes políticos autoritários.

Retomando a postura dualista esboçada por Birnbaum, Franz Von

Liszt, ao observar a complexidade da vida, reconheceu sem recurso a

artificialismos a heterogeneidade das expressões da realidade (como visto), que

desencadeia diversas formas de bens jurídicos, de modo que aceita bens

individuais, correspondentes a interesses de dimensão pessoal, e bens jurídicos

supra-individuais, correspondentes a outros da respectiva índole.267

Contemporaneamente, a discussão das categorias de bens

jurídicos volta à cena em razão dos riscos exporem, de maneira renovada, as

gerações futuras, ou seja, conformarem risco global à humanidade, presente e do

porvir. A tecnologia genética se arvora como exemplo paradigmático. A doutrina,

265Die Normen um ihre Übertretunger, I Band, 4ª ed., Leipzig, 1922, p. 358, apud ANDRADE,

Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal, cit., p. 68. 266Die Einwilligung, p. 74-75, apud ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em

direito penal, cit., p. 42. 267Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal, cit., p. 69.

145

estimulada a repensar o direito penal, não é uniforme quanto ao caminho a ser

tomado.

Stratenwerth defende que, nos terrenos direcionados ao

asseguramento do futuro, a noção de bem jurídico não tem significação, eis que

os novos objetos de proteção são caracterizados pela falta de contornos precisos.

Não obstante imputar vagueza aos novos interesses, o autor sustenta que

merecem proteção pelo direito penal. No entanto, para ele, a tutela não se amolda

aos contornos da teoria do bem jurídico, a qual deve ser renunciada em favor de

normas de comportamento geral responsáveis pela orientação do desvalor da

conduta e que punem as “relações de vida como tais”.268

Para Jorge de Figueiredo Dias, a postura é inaceitável, pois

implica regresso ao Direito Penal moralista, “protector de uma moral ou de uma

certa moral e, assim, a um pequeno passo de se tornar propulsor de fins

puramente ideológicos”.269 Com efeito, a imprecisão do conceito relações de vida

como tais autoriza expansão desmedida do direito penal, para abarcar qualquer

orientação de comportamento.

Em mão oposta, a Escola de Frankfurt, como visto, defende a

exclusão da tutela dos riscos futuros do âmbito do direito penal. O pensamento

conduz Hassemer a condicionar a proteção de bens coletivos à sua recondução a

interesses concretos, tangíveis e, portanto, atuais dos indivíduos e, assim, a

subordiná-la aos bens individuais. Eis seu discurso, in verbis: “cabe aclarar, en

primer lugar, que un concepto personal del bien jurídico no rechaza la posibilidad

de bienes jurídicos generales o estatales, pero funcionaliza estos bienes desde la

268Zukunftssicherung mit der Mitteln des Strafrechts?, ZStW (105), 1993, p. 682 e 692, apud

MENDONZA BUERGO, Blanca. op. cit., p. 74. 269DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina

penal, cit., p. 177-178.

146

persona: solamente puede aceptarlos con la condición de que brinden la

posiblidad de servir a intereses del hombre”.270

A corrente de Frankfurt é, com acerto, contestada por Schünemann,

quem traz à baila a teoria do contrato social, para rememorar que o vínculo não se

restringe aos homens do presente, concretos e atuais, pois, do contrário, a cada morte

ou nascimento, novo pacto deveria ser estabelecido; abrange, sim, toda a

humanidade, incluindo as gerações futuras, com o que vislumbra a dinamicidade, a

continuidade e a agregação de cada vida humana às subseqüentes. Sob tal

perspectiva, assumem relevância tanto o indivíduo, transitório, quanto a espécie

humana, permanente. Consagra que as gerações, sem distinção valorativa entre si,

têm direito igual aos recursos naturais, cada vez mais escassos,271 e também à natural

pluralidade e variedade genética, cada vez mais suscetível a artificiais manobras.

Em última instância, diz Schünemann que “la teoría del bien

jurídico personal há caído en la trampa de esta sociedad postmoderna, ha tomado

sus mundos ficticios y sus técnicas de encubrimiento por su núcleo esencial y ha

elevado a la categoría de objeto de protección de mayor rango del Derecho penal

al despilfarro de los recursos de generaciones venideras por parte del hedonismo

sin sentido de un pseudoindividualismo”.272

A ameaça de degradação da vida para os homens presentes e

futuros exige que o ordenamento geral “proceda a uma inteligente revisão do

sistema de bens jurídicos, que reflita as mutações econômicas e sociais em

270HASSEMER, Winfried. Lineamientos de una teoría personal del bien jurídico. Trad. por Patricia

S. Ziffer. Doctrina penal, Buenos Aires, v. 12, fasc. 45-48, p. 282, 1989. 271SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 192-193. 272Id. Ibid., p. 195.

147

processamento e as evoluções espirituais marcantes que as determinam”273 e,

desta feita, que acolha a categoria dos bens supra-individuais ou metaindividuais

e, entre eles, os interesses da humanidade.274

A mudança proposta não é fácil pois os bens jurídicos supra-

individuais, diversamente dos individuais, não são facilmente captáveis. Mas,

contrariamente ao pensamento da Escola de Frankfurt, esta peculiaridade não

impõe a respectiva exclusão do direito penal sob a precipitada alegação de sua

vagueza. Na lúcida de lição de Figueiredo Dias, “a relação difusa com os

usuários”, revelada nos bens supra-individuais, ”não significa o caráter difuso do

bem universal como tal”,275 cabendo ao legislador desenhá-los com clareza

suficiente para que sejam compreendidos pelo destinatário e pelo aplicador da

norma, com observância do princípio da taxatividade.

De se salientar que a força dos bens supra-individuais não se

extrai dos individuais. Aqueles também não se restringem à mera soma de

mesma ou de diferentes espécies destes. Os bens supra-individuais desfrutam,

em face dos individuais, de autonomia,276 o que significa dizer que são protegidos

em razão de conteúdo material próprio, sem necessário liame com indivíduo

273COSTA Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal: parte especial. 2. ed. São Paulo:

Saraiva, 1990. v. 3, p. 651. 274Os bens supra-individuais dividem-se em difusos e coletivos: nos difusos, os titulares do bem

são pessoas determinadas e ligadas por circunstâncias fáticas, envolvendo conflituosidade de massa, em que contrastam grupos sociais na realização (interesses econômicos e o interesse na proteção ambiental); nos segundos, a titularidade é atribuída ao Estado, ou a uma classe ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base, de modo que o conflito ocorre entre o grupo e o indivíduo que pratica o delito (paz pública).

275DIAS, Jorge de Figueiredo. Na era da tecnologia genética: que caminhos para o Direito Penal médico? Revista Portuguesa de Ciências Criminais, Coimbra, ano 14, fasc. 1/2, p. 255, jan./jun. 2004.

276Nesse sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal, cit., p. 174-175; SOUZA, Paulo Vinicius Spoleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 295-309.

148

concreto. Esta, aliás, sua principal característica, qual seja a “descoincidência

com o interesse de determinada pessoa”.277

A autonomia libera os bens supra-individuais de subordinação

abstrata aos individuais e o conflito entre eles é solucionado pela ponderação

entre os “gli scopi e gli obiettivi della scelta política, la loro intrínseca legittimità e

quella del mezzo prescelto”, como leciona Francesco Palazzo.278 Estes

parâmetros refletem as sub-regras da proporcionalidade.

Sem prejuízo de proteção autônoma, os bens supra-individuais

não encontram, neles mesmos, a razão mais remota para a tutela, pois só podem

ser aceitos se e na medida em que existam por “causa do Homem (...) como

sucede com tudo que é fruto do espírito e do labor humanos”.279 Nem poderia ser

diferente, porque o Direito, como diz Franz Von Liszt, “existe para el hombre”280 e,

com maior intensidade o direito penal, pois seu objeto de trabalho é a pessoa

humana, como toda sua complexidade assustadora e maravilhosa.

Explicam Dolcini e Marinucci que, nos bens jurídicos supra-

individuais, o interesse pessoal aparece ao fundo (sullo sfondo) e “loro lesione o

messa in pericolo è irrilevante”, pois o fato típico se resume na lesão ou exposição

a perigo do bem supra-individual; a lesão ao bem individual “reta al di fuori della

fattispecie”.281

277PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o meio ambiente: anotações à Lei 9.605, de 12 de fevereiro

de 1988: doutrina, jurisprudência, legislação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 25-26.

278PALAZZO, Francesco. Introduzione ai princìpi del diritto penale. Torino: G. Giappichelli, 1999. p. 182.

279DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal, cit., p. 174-175.

280LISZT, Franz von. op. cit., p. 2. 281DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Corso di diritto penale, cit., p. 541 e 543.

149

5. A SUB-REGRA DA ADEQUAÇÃO

5.1 Seus traços comuns

A adequação ou a idoneidade refere-se à aptidão da medida

adotada para alcançar o fim proposto. No âmbito penal, o conceito foi mencionado

por Franz Von Liszt os seguintes termos: “La exigencia de la política criminal se

dirige a utilizar, en lo posible, la aptitud de la pena como medio adecuado al

fin”.282 No Estado Democrático, o fim do direito penal reside na proteção de bens

jurídicos mediante a prevenção de delitos e, por isso, as leis incriminadoras e as

respectivas sanções são adequadas desde que se apresentem como “instrumento

activo de lucha eficaz” contra a criminalidade, como destaca Santiago Mir Puig.283

Para o efetivo combate à criminalidade, o direito penal tem como

pressuposto uma regra de experiência, segundo a qual a previsão de um fato

como delito comporta, de per si, uma automática diminuição numérica de sua

ocorrência no contexto social.284 No cálculo, não devem ser considerados apenas

os delinqüentes, mas também “los que no han delinqüido o han dejado de

delinqüir por existir uma amenaza penal”, como preleciona Teresa Aguado

Correa.285 Demais disso, a utilidade social da norma não está condicionada à total

282LISZT, Franz von. op. cit., p. 6. 283MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método, cit.,

p. 291. 284Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 225. 285CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 153.

150

erradicação dos crimes, pois, numa sociedade de seres imperfeitos, tal situação

deflagraria a absoluta inutilidade do preceito.286

A sub-regra da adequação constitui uma das vertentes do juízo de

carência de tutela penal, correspondendo ao juízo da idoneidade, que será

positivo quando o direito penal tiver préstimo para evitar infrações criminais e não

for contraproducente, pois o proveito da pena é enfraquecido ou fulminado se os

custos sociais decorrentes de sua concreta aplicação forem maiores do que os

benefícios.

Na relação entre custos e vantagens, é balanceado o risco de

lesão ao próprio bem jurídico portado por outro sujeito, ou de agressão a outros

bens envolvidos na situação, como também a possibilidade de que a norma

incriminadora de uma conduta suscite efeitos criminógenos, arrastando consigo

outros comportamentos ilegais. Exemplo padrão é o aborto, em que a vida ou a

integridade física da gestante pode ser colocada em risco em razão da gestação,

concorrendo com a vida do feto e, ainda, porque o procedimento clínico para sua

prática estimula a atuação infratora e clandestina de terceiros (médicos,

enfermeiras, outros assistentes), campo próprio para a exigência de elevadas

contraprestações monetárias das gestantes, com oferta de baixo ou nenhum

cuidado clínico.

Associadas as sub-regras da necessidade e da adequação,

desenha-se o corpo de critérios legitimadores do exercício do ius puniendi

reunidos em torno do bem jurídico-penal, quais sejam: I) merecer a tutela, quando

se examina a dignidade penal do bem jurídico; II) necessitar da intervenção, que

se relaciona à indispensabilidade da lei penal para a proteção (primeira vertente

286Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 217.

151

da carência); III) ser capaz (suscetível) de proteção penal, quando se cogita da

adequação do direito penal para o combate à criminalidade, com atenção às

condições reais do sistema penal e da sociedade (segunda vertente da carência

de tutela penal).287

Centrada na utilidade social do sistema penal, a sub-regra da

adequação é incompatível com a teoria retribucionista pura da pena, que concebe

a sanção exclusivamente como mal justo que compensa o mal injusto do crime,

com vistas à realização da idéia de justiça, formulada com base no equilíbrio das

restrições em jogo, sem preocupação com eventual ausência de proveito para o

condenado ou para a sociedade. O juízo de adequação centraliza-se na aptidão

da proteção penal para a prevenção especial e a geral, parâmetro que embasa as

outras teorias da pena.

A tutela é apreciada, em primeiro plano, pela prevenção geral, a

qual não se concretiza em sentido retrospectivo (crime já consumado), mas com

significado prospectivo (em face de futuros delitos). É traduzida pelo temor da

pena e, sobremaneira, pela confiança dos cidadãos no Direito, em sua

capacidade de estabilizar expectativas comunitárias. Num segundo momento, a

proteção penal é desempenhada pela prevenção especial, quando o Direito volta-

se para a ressocialização do agente ou, se este não aceitar o respectivo

programa, para adverti-lo acerca da ilicitude máxima de seu comportamento, a fim

de que não reincida ou, em último caso, e se necessário para a segurança

coletiva, o sistema autoriza a retirada do delinqüente do ciclo social, pelo menos

enquanto não desenhadas esperanças de êxito na reintegração na sociedade. Em

287Cf. CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 151.

152

estreita relação com a capacidade preventiva da pena, o juízo da adequação tem

grande destaque na esfera dos novos riscos, como o genético.

A par disso, a adequação da tutela penal está vinculada à

celeridade. Penas tardias deparam com réus reintegrados ao sistema social ou

estimulam a consciência coletiva a procurar, fora do Direito, remédios para

restabelecer seu equilíbrio, abalado pelo crime. Em ambos os casos, o

ordenamento tem sua eficácia desprestigiada perante o corpo social.

5.2 Os obstáculos no exame da idoneidade penal

Rigorosa avaliação do grau de idoneidade da tutela penal para o

controle social demanda a possibilidade de confronto entre o cotidiano de duas

sociedades, situadas em territórios distintos, porém numa mesma época e com

culturas similares, em que somente numa delas o fato fosse punido como delito. A

hipótese é inviável na sociedade contemporânea, pois o pluralismo cultural

impede, até mesmo dentro de único Estado, a unanimidade moral, especialmente

perante atividades modernas, como a tecnologia genética que, propiciando novas

descobertas científicas, questiona “verdades” outrora intocáveis e provoca as

mais variadas reações.

A falta de consenso estimula a confusão de parâmetros,

tendência favorável aos detentores de grandes recursos financeiros que buscam

a exclusão da engenharia genética, em seu todo, da esfera da criminalidade, em

defesa de suas conveniências e em benefício de poucos.288 O assíduo interesse

288Daí que, em relação à criminalidade associada a grandes recursos financeiros e intelectuais, em

que manifesto o poder de pressão política de seus interessados, Raúl Cervini substitui a expressão cifra negra por cifra dourada (cf. CERVINI, Raúl. op. cit., p. 220-223).

153

pelo lucro, tão cobiçado nos dias de hoje, permite que, por obscuridade ética,

ocupem o mesmo patamar interesses manifestamente desproporcionais, como os

ganhos da indústria farmacológica e a preservação da biodiversidade genética da

espécie humana.

A par disso, estão os problemas concernentes às estatísticas. Os

respectivos dados esboçam, nos dizeres de Angioni, a “cattiva salute” de uma

norma, revelada pela freqüente violação de seus ditames ou pela “cifra negra”,

que se caracteriza pelo disparate entre o número de delitos efetivamente

cometidos e o número de delitos conhecidos e perseguidos pelos órgãos

estatais.289

À vista de estatísticas que concluam pela contínua infração de

uma norma ou pela não punição dos infratores, o legislador é impulsionado,

diante dos fatos mais graves, a elevar as penas ou intensificar a persecução

criminal, porque insuficiente o sistema vigente e, perante os menos graves, a

atenuar a pena ou a eliminá-los da esfera penal, eis que, em tese, a sociedade

teria transformado sua valoração sobre ele.

Numa análise superficial, o sentido apontado nestas duas

hipóteses seria inequívoco, porque aparentemente conforme a ordem social.

Entretanto, não são poucos os meandros que permeiam as estatísticas. Forjar os

respectivos resultados não é tarefa difícil na seara da engenharia genética e da

reprodução assistida. Em primeiro lugar, porque as consultas de opinião pública

sobre a incriminação ou descriminalização atingem, maciçamente, pessoas mal

informadas sobre o difícil e inusitado tema. Em segundo lugar, porque as práticas,

além de envolverem material pouco conhecido, são executadas em laboratório,

289Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 233.

154

ambiente recluso, fechado a ciclo restrito. É certo que os registros de pesquisas

ou a fiscalização pública contínua das clínicas poderiam dificultar manobras

ocultas, tal como se assiste com as pesquisas sobre células-tronco embrionárias

divulgadas pelo grupo de cientistas sul-coreano.290

Não se pode olvidar ainda a “cifra negra” ofusca um dos ângulos

da eficácia, pois ignora as pessoas que não cometeram a infração penal

exatamente porque o comportamento estava incriminado.291 Do contrário, não

será conferida atenção para a capacidade orientadora do direito penal, tão

relevante nos setores de novas atividades, onde estão pouco resolvidas as

celeumas éticas, difundidas pela costumeira e atual prevalência do “eu” sobre o

“outro” ou sobre o “todo”.

Tendo em mente tais entraves, as estatísticas, conquanto

auxiliem, não autorizam conclusões definitivas na apuração da idoneidade da

tutela penal. A legitimidade da lei penal reclama análise cautelosa da conduta e

de suas circunstâncias, em meio à qual não pode ser esquecida a importância

dos bens envolvidos – vida, liberdade, integridade genética –, que inclina o juízo

de adequação para a positividade.

Em razão de todas essas dificuldades e para evitar

arbitrariedades, a sub-regra da idoneidade é exigência propriamente endereçada

ao legislador para que, na elaboração do tipo legal, atente sobre sua aptidão para

a tutela do bem à luz do contexto social a que se dirige. Na seara da jurisdição, o

juízo em epígrafe opera dentro de âmbito restrito, para excluir a intervenção penal

quando tiver eficácia nula ou provocar evidentes efeitos colaterais graves,

290Vide capítulo II, supra. 291Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 153.

155

superiores aos benefícios, o que minimiza o impacto das incertezas ora

assinaladas. 292

5.3 O delito de perigo

O perigo, segundo Nélson Hungria, é a “turbação no estado de

segurança” de bem jurídico, que “é colocado, embora transitòriamente, numa a

situação de precariedade, de incerteza de estabilidade”.293 Prosseguindo, explica

a dupla perspectiva do conceito: “como possibilidade de dano, é uma situação

objetiva; mas a possibilidade, embora tenha uma existência objetiva, não se

revela por si mesma: tem de ser reconhecida, isto é, julgada”.294

O perigo penalmente relevante não se resume a uma

eventualidade anormal e incomum (improbabilidade) ou a uma mera

possibilidade, sob pena de cessar toda a liberdade de atuação social, que é

própria da democracia; corresponde à “possibilidade com certa relevância, quer

dizer, à probabilidade”.295 O juízo que demanda não é incondicionado, posto que

assentado em regras de experiência cotidiana em que se repetem situações

fáticas, as quais, na seara da tecnologia genética, ocorrem, comumente, em

pesquisas científicas em que surge dúvida irrefutável sobre uma substância ou

um procedimento ser fonte concreta de risco a um bem jurídico.

Os delitos de perigo são classificados em delitos de perigo

concreto e de perigo abstrato. Nos primeiros, a existência do perigo deve ser

292GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 244. 293HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949. v. 1, p. 192

(grafia original). 294Ib. Ibid., p. 194. 295Id. Ibid., p. 195.

156

averiguada caso a caso, quer dizer, é exigida, pela lei, a constatação positiva ex

post (posterior ao fato) do perigo. Nos segundos, não há essa verificação, porque

o perigo é deduzido dos termos da lei, que o define ex ante, ou seja, o tipo

descreve “uma conduta que pode ser considerada perigosa em si mesma, ficando

implícita a valoração do injusto”, conforme explica Ivete Senise Ferreira.296 No

delito de perigo concreto, o legislador “parte de que una determinada situación

puede ser peligrosa y conmina penalmente su realización en el supuesto de que

lo sea”. No delito de perigo abstrato, o legislador “parte de que una determinada

situación comúmente es perigosa y conmina, sin más, com pena su

realización”.297

Na atualidade, é usual o emprego da técnica do delito de perigo

abstrato, conquanto sua legitimidade seja controvertida na doutrina. Como

esperável, a técnica é repudiada pela Escola de Frankfurt, pois, segundo Herzog,

implicaria reduzir o direito penal a um instrumento de política interna, suscetível a

ingerências da mutante opinião pública, de compromissos de coalizões partidárias

e de interesses eleitorais.298

Assiste-lhe parcial razão, pois a técnica de perigo abstrato não

deve ser maximizada até se transformar em mecanismo para a imposição de um

padrão moral, combatendo simples violação de dever, com prejuízo da

democracia e multiplicidade cultural do Estado. Entretanto, o direito penal não

pode apartar-se da sociedade que se coloca à sua frente e que reclama, ao lado

296FERREIRA, Ivete Senise. Tutela penal do patrimônio cultural. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1995. p. 99. 297BARBERO SANTOS, Marino. Contribución al estudio de los delitos de perigo abstrato. Anuario

de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 26, fasc. 1, p. 489, ene./abr. 1973. 298HERZOG, Felix. op. cit., p. 321-322.

157

de providências corretivas, medidas preventivas, para que sejam assegurados

bens essenciais à vida em comunidade e às gerações do porvir.

Considerando os caracteres da vida moderna - ações distantes do

momento em que os respectivos danos se tornam materialmente perceptíveis,

múltiplas cadeias causais em interconexões, ausência de conhecimentos precisos

sobre os efeitos da aplicação prática de revolucionárias descobertas científicas,

em que se inclui a manipulação genética -, não é possível descartar a técnica do

delito de perigo abstrato.

A técnica, ao que parece, tem abusos contidos quando adotada

em respeito à “natureza de las cosas”.299 Entre elas, destaca-se a dificuldade de

ser estabelecido o nexo causal entre a conduta e o dano, circunstância freqüente

na genotecnologia. Sobressai também a imensa dimensão dos possíveis

resultados que, se vierem a se concretizar, tendem, segundo as pesquisas, à

projeção universal e irreversível sobre a pluralidade e diversidade da espécie

humana (pelos menos se mantido o conhecimento atual da ciência).

O alarmante e diferenciado contexto é bem desenhado por

Ferrando Mantovani, in verbis: “También aqui el tradicional Derecho penal

represivo revela las propias insuficiencias, bien sea por la escasa utilidad práctica

de castigar, existiendo los delitos de epidemia (em aquellos códigos que, como el

italiano, prevên tal delito) o, de otro lado, de homicidio o lesiones culposas

múltiples; o incluso por la probatio diabolica del nexo causal y de la culpa. De

299Nesse sentido, Ivete Senise Ferreira, quem, ao estudar o delito de perigo abstrato, afirma: “Tal

modalidade justifica-se em matéria de ofensas ao meio ambiente, pela natureza das mesmas, em que pesem as opiniões em contrário” (op. cit., p. 99). Igualmente: SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 199.

158

modo que se vuelve necesaria la introducción de figuras preventivas, dirigidas a

evitar la aparición de situaciones de peligro”.300

Em muitas hipóteses relacionadas à genética humana, o direito

penal repressivo teria pequena ou nenhuma utilidade prática, eis que o castigo

pouco adiantaria diante do caos instalado. A técnica do perigo abstrato aparece

como alternativa de política criminal mais condizente com a tutela de bens

expostos aos avanços científicos que, dotados de elevada importância social e

jurídica, requerem, mais intensamente, a antecipação da barreira penal.

Não se ignoram as “cifras negras” em torno dos delitos que

atinjam a humanidade global, porquanto as vítimas, que muito contribuem para a

aplicação da lei penal, estão difusas no meio social. Não obstante, como já

referido, se a exaltação do bem pela norma penal desestimular sua violação, não

se afasta a legitimidade da intervenção penal.

De todo modo, a aceitação pragmática da técnica do perigo

abstrato depende do respeito ao princípio da determinação, o qual, como lembra

Schünemann, tem menos problemas no modelo em questão do que no delito

imprudente de resultado, em que a norma de comportamento concreta é

determinada por regra geral não escrita e formulada posteriormente pelo julgador

ou pela jurisprudência.301

Por fim, depara-se com a problemática relação entre a técnica em

estudo e o princípio da lesividade. É inquestionável que o presente modelo de

incriminação não se amolda à noção de lesividade ou ofensividade compreendida

nos moldes clássicos do direito penal repressivo, ou seja, como “lesão concreta

300MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas de

control y técnicas de tutela, cit., p. 104. 301SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 201.

159

de bem jurídico”.302 Numa visão mais condizente com os bens jurídicos

emergentes, a noção merece leitura mais abrangente, como a proposta por

Palazzo, segundo quem “o fato não pode constituir ilícito se não for ofensivo

(lesivo ou simplesmente perigoso) do bem jurídico tutelado”.303 Aprofundando-se

neste raciocínio, Dolcini e Marinucci ensinam que o direito penal dirige-se não

somente para a garantia de integridade do bem, mas também preserva a

segurança necessária para o seu desfrute.304

5.4 As normas penais em branco

A única fonte do direito penal é a norma legal, como reza o art. 5º,

XXXIX, da Constituição pátria: “não há crime sem lei anterior que o defina, não há

pena sem prévia cominação legal”. Antes de ser um critério jurídico-penal, o

nullum crimen, nulla poena sine lege, consagrado no século XIX por Anselmo

Feuerbach, é “um princípio político (liberal), pois representa um anteparo da

liberdade individual em face da expansiva autoridade do Estado”, como inclusive

explica Nélson Hungria.305

Sobre tal princípio descansa a segurança jurídica na medida em

que, descrevendo com exatidão o comportamento incriminado e a correlata

sanção, confere a possibilidade de cálculo de suas conseqüências ao cidadão,

minimizando as divergências nos julgamentos.

302Adotam esse posicionamento: TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação

de penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. esp., p. 79, dez. 1992; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 135.

303PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal, cit., p. 79, grifo nosso. 304Nas palavras de Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini: “in ossequio al principio di offensività, il

diritto penale deve infatti garantire non soltanto l’integrità dei beni, individuali e collettivi, ma anche la sicurezza del loro godimento” (Corso di diritto penale, cit., p. 560).

305HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 10.

160

Não basta, porém, a reserva de lei para a matéria penal. A função

garantista do princípio seria severamente comprometida se, na elaboração do

texto legal, houvesse a “utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas

de modo a ensejar diferentes e mesmo contrastantes entendimentos”.306 Daí que,

em seus desdobramentos, o princípio da legalidade remete à proibição de leis

indeterminadas, isto é, de formulações legais compostas por vocábulos

imprecisos ou vaporosos, dissolvidos em elevada tonalidade valorativa. Esse

enfoque confere forma ao princípio da taxatividade ou da determinação, referido à

técnica de elaboração legislativa.

Todavia, como ressalta Francesco Palazzo, em postura

sumamente realista, uma tutela não pode eficazmente estender-se “às novas

fronteiras do Estado Social, sem renunciar ao ideal iluminístico de leis

rigorosamente determinadas”.307 Sendo assim, os novos tipos, no mínimo, devem

ser formulados de maneira a serem compreendidos facilmente pelo destinatário e

ainda de modo a que tutelem bem jurídico definido.

Ao lado das leis indeterminadas estão as leis penais em branco,

cada vez mais em voga. Estas resultam de técnica legislativa em que a

cominação penal está disposta integralmente (preceito secundário), mas o

conteúdo proibido (preceito primário) é incompleto. “O dispositivo que

complementa a lei em branco pode estar contido na mesma lei penal, ou provir do

mesmo órgão legislativo ou de ato de autoridade diferente. Pode ser outra lei da

mesma fonte donde emanou a lei penal, ou leis ou regulamentos originários de

outros poderes”, como ensina Aníbal Bruno.308

306LUIGI, Luis. op. cit., p. 18. 307PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal, cit., p. 51. 308BRUNO, Aníbal. op. cit., p. 191.

161

As leis penais em branco não ofendem a legalidade desde que o

complemento esteja em outra fonte “previamente determinada e conhecida”,

como destaca Guilherme de Souza Nucci.309 Na sociedade contemporânea, a

realidade e a prudência exigem, de modo crescente, o emprego da técnica em

apreço em setores tecnicamente complexos e multidisciplinares.

Neles, as matérias estão condicionadas por circunstâncias

histórico-sociais, como a ordem econômica, ou pelo seu tecnicismo, como o meio

ambiente e a genética, cujo tratamento preciso é viabilizado somente pela

remissão ao quadro normativo diverso do penal, onde os conflitos são regulados

originalmente.310 Não fosse a complementação por preceitos extrapenais, a

intervenção penal, embora necessária e adequada para a tutela do bem jurídico,

estaria jungida a subseqüentes modificações ou ficaria obsoleta, petrificada.

Nesta égide, a norma penal em branco atua como garantia de

eficácia para o direito penal, mantendo-o alinhado às modificações que

impregnam certas atividades, como a tecnologia genética e reprodutiva, em que,

como reiteradamente visto, são sucessivas as descobertas e constantes as

projeções sobre conceitos que, em tempo de ignorância, eram aceitos sem

questionamentos.

Para a lei penal em branco não descambar para o terreno da

inconstitucionalidade, os ditames de competência traçados pela Carta Política

desempenham papel essencial. De acordo com Ivete Senise Ferreira, é a própria

Constituição que fornece “os parâmetros da legalidade do complemento da norma

309NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 58. 310Nesse sentido: GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho penal: introducción. Madrid:

Universidad Complutense Madrid, 2000. p. 257.

162

penal em branco (...) através de indicação que faz ao definir as competências

ratione materiae”.311

De acordo com o art. 22, I, da Constituição brasileira, compete

privativamente à União legislar sobre direito penal, mas, consoante o parágrafo

único, a lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões

específicas sobre a matéria. Fica, pois, a União com competência principal,

enquanto aos Estados é outorgada competência suplementar, particularizada.

Especificamente para a atividade sobre a genética humana, em

que se mesclam os procedimentos de reprodução assistida, sobremaneira em sua

relação com a saúde e a pesquisa, a Constituição estatui competência legislativa

concorrente para a proteção e defesa da saúde, cabendo à União baixar as

normas gerais (§1º) e aos Estados o exercício de competência suplementar (§§2º

e 3º), reservando aos Municípios a normatividade sobre interesses locais (art. 30,

I). No exercício de competência administrativa, disciplinada no art. 23, cabe a

União, aos Estados e Municípios cuidar, conjuntamente, da saúde pública (inciso

II) e proporcionar os meios de acesso à ciência (inciso V). 312

Deste modo, as normas, legislativas ou administrativas, nos três

níveis que configuram a estrutura federativa do Estado brasileiro, de acordo com

as respectivas atribuições constitucionais, servem de complementação às normas

penais em branco relacionadas com a genética humana.

311FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 87-88. 312Nessa linha, Ivete Senise Ferreira quando aborda o tema sob o prisma da disciplina normativa

referente ao meio ambiente (Id. Ibid., p. 88-89).

163

6. OS BENS JURÍDICOS (1): CONSIDERAÇÕES SOBRE A

DIGNIDADE HUMANA E A VIDA

Estabelecidos os meandros da necessidade e da adequação da

tutela penal, a próxima etapa reclama a identificação dos bens jurídicos afetados

pela biotecnologia. Seriam infindáveis as discussões se todos os bens fossem

abordados no presente estudo, pois, além de serem inúmeros, estão sujeitos a

ataques com contornos específicos, pesando também a complexidade ética. Por

isso, à vista do quadro atual, marcado pela preocupação em torno do estatuto do

embrião e das conseqüências provenientes da alteração do genoma humano para

a espécie, o debate restará restrito aos bens que os afetam diretamente.

Vejamos, portanto.

6.1 A dignidade humana

6.1.1 Ponderações preambulares

A ingerência da biomedicina em elementos basilares do ser

humano, como a carga genética da espécie, causa impacto na comunidade, o que

é revertido muitas vezes em clamores punitivos. Para justificar a intervenção

penal, a dignidade humana é facilmente invocada, porque, além da abertura

semântica, integra a cultura desde tempos imemoráveis.

164

Para o pensamento grego antigo, a dignidade reporta à idéia de

alma espiritual e moral. A tradição cristã explica a dignidade da pessoa humana

pela teoria da semelhança entre o homem e a imagem de Deus, o Criador. Para o

marxismo, que considera o homem como produto das relações sociais, suscetível

à contínua transformação, a dignidade humana está relacionada à “intenção do

passo erguido”, isto é, à tendência para superar situações de humilhação, vividas

pela classe dominada. Para o pensamento estóico, ela deriva da aptidão de toda

a pessoa para participar da razão universal.313

A concepção liberal está representada pelo pensamento kantiano,

segundo o qual a dignidade humana reflete-se no seguinte imperativo categórico:

“Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa

de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente

como um meio”.314-315 Kant exclui a avaliação da pessoa humana de qualquer

critério de quantificação ou de relativização em função de outros indivíduos ou de

outros critérios (eficácia econômica ou laboral, beleza corporal, plenitude psíquica

ou física).

Não tendo preço nem sendo substituível por equivalente, a

pessoa, para o filósofo de Koenigsberg, não é coisa nem é meio, senão um fim

em si mesma, pelo que encerra uma dignidade. Em suas palavras, “o que se 313Cf. BLOCH, Ernst. Derecho natural y dignidad humana. Madrid: Aguilar, 1980. p. 156 e ss. O

estoicismo consiste em designação comum às doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores Cleanto (séc. III a.C.), Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto (c.55-c.135) e Marco Aurélio (121-180), caracterizadas sobretudo pela consideração do problema moral, situando o ideal do sábio na ataraxia, que é o estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade: a imperturbabilidade, a tranqüilidade.

314KANT, Immanuel. op. cit., p. 135. 315O imperativo categórico é um princípio prático supremo. Kant diferencia o imperativo categórico

do hipotético: o primeiro “seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”, ou seja, “boa em si”; o segundo representa “a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer”, ou seja, “boa como meio para qualquer outra coisa” (Id. Ibid., p. 124-125).

165

relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem têm um preço

venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um

certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas

faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis);

aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser

um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas

um valor íntimo, isto é, dignidade”.316

A proposta kantiana tem a vantagem de ser suscetível a

compartilhamento entre religiosos ou não. A construção exerce acentuada

influência sobre as convicções éticas atuais, embora tenha que competir com

poderosos adversários, como a moral utilitarista, com forte receptividade na

contemporânea sociedade consumista e de massa.317

Caminhando adiante, muitos buscam as bases da norma que

impõe o respeito à dignidade humana. Alguns concluem pela indefinição,

restringindo o consenso, tão-somente, em torno das ações que vulneram a

dignidade humana, como a clonagem. Outros consideram que, na realidade, cada

pessoa em concreto impõe seu próprio fundamento sobre o que suponha

significar a dignidade. A maioria, porém, julga que o conceito desenvolve-se sobre

pano de fundo objetivo, quando são postas à tona as qualidades de que

comungam as pessoas e que as fazem merecedoras de dignidade perante os

demais seres vivos.

316KANT, Immanuel. op. cit., p. 140. 317Cf. PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. Clonación, dignidad humana y constitución. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 11, n. 42, p. 44, jan./mar. 2003.

166

Perfilhando o último enfoque, percebe-se que o status especial do

homem frente aos demais seres está na racionalidade.318 É inconteste que

empiricamente nem todos os homens têm o mesmo grau de racionalidade.

Porém, esse fato é irrelevante. Conquanto os indivíduos desfrutem de níveis

distintos de autonomia, a dignidade, porque intrínseca aos integrantes da espécie,

desconsidera as diferenças, na medida em que se satisfaz com a potencialidade

de determinação (virtualidade), não exigindo a concreção destas.319

Portanto, o deficiente mental, o homem adulto em coma e o

intelectual equiparam-se em dignidade, uma vez que ela não depende de como a

pessoa se comporte. Supõe seu reconhecimento enquanto tal, pelo simples fato

de ser atributo dos seres humanos, iguais entre si e superior aos demais.

Quanto ao embrião, a questão sobre seu amparo pela norma que

resguarda a dignidade humana é pouco mais complexa. O ponto central, no modo

nosso de ver, está na lembrança de que se hoje ele é um grupamento amorfo de

células, amanhã será um ser adulto. É certo que ele não mantém relação

interpessoal, porque está fora no meio social. Todavia, pela sua carga genética e

capacidade de divisão, é fonte de toda a pessoa humana. Ademais, transporta o

substrato responsável pela formação do sistema nervoso e, assim, da potencial

racionalidade, pelo que partilha da essência humana em sua profundidade. Posto

isto, concluímos que sobre ele projeta-se o princípio da dignidade humana.

318PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 44-45. 319Cf. MONTANO, Pedro J. La dignidad humana como bien juridico tutelado por el derecho penal.

Actualidad Penal, Madrid, fasc. 1, p. 419-430, maio 1997.

167

6.1.2 O plano do direito positivo

A noção de respeito à dignidade humana foi introduzida pela

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) da Assembléia Geral das

Nações Unidas, cujo art. 1º reza: “Todos os homens nascem livres e iguais em

dignidade e direitos”.

Reflexo dos recentes avanços científicos da biomedicina, a

Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos do Homem , aprovada

na 29ª Sessão de Conferência Geral da UNESCO (1997), alude, repetidas vezes,

à dignidade.

Com tonalidade universal, dispõe o art. 1º: ”O genoma humano

subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e também

ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido

simbólico, é herança da humanidade”. A herança genética é aceita com elemento

que pertence a todos os seres humanos, que os une numa família e, dele

partilhando, a humanidade goza de inerente dignidade. Como o embrião desfruta

da carga genética dos homens, é reforçada a tese de que a dignidade também o

abrange.

O art. 2º remete aos indivíduos nos seguintes termos: “Cada

indivíduo tem direito ao respeito de sua dignidade e de seus direitos, sejam quais

forem suas características genéticas”. É proclamado o dever de tratamento

igualitário ao semelhante, em função exclusiva de pertencer ao gênero humano,

manifestando repúdio ao reducionismo genético que as novas descobertas, ou

melhor, o conhecimento incontrolado acerca de seu teor pode importar,

168

implicando, por exemplo, estabelecimento de cláusulas discriminatórias em

contratos de seguro de vida ou de saúde.

Por fim, a Declaração, ao adentrar propriamente no conteúdo da

“dignidade humana”, opta pela exclusão, pois simplesmente alude a duas técnicas

da engenharia genética para qualificá-las como “práticas contrárias à dignidade”:

clonagem com fins de reprodução de seres humanos (art. 11) e as intervenções

na linha germinal (art. 24).320 De conseguinte, o documento não define, com

precisão, os contornos da dignidade humana.

No direito interno, a Constituição pátria, em seu art. 1º, III, considera

a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático

de Direito. Em razão da categoria juspositiva que ocupa e da importância que lhe é

inata, a dignidade humana, como escreve Flávia Piovesan, “impõe-se como núcleo

básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de

valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.321

O preceito determina que o Estado seja estruturado sobre base

antropológica, onde o homem seja reconhecido como eixo do sistema estatal,

social, econômico e cultural, representando o “limite e fundamento do domínio

político”, edificado democraticamente sobre os pilares do “multiculturalismo

mundividencial, religioso ou filosófico”, nos dizeres de Canotilho.322

320Cf. ANDORNO, Roberto. La dignidad humana como noción clave en la Declaración de la UNESCO

sobre el genoma humano. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 14, p. 49-52, ene./jun. 2001. Explica o autor, membro do Comitê Internacional de Bioética, que os princípios da Declaração em apreço servem de fonte inspiradora para políticas governamentais, mas carecem de força vinculante, pois se aguarda complementação por Convenções ou Tratados.

321PIOVESAN, Flávia. Direito humanos e o princípio da dignidade humana. In: LEITE, George Salomão (Org.). op. cit., p. 192.

322CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 221 e 244. O autor explana sua posição ao examinar a Constituição Portuguesa. Em seu art. 1º prescreve: “Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana”; no art. 2º: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais”.

169

Em análise apressada, pode-se afirmar que a Constituição pátria,

quando reconhece a dignidade da pessoa humana, prioriza o interesse individual

em face do coletivo. Entretanto, se interpretada sistematicamente, sobretudo sob

influxos dos direitos fundamentais, a Carta não traduz tal idéia. A falta de

hierarquia entre as normas de direitos fundamentais individuais e os coletivos

indica, em verdade, que a solução perante o conflito deve ser buscada em cada

caso, de acordo com as circunstâncias, quando entra em cena a máxima da

proporcionalidade.

Entretanto, como sustenta Fernando Ferreira dos Santos, mesmo

que a ponderação resulte na primazia pelo coletivo, nunca pode ser sacrificado o

valor da pessoa e, por isso, ela é o mínimo que não pode ser ultrapassado pelo

Estado. Daí que a dignidade da pessoa humana tem prevalência contínua.323

Seguindo tal esteira, não é totalmente acertada a tese defendida

por Robert Alexy de que o art. 1º, § 1º, frase 1ª, da Lei Fundamental da Alemanha

- “a dignidade da pessoa humana é inviolável” - enuncia norma, em parte, tratada

como regra, quando será absoluta, e, em parte, como princípio, quando será

relativa, embora assentada em amplo grupo de condições de precedência com

elevado grau de segurança.

Para tornar melhor compreensível seu raciocínio, refere-se à

decisão do Tribunal Constitucional alemão, segundo o qual “a dignidade da

pessoa (...) tampouco é lesionada quando a execução da pena é necessária

devido à permanente periculosidade do detido e, por esta razão, não está

permitido o indulto”. Esta formulação, defende o professor germânico, permite

constatar que a proteção da comunidade estatal, sob as condições indicadas,

323Cf. SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 32.

170

precede o princípio da dignidade humana. Alteradas as condições, outra será a

conclusão.324

Seu pensamento, porém, pressupõe que a prevalência da

dignidade humana esteja vinculada à liberdade do condenado, direito individual,

ignorando a possibilidade ora advogada de que prossiga respeitada quando

priorizado o interesse coletivo voltado, por exemplo, para a paz social, base para

a coexistência digna. Na última hipótese, o resguardo ao respeito à dignidade

humana determina, exclusivamente, a mantença do mínimo ao condenado, como

o direito à liberdade de crença, à saúde, à preservação da integridade física, ao

trabalho interno com direito à remissão, o que lhe pode ser conferido dentro de

estabelecimentos penais prisionais.

Sendo assim, a dignidade humana deve ser compreendida, tão-

somente, como regra, ou melhor, como uma “super-regra” que, dentro do âmbito

do ordenamento jurídico constitucional, sempre precede às outras. Sem embargo,

dada sua relevância constitucional, a dignidade, como a proporcionalidade, é

simbolicamente tratada como princípio e, sob este prisma, afigura como

“verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o

Constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-o de

especial racionalidade, unidade e sentido”, novamente na lição de Flávia

Piovesan.325 Destarte, neste trabalho, sempre que referido o princípio da

dignidade humana, o sentido será retórico, não dogmático.

324ALEXY, Robert. op. cit., . 106-108. 325PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 195.

171

6.1.3 A relação com os direitos individuais e a impossibilidade da sua

identificação como bem jurídico

Na lição de Sérgio Ferraz, “o princípio constitucional do respeito à

dignidade da pessoa humana implica um compromisso do Estado e das pessoas

para com a vida e a liberdade de cada um, integrado no contexto social”.326 A

menção à vida e à liberdade da pessoa conduz à irretorquível aproximação,

comum entre os constitucionalistas, entre a dignidade humana e os direitos

fundamentais, como explana José Afonso. Para ele, a “dignidade da pessoa

humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos

fundamentais do homem, desde o direito à vida”.327

O liame é enfatizado por Jorge Miranda, quando considera a

dignidade humana como “fonte ética” dos direitos, liberdades e garantias pessoais

e dos direitos econômicos, sociais e culturais comuns.328 Karl Loewenstein, na

mesma esteira, concebe a dignidade como a encarnação das liberdades

fundamentais.329

Em suma, a consagração constitucional da dignidade humana

alicerça o conjunto de direitos fundamentais no ordenamento jurídico, funcionando

como valor-guia para que o Direito gravite em torno da pessoa, que é tratada

como valor primário e superior. Avizinhado do sentido de equilíbrio e de justiça, o

conceito assume importância inigualável, tanto que é fundamento e fim do Estado.

Em contrapartida, seu conteúdo ganha amplitude demasiadamente vasta, o que

326FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto

Alegre: Fabris, 1991. p. 20. 327SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 109. 328MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000. t. 4,

p. 167. 329LOEWENSTEIN, Karl. op. cit., p. 115.

172

lhe impede, por si só, de explicar, detalhar ou concretizar o verdadeiro objeto de

proteção das figuras penais. A noção, com abertura desejável no âmbito da

Constituição, se transportada diretamente para o direito penal como bem jurídico,

enfraqueceria a precisão dogmática desejada pela categoria, autorizando

antecipações excessivas na barreira punitiva.

A assertiva, porém, não implica desconsideração da idéia de

dignidade no plano jurídico-penal. Considerando que os direitos fundamentais

“são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana”,330 porque neles

se faz presente “um conteúdo, ou pelo menos, alguma projeção da dignidade”,331

quando um delito abala um direito fundamental, reflexamente desrespeita a

dignidade humana, como ocorre com a prática de racismo ou com a tortura.

Portanto, no âmbito do direito penal, não é identificado com independência o

conteúdo da dignidade humana, mas ele assume destacada importância,

porquanto se manifesta em vários tipos penais.

Enfim, a dignidade humana, com tendência à vagueza, não se

amolda a limites precisos, para que, em si mesma, seja um bem jurídico-penal.332

Sem embargo, a idoneidade projetiva e informadora da noção permite que se

330ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de

1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 106. 331SARLET, Ingo Wolfang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da

pessoa humana e direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: LEITE, George Salomão (Org.). op. cit., p. 222.

332Nesse sentido: ROMEO CASABONA, Carlos María. Los delitos contra la vida y la integridad personal y los relativos a la manipulación genética. Granada: Editorial Colmares, 2004. p. 277; GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 214; GONZÀLEZ CUSSAC, José Luis. Manipulación genética y reproducción asistida en la reforma penal española. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 3, p. 72-73, jul./dic. 1995; PERIS RIERA, J. M. La regulación penal de la manipulación genética en España (princípios penales fundamentales y tipificación de las genotecnologias ). Madrid: Civitas, 1995. p. 97-100; CUESTA AGUADO, Paz M. de la. op. cit., p. 138-139. Em sentido contrário, Ferrando Mantovani considera a dignidade humana como novo bem emergente das intervenções genéticas (Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas de control y técnicas de tutela, cit., p. 105). Na última linha, está também HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. Consideraciones jurídico-penales sobre las conductas de clonación en los embriones humanos (II). Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 2, p. 61 e 66, ene./jun. 1995.

173

obtenha, com recurso a ela, a identificação de novos bens jurídicos-

constitucionais. Sob tal ótica, a noção é ferramenta para o dinamismo da

Constituição333 e autoriza o reconhecimento de novos direitos, que emergem da

evolução humana, onde a biotecnologia inclui-se.

6.2 A vida

O direito à vida é um direito humano, na medida em que não é

adquirido nem concedido pelo Estado; é inerente à pessoa. Sua importância é

facilmente compreendida, porque sustenta todos os demais direitos individuais,

eis que é o suporte para cada pessoa exercitar e desenvolver suas próprias

faculdades. Ao apreciar a vida humana, o Tribunal Constitucional espanhol, na

sentença n. 53, de 11 de abril de 1985, aclamou que: “constituye el derecho

fundamental esencial y troncal en cuanto es el supuesto ontológico sin el que los

restantes derechos no tendrían existencia posible”.

As novidades da engenharia genética, aplicadas pelas técnicas

de reprodução assistida, irritam, de maneira inusitada, as formas de vida relativas

às fases embrionárias. Estando, em laboratório, os óvulos, os espermatozóides

ou os embriões, é aberta a possibilidade de serem manobrados com fins diversos

do natural (a procriação), pelo que se reacende questão particularmente delicada,

dolorosa mesmo, concernente aos limites mínimos do direito à vida. A resposta

não é uníssona, desenvolvendo-se sob ângulos diversos.

333Nesta linha: ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la

vida humana. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 1994. p. 69.

174

6.2.1 As teorias sobre o começo da vida

6.2.1.1 As posições clássicas: gregos e romanos

O questionamento sobre a origem da vida é tão remoto quanto a

arte de perguntar. Na Grécia, era corrente a proibição do aborto. O médico

Hipócrates declarava que “a nenhuma mulher daria substância abortiva”. Para

Platão, um dos pais da filosofia, em sua obra A República, era preconizado o

aborto para todas as mulheres que engravidassem com mais de 40 (quarenta)

anos. Por trás desta afirmação, pretendia que os casais gerassem filhos para o

Estado durante o período em que a mulher fosse mais nova. O filósofo não

compreendia haver problema ético no ato, pois, segundo ele, a alma entrava no

corpo apenas no momento do nascimento.

Em Roma, não cuidavam do aborto a Lei das XII Tábuas e as Leis

da República. A interrupção da gravidez era considerada legal e moralmente

aceita. Sêneca, um dos filósofos mais importantes da época, contou que

comumente as mulheres induziam o aborto com o objetivo de preservar a beleza

do corpo.334

Contudo, as sociedades clássicas não estiveram livres das

polêmicas atuais. Na Grécia, Aristóteles construiu a doutrina epigenética, que

distingue formas sucessivas da alma: nutritiva, sensitiva e intelectiva a qual

alcançaria o embrião na data do início do primeiro movimento no útero materno, o

que conduziu o filósofo a defender que a conversão em pessoa ocorre

paulatinamente. No feto do sexo masculino, essa manifestação ocorria no 40º 334Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942. v. 5,

p. 233-234; O PRIMEIRO instante, cit., p. 58-59.

175

(quadragésimo) dia. No feminino, no 90º (nonagésimo), pois Aristóteles acreditava

que as mulheres eram física e intelectualmente inferiores aos homens e, por isso,

se desenvolviam mais lentamente. Como na época era impossível definir o sexo,

o grego preconizava que o aborto era cabível até o 40º (quadragésimo) dia e,

segundo as atuais comprovações biológicas, o prazo coincide com a finalização

da estrutura básica do córtex cerebral.335

6.2.1.2 A doutrina da Igreja Católica: a teoria da animação

A problemática sempre preocupou os católicos. A postura

aristotélica sobreviveu durante os primeiros tempos do cristianismo. Foi abraçada

por teólogos eminentes, como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho e,

finalmente, alçada à tese oficial da Igreja para o surgimento da vida. Nesta fase, o

desenvolvimento humano era diferenciado em dois momentos: a concepção,

resultante da união entre gametas masculino e feminino, e a animação, quando o

Criador infundia a alma no produto da fecundação, o que ocorria 40 (quarenta) ou

80 (oitenta) dias após a fecundação, conforme fosse varão ou mulher.

Embora não fosse aprovado o aborto praticado antes do decurso

desse período, era isento de pena ou, no mínimo, diminuída sua magnitude, além

de despojado da seara dos pecados mortais, pois, para incidirem, era necessário

que a criatura-alvo tivesse alma, a qual representava condição para que ela fosse

considerada pessoa

Em 29 de outubro de 1588, com a promulgação da Bula

Effraenatam, de Sixto V, a Igreja passou a condenar como homicida aquele que

335Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 73.

176

buscasse a expulsão de um feto imaturo, seja animado ou inanimado, formado ou

informe. A sanção religiosa era a excomunhão. Três anos mais tarde, a postura

foi abandonada pelo Papa Gregório XIV, quem retomou a doutrina anterior

mediante a Bula Sedis Apostolicae e, portanto, abortar voltou a ser valorado

diferentemente.

Transcorreu quase um século até que, em 2 de março de 1679,

com Inocêncio XI, mediante Decreto do Santo Ofício, a Igreja regressou à posição

mais abrangente sustentada por Sixto V, que remanesceu assentada no Código

de Direito Canônico de 1917 (cânone 2350, §1).

O Papa Pio XI, em 12 de outubro de 1869, na Constituição

Apostolicae Sedis, eliminou a referência a feto “animado” e “inanimado”, com a

aplicação da excomunhão para o indivíduo que cometesse a interrupção da

gravidez em qualquer fase, quando, na Igreja, assistiu-se à consolidação da teoria

da animação imediata e generalizou-se a convicção de que a alma humana era

infundida pelo Criador no momento da fecundação.336

Contemporaneamente, a Congregação para Doutrina da Fé do

Vaticano, datada de 22 de novembro de 1987, sacralizou a vida desde a

fecundação, difundindo a idéia de que a mesma configura valor absoluto, de

modo que é contrária ao aborto e à atividade investigativa embrionária, sob o

argumento de que, na via oposta, o homem usurparia o lugar de Deus, embora

não se conscientize disso ao se fazer senhor do destino alheio.

O atual Papa Bento XVI alinha-se a esta postura. Segundo

Joseph Ratzinger, “a vida começa no momento da concepção”, e os embriões são

“sagrados e invioláveis”. A posição está incluída na encíclica Evangelium Vitae,

336Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 147-149.

177

de 1995, embora o documento não aborde especificamente a condição do

embrião antes da implantação no útero materno. No entanto, Bento XVI deixou

claro que não deve haver distinção entre um embrião antes ou depois da

implantação. “Deus não faz distinção pois em cada um deles vê sua própria

imagem e semelhança”.337

Em síntese, a Igreja Católica rejeita o aborto e inclina -se para o

repúdio à experimentação com embriões, a seu congelamento e até mesmo às

técnicas de reprodução assistida, desde que impliquem emprego de gametas

alheios ao marido ou à mulher.

Todavia, os dogmas católicos, também seguidos pelos

Evangélicos, não são observados por todas as outras religiões. Para o Judaísmo,

a vida “começa apenas no 40º dia, quando acreditamos que o feto começa a

adquirir forma humana”, diz o rabino Shamal, de São Paulo. Destarte, permite a

pesquisa com células-tronco e o aborto quando há risco de vida para a mãe. O

Islamismo compreende que o início da vida acontece quando a alma é soprada

por Allah, cerca de 120 (cento e vinte) dias depois da fecundação. Mas há

estudiosos da crença que aceitam que a vida começa com a fecundação.

Condena o aborto, salvo quando há risco de vida para a mãe, e tendem a apoiar

as pesquisas com células-tronco. Para o Budismo, a vida é um processo contínuo

e ininterrupto. Não começa na união de óvulo e espermatozóide, mas está

presente em tudo o que existe – nossos pais e avós, as plantas, os animais até a

água. Os seres humanos são apenas uma forma de vida que depende de outros,

não havendo consenso sobre o aborto ou pesquisas com embriões. Para o

Hinduísmo, a alma e a matéria encontram-se na fecundação e, como o embrião

337As declarações foram feitas durante audiência com os membros da Academia Pontifícia para a

Vida (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 28 fev. 2006. p. A-9).

178

tem alma, deve ser tratado como humano. Assim, em geral, os adeptos são

contrários ao aborto e às pesquisas com células-tronco.338

Sendo o Brasil um Estado de Direito laico, porque não adota, no

corpo textual da Constituição, religião oficial, e Democrático, já que respeita todas

as crenças, a legislação não pode priorizar uma religião com prejuízo de outra. A

assertiva é corroborada pela tutela conferida, entre os direitos fundamentais, à

liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI). De conseguinte, o ordenamento

jurídico deve tolerância à Igreja Católica, à Evangélica e a todas as outras

crenças em forças sobrenaturais, como também ao direito de ser pagão. Por isso,

a lei não assenta sua legitimidade em convicções sobre a existência da alma e,

conseqüentemente, sobre o dogma de sua presença desde a fecundação,

pregado por diversas religiões.

No Estado Democrático de Direito, o problema jurídico sobre o

começo da vida, como preconiza Giovanni Sartori, alude à razão, pelo que

depende de argumentos racionais.339 Do contrário, o direito penal voltaria a se

confundir com a religião, como nos tempos do absolutismo. Na argumentação

racional, os subsídios advêm, de um lado, de descobertas promovidas pela

ciência biomédica, onde é estudado o processo vital da espécie humana, e, de

outro, das ciências humanas, sobretudo dos estudos que são promovidos sobre a

cultura social em sua totalidade.

338Cf. O PRIMEIRO instante, cit., p. 57. 339SARTORI, Giovani. A vida humana segundo a razão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 03 mar.

2005. p. A-8.

179

6.2.1.3 A teoria da fecundação ou formação do genótipo

Quando o espermatozóide penetra no óvulo, seus sistemas,

formados por 23 (vinte e três) cromossomos haplóides, interagem, mesclando um

ao outro (singamia), para originar um novo sistema, o zigoto, com número

cromossômico diplóide (23 pares). Sem alteração do padrão genético

(continuamente humano), mediante contínuas e conectadas divisões celulares

(mitose), o zigoto é o ponto de partida para todas as células do organismo.

Preleciona Elio Sgreccia, in verbis: “Uma vez que o

desenvolvimento biológico é ininterrupto e se realiza sem intrínseca mutação

qualitativa, sem que seja necessária uma ulterior intervenção causal, deve-se

dizer que a nova entidade constitui um novo indivíduo humano, o qual desde o

instante da concepção continua o seu ciclo, ou melhor, a sua curval vital. A

autogênese do embrião acontece de tal modo que a fase sucessiva não elimina a

precedente, mas a absorve e a desenvolve, segundo uma lei biológica

individualizada e controlada”.340

Dispondo de programa genético único e irrepetível, que não se

confunde com os dos progenitores, o zigoto reúne, com simplicidade assustadora,

toda a informação genética necessária para a formação do ser vivo,

necessariamente humano. A autonomia genética, da qual é dotado, é confirmada

por eventuais reações imunológicas desencadeadas pelo aparelho orgânico

materno. Exemplo é o abortamento espontâneo por incompatibilidade materno-

fetal para grupos sangüíneos ABO.341

340SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 346. 341Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Os direitos humanos do embrião: análise bioética das técnicas

de reprodução assistida. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 88, n. 768, p. 90, out. 1999.

180

Demais disso, o primeiro grupamento de células embrionárias

(blastócito), resultado de poucas divisões celulares, desempenha, desde logo,

duas tarefas de suma importância: o desenvolvimento embrionário e o

desenvolvimento do sistema placentário e da bolsa amniótica, soltando uma corda

com a qual o embrião se manterá unido à corrente sanguínea da mãe.342 Daí ser

possível afirmar que as células desse sistema não são maternas, mas fetais, o

que rompe com a idéia romana de que o produto da concepção era parte do

corpo da gestante, pelo que partus antequam edatur mulieris pars est vel

viscerum (a mulher que aborta nada mais faz do que dispor de seu próprio corpo).

Assentada na fabulosa potencialidade que impregna o zigoto, a

teoria em epígrafe defende que, a partir do momento da fecundação do óvulo pelo

espermatozóide, começa uma nova forma de vida especificamente humana. A

postura é também chamada “genética” e, como visto, é abraçada pelos católicos,

evangélicos e hinduístas. Quando analisada sob a lente do Direito, a tese conduz

uma parcela significativa da doutrina a concluir que o direito à vida acoberta o

embrião desde a fecundação.

Nesse passo, Maria Garcia preleciona que: “O ser humano é

único e indivisível, da concepção à morte”.343 Também Neves Barbas: ”Há pessoa

humana, há vida desde a concepção (e, também, alma para os católicos) e não

apenas com o nascimento”.344 Seguiu a mesma linha o Conselho Nacional

português de “Ética para as Ciências da Vida”, no Relatório-Parecer sobre

342Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 24-25. 343GARCIA, Maria. op. cit., p. 167. Garcia Na doutrina brasileira, adotam a mesma postura, entre

outros, Maria Auxiliadora Minahim (Direito penal e biotecnologia. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005), Jussara Maria Leal de Meirelles (op. cit.), Pietro de Jesús Lora Alarcón (Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004).

344BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina, 1988. p. 67.

181

Experimentação no Embrião Humano (15/CNECV/95): “O embrião é, em qualquer

fase e desde o início, os suportes físico e biológico indispensáveis ao

desenvolvimento da pessoa e nele antecipamos aquilo que há de vir a ser: não

há, pois, razões que nos levem a estabelecer uma escala de respeito”.345

Ana Paula Guimarães também partilha deste pensamento: “Na

verdade, embora condicionado ao organismo materno, o ser humano em

formação possui um dinamismo próprio, uma vida própria e actual que vai se

desenvolvendo e aperfeiçoando. Não vive por si, mas vive para si. É já um ser e

não parte da mãe que o gera. Um dia, este ser, encontrando-se capaz de se

autonomizar do corpo da mãe, nascerá, crescerá, envelhecerá e, um outro dia,

morrerá”.346

Para o jurista italiano Ferrando Mantovani, o critério da

fecundação é – entre todos os outros que considera meramente convencionais,

utilitaristas, perigosos e divergentes entre si – o único com base ontológica,

porque não olvida que o zigoto é ser humano, não coisa ou propriedade dos

progenitores.347

Entre os alemães, Albin Eser defende que o zigoto não é “algo

meramente vegetativo”, mas “una vida humana que no se puede equiparar a la

vida vegetal o animal ni mucho menos a una simples cosa”.348 Sob essa ótica, a

Lei alemã de Proteção ao Embrião, de 13 de dezembro de 1990, em seu §8º,

define o embrião como o resultado da fusão das células masculina e feminina

345BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 71-72. 346GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 153-154. 347Cf. MANTOVANI, Ferrando. Uso de gametas, embriões e fetos na pesquisa genética sobre

cosméticos e produtos industriais. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). op. cit., p. 186-189.

348ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 125.

182

apto a desenvolver-se para dar origem a um indivíduo, assim como qualquer

célula totipotente extraída do embrião.

A presente corrente também foi adotada em Resolução pelo

Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Viena, em

outubro de 1989: “Embora sejam divergentes as opiniões a este propósito e

sendo certo que o problema suscita ainda vivos debates no mundo inteiro, todos

concordam, pelo menos – ressalvadas eventuais limitações – em reconhecer que

a vida humana, desde a fecundação, merece ser protegida, independentemente

do facto de o embrião, desde o início, ser qualificado como pessoa ou de possuir

ou não direitos próprios fundamentais”.349

A teoria, entretanto, não é incólume a objeções.

Muitas delas advêm de profissionais especializados na seara da

biomedicina. Marco Segre, Conselheiro do Conselho Regional de Medicina, emitiu

o seguinte parecer: “A demarcação do momento do início da vida no átimo da

fecundação, levando a considerar desprezível um gameta (ou muitos) isolado e

‘sagrado’, logo em seguida, o blastócito, é condição absolutamente aleatória (uma

vez que o processo vital é um ‘continuum’, cabendo à sociedade definir quando é

seu início, o seu fim), vinculada basicamente às religiões”.350

Porém, o óvulo e o espermatozóide, enquanto permanecem

isolados, não têm potencialidade de gerar um adulto, o que é disparado pela

fusão. Os gametas são, na realidade, produtos individualizados, que não passam

349Cf. ROCHA, Manuel António Lopes. Bioética e nascimento. O diagnóstico pré-natal. Perspectiva

jurídico-penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, fasc. 2, p. 180, abr./jun. 1991. 350Parecer emitido na consulta ao CREMESP n. 25.784/01, aprovado na 2.652ª reunião plenária,

realizada em 10 de agosto de 2001 e homologado na 2.655ª reunião plenária, realizada no dia 14 daquele mês. No mesmo sentido, o parecer emitido na consulta n. 15.100/99, aprovado na 2.739ª reunião plenária, realizada em 8 de março de 2002 e homologado na 2.742ª reunião plenária, realizada no dia 12 daquele mês.

183

de células agonizantes, com expectativa de vida muito reduzida, além de

incapazes de multiplicação, o que não ocorre com o embrião.351

Além disso, entre os críticos, é lembrado que a fecundação não

se atém a momento isolado, porquanto configura processo complexo e largo.

Quando in vitro, perdura entre 10 (dez) e 25 (vinte e cinco) horas; se in vivo,

percorre por volta de 8 (oito) horas. Ademais, entre os cientistas, não há

consenso sobre o término da fecundação, como explica Lacadena. Para alguns

“ocurre cuando los complementos cromosómicos de origen paterno y materno

quedan incluidos en una membrana nuclear común al término de la primeira

división celular”, enquanto, para outros, “deveria situarse, com mucho, más allá de

cuando los dos pronúcleos han replicado ya su ADN y están preparados para

iniciar a mitosis”.352

De qualquer modo, não há como negar que o grupamento das

primeiras células embrionárias tem carga genética do homo sapiens e,

diversamente de órgãos em laboratório aguardando transplante, tem peculiar

potencialidade para desenvolver-se e fazer nascer um indivíduo.

6.2.1.4 A teoria da nidação

A ciência biomédica identifica, no curso do desenvolvimento

embrionário, propriedades biológicas, fisiológicas e genéticas, que apresentam a

particularidade de coincidir no tempo. Sobre elas, a teoria da nidação

(implantação do embrião no útero materno) deita raízes.

351Nessa linha, MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 87. 352RAMÓN LACADENA, Juan. op. cit., p. 193-195.

184

A primeira das singularidades biológicas parte da comprovação

de que, antes da nidação, graças ao estado de totipotencialidade em que se

encontram as células, é possível a segmentação, consistente na cisão do grupo

de células embrionárias em mais de um sistema vital, prosseguindo cada qual

com desenvolvimento independente (gêmeos) ou, em sentido inverso, unindo-se

num só sistema (mosaicos ou gêmeos siameses). O resultado será o nascimento

de pessoas em duplicidade, decorrentes de único zigoto, com o mesmo genótipo.

Os gêmeos monozigóticos apresentam-se na proporção de 2

(dois) casos para 1.000 (mil) concepções. São formados até o 4º (quarto) ou 5º

(quinto) dia, cada qual com seu respectivo córion e âmnios (futura cavidade

amniótica). Quando divisão processa-se na segunda semana, os gêmeos

partilham do mesmo córion e da mesma bolsa amniótica e, neste caso, com

ínfima ocorrência, é possível haver uma divisão incompleta entre os embriões,

quando advirão os gêmeos siameses.353

Baseada na possibilidade da segmentação, uma parcela dos

cientistas considera que, antes da implantação do blastócito no útero, estão

aparentemente ausentes duas características fundamentais para o

reconhecimento da vida humana: a unidade (qualidade de ser único) e a

unicidade (propriedade de ser um só). Esse fato, para os adeptos da presente

teoria, coloca pelo menos em dúvida a individualidade humana antes da nidação,

o que os leva a concluir que, nesse período, conquanto se tenha iniciado a vida,

não é reconhecível uma vida humana, quer dizer, vida com potencial de formação

de uma pessoa.

353Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 80-81.

185

Em segundo lugar, argumenta-se que o blastócito não está

composto exclusivamente pelo material biológico responsável pelo

desenvolvimento do embrião (embrioblasto), eis que se lhe integra o trofoblasto,

do qual as membranas extra-embriônicas, a placenta e o cordão umbilical

originar-se-ão.354 Considerando que os derivados trofoblásticos estão vivos, têm a

mesma composição genética do que o feto e são expulsos no momento do

nascimento, é deflagrada, pelos partidários da teoria, a seguinte pergunta: eles

são uma pessoa?355 Esquecem-se, porém, de que o trofoblasto, diversamente do

embrioblasto, não tem potencialidade para desenvolver-se em ser adulto.

Lança-se, como terceiro fundamento, a descoberta da

biomedicina sobre o zigoto não deter toda a informação necessária para o

processo embriogenético.356 A respeito, Afonso Bedate e Cefalo, doutrinadores

especializados, explicam que a capacidade genética do zigoto não é

imediatamente autosuficiente, mas adquirida, com o tempo, mediante relação

mútua com outras moléculas, no caso as da mãe, quando os sistemas biológicos

interagem.357 É, entretanto, obscurecido que o zigoto incorpora informação

exclusivamente humana e bastante para iniciar o processo de diferenciação.

O quarto argumento recorda que, geneticamente, o conjunto de

células embrionárias (blastócito) que antecede a nidação é bastante frágil,

porque, no período, opera acentuada seleção natural, em virtude da qual apenas

metade dos óvulos fecundados tem potencialidade para implantar-se no útero,

perdendo-se o restante e, consumada a implantação, a percentagem de perda 354Capítulo 2, item 2.3.1, supra. 355Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 83. 356Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida

humana, cit., p. 149. 357Afonso Bedate e Carlos Cefalo, “El zigoto: ser ou no ser persona”, in: Labor Hospitalaria, n. 217,

1990, p. 232, apud ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit., p. 149.

186

reduz-se para 20% (vinte por cento). Entre os óvulos abortados no período, cerca

de 80% (oitenta por cento) são portadores de graves patologias cromossômicas

ou de malformação congênita.358

Em quinto lugar, é lembrado que o zigoto recém-formado pode,

excepcionalmente, fugir do destino natural e originar um tumor trofoblástico,

espécie de câncer em que crescem células malignas nos tecidos formados logo

após a união do óvulo e espermatozóide. Outra possibilidade de evolução

anômala está na formação da mola vesicular ou hidática, consubstanciada em

vilosidades do córion fortemente hipertrofiadas e dilatadas em vesículas,

dispostas em numerosos prolongamentos, formando cachos. Nos caracteres

anátomo-histológicos das vilosidades, existe a prova de uma produção gestativa,

gorada ou abortada, com destruição consecutiva do embrião ou feto, cujos restos

mortais o útero guarda como sepulcro.359

Em sexto e último lugar, porém com salientada importância, é

apontado que antes dos 14 (quatorze) dias iniciais, além de não ter se

completado a nidação, não houve a formação do plano construtivo do embrião

(linha primitiva) nem foi esboçada a rudimentar organização do sistema nervoso

(crista neural), de modo que nenhuma sensação é percebida.

Todos esses fenômenos, praticamente simultâneos, traduzem

dados significativos sobre a indiferenciação, instabilidade e autoseleção biológica

dos primeiros grupamentos de células embrionárias. A eles se soma a dificuldade

do diagnóstico da gravidez nas primeiras etapas. O conjunto funciona - dizem os

partidários da corrente - como base para afirmar que não existe objeto material

358Cf. GAFO FERNÁNDEZ, Javier. op. cit., p. 244. 359Cf. Souza Lima, Medicina Legal, 1924, apud HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 259-260.

187

que expresse com toda a nitidez a vida, o que inviabiliza sua subsunção à

categoria do bem jurídico.

A postura foi abonada pelo Relatório da Comissão de Pesquisa

sobre Fertilização Humana e Embriologia, criada em 1982, na Inglaterra, sob a

liderança de Mary Warnock, pelo que é denominado Relatório Warnock ou

Informe Warnock. Segundo o documento, não devem ser mantidos vivos

(congelados ou não) embriões humanos in vitro, se não transferidos para uma

mulher no período de 14 dias após a fertilização. Igualmente, não se devem

realizar pesquisas (investigações experimentais) com esses embriões além do 14º

(décimo quarto) dia.

Nesta égide, o Comitê Warnock, partindo do tempo necessário

para a formação da linha primitiva e, simultaneamente, do início do

desenvolvimento individual embrionário, permitiu que fosse diferenciado o pré-

embrião, equiparado a aglomerado amorfo de células com menos de 14

(quatorze) dias após a fecundação, dotado de remota possibilidade de constituir

um ser humano, do embrião, estrutura seguinte, com caráter humano e que se

transformará no feto. Portanto, a visão única da estrutura embrionária sustentada

pela teoria da fecundação - só existe embrião e, a seguir, o feto - foi substituída

pela sua distinção em duas categorias, com valorações diversas.360 A Comissão

Warnock foi marcadamente pragmática, porquanto, ao eleger o 14º (décimo

quarto) dia como termo inicial da tutela da vida humana, viabilizou as pesquisas

envolvendo as células-tronco embrionárias, inclusive mediante a clonagem.

Na mesma direção, pronunciou-se a Comissão Waller, na

Austrália, em 1984, afirmando que até o 14º (décimo quarto) dia seria possível a

360Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 347.

188

experimentação, pois, somente após, estaria formada a linha primitiva e a

diferenciação embrionária seria flagrante. A Corte Constitucional francesa

(decisão 94.343.344), em 27 de julho de 1994, decidiu que o princípio do respeito

à vida não era devido ao pré-embrião e permitiu que, sob certas condições, fosse

possível a destruição de embriões in vitro.361

Na Espanha, desde a Recomendação Palácios, aprovada em 10

de abril de 1986, oriunda da Comissão Especial de Estudo de Fecundação in vitro

e de Inseminação Artificial Humana, sob a presidência do deputado Marcelo

Palácios, entende-se que o embrião é merecedor de diferenciada e especial

proteção a partir dos 14 (quatorze) dias subseqüentes à fecundação.

A orientação foi respeitada nas leis subseqüentes - Lei n. 35, de

22 de novembro de 1988, sobre reprodução assistida, e Lei n. 42, de 28 de

dezembro de 1988, sobre doação e utilização de embriões e fetos humanos ou de

suas células, tecidos ou órgãos -, ambas de caráter administrativo.362 A Lei n. 35

autoriza a transmissão de embriões para o útero em número limitado ao

cientificamente correto, permitido, implicitamente, o surgimento de excedente (art.

4º); determina que os pré-embriões congelados por 2 (dois) anos, não doados,

fiquem à disposição dos bancos de gametas (art. 11, n. 4), promovendo o

nivelamento entre as duas figuras. A par disso, capitula, como infração muito

grave, manter in vitro óvulos fecundados e vivos além do 14º (décimo quarto) dia

361Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 99. 362São da Exposição de Motivos da Lei n. 35/88 os seguintes dizeres: “Generalmente se viene

aceptando el término ‘preembrión’ – también denominado ‘embrión preimplantatorio’, por corresponderse con la fase de preorganogénesis – para designar al grupo de células resultantes de la división progresiva del óvulo desde que es fecundado hasta aproximadamente catorce días más tarde, cuando ainda establemente en el interior del útero – acabado el proceso de implantación que se inició dias antes – y aparece en él la línea primitiva”. E, ainda: “Por ‘embrión’ propiamente dicho se entiende tradicionalmente a la fase del desarollo embrionário que, continuando la anterior si se há completado, señala el origen e incremento de la organogénesis o formación de los órganos humanos, y cuya duración es de unos dos meses y médio más; se corresponde esta fase con la conocida como de ‘embrión posimplantatorio”.

189

subseqüente à fecundação (art. 20, n. 2-B); a fecundação de óvulos humanos

com fins distintos da procriação; a utilização de pré-embriões com fim industrial ou

comercial; bem como, a seleção de sexo ou a manipulação genética com fins não

terapêuticos ou terapêuticos não autorizados.

Em outros termos, a licitude a priori da destinação de “pré-

embriões” para fins diversos da procriação, limitada pela proibição de específicas

condutas de manejo, indica que a ratio legis não se encontra na tutela deles, mas

em outros bens que extrapolam a esfera do dito “pré-embrião” e que aludem mais

propriamente à natureza humana do material.

No Brasil, a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de

Medicina, estipula que o tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões in

vitro será de 14 (quatorze) dias. Outrossim, o diploma recomenda que no máximo

4 (quatro) pré-embriões sejam transferidos, o que tem em mira evitar os riscos da

multiparidade, sem preocupação com a valia da vida do “pré-embrião”, porquanto

restou absolutamente relegada aos pacientes a decisão sobre o destino dos não-

implantados no caso de dissolução da sociedade conjugal.

Envereda para as bases desta construção a professora Lygia da

Veiga Pereira, geneticista brasileira que julga suportável utilizar células de

embriões com até 5 (cinco) dias.363

Partindo dessas premissas, ao estudarem o status jurídico do pré-

embrião, os professores da Universidade de Barcelona, Vale Muñiz e González

Gonzáles afirmam que: “Su falta de individualidad y la incertidumbre en torno a su

posible desarrollo embrionario lo alejan considerablemente del paraguas protector

363FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 13 mar. 2005. p. C-9.

190

del artículo 15 CE”.364 A posição é repisada em território latino pela argentina

María Valeria Massaglia de Bacigalupo: “el derecho a al vida que tiene el ‘por

nascer’, pero ségun mi critério dicho derecho debe ser reconocido a partir de que

el embrión se implantó en el útero del seno materno y no antes”.365

Não faltam críticas à presente corrente. Coloca-se a dificuldade

de edificar uma teoria sobre o começo da vida com base em fatos bastante

esporádicos: gêmeos monozigóticos ou siameses, degeneração patológica do

embrião em tumor. Rememorando que o desenvolvimento da vida humana é um

contínuo, alega-se que não há a pretendida ruptura entre a fase iniciada como

zigoto e a etapa subseqüente à nidação, posto que uma sucede a outra.

Enfocando o aparecimento da linha primitiva, Jussara Maria Leal de Meirelles

articula que “não é mais do que uma fase inserida no desenvolvimento

embrionário”.366

6.2.1.5 A teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central

Tal corrente defende que para saber-se o que é vida, basta

entender-se o que é a morte. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, a

morte é concebida como a ausência de ondas cerebrais. De conseguinte, a vida

começaria com o aparecimento dos primeiros sinais de atividade cerebral. Exige-

se, portanto, que se estabeleça quando estes surgem, onde reside forte polêmica.

364GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Marisé; VALLE MUÑIZ, José Manuel. Utilización abusiva de técnicas

genéticas y derecho penal. Poder Judicial, n. 26, p. 124, jun. 1992. O art. 15, da Constituição espanhola, protege o direito à vida.

365MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 39. 366MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 126.

191

A primeira corrente invoca a 8ª (oitava) semana de gravidez,

quando o embrião, do tamanho de uma jabuticaba, contém as versões primitivas

de todos os sistemas de órgãos básicos do corpo humano, incluindo o sistema

nervoso. Na 5ª (quinta) semana, os primeiros neurônios começam a aparecer; na

6ª (sexta) semana, as primeiras sinapses podem ser percebidas; e com 7 (sete)

semanas e meia, o embrião apresenta os primeiros reflexos em resposta a

estímulos. Assim, na 8ª (oitava) semana, o feto, com feições faciais mais ou

menos definidas, com mãos e pés, tem um circuito básico de três neurônios, base

de um sistema nervoso responsável pelo funcionamento de um pensamento

racional.367

A segunda hipótese aponta para a 20ª (vigésima) semana,

quando a mulher sente os primeiros movimentos do feto, capaz de sentar de

pernas cruzadas, chutar e dar cotoveladas. É nessa fase que o tálamo, a central

de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está pronto.368

Infere-se, pois, que os sectários da teoria concordam sobre o

termo inicial da humanidade - formação dos rudimentos do sistema nervoso - e,

assim, sobre o momento exato do começo da vida, embora discordem sobre o

período embriológico em que o fenômeno ocorre. Uma das adeptas da posição é

a bióloga Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano

da Universidade de São Paulo, responsável pela impulsão da nova Lei pátria de

Biossegurança.369

O critério é juridicamente atraente porque traça paralelo entre o

começo e o fim da proteção jurídica da vida. Todavia, a eleição da morte cerebral

367Cf. O PRIMEIRO instante, cit., p. 61. 368Id., loc. cit. 369Cf. ZATZ, Mayana. Quando a ciência múltipla a vida, cit., p. J-4.

192

como termo final para a tutela da vida observa parâmetro específico, qua l seja

possibilitar a extração de órgãos para o transplante em outra pessoa.370 Não há

situação correspondente nas primeiras fases embrionárias, porquanto a

organogênese não foi iniciada (aparece por volta do 2º - segundo - mês), não

havendo órgãos a serem transplantados. Ademais, a ausência de atividade

elétrica no embrião significa fenômeno biológico não manifestado, mas em

iminência de ser deflagrado, enquanto no adulto importa processo de extinção

irreversível da vida.371

Soma-se, por fim, que a compreensão científica de morte não é

pacífica, pois, como argumenta o médico neurologista Cícero Galli Coimbra,

pacientes com lesões cerebrais graves acompanhadas de hipertensão craniana,

que se encontram em estado de iminente destruição do encéfalo, são

erroneamente diagnosticados em estado de morte encefálica, quando poderiam

ser recuperados pela imediata indução a níveis leves de hipotermia.372

6.2.1.6 Nossa posição

Na seara da bioética, o operador do direito é levado a interagir

com outras ciências especializadas. Em sua obra, depara-se com conhecimentos

científicos pacíficos e com outros que não levam a conclusões unânimes entre os

próprios cientistas. A seara onde as divergências residem não autoriza o jurista à 370Anteriormente, o fim da vida era considerado a morte clínica, isto é, a cessação da atividade

cardiorrespiratória. A noção foi alterada para a morte cerebral com o avanço da ciência, tecnologia e medicina ligada a transplantes (cf. SILVA, Maurício de Castro Govêa da. A morte encefálica e sua repercussão no direito. In: BARBOSA, Heloísa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 161-163).

371Nesse sentido: GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 158-159; MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 87-88.

372MORTE encefálica. Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Disponível em: <http://www.unifesp.br/dneuro/me2.htm>. Acesso em: 05 dez. 2005.

193

inação pela perplexidade, senão demanda que rememore que são distintos a

forma de operar e o fim do Direito e das ciências da vida. O Direito desenrola-se

no mundo do dever ser, destinado a orientar o comportamento humano, com

respeito à liberdade de escolha, enquanto as Ciências Biomédicas estão no

mundo fenomênico (mundo do ser), preocupadas com a investigação dos

processos biológicos e sua descrição em relação rígida de causalidade. Cumpre,

pois, ao operador do direito instituir sua própria realidade, a normativa, para

adequá-la ao fim que lhe é próprio: busca da paz social.

Entretanto, não lhe é dado inventar um mundo apartado do

concreto. Cabe-lhe observar os dados fornecidos pela biomedicina, fazendo-o sob

filtro valorativo e, após, edificar seus conceitos, sem inverter os fenômenos

naturais, a fim de que se mantenham a aplicabilidade e a utilidade social da

norma jurídica.

Sendo assim, a análise dos elementos das teorias mencionadas

conduz ao reconhecimento de que o zigoto é célula com carga genética humana e

potencialidade única para desenvolver o adulto, mediante o fenômeno da divisão

celular. Não se nivela a um órgão para transplante nem aos gametas, porquanto

sua vida não é fugaz e retém especial capacidade de multiplicar-se e diferenciar-

se. A partir dele, a vida, embora não autônoma, evolui até o nascimento, de forma

contínua, coordenada e gradual, sem impulso externo e sem ultrapassar etapa,

mantendo, no adulto, idêntica carga genética formada desde a singamia entre os

gametas.

De conseguinte, no estágio atual da medicina, é razoável que as

ciências humanas, valorando os fenômenos biomédicos, aceitem que o zigoto

encarna vida humana em formação, com o fantástico traço de ser fonte primária

194

de toda a humanidade. Não se olvida que a postura ora defendida é passível de

alteração em virtude de hipotética descoberta científica futura que, interferindo no

sistema jurídico, imponha revisão do conceito normativo de vida, como ocorrera

com o conceito normativo de morte, que fora transportado do instante em que

expirada a atividade cardiorespiratória para o encerramento da atividade

encefálica, graças à evolução no campo dos transplantes.

Contudo, não é a legítima modificação do posicionamento com

fundamento em projetos pessoais incondicionados de procriação, postulando a

criação incontida de embriões, ou lastreados na avidez de pesquisas com células-

tronco embrionárias, ainda com inexata valia. Em verdade, ambos os propósitos

manifestam interesses de grupos em posição confortável que, por isso,

menosprezam, sem pudores, os mais frágeis, como outrora ocorrido com os

escravos, os judeus, as mulheres e, agora, com o embrião in vitro.

A segmentação e a transformação do zigoto em material

patológico, como dito, são exceções e, conseqüentemente, não prestam para

alicerçar uma teoria sobre o começo da tutela da vida. A fragilidade do blastócito,

bem como a ausência de linha primitiva ou crista neural, ou mesmo a falta inicial

de atividade cerebral não excluem do zigoto, ab initio, a potencialidade de

desenvolver um ser vivo com forma humana e racional. Do contrário, o Direito,

ignorando a realidade biomédica, priorizaria os critérios morfológicos (formação

da linha primitiva e organogênese), determinados por esses rudimentos, com

prejuízo dos modernos parâmetros genéticos, o que seria inconcebível do mundo

moderno.

Em suma, apartados os simbolismos simplistas, os jogos políticos

calcados no conhecimento ou na felicidade individual a qualquer custo, tem-se

195

que, desde a fecundação, está presente o direito à vida. Vejamos, pois, suas

expressões, para, após, esquadrinharmos os limites da atuação do direito penal.

6.2.2 Perfil internacional

A intervenção da comunidade internacional no resguardo do

direito à vida foi impulsionada pela “Segunda Guerra Mundial”, em face da

conscientização de que as transgressões poderiam ser cometidas, em grande

escala, sob o manto da autoridade estatal. Atualmente, a importância de

documentos internacionais é acentuada pela globalização e pelo disposto no art.

5º, §2º, da Carta Política brasileira.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 3º, ao

se referir à vida, prevê: “Todo indivíduo (everyone) tem direito à vida, à liberdade

e à segurança de sua pessoa”. A falta de remissão expressa ao nascituro ou à

vida intrauterina é justificável, pois as Nações Unidas estavam concentradas

noutro assunto, qual seja conjugar esforços para evitar repetição de abusos

cometidos recentemente pelos comandos estatais nacional-socialistas.

O Pacto Internacional de Direito Públicos e Civis, adotado pela

Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, assinala em

seu art. 6.1: “O direito à vida é inerente à pessoa humana (every human being).

Este direito estará protegido pela lei. Nada pode ser privado arbitrariamente da

vida”. No texto, foi omitida a condicional “desde o momento da concepção, este

196

direito deve ser protegido pela lei”, para superar as diversidades entre os Estados

sobre a legalidade do aborto, evitando polêmica na adesão ao documento.373

Em nível regional, a Convenção Americana sobre os Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aprovada pela Organização dos

Estados Americanos, em 22 de novembro de 1969, dispõe, em seu art. 4.1: “Toda

pessoa (every person) tem o direito a que respeite sua vida. Este direito será

protegido por lei e, em geral, desde o momento da concepção. Nada pode ser

privado da vida arbitrariamente (...)”. O pacto foi incorporado ao direito pátrio pelo

Decreto n. 678/92

Diferenciando-se dos demais, a Convenção estabelece,

textualmente, que a concepção é o marco para o começo da proteção jurídica da

vida. A par disso, o texto emprega, sem estatuir condições, o aposto em geral,

pelo qual confere espaço a exceções que, como nos documentos anteriores,

foram margeadas pela busca de sua compatibilidade com as legislações dos

países americanos que previam a descriminalização do aborto.

A possibilidade de desvio da regra geral e, sobremaneira, a falta

de precisão sobre o status jurídico atribuído ao embrião in vitro são explicadas

pelo contexto histórico e científico em que editado o documento. Há quase 40

(quarenta) anos, a presença de embrião em laboratório não era uma realidade e

as descobertas da engenharia genética eram bem primitivas.

Não atualizado nem taxativo, o Pacto não encerra o debate em

torno do limite mínimo do direito à vida, notadamente em temas mais específicos

como a biotecnologia. Reconhecendo a complexidade técnica e ética que permeia

a tutela da vida relativamente às primeiras fases embrionárias, a moderna 373A respeito, ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la

vida humana, cit., p. 52-53, n.r. 13.

197

Declaração Universal do Genoma Humano, direcionada às ciências biomédicas,

deixa em aberto a questão, tanto que remete tão-somente à pessoa e ao

indivíduo, não aludindo a nascituro.

6.2.3 Perfil constitucional

No Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I

(Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), o art. 5º, caput, da Constituição

Federal, reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida (...)”.

Fundamento biológico do indivíduo e da espécie, o direito à vida

implica direito a nascer, a existir e a não ser privado da vida. É captado sob duas

acepções opostas: a santidade e a qualidade. A primeira delas considera a vida

um valor absoluto e intangível, a ser protegido como tal, sem matizes. A segunda

confere à vida valor graduado. As duas noções, se isoladas, podem conduzir a

extremos.

O ideal é a aproximação entre elas, pois, como preleciona Albin

Eser, de “una parte, el respeto por la ‘santidad’ de la vida no debe fosilizarse en

un pretexto formal para reprimir las exigências del hombre concreto por dar un

sentido a aquélla. Por la outra parte, la ambición de una vida ‘cualitativamente’

valiosa, no debe socavar su preeminente derecho a la existência”.374 O equilíbrio

entre a santidade e a sacralidade é realizável pela máxima da proporcionalidade,

374ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 111.

198

temperada pelo princípio da dignidade humana, que harmoniza as concepções,

especialmente em face de situações limites.

Posto isto, é possível, sem exageros utilitaristas, sustentar que o

direito constitucional à vida tem cunho relativo no ordenamento jurídico, como

qualquer outro direito fundamental.375 Nem a expressão inviolabilidade autoriza

entendimento diverso, porquanto em seu contexto rechaça tão-somente ataques

arbitrários ou violentos e não quaisquer ataques.376 Fosse intocável o direito à

vida, a Constituição não teria instituído limitações expressas (art. 5º, XLVII, a,

parte final) ou recepcionado cerceamentos tácitos, presentes, por exemplo, nas

justificativas de homicídio (legítima defesa, estado de necessidade e exercício

regular de direito).

Dada a categoria de direito fundamental e diante do exposto no

art. 4.1, do Pacto de San José da Costa Rica, os limites ao direito à vida hão de

ser mínimos e bem arrazoados. Como nos demais direitos fundamentais, os

limites são internos e externos, explica Vieira de Andrade.377 Os internos derivam

do subsistema jusfundamental, emergindo de situações de conflito com outro

direito fundamental.378 Os limites externos decorrem da integração dos direitos no

conjunto de valores comunitários e permitem que se conciliem as naturais

exigências de cada direito com as imposições próprias do cotidiano comunitário: a

ordem pública, a ética, a segurança, o bem-estar geral.

375Na mesma linha, MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 70. 376No Dicionário Aurélio, a palavra inviolável significa, juridicamente, estar legalmente protegido

contra qualquer violência e acima da ação da justiça. 377ANDRADE, José Carlos Vieira de. op. cit., p. 275-276. 378Daí a precisão das palavras de Albin Eser: “Este relativismo de la protección de la vida no

significa una diminución de su valor, sino de lo que se trata es de construir un bastión no solo sostenible desde el punto de vista ético-jurídico, sino también realizable fácticamente” (ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 128).

199

Na busca dos limites temporais do direito à vida, os documentos

internacionais, não direcionados às novidades da biomedicina ou imprecisos, não

fornecem resposta definitiva.

Examinando o disposto no art. 5º, caput, da Constituição, os

doutrinadores pátrios e estrangeiros, bem como os tribunais, fornecem precioso

material para que seja adotada uma posição.

José Afonso da Silva pondera que a vida é “mais um processo

(processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal),

transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade,

deixando, então, de ser vida para ser morte”.379 Opta, portanto, pela teoria da

fecundação. A seguir, analisa as tendências havidas durante a redação do texto

constitucional, quando observa que foram três: I) assegurar o direito à vida desde

a concepção, o que redundaria em proibir o aborto; II) subordinar a condição de

sujeito de direito ao nascimento com vida, de modo que a responsabilidade

intrauterina seria da mulher, o que possibilitaria o aborto; III) entender que a

Constituição não deveria tomar partido na questão do aborto. Refuta a última

tendência, advertindo que “não saiu inteiramente vencedora, porque a

Constituição parece inadmitir o abortamento”. Mas ressalva que, “no fundo, a

questão será decidida pela legislação ordinária, especialmente a penal. E, por

certo, há casos em que a interrupção da gravidez tem inteira justificativa, como a

necessidade de salvamento da vida da mãe, o da gravidez decorrente da cópula

forçada e outros que a ciência médica aconselhar”.380

André Ramos Tavares, em análise direcionada para as primeiras

fases embrionárias, deixa claro que “nada impede que o Direito confira aos pré- 379SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 200. 380Id. Ibid., p. 206.

200

embriões a mesma proteção conferida à vida humana. (...) Trata-se muito mais de

uma opção política, mas opção esta que não pode ser puramente arbitrária,

devendo encontrar justificativa que legitime a norma a ser editada, segundo os

interesses da sociedade”.381

Vidal Serrano Nunes Júnior considera que a Constituição proibiu

o aborto, exceto nas duas hipóteses legais permitidas.382 Adentrando na seara

científica, Pietro de Jesús Lora Alarcón afirma que “o zigoto, o ovócito fertilizado,

deve ser o destinatário da proteção constitucional”.383 Na mesma linha, Maria

Garcia sustenta que a proteção constitucional começa com a fecundação, quando

há vida.384

No âmbito do direito comparado, Paulo Otero, ao examinar a

Constituição Portuguesa,385 conclui, in verbis: “Precisamente por não fazer

qualquer distinção, uma única interpretação se mostra legítima: entender que a

garantia da inviolabilidade da vida humana compreende todas as formas de

manifestação dessa mesma vida, desde que a mesma surge”.386

Na esfera jurisprudencial, o Tribunal Constitucional Federal da

Alemanha, em 25 de fevereiro de 1975, ao examinar a Quinta Lei da Reforma

Penal, de junho de 1974 - que autorizava o aborto praticado por médico, com

consentimento da gestante, durante as primeiras 12 (doze) semanas após a

concepção -, declarou sua inconstitucionalidade, pois reconheceu o direito à vida

381TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 388-389. 382ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES Júnior, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9.

ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 98. 383LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 207. 384Cf. GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida. A questão do aborto.

Necessidade de sua descriminalização. Medidas de Consenso. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 6, n. 24, p. 73-83, jul./set. 1998.

385Art. 24, n. 1: “A vida humana é inviolável”. 386OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil

constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999. p. 37-38.

201

do não-nascido. Em 27 de julho de 1992, foi publicada a Lei de Auxílio às

Mulheres Grávidas e às Famílias, havendo permissão para a interrupção

voluntária da gravidez nas 12 (doze) primeiras semanas, a pedido da mulher. O

Tribunal Constitucional alemão, em 28 de maio de 1993, declarou a

inconstitucionalidade do diploma, argumentando que o direito à vida não pode

depender da vontade exclusiva da genitora, nos termos dos arts. 1º e 2º, da Lei

Fundamental387 e, atendendo ao critério da não-exigibilidade, determinou que o

legislador deveria fixar as circunstâncias em que cessa o dever da mulher dar à

luz.388

O Tribunal Constitucional espanhol, na sentença n. 75, de 27 de

junho de 1984, declara: “(...) que, según este precepto [el art. 15 de la CE], la vida

humana en formación es un bien que constitucionalmente merece protección”. Na

sentença 53/85, delibera: “ (...) si la Constitución protege la vida con la relevância

a que antes se ha hecho mención, no puede desprotegerla en aquella etapa de su

proceso que no solo es condición para la vida indepiendente del claustro materno,

sino que es también un momento del desarrollo de la vida misma; por lo que ha

de concluir-se que la vida del ‘nasciturus’, en cuanto éste encarna un valor

fundamental – la vida humana – garantizado en el artículo 15 de la Constitución,

constituye un bien jurídico cuya protección encuentra en dicho precepto

fundamento constitucional”.389

387Art. 1º, n. 1: “A dignidade humana é inviolável. É obrigação do Estado protegê-la e defendê-la”.

Art. 2º, n. 2: “Todos têm direito à vida e à integridade física”. 388Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 125-128. Paradoxalmente, o mesmo Tribunal admitiu

que o Estado renunciasse, nos 3 (três) primeiros meses de gravidez, à proteção penal da vida do nascituro e centrasse sua atenção no assessoramento obrigatório da mulher grávida para que ela se interessasse pela gestação (cf. Christian Starck, [Catedrático de Direito Público da Universidade de Göttingen, na Alemanha] - STARCK, Christian. El estatuto moral del embrión. Trad. por Sergio Romeu Malanda. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 15, p. 145, jul./dic. 2001).

389Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit., p. 82-83.

202

A tese esposada aceita a vida do nascituro como bem jurídico

constitucionalmente protegido, sem que, ao mesmo tempo, suponha a existência

do respectivo direito subjetivo fundamental (para o nascituro). O pensamento

encontra assento na dupla dimensão dos direitos fundamentais, quais sejam a

objetiva, relacionada a valores positivados (bem jurídico), e a subjetiva, referente

à titularidade dos direitos, às suas situações e atuações individuais. No caso, o

Tribunal admite a proteção constitucional da vida do nascituro, porque nela

manifesta-se a faceta objetiva do direito fundamental.

Iluminado o raciocínio pela doutrina e pela jurisprudência

assinaladas, bem como pelos subsídios científicos, tem-se que a Constituição

pátria, ao consagrar o direito à vida, sem distinguir a vida extra da intra-uterina

nem estatuir diferenças entre as sucessivas etapas embrionárias, compreende, na

esfera do art. 5º, caput, todas as formas de manifestação de existência humana

com potencial para a formação, desenvolvimento e posterior nascimento, cujo

conjunto comporá “todos”, quer dizer, os brasileiros e estrangeiros residentes no

país.

Outra postura afrontaria o princípio hermenêutico da eficiência,

máxima efetividade ou interpretação efetiva das normas constitucionais, segundo

o qual “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia

lhe dê”, para a maior aplicação concreta do direito fundamental.390 É irrelevante,

para a tutela, quem exerça o direito no jogo das relações sociais, porquanto basta

a presença de uma realidade que encarne, com contornos objetivos, a vida

humana, o que, conforme o estágio atual da ciência, está presente desde o

instante da fecundação.

390CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1149. Na mesma linha, MIRANDA, Jorge. op. cit., t. 2,

p. 263.

203

Não se olvida que a fecundação não se compacte num átimo: é

um processo que perdura horas. Principiando pela penetração do espermatozóide

no óvulo, segue para a fusão dos núcleos dos gametas. Fundidos, surge a célula

diplóide, onde está o programa genético do novo ser humano.391 Portanto, à luz

dos fenômenos científicos, tem-se que a vida humana - potencial para

desenvolver um indivíduo – manifesta-se desde o instante em que, no óvulo

fecundado, houve a mistura dos dois núcleos. Esta posição foi perfilhada pela Lei

alemã de Proteção ao Embrião, na qual é definido o que se entende por embrião:

“ya el óvulo fecundado, susceptible de desarollo a partir de la fusión de los

núcleos”.

6.2.4 Parâmetros para a intervenção penal

A inclusão ampla do embrião na tutela constitucional à vida

significa que, desde a fecundação, o zigoto transporta bem jurídico eminente, o

que indica para a positividade da dignidade penal, embora esta dependa também

da repulsa social que se expressa em face das mais diversas formas de ataque.

Ademais, a concessão de proteção penal está condicionada à positividade do

juízo de carência, quando analisado se a via administrativa ou civil é suficiente,

bem como se os custos são inferiores aos benefícios esperados da intervenção

punitiva.

Portanto, os valores constitucionais, mesmo quando relacionados

a direitos fundamentais, como a vida, não amarram o legislador ordinário. A Carta

Política lhe reserva espaço para o próprio juízo valorativo que, no direito penal,

391Vide capítulo 2, item 2.3.1, supra.

204

observa a fragmentariedade, a subsidiariedade e a adequação da norma ao caso.

Por outras palavras, a Constituição, ao proteger a vida, presta-se a reclamar

compatibilidade entre o sistema axiológico que entranha de suas normas e o

sistema jurídico-penal, resguardando campo necessário para o legislador

infraconstitucional captar as peculiaridades em que se desenrola o bem em

questão. Sendo assim, a vida não está, em toda sua vastidão e meandros, sujeita

à tutela penal.

Na valoração da vida, o legislador infraconstitucional deve

aproximar-se da realidade fenomênica e do universo cultural em que o bem está

mergulhado, os quais revelam a sua natureza particular: cuida-se de fenômeno

dinâmico, contínuo, sujeito a uma série de transformações biológicas comuns a

todos os seres da espécie, que impulsionam valorações distintas na sua

manifestação.

Este panorama reflete-se nas diferentes intensidades de

reprovabilidade social perante os ataques a um embrião recém-fecundado, a um

embrião com dias, a um feto com 6 (seis) meses e a um ser nascido há pouco

tempo. Assim porque a vida não é somente um processo individual, mas também

familiar e social. A sensibilidade popular foi consolidada nos códigos penais, os

quais, tradicionalmente, graduam as penas conforme o estágio de evolução em

que se encontra o ser humano, de modo que são menores para o aborto,

intermediárias para o infanticídio e maiores para o homicídio. A variada graduação

punitiva concretiza a idéia da fragmentariedade.

Entre as mudanças físicas do processo vital, o nascimento

constitui salto qualitativo, com a socialização do ser vivo. Antes dele, porém, são

numerosos os processos biológicos constatados. Embora não tenham o condão

205

de demarcar o princípio da proteção jurídica à vida, eles podem auxiliar na

justificativa de cortes axiológicos passíveis de serem instituídos pelas normas

infraconstitucionais, na medida em que permitem a identificação de novas

propriedades qualitativamente distintas das existentes em momento

anterior.392Cabe ressalvar que o reconhecimento do variável valor da vida

humana não se confunde com inaceitáveis discriminações qualitativas entre os

seres humanos, pois não se equiparam os fenômenos biológicos ora

considerados, próprios do desenvolvimento de todo ser humano, com abusivas

diferenças individualizadas, pautadas em peculiares características físicas e

psíquicas de indivíduos especiais, que os fazem julgados, sob critérios refutáveis,

como “inferiores”.

6.2.4.1 A vida humana “in vivo”: algumas considerações sobre o aborto

O presente trabalho está centrado no estudo da vida in vitro e, por

isso, escapa do seu âmbito a ampla problemática que envolve o aborto. A

referência a ela será invocada tão-somente como parâmetro comparativo e, sob

este prisma, despertam interesse os elementos basilares relacionados ao termo

inicial da criminalização do abortamento.

No estudo do Código Penal pátrio de 1940, Nélson Hungria

assinala que, ao incriminar o aborto, a lei “não distingue entre óvulo fecundado,

embrião ou feto”. Sendo assim, qualquer “que seja a fase da gravidez (desde a

concepção até o início do parto, isto é, até o rompimento da membrana

392Cf. RAMÓN LACADENA, Juan. op. cit., p. 193.

206

amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”.393 Após,

completa: “A gravidez se estende desde a fecundação até o início do parto”.394

Também partindo da lei posta, Aníbal Bruno disserta: “Não

interessa a fase da evolução fetal em que se promove o aborto. A proteção penal

que o Direito concede ao ser em formação, nessa figura punível, estende-se

desde o instante em que as duas células germinais se fundem, com a constituição

resultante do ovo, até aquele em que se inicia o processo de parto”.395

Igualmente, José Frederico Marques ao delimitar o objeto de proteção do crime

de aborto: “é o nascituro, o produto da concepção (infans conceptu pro nato

habetur)”.396

Em outra via, Heleno Cláudio Fragoso diz que: “O aborto consiste

na interrupção da gravidez com a morte do feto. Pressupõe, portanto, a gravidez,

isto é, o estado de gestação, que, para os efeitos legais, inicia-se com a

implantação do ovo na cavidade uterina”.397 A seguir, o jurista ressalta que a lei

penal não especifica o alcance do aborto, pelo que “deve ser definido com

critérios normativos, tendo-se presente a valoração social que recai sobre o fato e

que conduz a restringir o crime ao período de gravidez que se segue à

nidação”.398

Na doutrina estrangeira, Francesco Antolisei perfilha este ponto

de vista: “Presupposto dell’aborto vero e próprio è la gravidanza (gestazione) della

393HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 252. 394Id. Ibid., p. 253. 395BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. 4. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 161-

162. Na mesma linha, a posição de FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 74-75. 396MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal: parte especial. Ed. rev., atual e ampl. por

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Guilherme de Souza Nucci e Sérgio Eduardo Mendonça de Alvarenga. Campinas: Millennium, 2002. v. 4, p. 173.

397FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. 11. ed. rev. e atual. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1995. v. 1, p. 80.

398Id. Ibid., p. 81.

207

donna. Questo fenomeno ha inizio con l’annidamento dell’ovulo, fecondato

mediante l’incontro con lo sperma maschile, nella mucosa uterina, vale a dire,

quando il germe ha raggiuinto la sua sede naturale e comincia a svilupparsi”.399

Romeo Casabona, ao buscar a resposta pretendida, retoma as

constatações científicas referentes ao período entre a fecundação e o 14º (décimo

quarto) dia seguinte: não há individualização pela possibilidade de segmentação e

é acentuada a instabilidade do zigoto em face da intensa autoseleção biológica.

Não sabendo se o óvulo fecundado continuará seu desenvolvimento ou se

evoluirá para um ou vários seres, conclui que, no caso do embrião in vivo, antes

da nidação, “se hace difícil la puesta en acción de los mecanismos jurídicos de

protección y muestra que todavía no existe un interés claramente delimitado digno

de la máxima protección jurídica: la que confiere el Derecho Penal”.400 401

Às essas considerações, embasadas em parâmetros científicos, a

doutrina emparelha motivos de oportunidade penal. Patricia Laurenzo Copello traz à

baila que se fixado “el comienzo de la protección penal en la fecundación, la

utilización de dispositivos intrauterinos (DIU) como medios de control de la natalidad

quedaría comprendida dentro de las conductas prohibidas por la norma (...)”.402 Não

se poderia igualmente fazer uso da denominada “pílula do dia seguinte”.403

399ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale: parte speciale. Milano: Giuffrè, 1954. v. 1,

p. 83. 400ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana,

cit., p. 150-151. 401Daí que Casabona defenda que o Tribunal Constitucional espanhol, na sentença n. 53 de 1985,

ao apontar que a vida é “un proceso que comienza con la gestación”, compreendeu que a tutela do referido bem foi vinculada à nidação (Id. Ibid., p. 152-153).

402LAURENZO COPELLO, Patricia. El aborto no punible (El art. 417 bis del Código Penal). Barcelona: Bosch, 1990. p. 80-81.

403O mecanismo deste tipo de metodologia depende da altura do ciclo em que a mulher toma o produto: I) se o método for utilizado após a ovulação, dando-se a concepção, a pílula vai atuar impedindo o novo ser em formação de nidar no útero materno; II) se a pílula for tomada antes da ovulação, existe a probabilidade de a impedir (cf. Victor Neto, medico, Disponível em: <http://paginasvida.no.sapo.pt/piluladiaseguinte.htm>. Acesso em: 05 maio 2005).

208

Além disso - prossegue a jurista -, as condutas “no podrían

castigarse sino como tentativa imposible, pues los medios científicos actualmente

disponibles no permiten proba rel embarazo en dicha etapa inicial”.404 De fato, a

nidação marca o início da produção do hormônio gonadotrofina coriónica, a partir

do qual os maciços testes de gestação são contemporaneamente viáveis.405

Similar a postura de Ana Paula Guimarães, que sintetiza: “o limite

da nidação é antes de mais imposto por razões de ordem prática, é necessário e

conveniente”.406

No direito positivo, o Código Penal alemão, nos §§ 218 e 219,

estabelece que a interrupção da gravidez só é relevante quando realizada após a

nidação do óvulo fecundado no útero materno. Defendendo o acerto legislativo,

Arthur Kaufmann escreve que a antecipação de preceitos penais para abarcar o

embrião in vivo desde o momento da fecundação conduziria “la consecuencia no

deseable de que toda la zona gris entre la anticoncepción y el impedir la anidación

se haría de nuevo accesible a la persecución penal”.407

Sopesados esses dados, no nosso modo de ver, não é possível,

no exame do estatuto do embrião in vivo, ignorar a proximidade dos meios

impeditivos da nidação com os meios impeditivos da concepção e, por isso, é

inviável desconsiderar a mínima ou nenhuma diversidade entre o julgamento

racional dos primeiros e o dos segundos, o que fragiliza a legitimidade de

tratamento jurídico-penal diferenciado.

404LAURENZO COPELLO, Patricia. op. cit., p. 81. 405Id. Ibid. 406GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 164. 407KAUFMANN, Arthur. Relativización de la protección jurídica de la vida? Trad. por Jesús María

Silva Sánchez. Avances de la Medicina y Derecho Penal, Barcelona, p. 47, 1988.

209

A assertiva é corroborada pela importância e aceitação social que

assumem certos métodos de controle de natalidade – por exemplo, o DIU e a

“pílula do dia seguinte” -, evidenciadas pela venda em farmácias e distribuição na

rede pública.408 O correspondente uso encontra amparo no direito constitucional

de livre planejamento familiar pelo casal (art. 226, §7º, CF), além de reduzir os

futuros abortos clandestinos em fases mais avançadas, sob péssimas condições,

aos quais a classe baixa está fadada.

Não fossem assim, sobremaneira para as adolescentes e

mulheres mais pobres, com pouco conhecimento dos riscos de engravidar ou falta

de acesso a rotineiro uso de anticoncepcionais, seria cerceado, pelo menos na

discrepante realidade social atual, o direito de autodeterminação sexual e de

liberdade de escolha quanto ao desejo de procriação e seu momento oportuno, o

que emperraria a ampla adesão do cidadão, de todos os cidadãos, à norma

proibitiva que abarcar todo o processo, desde a fecundação.409

Tais questões, relativas à oportunidade da intervenção penal, são

importantes, mas se isoladas, poderiam enveredar para o exagero e a

arbitrariedade legislativa, o que não ocorre porque vêm à colação os referidos

acontecimentos biológicos que antecipam a nidação, sobretudo a duvidosa

408A aceitação social da pílula do dia seguinte ou de emergência transparece na Política Nacional

de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, lançada pelo Ministério da Saúde em 22 de março de 2005, que amplia a sua distribuição.

409Ivete Senise Ferreira, após detalhado estudo sobre nossas peculiaridades e o espírito da legislação penal em relação ao aborto, sugere a referência legal à possibilidade de concessão, pelo juiz, de perdão judicial sempre que ocorrerem motivos sérios que possam impelir a mulher à prática, a serem avaliados de acordo com as circunstâncias casuais, não incluídos na indicação terapêutica (perigo de vida e saúde para a mulher, além de sério risco de que a criança ao nascer apresente malformação congênita, debilidade ou doença mental) (FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 209). Maria Garcia, também em preciso exame do aborto, aceita hipóteses de exclusão de antijuridicidade com base em argumentos de ordem social, para evitar excessiva e ineficaz penalização (GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida, cit., passim.

210

diferenciação e a realçada instabilidade vital do zigoto. Esse assento científico

acomoda o corte axiológico a ser observado pelo legislador penal. .

Concluindo, é possível afirmar que o exercício do ius puniendi

nessa fase incipiente não se compatibiliza com a regra da proporcionalidade, sob

os prismas da necessidade (ofensa é tolerável) e da adequação (menos grave é a

impunidade do que a pena), com o que a nidação deve ser considerada como o

termo inicial para a relevância penal do aborto. Contudo, a proposta serve como

instrumento para reflexões de lege ferenda, porquanto, como escreveu Nélson

Hungria, o atual art. 124 do Código não distingue entre a concepção e a nidação,

não cabendo ao intérprete fazê-lo.

É certo, porém, que, havendo avanço científico para antecipar a

constatação da gravidez, acompanhado de maior difusão de políticas de controle

de natalidade, com implementação de debates sobre a saúde sexual e

reprodutiva, a posição pode ser alterada, porque alterados estariam seus

fundamentos, que são sumamente de ordem prática.

6.2.4.2 A vida humana “in vitro”

Os parâmetros empregados para excluir a tutela penal durante os

primeiros dias do embrião in vivo não se estendem de plano à vida humana in

vitro, ou seja, ao zigoto resultante de fecundação processada em laboratório.

Desde logo não cabem dúvidas sobre sua existência, qualquer que seja a etapa

de seu desenvolvimento, pois sua presença é perceptível mediante o uso de

técnicas microscópicas. Alinha-se outro dado diferencial dotado de decisiva

211

importância: o embrião in vitro é especialmente frágil, uma vez que sua

continuidade biológica não é assegurada de maneira natural.

Com efeito, seu processo vital depende de ato de vontade, qual

seja sua implantação por terceiro no útero da mulher. Se for implantado, o

embrião mantém seu potencial evolutivo. Em caso negativo, morrerá, porquanto

não é tecnicamente possível, por ora, a gestação extra-uterina. Além disso, o

recente embrião, quando em laboratório, em virtude da totipotencialidade de suas

células, é alvo fácil e bastante desejado para as pesquisas que podem resultar

em sua destruição ou alteração de sua carga genética.

Em face desse panorama peculiar, a vida encarnada no embrião

in vitro merece proteção jurídica independente da vida in vivo, de tal modo que

não são extensíveis àquela os tipos penais direcionados para esta, ou seja, para

o aborto.

No particular estatuto jurídico a ser conferido ao embrião in vitro,

em muitos casos, é reclamada a intervenção penal, pois são positivos os juízos

da necessidade e da adequação penais, temperados pelas forças simbólica e

promocional da norma punitiva, que assumem dimensão relevante, sobretudo em

face da insuficiência das vias civis e administrativas perante descobertas

inesperadas e eticamente desvirtuadas, com repercussões sobre as gerações

futuras. São, igualmente, para tantos outros, negativos os referidos juízos, quando

a ilegitimidade poderá encontrar amparo analógico em critérios político-criminais

empregados para o trato penal do aborto.

Além de não se amoldar ao tipo do aborto, a destruição do

embrião in vitro não tipifica o delito de dano, posto que o embrião não é coisa.

Não se trata do tipo de homicídio, cujo sujeito passivo tem forma humana definida

212

e está integrado na sociedade graças ao nascimento, sendo bastante diferente do

conglomerado de células, não estruturado, sem concreta capacidade de

sensações e de inteligência, como o zigoto ou, mais adiante, o blastócito.410 Em

suma, cabe ao legislador penal a edificação de tipos especiais.

A temática remete à compreensão do sujeito passivo dos crimes

contra a vida embrionária in vitro que, segundo nosso entendimento, não difere da

mesma vida in vivo. Por sujeito passivo, entendemos o portador do bem jurídico

lesionado ou posto em perigo e, assim, se concluímos que o bem jurídico

protegido é a vida encarnada no embrião, de forma conseqüente, ele será o

sujeito passivo dos crimes. Eventuais contra-argumentos - o embrião não é titular

de direito (direito subjetivo à vida) ou não o pode exercitar,411 falta-lhe a qualidade

de pessoa ou outras objeções semelhantes - não se opõem à nossa conclusão,

porquanto, de maneira similar, sucede com os delitos em que se mantém, como

sujeito passivo, a comunidade, que também carece de personalidade jurídica e

dos demais atributos que derivam desta condição.

Em suma, não se confundem titular de direito – categoria própria

do direito civil – com o sujeito passivo do delito – peculiar do direito penal, embora 410Nessa linha: ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la

vida humana, cit., p. 154-155; GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 183-184. 411Sobre a titularidade do direito subjetivo à vida embrionária, formaram-se três correntes. A

concepcionista defende que, desde o zigoto, está presente um sujeito de direito, com reconhecido caráter de pessoa, compreendido o termo como titular de direitos na esfera jurídica (BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 67 e ss; SILVA, Reinaldo Pereira e. op. cit., p. 87-88; GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida, cit., p. 184-188). O valor atribuído ao embrião é quase que absoluto, com impedimento pleno de sua destruição, mesmo que não tenha viabilidade, ou de criopreservação, porque, do contrário, conforme seus partidários, se estaria destruindo ou congelando uma pessoa viva. A desenvolvimentista não reconhece ao embrião a titularidade de direitos, nem mesmo que transporte o bem jurídico vida, o que faz depender de uma seqüência crucial de etapas complementares. Destarte, o embrião humano é coisificado. Nesse passo, a Comissão Warnock admitiu que um embrião possa ser utilizado como material de pesquisa até o 14º dia após a fecundação. A corrente eclética compreende o embrião humano como integrante da espécie humana, mas não lhe atribui a titularidade de direitos em decorrência da divergência sobre sua viabilidade e a individualidade (MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 172; LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito do embrião humano: mito ou realidade? Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, ano 20, n. 78, p. 22-40, out./dez. 1996).

213

corresponder ao mesmo ente. Considerado o embrião como o sujeito passivo de

delitos contra a vida nele encarnada, este bem jurídico, inclusive na fase

embrionária, mantém dimensão individual.

214

7. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O DIREITO À VIDA

7.1 A seleção pré-implantatória

Se considerado que o óvulo fecundado com poucos dias é uma

pessoa, como defendem certos doutrinadores e a Igreja Católica, todos deveriam

ser implantados, sem a efetivação de prévio diagnóstico sobre sua viabilidade ou

normalidade, sob pena de incorrer em crime contra a vida. Essa postura, porque

inflexível, encerra profunda distorção jurídica em vários casos.

Se o embrião for inviável, mesmo que evolua para um feto ou até

mais que nasça, o mesmo está fadado à morte extremamente prematura e

inevitável, sobretudo se ingressar na fase extrauterina . Faltando-lhe a

potencialidade de desenvolvimento, o embrião inviável não transporta o bem

jurídico vida. Carecendo, absolutamente, da virtualidade de vir a ser pessoa,

também não se projeta sobre ele, de modo excepcional, o princípio da dignidade

da pessoa humana.

Sem esperança de vida, eventual norma jurídica, ainda que

administrativa, impondo a implantação, empurraria para os pretensos pais pesado

ônus, redundando em flagrante e indevida intromissão na intimidade e liberdade

do casal e até mesmo na integridade física e psíquica da mulher receptora do

óvulo fecundado (embrião in vitro). A confusão entre direito e moral, ou mais

especificamente, entre direito e religião seria evidente, com manifesto retrocesso

no campo jurídico.

215

Para a hipótese, é extensível, por analogia, o pensamento de

Nélson Hungria, exposto no estudo da gravidez extrauterina: “Não está em jogo a

vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida

própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem

unicamente contra a mulher”.412

Para evitar arbitrariedade, o critério para avaliar a inviabilidade

deve ser exclusivamente científico. A viabilidade consiste em “haber nacido vivo,

haber vivido con una vida diferente de la fetal y presentar un desarrollo y una

conformación no incompatible en absoluto con la continuación de la vida”,

consoante explica Massaglia Bacigalupo.413

Trazendo à colação termos biomédicos, a jurista Maris Martínez

anota que são viáveis os embriões em que “mais de metade dos blastômeros

parecem morfologicamente normais”.414 Para Herman Nys, a inviabilidade envolve

“normalmente, a incapacidade de dividir-se ou o excesso de pronúcleos”.415 Não

obstante ambas as orientações aportem certo grau de incerteza, ainda pensamos

que a competência para a palavra final permanece com os cientistas, porque a

matéria é extremamente específica.

A par disso, vem à baila outra hipótese: embriões viáveis, mas

portadores de anomalias genéticas graves, deletérias e sem comprovada

possibilidade de superação clínica no curso da vida, embora passíveis de

diagnóstico antes da implantação. Na hipótese, confrontam-se, de um lado, a vida

412HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 260. 413MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 119. 414MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 179. 415NYS, Herman. Experimentação com embriões. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.).

op. cit., p. 182.

216

encarnada no embrião e, de outro, o bem-estar físico da mulher e psíquico do

casal, como também a qualidade de vida do novo ser.

Não autorizados, pelo Estado, o diagnóstico pré-implantatório e a

subseqüente recusa à implantação do blastócito patológico, o feto poderá nascer

quiçá por opção dos pais, mas necessariamente em razão do mandamento legal,

não obstante o munus da criação e da educação recairá sobre os genitores, com

todas as implicações emocionais envolvidas, além das econômicas.

Por óbvio, as doenças incontornáveis e graves reclamarão

cuidados durante todo o período em que o enfermo viver, majorando a exigência

de atenção e paciência dos responsáveis, tornando, assim, mais tormentosa a

decisão sobre o nascimento.

Mesmo que para o embrião patológico o Estado chame para si a

responsabilidade pela criação, para muitas mulheres ou famílias será dolorosa a

aceitação da gestação, eis que cientes, desde o princípio, de que a futura criança

estará predisposta à dificuldade de sobrevivência. A dor provavelmente se

acentuará diante da notoriedade de que a exclusão do embrião in vitro anômalo é

usual e recebida com baixo grau de reprovabilidade social, mormente porque a

vida incipiente não se encontra integrada ao corpo da futura mãe, não lhe

provocando alteração física ou hormonal, ficando menos sujeita a laços afetivos

com ela e com a família, o que é comum durante a gravidez.

Paralelamente, não se pode negar a realidade de países de

terceiro mundo, onde é costumeiro o descaso estatal com seus cidadãos mais

necessitados, pelo que muitas políticas públicas de apóio são implantadas no

papel, mas nunca executadas, o que redunda em descrença popular e

217

intranqüilidade da mulher ou do casal para a tomada da decisão, mesmo se os

órgãos públicos prometerem auxílio.

Provavelmente em várias situações a prorrogação do sentimento

de rejeição ou desespero, provocada pela obrigatória implantação, conduzirá à

futura procura pelo aborto clandestino, sabidamente mantido sob acobertamento

generalizado, como solução rápida para o problema não resolvido quando o

embrião estava in vitro. Estará plantado o efeito criminógeno de eventual

incriminação.

Este delicado contexto onde estaria casal que procurou as

clínicas de reprodução assistida não é imaginário e, por isso, não pode ser

esquivado quando da disciplina dos comportamentos sociais, para que não se

criem normas apartadas da expectativa mediana da comunidade e, destarte, com

vocação para violação impune. Mas não é só.

Pendem, simultaneamente, fenômenos científicos que, em virtude

da constância, requerem consideração. Como exposto, na fecundação in vivo,

existe elevada perda natural de embriões, o que lhes infunde a marca da

instabilidade, destacando-se, no processo autoseletivo, o descarte dos

patológicos. Sob esse ângulo, a seleção in vitro do embrião, quando efetivada nos

moldes analisados, tão-somente imita a natureza. Soma-se que, com poucos

dias, o embrião não tem sensação nem inteligência, não sentindo dor ao ser

manipulado. Além disso, a transferência de embrião anômalo, quando simultânea

a outros tantos saudáveis, gera o risco inerente à gravidez múltipla.

Refletindo, parece-nos que a vida do embrião patológico, fadado

a doenças graves e incuráveis, não merece proteção penal, pois a experiência

demonstra que sua não-transferência acarreta baixa perturbação social. A

218

conclusão é reforçada pela superioridade das vantagens da impunidade quando

confrontadas com a punição. Esta vida embrionária, sem projeção de qualidade,

deve ceder espaço para o bem-estar da família, propiciando a livre escolha de

planejamento familiar perante uma situação diferenciada, onde não se debatem

valores supérfluos, mas de suma importância para todos os envolvidos com o

problema, como também para a sociedade.

A proposta não nega o princípio da dignidade humana. A

anomalia imporia ao embrião extremas dificuldades de vida sob a ótica da

qualidade. Lembre-se, ainda, de que, como defendido, a vida não é sagrada,

sobremaneira quando em choque com a dignidade do casal em pauta, como

também de outros que seriam prejudicados caso o Estado se visse responsável

pela criação, entre os quais crianças, amadas e integradas em núcleo familiar,

que morrem por conta da desnutrição e da falta de saneamento básico, em

função da falta de recursos públicos.416

Sobre o tema, Ana Paula Guimarães sustenta que “a selecção

pré-implantatória quando orientada por fins terapêuticos é tão legítima quanto as

comuns intervenções terapêuticas. Especifiquemos que essa legitimidade diz

respeito à intervenção no sentido de reduzir a probabilidade de transmissão de

doenças pela via hereditária em relação a indivíduos considerados isoladamente,

quando são os próprios pais que, caso a caso, optam por ter filhos saudáveis –

quando estes, de forma responsável, decidem sobre a sua descendência – não

416A postura adotada transfere muitos argumentos utilizados para a descriminalização ou, pelo

menos, a concessão de perdão judicial no caso de aborto. Sob essa ótica, a professora Ivete Senise Ferreira propõe a inclusão de um dispositivo que abrigue a licitude do aborto praticado quando houver sério risco de que a criança ao nascer apresente malformação congênita, debilidade ou doença mental (FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 206).

219

em relação à população em geral ou a grupos sociais determinados, quando se

trate de adoptar uma política eugênica generalizada”.417

De qualquer modo, a vontade dos futuros pais sempre deve ser

respeitada, como forma de expressão da liberdade. Caso consagre essa idéia, o

Estado necessitará oferecer mínimas condições de convívio menos traumático

com a doença, promovendo uma filosofia social que aceite a postura paterna com

compaixão.

Não se ignora que inexiste método objetivo para delimitar se a

vida de pessoa portadora de doença grave merece ser vivida. A preocupação que

contorna o tema foi expressa na Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de

março de 1989, que adverte para a necessidade de que “se reconsideren los

conceptos de enfermedad y tara genética para evitar el peligro de que se definan

en términos médicos como enfermedades o taras hereditarias lo que no son sino

simples desviaciones de la normalidad genética”.418

Apreensivo, Jacques Testart afirma que “no es posible definir el

límite entre una enfermedad grave y un leve defecto físico, ni elaborar una lista

limitada de dolencias que justifiquen el diagnóstico prenatal o el diagnóstico

preimplantatorio, el diagnóstico preimplantatorio es una práctica potencialmente

ilimitada. Sus indicaciones sólo pueden verse limitadas por la intransigencia

médica o el coste económico, conceptos bastante subjetivos y evolutivos para

constituir fronteras precisas y definitivas”.419

Não obstante o peso dessas palavras, na contextualização

invocada, a eliminação do embrião com patrimônio genético deficiente – eugenia

417GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 176. 418Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 146. 419TESTART, Jacques. op. cit., p. 26.

220

negativa – revela, ao que nos afigura, utilidade individual e social. A simples

vedação ao diagnóstico e à seleção pré-implantatórios despreza as famílias que

se encontram em situação inelutavelmente aflitiva, não permitindo o

balanceamento de valores. Para coibir os excessos em ambas as técnicas, sem

as proibir, cabe ao Estado elaborar formas de controle adequadas, a fim de que

se minimize a pseudo-equiparação entre o mal grave e incurável e o desejo de

filhos perfeitos.

Nessa atividade estatal, é válida a sugestão de John M. Optiz,

segundo quem “a probabilidade de abusos, mesmo da mais bem intencionada

institucionalização eugênica de uma perspectiva de vida, torna imperativo que

todas as ações regulamentares, legislativas ou legais estejam sujeitas ao mais

intenso e minucioso exame ético, preferencialmente por um painel internacional

de especialistas no caso de legislações nacionais que potencialmente afetam

milhões de indivíduos”.420

Sendo assim, menos do que listagem de doenças suscetíveis à

seleção embrionária, mostra-se mais oportuno que se faça reflexão dos casos por

comitês éticos multidisciplinares, em que o debate amplo, como um desafio,

poderá levar à melhor solução, dentre as possíveis, para os limites tanto

científicos quanto culturais do ser humano, em que se mesclam o

desconhecimento científico e o preconceito social. De conseguinte, a resposta

não será formulada como as leis físicas, mas resultará de equilíbrio de valores

contrapostos, ou seja, da máxima da proporcionalidade.

420OPITZ, John M. O que é normal considerado no contexto da genetização da civilização

ocidental. Bioética, v. 5, n. 2, p. 136, 1997. O autor é professor de Pediatria e Genética Humana, Universidade de Utah – Escola de Medicina, Salt Lake City, em Utah, nos EUA, bem como professor universitário de Humanidades Médicas, da Universidade do Estado de Montana–Bozeman, em Montana, também nos EUA.

221

Observadas essas cautelas, sugerimos que a legislação futura

consagre a licitude da seleção terapêutica de embriões, inclusive mediante

eleição de sexo, para evitar a implantação de óvulos fecundados dotados de

anomalia genética grave e incurável, cabendo às normas deontológicas e

administrativas disciplinarem a prática, incluindo participação dos comitês éticos,

somada à rigorosa fiscalização estatal e à restrição do procedimento a clínicas

especializadas.

O diagnóstico pré-implantatório e a seleção são admitidos,

expressamente, em alguns países. Na legislação espanhola, o diagnóstico pré-

implantatório é autorizado para avaliar a viabilidade ou inviabilidade, detectar

doenças hereditárias para tratá-las, se existir tratamento e for indicado, bem como

desaconselhar sua transferência a uma mulher para procriar, respeitada a opinião

da receptora ou do casal do qual provém o material genético.421

Em França, a Lei n. 654, de julho de 1994, estatui que uma das

finalidades da procriação assistida é evitar a transmissão à criança de uma

enfermidade particularmente grave (art. 152-2). A disposição autoriza, segundo

Roberto Andorno, a detecção de anomalia nas primeiras etapas embrionárias,

para que se promova o tratamento e, não havendo cura, a alternativa será o

descarte do embrião.422 A Noruega regulamentou esta moderna técnica de

421A Lei n. 35/88, em seu art. 12.1, estatui: “Toda intervenção sobre o pré-embrião, vivo, in vitro,

com fins diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou não, ou detecção de doenças hereditárias, a fim de tratá-las, se isso é possível, ou de desaconselhar sua transferência para a procriação”. A Lei n. 42/88, em seu art. 8.2, estabelece: “A aplicação de tecnologia genética poderá ser autorizada para a consecução dos fins e em casos que a seguir se expressam: a) com fins diagnósticos, que terão caráter de diagnóstico pré-natal, in vitro ou in vivo, de enfermidades genéticas ou hereditárias, para evitar sua transmissão ou para tratá-las e curá-las”.

422Cf. ANDORNO, Roberto. El derecho frente a la nueva eugenesia: a selección de embriones in Vitro. Cuadernos de Bioética, Buenos Aires, ano 1, p. 30-32, 1996.

222

diagnóstico, exigindo que se trate de uma doença hereditária, sem possibilidade

de tratamento.423

Em contrapartida, na Alemanha, a Lei de 13 de dezembro de

1990 proíbe a fecundação extracorporal de mais óvulos do que aqueles

transferíveis no espaço de um ciclo. Destarte, falece a possibilidade de seleção

pré-implantatória ou mesmo de congelamento de embriões.

No Brasil, segundo a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal

de Medicina, não se pode descartar embriões. Na prática, são selecionados os

embriões com anomalia genética e, a seguir, criopreservados. Nas esferas

administrativa, civil e penal, a matéria não está regulamentada. O Projeto n.

2.855, de 1997, elaborado pelo Deputado Confúcio Moura, autoriza o descarte

dos “pré-embriões” quando detectadas alterações genéticas que

comprovadamente possam comprometer a vida saudável da descendência, desde

que haja o consentimento do casal. O Projeto de Lei n. 90, de 1999, apresentado

pelo Senador Lucio Alcântara, que se encontra em tramitação no Senado Federal,

autoriza a seleção antes do implante quando os usuários da técnica de

reprodução assistida apresentarem hereditariedade para gerar crianças

portadoras de doenças ligadas ao sexo.424 O Projeto n. 1.135, de 2003, do Dr.

Pinotti, condiciona a licitude da seleção quando se trate de evitar doenças ligadas

ao sexo ou determinada geneticamente à criança que venha a nascer.

423A Lei n. 56, de 5 de agosto de 1994, sobre a aplicação médica da biotecnologia, em seu art. 4.2,

reza: “Utilização de diagnóstico pré-implantatório. Unicamente poderá ser realizado o exame genético num embrião em casos especiais nos quais existe uma doença hereditária incurável sem possibilidade de tratamento, conforme o previsto no art. 2.10. A Coroa poderá estabelecer requisitos pormenorizados em relação à realização de diagnósticos pré-implantatórios”.

424“Art. 10. Ressalvados os casos de material doado para pesquisa, a intervenção sobre gametas ou embriões in vitro só será permitida com a finalidade de avaliar sua viabilidade ou detectar doenças hereditárias, no caso de ser feita com fins diagnósticos, ou de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, no caso de ser feita com fins terapêuticos. § 1º A pré-seleção sexual de gametas ou embriões só poderá ocorrer nos casos em que os usuários recorram à RA em virtude de apresentarem hereditariedade para gerar crianças portadoras de doenças ligadas ao sexo”.

223

7.2 A fecundação de óvulos com fins distintos da procriação

Nos dias atuais, é cientificamente possível a fecundação de óvulo

por espermatozóides para gerar embriões com finalidade diferente da procriativa,

porquanto as clínicas de reprodução assistida dispõem de bancos de gametas

masculino e feminino congelados.425

A Lei alemã de 1990, taxativamente, proíbe a fecundação de

óvulo ou a introdução de espermatozóide em óvulo com fim distinto da procriação,

sob pena de incorrer em pena de prisão de liberdade ou multa (§1, 1.2). O Código

Penal espanhol (1995), em seu art. 160.2 (antigo art. 161.1), submete a conduta à

pena de prisão e à periódica inabilitação especial para emprego ou cargo público,

profissão ou ofício.426 A ação também está capitulada como infração

administrativa gravíssima na Lei n. 35/88. Em França, a Lei n. 94/653 igualmente

penaliza a conduta, com pena de prisão e multa de $700.000 (setecentos mil

francos - moeda vigente à época).427

No Brasil, a revogada Lei n. 8.974/95 incriminava a conduta na

dilatada tipicidade inscrita em seu art. 13, III, quando punia a produção,

armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem

como material biológico disponível. A nova Lei n. 11.105/05 não repete

425A técnica do congelamento de espermatozóides é bem mais antiga que a de óvulos, a qual

passou a ser dominada em 2003, segundo explica Edson Borges, especialista em reprodução humana, da Clínica Fertility (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 24 nov. 2005. p. A-25).

426Art. 161. 1. “Será castigados con la pena de prisión de uno a cinco años e inhabilitación especial para empleo o cargo público, profesión u oficio de seis a diez años quienes fecundem óvulos humanos con cualquier fin distinto a la procreación humana”. Administrativamente, a Lei espanhola n. 42/1988 qualifica como infração muito grave criar e manter embriões ou fetos vivos, no útero ou fora dele, com qualquer fim distinto da procriação (art. 9.2).

427“Art. 511-17. Castigar-se-á com pena de prisão e 700.000 francos de multa a concepção in vitro de embriões humanos com fins industriais ou comerciais. Art. 511-18 – Castigar-se-á com pena de 7 (sete) anos de prisão e 700.000 francos de multa a concepção in vitro de embriões humanos com fins de investigação ou experimentação”.

224

textualmente o tipo da anterior nem refere à fecundação de óvulos com fins

distintos da procriação. Contudo, na descrição exposta no art. 24 - utilizar

embriões humanos em desacordo com os preceitos do novo diploma -, é possível

reconhecer a ilicitude penal do comportamento. Assim porque a mencionada lei

apenas autoriza a extração de células-tronco embrionárias de embriões inviáveis

ou congelados, desde que gerados para o procedimento de fertilização in vitro e

inutilizados porque excedentes. Portanto, priva da esfera da legalidade a

obtenção do referido material de embriões fecundados com fins diferentes da

reprodução humana.428

De qualquer modo, a redação ampla do art. 24, descambando

para a falta de taxatividade, reclama, de lege ferenda, que haja um tipo específico

para a questão em apreço.

O comportamento é proibido, embora não punido no Projeto de

Lei n. 3.638, de 1993, de autoria do Deputado Luiz Moreira.429 Recebe punição no

Projeto de Lei n. 2.855/97.430 Da mesma forma, é reprimido pelo Projeto de Lei n.

90/99, embora não diretamente.431 O Projeto n. 1.135/03, novamente, estabelece

pena.432 O Projeto n. 2.061, também de 2003, da Deputada Maninha, também

proíbe a conduta, mas não a incrimina.

428Nesse sentido: MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 173. 429“Art. 5º. É proibida a fecundação de ovócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não

seja a procriação humana”. 430“Art. 38. Fecundar óvulos com finalidade distinta da procriação humana. Pena – reclusão, de 1

(um) a 3 (três) anos, e multa”. 431“Art. 13. É crime: IV) intervir sobre gametas e embriões com finalidade diferentes das permitidas

nesta Lei; Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. O projeto permite a intervenção apenas para avaliar a viabilidade ou detectar doenças hereditárias (art. 10) e, ainda, adstringe a utilização da RA para resolução de casos de infertilidade e prevenção ou tratamento de doenças genéticas ou hereditárias.

432“Art. 22. Constitui crime fecundar ovócito humano, com finalidade distinta da procriação humana. Pena- reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa”.

225

Não há consenso sobre o bem jurídico-penal que os preceitos

concernentes ao tema tutelam. Para Regis Prado, o art. 24, da Lei n. 11.105/05,

protege, como bem jurídico, o ser humano em formação (embrião humano), que é

apontado igualmente como sujeito passivo, pelo que o autor parece não ter

distinguido as duas categorias.433 Com maior precisão, em análise do art. 13, III,

da Lei 8.974/95, o doutrinador defende que os pré-embriões e os embriões são

“merecedores de tutela penal, uma vez que através deles se buscará não a

proteção da vida ou da integridade física individuais, mas a preservação de bens

jurídicos de titularidade coletiva (v.g., a identidade, a integridade, a

inalterabilidade do patrimônio genético da espécie humana). Esse, portanto, o

bem jurídico protegido nessa hipótese de incriminação”.434 A mesma tendência é

seguida por Luís Paulo Sirvinskas, que considera que o mencionado art. 13, III,

tutelava a “preservação do meio ambiente, da diversidade biológica e da

integridade do patrimônio genético”.435

Entretanto, a fecundação de óvulos para fins diferentes da

procriação não abala o genoma da espécie humana nem o genótipo de um

indivíduo, porquanto, se respeitado o intento inicial que é elementar do tipo, o

embrião não será implantado na mulher para desenvolvimento, o que obstrui a

criação de novo ser vivo, de modo que não se atinge ou se expõe a perigo uma

pessoa e, bem menos, a espécie.

Esforçando-se para superar essa objeção, sem embargo de

permanecer na seara dos bens supra-individuais, Benítez Ortuzar sustenta que o

433PRADO, Luiz Regis. Direito penal do meio ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural,

ordenação do território e biossegurança. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 576. 434Id. Manipulação genética e direito penal: um estudo aproximativo. In: LEITE, Eduardo de

Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: DNA como meio de prova de filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 195-196.

435SIRVINSKAS, Luís Paulo. op. cit., p. 491.

226

art. 161.1, do Código Penal espanhol, protege bem jurídico de índole coletiva,

cifrado como dignidade humana comunitária, “vertebrada desde el mismo origen

de la espécie humana”.436

Não se olvida que o material celular embrionário carrega o padrão

genético humano e, nesse sentido, as atividades que o envolvem devem alinhar-

se ao princípio da dignidade. Entretanto, como defendido, a dignidade humana

não pode ser acolhida como bem jurídico, porque, repise-se, seu contexto,

imenso e impreciso, abriria margem para desmedidas intervenções repressivas.

Seria, por exemplo, contraditório incriminar a conduta em estudo e, ao mesmo

tempo, afastar da esfera punitiva a destruição de óvulos fecundados excedentes,

como o fazem as Leis n. 8.974/95 e n. 11.105/05, remetendo a atividade

exclusivamente ao campo deontológico (Resolução n. 1.358/92).

Para Gracia Martín, o bem jurídico tutelado pelo Código espanhol

é o interesse do Estado no controle e na limitação do uso e aplicação das

técnicas de reprodução assistidas às finalidades de reprodução humana.437 O

objetivo seria manter a ordem de preferência entre os fins da reprodução assistida

estatuídos nas Leis n. 35 e n. 42, de 1988, situando, em primeiro plano, a

procriação, em segundo, o tratamento e a prevenção de enfermidades de origem

genética ou hereditária e, em terceiro, a investigação ou a experimentação.

Refutando a proposta, Romeo Casabona afirma que o Estado, ao

exercer exclusivamente o ius puniendi, tem sempre interesse de proteger todos os

bens jurídicos em relação a determinadas atividades (vida, liberdade pessoal,

tráfego de veículos), mas apenas quando são implicados aspectos diretamente

436BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 467. 437Luis Gracia Martín, Comentarios al Código Penal. Parte Especial-I, p. 685, apud ROMEO

CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una intervención jurídico-penal, cit., p. 152.

227

referidos a seus fundamentos, estrutura e organização (poderes públicos) é

possível reconhecer, em sentido estrito, um interesse, um bem jurídico estatal, o

que não se verifica na hipótese.438

O enfoque coletivista alinha-se à teoria da nidação, relegando a

tutela da vida ao momento posterior à implantação do embrião no útero materno.

Antes desse período, são reconhecidos bens supra-individuais, relacionados à

espécie humana. Opostos a essa visão, Fernando Galvão da Rocha, Marcelo

Dias Varella e Edison Maluf, partilhando da teoria da fecundação, advogam que o

preceito da revogada Lei n. 8.974/95 protegia a vida do embrião, não

reconhecendo, qualquer um deles, a juridicidade da figura do pré-embrião.439

A última postura é a mais condizente com a tese que abraçamos

sobre o começo da tutela da vida. Se a vida humana constitui direito

constitucional desde a fecundação, quando se fecunda óvulo com fim distinto da

procriação provoca-se, com predeterminação, a destruição do potencial que a

substância carrega para a formação de novo ser. A vida embrionária, ponto de

partida de toda a humanidade, é afetada drasticamente, porquanto, ao mesmo

tempo em que é idealizada sua concepção, é planificada sua eliminação.

Não justifica a atividade eventual benefício em prol de terceiros,

passíveis de serem favorecidos futura e eventualmente pelos resultados de

pesquisas feitas com o material embrionário. Do contrário, estar-se-ia

438ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una intervención

jurídico-penal, cit., p. 165-166. 439ROCHA, Fernando A. N. Galvão da; VARELLA, Marcelo Dias. Tutela penal do patrimônio

genético. Revista dos Tribunais, ano 86, v. 741, p. 479-480, jul. 1997; MALUF, Edison. Manipulação genética e direito penal. 2001. p. 67-68. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

228

concordando com que seres humanos vivessem para fins de outras pessoas. Em

suma, a prática representa, como diz Albin Eser, experimentação humana.440

No caso, porque submetida à total instrumentalização, a vida

embrionária, fonte de todo ser humano e, portanto, dos mais nobres elementos da

realidade e da cultura, necessita de tutela pela forma mais drástica. A desvalia da

destruição da vida embrionária, tanto pela sua dignidade quanto pela repercussão

axiológica e evolutiva, torna insuficiente a proteção extrapenal. Modo mais ameno

de tutela não provocaria na sociedade a imprescindível conscientização sobre a

importância do bem em jogo e não lhe resguardaria de ataques.

Preocupado, Albin Eser adverte: “Será muy difícil compensar

tamaño desprecio de la dignidad del hombre con la justificación de la

trascendencia de los objetivos de la investigación; más aún: cuando se piensa

producir y consumir embriones para aplicaciones industriales”.441

7.3 A criopreservação de embriões

Na atualidade, em muitas clínicas de reprodução assistida, a

ovulação é, por vezes, estimulada com o objetivo de que se recolha do ovário

maior número de óvulos, os quais são inseminados pelo gameta masculino e

podem ser fecundados, quando se torna possível transferir mais de um embrião

para o útero. Entretanto, a transferência de muitos embriões eleva a possibilidade

de gestação múltipla, o que acarreta risco para a gestante e para os embriões

440Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 266-267. 441Id. Ibid., p. 267.

229

(aborto, morte fetal no útero, parto prematuro), além de elevar a chance de

mortalidade neonatal.

Para evitar excesso na transferência de embriões, a

criopreservação, em baixíssimas temperaturas, confere resposta de emergência.

Mas a técnica enseja polêmica nas áreas ética, médica e jurídica, formando um

emaranhando em que mergulhados os embriões excedentes ou supranumerários.

O entrave médico não está no congelamento em si mesmo, pois

não provoca danos no embrião, uma vez que constitui uma parada no tempo

biológico. As células mantêm o estado fisiológico, a fase de desenvolvimento e a

idade inicial.442 O primeiro problema está no processo que envolve a técnica,

posto que a máxima alteração na temperatura ambiental provoca estresse em

intensidade hábil para ensejar o risco de malformações, não havendo, nos dias

atuais, segurança para a avaliação dos efeitos que mais tarde poderão repercutir

no adulto.443 A segunda dificuldade está na redução das chances de

desenvolvimento do embrião, que se acentua na medida em que o tempo de

congelamento é elevado. Tem-se conhecimento de que a variação do prazo

recebe interferência da fase do desenvolvimento embrionário em que efetivado o

processo. Em zigotos (unicelular), a taxa de sobrevida está entre 40% (quarenta

por cento) e 100% (cem por cento), não obstante haja o empecilho da ausência

de padrão para os parâmetros morfológicos que ajudam na distinção entre viáveis

e inviáveis. Se congelado na fase do blastócito, o que comumente ocorre, a taxa

442Cf. Relatório e Programa do Grupo de Trabalho para o Estudo da Medicina Familiar, Fertilidade

e Reprodução Humana, Ministério da Saúde de Portugal, 1993, p. 222, apud BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 100.

443Cf. LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. La clonación humana. Barcelona: Ariel, 2002. p. 428.

230

de sobrevida assume cerca de 100% (cem por cento), mas a taxa de gravidez cai

para 16% (dezesseis) por transferência.444

O obstáculo de ordem ética está no destino a ser conferido ao

embrião congelado. Se não transferido para o útero da progenitora nos ciclos

genitais seguintes, o embrião poderia ser doado a terceiros, inclusive após um

século de congelamento, quando seriam invertidos os princípios que regem as

leis naturais sobre o nascimento. Poderia ser mantido vivo indefinidamente até

que morresse no freezer ou, após o decurso de certo prazo, poderia ser utilizado

para investigação ou destruído. Em qualquer das hipóteses, a sorte do embrião in

vitro seria decidida por terceiro, o que evidencia sua vulnerabilidade, o estado

máximo de indefesa em que está submerso e, em outra via, a responsabilidade

do manipulador.

Não são poucos os Estados que buscam disciplinar a questão. O

ponto de partida está no Relatório da Comissão Warnock, em que o prazo de

congelamento foi estipulado em 5 (cinco) anos, o que foi repetido no Informe

Waller da Austrália, embora o National Health and Medical Research Council

sugerira 10 (dez) anos. O período eleito foi arbitrário porque sem prévia

elaboração de estudos sobre a viabilidade em outros mais longos.445 A despeito

deste vício, inúmeras legislações adotaram-no internamente. A solução pouco

refletida gerou dilema quando os primeiros prazos venceram em agosto de 1996,

na Inglaterra. Houve um debate mundial sobre a obrigatoriedade de que todos os

embriões ingleses congelados fossem destruídos, o que efetivamente foi feito.

444DR. ABDEL Massih. Disponível em: <http://www.abdelmassih.com.br/pesquisa/p_criop1.htm>.

Acesso em: 10 set. 2005. 445Cf. GOLDIM, José Roberto. Congelamento de embriões. Universidade Federal do Rio Grande

do Sul – UFRGS. Disponível em: <www.bioetica.ufrgs.br/congela.htm>. Acesso em: 10 nov. 2005.

231

A Lei de Fertilização Assistida do Reino Unido (1990), assentada

na distinção entre embrião e pré-embrião, obsta o armazenamento e a utilização

exclusivamente nas hipóteses em que tenha aparecido a linha primitiva. Portanto,

remanescem, no campo da licitude, a criopreservação e, de plano, as

experimentações no período precedente, quando, em regra, é descontado o

tempo do congelamento.

Em França, a Lei n. 94/654 estabelece que os dois membros do

casal podem concordar por escrito em fecundar certo número de óvulos,

prevendo o armazenamento de alguns, a fim de que se tornem pais nos próximos

5 (cinco) anos. É autorizada a doação se o casal, por unanimidade, decidir que

outro receba seus embriões. Outrossim, recebendo influência do modelo inglês, a

pesquisa embrionária é permitida até o 14º (décimo quarto) dia após a

fecundação, donde infere-se que, se criopreservados antes do período, quando

descongelados também poderão ser alvo de estudo clínico. O único

condicionamento está no assentimento dos pais.446

A Lei n. 35/88, da Espanha, prevê o prazo de 5 (cinco) anos para

o congelamento, não se referindo ao destino posterior. Dentro desse interregno, o

art.11, n. 3, estatui: “Pasados dos años de criopreservación de gametos o

preembriones que no procedan de donates, quedarán a disposición de los Bancos

correspondientes”. Transcorrido o biênio, a partir de 29 de outubro de 2004, foram

liberadas, pelo Governo espanhol, as investigações, desde que haja autorização

expressa dos pais biológicos.447

Em Portugal, o Projeto 512/IX, de 13 de outubro de 2004, o

parâmetro qüinqüenal para criopreservação foi reduzido para três anos, período 446Cf. LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 126. 447O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 30 out. 2004. p. A-22.

232

em que o casal poderá doar o embrião. Encerrado o lapso temporal, apresenta-se

a possibilidade de sua submissão à pesquisa.

Na Noruega, a Lei de 5 de agosto de 1994 repete o prazo de

armazenamento de 3 (três) anos (art. 2.12), mas estatui que, após, não poderão

ser empregados em pesquisas (art. 3.1). Na Áustria, a Lei Federal de 1992, sobre

Reprodução Assistida, estabelece que as células viáveis (ovócitos fecundados e

células que se desenvolveram a partir dos ovócitos) podem ser congeladas por 1

(um) ano; findo, serão destruídas. Proíbe a doação de embriões.448

De modo mais restritivo, a Lei alemã de 1990, ao proibir a

fecundação de mais óvulos do que o número que será transferido num ciclo de

tratamento, elimina a aparição de embriões excedentes, pelo menos dentro do

país. De certo que, para os pesquisadores, restava a válvula de escape da

importação de células-tronco embrionárias. Regulando a prática, a Lei de Células-

Tronco, de 28 de junho de 2002, proíbe, como princípio geral, a importação e a

utilização de células tronco-embrionárias, embora excepcionalmente a autorize

nas seguintes hipóteses: I) quando empregue células-tronco obtidas antes de 1º

de janeiro de 2002, sendo elas provenientes de embriões criados para fins de

reprodução; II) inexistência de contraprestação no negócio; III) não-violação da

Lei de Proteção aos Embriões. O diploma prevê que os trabalhos com células-

tronco devem restringir-se a fins científicos de primeira magnitude, relativos à

aquisição de conhecimentos científicos ou à aplicação de conhecimento em

procedimentos diagnósticos, p reventivos ou terapêuticos em seres humanos.449

Albin Eser, ao analisar a lei em tela e ressaltando sua rijeza,

destaca a contradição valorativa no ordenamento germânico, em virtude do 448Cf. NYS, Herman. op. cit., p. 177-180. 449REVISTA de Derecho y Genoma Humano, n. 17, p. 241-247, 2002.

233

choque entre a proibição da experimentação com embriões fora do útero materno

e a massiva admissibilidade de aborto do feto antes de finalizado o terceiro mês

de gestação.450

Perfilhando o rigor dos alemães e sob forte influência do

catolicismo, a Lei italiana de 2003 determina que só podem ser gerados 3 (três)

embriões por casal e que todos devem ser implantados simultaneamente.451

A doutrina não é menos oscilante. Entre os autores que adotam a

teoria da nidação e, assim, sustentam que o embrião com menos de 14 (quatorze)

dias é mera massa amorfa de células sem vida tutelável, o congelamento não

gera conflitos éticos. Quando do descongelamento, respeitado o referido período,

a destruição e a investigação pura são aceitáveis, desde que, na última hipótese,

não sejam implantados posteriormente no útero da mulher, nem relegados a uso

que menospreze a espécie (cosmético ou para armamento, por exemplo). Eis as

palavras de Antonio Cuerda Riezu: “el desvalor de la destrucción de un embrión

no implantado es tan mínimo, que no merece un castigo penal”.452

Para os partidários da teoria da fecundação, a situação dos

embriões congelados é bem mais embaraçosa. Entre eles, Mónica López

Barahona e Salvador Antuñano Alea propõem, para o embrião excedente, a

fixação de formas escalonadas de destino: 1º) os pais, em função de dever moral,

deveriam assumi-los em novo implante, porque os geraram; 2º) observando que

quando os pais abandonam seus filhos estes ficam sob a responsabilidade de um

tutor, a legislação deveria estabelecer, por analogia, a adoção pré-natal para

casais heróicos que voluntariamente quisessem salvar a vida dos embriões

450Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 126. 451Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 106. 452CUERDA RIEZU, Antonio. Límites juridicopenales de las nuevas técnicas genéticas. Anuario de

Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 41, fasc. 1, p. 427, ene./abr. 1998.

234

criopreservados; 3º) não verificadas as situações anteriores, os embriões

deveriam ser deixados no congelador até que morressem. Reconhecem que a

última opção seria pouco prática, mas a defendem como meio de banir a

instrumentalização dos embriões, eis que “matar a alguien para usarlo es violar

sua dignidad”.453

Barbas Neves concorda que o destino preferencial dos embriões

é a implantação no útero da progenitora nos ciclos reprodutivos futuros, quando a

criopreservação é eticamente positiva. Todavia, a técnica, em seu entendimento,

não é solução natural, porque maneja um ser com personalidade e alma, nem é

solução definitiva, posto que tudo na vida dos homens tem um fim. Se a mulher

morrer ou rejeitar a procriação médica assistida, surgirá conflito absoluto de

valores e, entre liquidar a vida embrionária e a transferi-la para útero alheio, a

estudiosa aceita a última opção. Não tolera a investigação embrionária em

qualquer hipótese.454

No nosso modo de ver, os embriões gerados pelas técnicas de

reprodução assistida carregam, como visto, o bem jurídico em epígrafe . Se

obtidos em excesso, não deveriam ser implantados obrigatoriamente no mesmo

ciclo genital, para evitar os riscos inerentes à gestação múltipla, referentes à vida

e à saúde da gestante e dos embriões. A alternativa inevitável seria o

congelamento, porque mantém esperança no desenvolvimento da vida. Não

aceitamos a destruição imediata, porque implica a negação da vida em formação.

Congelados, seria ideal que os progenitores, uma vez conscientes

de que está paralisada no freezer uma vida humana que geraram, procurassem

por nova implantação. Não se olvida, porém, que, em relação à vida embrionária, 453LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 144-145 e 128-130. 454BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 93-94, 105 e 123-124.

235

é possível que se coloquem em confronto outros bens jurídicos, tais como a

integridade física e psíquica da mulher, quando exposta a uma gestação

indesejada, como também a integridade psíquica do seu parceiro, abalada que

seria pela repulsa a uma nova gravidez, em face de possível disparidade com o

plano de vida.

Seria também afetada a liberdade de procriação do casal, não

condicionada apenas pela vontade dos pais, mas por fatores imprevisíveis, tais

como redução do ganho financeiro, doenças, falecimento e divórcio.455 Caso

obrigados a implantar os embriões excedentes em novo ciclo genital, os

progenitores seriam postos numa cilada, porquanto o não-pretendido crescimento

familiar seria, paradoxalmente, reflexo da utilização de procedimento autorizado

pelo Poder Público e sem controle rígido sobre o número de embriões

fecundados. Não seriam poucos os casais a procurar a clandestinidade para

evitar uma nova gravidez, como ocorre com o aborto.

Havendo rejeição de nova implantação por motivo íntimo ou por

mudança objetiva da condição de vida, ou advindo impossibilidade clínica de novo

implante (falecimento, doença grave), competiria ao Estado, como alternativa,

instituir políticas para promover a adoção pré-natal dos embriões

supranumerários, mediante a instituição de mecanismos que a estimulasse,

455O direito à procriação representa uma das formas de autodeterminação física e de autonomia

do sujeito, que são manifestações do direito fundamental de liberdade. Associa-se também ao direito à intimidade, do qual decorre o impedimento a intromissões ilegítimas na vida privada, em meio à qual está a organização da família. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que: “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar família”. No Brasil, a Constituição consagra a liberdade de planejamento familiar, competindo ao Estado propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (art. 226, §7º). À luz desses dispositivos, conclui Flávia Piovesan que “todas as pessoas têm assim o direto fundamental à saúde sexual e reprodutiva. Os direitos reprodutivos incluem os direitos das mulheres e dos homens de assumir decisões no campo da reprodução, livres de discriminação, coerção e violência, assim como o direito de dispor dos níveis mais altos de saúde sexual e reprodutiva, tendo direito à autodeterminação” (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 201).

236

incluindo uma legislação adequada, em que se regulasse especialmente a

questão do conhecimento ou anonimato dos progenitores. Pensamos que a futura

legislação deveria estabelecer prazo razoável para efetivamente tornar exeqüível

a adoção, a fim de que se buscasse preservar a vida, o que não se satisfaz em 3

(três) ou 5 (cinco) anos diante do elevado número de embriões congelados na

atualidade (cerca de 20 mil nas clínicas brasileiras, sem projeto parental).

A questão dos embriões excedentes, porém, não se encerra com

a adoção. Sem embargo de configurar a resposta ideal em termos abstratos,

porque, repise-se, garante chance de que a vida embrionária congelada volte a

evoluir, a realidade é, ao que se nos afigura, um pouco mais severa. A maioria

dos casais que procura pelas clínicas busca filiação com seu patrimônio genético

e, assim, por tendência, prefere criar um novo ser ao invés de adotar um embrião.

Demais disso, como visto, os embriões congelados padecem de redução da

viabilidade e embrenham-se no risco de malformações, o que lhes minora a

chance de se manterem vivos, bem como de qualidade de vida digna. Esses

fatores reduzem o interesse na adoção pré-natal, sobressaindo o último, porque,

de ordem biológica, não pode ser modificado pelo Direito.

À vista da dureza das circunstâncias mundanas, Stella Maris

Martínez adverte com contundência no seguinte sentido: “afirmar que los

embriones criopreservados están vivos, es una falácia; ignorar que su destino

más seguro es la destrucción, una hipocresia; privilegiarlos sobre la posibilidad de

garantizar a tantos seres humanos su derecho a una mejor calidad de vida, una

arbitrariedad”.456 Atento a esse particular, Roca i Trías admite “a destruição de

embriões criados in vitro e conservados, uma vez que não se tem em nenhum

456MARTÍNEZ, Stella Maris. Derecho a la vida vs. derecho a una determinada calidad de vida:

reflexiones sobre la clonación humana, cit., p. 109.

237

caso a segurança de que a prolongação do congelamento permita assegurar a

dignidade humana, princípio que, como já se viu, rege todo o sistema de proteção

dos embriões e o que poderíamos denominar seu estatuto jurídico”.457 Nesse

passo, Christian Starck, na 56ª Jornada de Juristas Alemães, de 1986, defendeu

que, em relação aos embriões sobrantes, caso não adotados, teria de “ser

autorizado su empleo con fines de investigación ya que carecen de cualquier

posibilidad de desarrollo y están abocados a la destrucción”.458

Tendo em vista a dificuldade inerente à adoção pré-natal,

consideramos que, decorrido tempo razoável para sua consumação, os embriões

congelados estarão predestinados ao abandono até que sobrevenha a sua

destruição no congelador. Inserido nesse contexto, o potencial de vida dos

embriões está eliminado, equiparando-se à coisa. Não vemos diferença axiológica

entre a opção pela morte natural, quiçá séculos depois de sua criação, e sua

destruição mais breve, em prol de investigação científica séria, com possibilidade

de benefícios para toda a humanidade. É certo que na primeira hipótese a morte,

em si mesma, não adviria de ação de terceiro, mas a responsabilidade não se

altera, posto que o embrião depende da conduta de outrem para viver, o que

nivela o agir ao omitir.

Não escondemos que esta posição é qualificada, pelos

opositores, como verdadeiro embrionicídio. Preconizamos, porém, prudência, de

modo que a liberação para a investigação deveria ser precedida por precisa

regulamentação, com a fixação de prazos de moratória, tanto para incentivar nova

implantação na mulher progenitora ou adoção quanto para o aprimoramento de

457ROCA I TRÍAS, Encarca. Direitos de reprodução e eugenia. In: ROMEO CASABONA, Carlos

María (Org.). op. cit., p. 119. 458STARCK, Christian. op. cit., p. 148.

238

pesquisas com células-tronco adultas ou de células-tronco embrionárias que

dispensassem a destruição do embrião.459 Os prazos haveriam de resultar de

amplo debate, sediado nos comitês de bioética com formação multidisciplinar.

Não obstante a necessidade de reflexão e cuidado, a Lei n.

11.105/05, objetivando saciar de imediato o desejo de certos grupos de cientistas

e de enfermos pela manipulação de células-tronco embrionárias, em seu art. 5º,

autoriza pesquisas com embriões produzidos por fertilização in vitro, não

utilizados no respectivo procedimento, congelados há 3 (três) anos ou mais, na

data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação da

mesma, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de

congelamento, com prévio consentimento do casal.

O diploma, além de não prestigiar expressamente a adoção pré-

natal, acaba por dificultá-la pela pequenez do prazo para o congelamento. A

postura evidencia a falta de conhecimento da sociedade sobre a valia do embrião

e a importância de forma alternativa de ação em relação a ele. A ignorância foi

retratada em levantamento feito por uma clínica de reprodução assistida de São

Paulo, com 720 (setecentos e vinte) casais que fazem ou já fizeram tratamento

para engravidar, entre os quais 20% (vinte por cento) deles gostariam de levar

seus embriões para casa porque consideram que são seus filhos; 28% (vinte e

oito por cento) descartá-los-iam após 3 (três) anos; 19% (dezenove por cento)

permitiriam sua destruição; 33% (trinta e três por cento) doá-los-iam para

pesquisa ou para outros casais.460

A meditação sobre o tema conduz à análise da

constitucionalidade do referido art. 5º. O ex-Procurador-geral da República 459Capítulo 2, item 2.4.2.1, supra. 460FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 05 mar. 2005. p. A-18.

239

Cláudio Fonteles ajuizou ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal

Federal contra o referido dispositivo, argumentando que a vida começa com a

fecundação e, por isso, a destruição dos embriões para pesquisas viola dois

princípios constitucionais: o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.

O preceito em tela desvaloriza a vida embrionária, na medida em

que condiciona somente ao decurso de exíguos 3 (três) anos e à vontade do

casal o desaparecimento da potencialidade do embrião evoluir para uma pessoa.

O prazo, como sustentamos, é insuficiente para conscientizar o casal sobre a

valia do embrião congelado, para estimular a adoção pré-natal e até mesmo para

permitir o desenvolvimento de pesquisas que não exijam sua destruição. Posto

isto, ele afronta o direito à vida. Porém, compreendemos que, paralelamente, sob

os pressupostos acima aventados, havendo o abandono por tempo razoável, a

nivelação do embrião congelado com o inviável é imposta pelos fatos, o que

legitima que o operador do direito iguale um ao outros.

A par disso, a lei pátria não abrangeu os embriões excedentes de

procedimentos subseqüentes à Lei n. 11.105/05. Relativamente a eles, é aplicável a

Resolução n. 1.358/92: “No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros

devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos pré-

embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de

um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los” (item V, 3). A Resolução, como

visto, proíbe o descarte e a destruição embrionária (item V, 2), mas, às vezes, na prática,

o destino é o lixo. Em suma, a vida do embrião é colocada nas mãos dos progenitores,

como se existisse um direito sobre a vida, não um direito à vida.

Para suplantar a celeuma dos embriões congelados e concretizar

a inviolabilidade prevista no caput do art. 5º, da Constituição Federal, seria

240

sensato que as futuras normas restringissem a fecundação de óvulos ao mínimo

indispensável para a procriação num ciclo reprodutivo, a fim de desestimular as

sobras, estabelecendo mecanismo de austera fiscalização.

Na Áustria, a Lei de 1992 estabelece que somente serão

fecundados os óvulos necessários dentro de um ciclo menstrual, para lograr a

reprodução assistida, levando em conta o estado atual da medicina e a

experiência. Cuida-se de excelente parâmetro. Evita a geração abusiva de

embriões, promovida com intento claro de que sobrem e sejam congelados. Vale

dizer que a restrição não reduziria a eficácia da técnica de reprodução assistida,

pois, de acordo com o Registro Latino-Americano de Reprodução Assistida, não

há considerável diferença na taxa de gravidez quando transferidos 3 (31,8% -

trinta e um vírgula oito por cento), 4 (34,5%- trinta e quatro vírgula cinco por

cento), 5 (36,1% - trinta e seis vírgula um por cento) ou mais de 6 (35,8% - trinta e

cinco vírgula oito por cento) embriões. 461 Também não obsta a seleção pré-

implantatória, porque estrito o âmbito em que admitida. Porém, a norma apenas

terá considerável eficácia se for estabelecida em nível internacional, dada a

possibilidade de turismo pró-fertilidade.

Frise-se, enfim, que os argumentos traçados têm o intento de

fomentar a discussão em torno da matéria, nunca de fornecer elementos prontos

e acabados, o que, pensamos, é impossível nesta fase da ciência, onde contínuas

as descobertas, e da sociedade, imatura para uma discussão derradeira do

assunto.

461Cf. ALVARENGA, Raquel de Lima Leite Soares. Considerações sobre o congelamento de

embriões. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coords.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 239.

241

8. OS BENS JURÍDICOS (2): CONSIDERAÇÕES SOBRE O

PATRIMÔNIO GENÉTICO

8.1 A dupla faceta: a individual e a coletiva

O patrimônio genético não é expressão cunhada em sentido

econômico, como algo que está no mercado de troca ou de compra e venda,

senão como herança transmitida de geração para geração. Não é invenção,

suscetível ao privilégio legal de patenteamento, mas descoberta, como explica

Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília.462

Em sentido amplo, o patrimônio genético é conceituado como o

universo dos componentes físicos, psíquicos e culturais que começaram em

passado remoto e permanecem constantes, embora com naturais mutações ao

longo das gerações.463 Em sentido estrito, na lição do bioquímico Albert

Lehninger, representa o conjunto de elementos que formam o ácido

desoxirribonucléico, possuidor da informação genética (genoma) que caracteriza

um organismo.464 A última, mais condizente com o legado genético, será a

adotada neste trabalho.

Devido à revolução da biomedicina, o patrimônio genético

humano, sobretudo quando referente aos embriões in vitro, tornou-se facilmente

manejável pelas técnicas genéticas, que se desenvolvem sob formas bastante

controvertidas do ponto de vista ético. Surgem, em conseqüência, clamores pela 462O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. p. A-21. 463Cf. BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 17, n. 2. 464Cf. LEHNINGER, Albert L. Fundamentos da Bioquímica. São Paulo: Sarvier, 1977. p. 375.

242

limitação do direito à livre criação (investigação) científica, a fim de que se

protejam interesses a ele contrapostos, relacionados à intangibilidade do genoma.

No juízo valorativo destinado a apurar se tais interesses merecem ocupar a

categoria de bem jurídico, a Constituição exerce papel essencial.

O reconhecimento, na Constituição, de um catálogo de direitos

fundamentais e liberdades públicas, sua consagração e organização normativa

sob o norte da dignidade humana configuram um quadro harmônico de valores

que deve estruturar a totalidade do ordenamento jurídico. A pessoa, mediante a

repersonalização das relações jurídicas, é colocada no centro do sistema

constitucional, aceita como um ser livre, com identidade e individualidade própria,

não passível de manipulação em qualquer de seus aspectos.

Interferir sobre o genoma, para alterar sua estrutura natural ou

para produzir patrimônios iguais em duas ou mais pessoas, pode sufocar os

mencionados atributos que a Constituição assegura para a plena realização de

cada um. Sendo assim e a partir da dignidade humana, ou melhor, de sua

idoneidade projetiva, é possível não só admitir que os interesses que envolvem o

patrimônio genético demandam tutela jurídica, como também observar as linhas

mestras para a aferição do novo bem jurídico.

Na visão de Higuera Guimerá, não se trata de único bem, mas de

uma gama, vertida em dupla dimensão. Em primeiro lugar, surgem aqueles de

dimensão individual: I) a unicidade do ser humano, o direito de ser único, possuir

genótipo próprio, conjunto que se amolda à identidade genética; II) a

irrepetibilidade do ser humano, que corresponde à individualidade. Em segundo,

estão outros, de caráter coletivo: I) a evolução da espécie humana e sua

243

variabilidade; II) a reprodução diferencial.465 Respeitada a dimensão de cada um,

estes bens, ao que se nos afigura, resumem-se no direito de herdar patrimônio

genético intacto ou, mais sinteticamente, na integridade ou inalterabilidade do

patrimônio genético.466

Numa análise apressada, a tese esposada poderia conduzir à

conclusão de que a individualidade genética é consubstancial à dignidade

humana. Um errôneo raciocínio simplista, por exemplo, estigmatizaria os gêmeos

monozigóticos, pois, como nos clones, os mesmos partilham de igual identidade

genética, embora nada autorize sustentar que esta característica redunde em

causa de indignidade. Pelo contrário, não sofrem preconceito social, além de

contarem com a compatibilidade genética do irmão para o caso de doação de

órgão.467

A clareza do raciocínio advém da apreciação do sentido do

princípio em tela. A dignidade humana é caracterizada pela virtual racionalidade,

que qualifica especialmente a pessoa pelo potencial de autodeterminação, com o

poder de decidir sobre si própria, de possuir concepções singulares sobre o

mundo e de manter o respeito das demais a este emblema distintivo.468 Esse

potencial está condicionado por fatores ambientais de espaço (culturais,

familiares, sociais, econômicos) e de tempo (sucessão temporal de gerações

entre os seres vivos).469 Não são, porém, os únicos.

465HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética. Madrid: Trivium, 1995.

p. 247. 466Nessa égide, GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 287. 467Nessa linha, PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58. 468Vide capítulo 6, item 6.1.1, supra. 469Nesse sentido: ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus

consecuencias? El paradigma de la clonación. Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 6, p. 30-31, ene./jun. 1997; PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59.

244

É inegável a influência da carga genética,470 menos em termos

biológicos, que ainda permanecem misteriosos, e mais em virtude da infiltração

de valores sócio-culturais nas atividades científicas quando o acaso biológico é

substituído pela vontade do interventor, de acordo com seus gostos e sua época.

A conversão da dignidade humana em moeda sem valia decorre, na hipótese, não

da humilhação verbal do indivíduo, mas de sua produção (oposto de geração),

quando é “degradado a un objeto involuntario de fines que aprovechan

exclusivamente a otros o cuando se le roba su individualidad, esencial para su

condición de persona”.471

Neste contexto de artificialismos, surge a necessidade de

resguardar juridicamente a inalterabilidade do genoma de cada pessoa (genótipo),

razão pela qual se assiste à integridade genética exibir sua faceta individual

enquanto bem jurídico. A correlata tutela não encontra justificativa no intento de

assegurar a integridade genética por si só, senão em acautelá-la em virtude de

suas conexões com os influxos culturais, quando formam um conjunto precioso

para a pessoa compor a si mesma diferentemente de todas as outras. Sob esta

lente, preservado o casuísmo genético, o ser humano é mantido como fruto

biológico de complexas e variáveis combinações de genes, executadas pela

natureza durante a formação do genótipo (padrão genético individual), o que lhe

assegura a livre edificação da personalidade e do destino de forma ímpar e

pessoal.

A par disso, tendo em conta que cada ser humano não está

ilhado, mas que se sujeita a envolvimento com o sexo oposto e, então, à 470ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus consecuencias?,

cit., p. 30-31; PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59; BELLVER CAPELLA, Vicente. Consideraciones filosófico jurídicas en torno a la clonación para la reproducción humana. Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 10, p. 54-57, ene./jun. 1999.

471ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 232.

245

reprodução, processa-se, natural e continuamente no ciclo da vida, a transmissão

dos caracteres genéticos entre as gerações, com as recombinações advindas da

mescla entre o patrimônio materno e o paterno. Em decorrência, o patrimônio

genético mostra sua faceta coletiva e, também, o interesse que o contorna, qual

seja a integridade genética, desta feita referente à espécie.

Diante da falta de domínio científico sobre o mecanismo natural

das combinações e das mutações genéticas e sobre o impacto de correlatas

alterações artificiais, as investidas da biomedicina despertam apreensão, em face

de sua repercussão sobre as gerações do porvir. As tormentas invadem o terreno

dos caracteres específicos da espécie humana que, mantidos imutáveis, sempre

a fizeram superior às demais. Elas estendem-se para a conservação e a evolução

da humanidade, porque não fosse a fantástica especificidade dos genótipos

individuais, os seres humanos seriam mais frágeis frente às epidemias viróticas,

enfermidades infecciosas ou a outros agentes externos agressivos aptos a

vulnerar certa configuração genética.

Este quadro autoriza o controle jurídico das atividades científicas

para firmar uma proteção cujo destinatário, desta vez, não será o indivíduo, um

grupo ou o Estado, mas a coletividade humana ou mais pontualmente “o gênero

humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo

da existencialidade concreta”.472

472BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 523.

246

8.2 Perfil internacional

No âmbito internacional, o patrimônio genético da humanidade

apareceu associado à noção de patrimônio comum da humanidade.473 A

Declaração Universal sobre o Genoma e dos Direitos do Homem (Unesco – 1997)

emprega o conceito em seu art. 1º: ”O genoma humano subjaz à unidade

fundamental de todos os membros da família humana e também ao

reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido simbólico,

é herança da humanidade”. 474

O texto evidencia a relação recíproca de beneficência e

responsabilidade entre a humanidade e o indivíduo. Destaca, assim, a

fraternidade, mediante a valorização do laço genético que prende os seres

humanos numa irmandade. É atribuída a cada um a incumbência de salvaguardar

o genótipo em respeito à sua pessoa, mas, sobretudo, em homenagem aos

demais, inclusive futuros, em atenção à barreira do desconhecido que recobre as

combinações naturais de genes. Além disso, o preceito acautela a diversidade,

considerada inerente à família humana. É garantida a variedade da espécie a qual

transcende o indivíduo, configurando interesse supra-individual.475

O documento também tutela a igualdade, a despeito das

características genéticas peculiares de cada ser humano (art. 2º, a), especificando

que a personalidade não se reduz a caracteres genéticos (art. 2º, b). Afirma que o

genoma, em seu estado natural, não pode ser explorado economicamente, ou

473A noção foi assentada em 1979, no Acordo sobre as Ativi dades dos Estados na Lua e em

outros Corpos Celestes, bem como na Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar (1982).

474Embora transcrito no capítulo 6, item 6.1.2, o texto é novamente exposto para facilitar a evolução do tema.

475Nessa linha: GONZÁLE Z GONZÁLEZ, Marisé; VALLE MUÑIZ, José Manuel. op. cit., p. 114.

247

seja, que não é possível sua comercialização ou alienação (art. 4º). Não obstante,

quase 20% (vinte por cento) dos genes humanos estão patenteados, dos quais

63% (sessenta e três por cento) estão nas mãos de empresas e 28% (vinte e oito

por cento) de universidades. Entre eles, estão genes ligados a importantes

processos celulares, o que coíbe a pesquisa por outros grupos.476

São feitas alusões, em outros documentos internacionais, ao bem

jurídico em testilha. A Recomendação n. 934/1982, do Conselho da Europa,

pronunciou-se pela inclusão da intangibilidade da herança genética perante as

intervenções artificiais no catálogo de direitos fundamentais do homem. A

Recomendação n. 1.100/1989, do Conselho da Europa, sobre a utilização de

embriões e fetos humanos na investigação científica, considera que o embrião

“não só manifesta uma diferenciação progressiva como organismo senão também

mantém uma continuidade de sua identidade biológica e genética”. Na Resolução

sobre os Problemas Éticos e Jurídicos da Manipulação Genética, o Parlamento

Europeu, em 16 de março de 1989, exarou “seu desejo de que se defina o

estatuto jurídico do embrião humano com o objetivo de garantir uma proteção

clara da identidade genética do ser humano”. A Declaração de Bilbao, na reunião

internacional sobre o Direito perante o Projeto Genoma Humano (26.05.93),

recomenda, mais amplamente, “a fixação de limites precisos para certas formas

de engenharia genética que atacam a individualidade, a identidade e a

variabilidade do ser humano”.

476O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. p. A-21.

248

8.3 Perfil constitucional

A integridade genética está resguardada pela projeção da

dignidade humana sobre todo o ordenamento jurídico, sobretudo sob a

perspectiva individual do bem, direcionada para a livre escolha do modo de vida.

Sobre a dimensão coletiva, a Constituição pátria, ao disciplinar a Ordem Social,

no seu art. 225, prescreve ao Poder Público a incumbência de: “II – preservar a

diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as

entidades destinadas à pesquisa e manipulação do patrimônio genético”.

Para Lora Alarcón, é possível extrair do artigo a proteção do

patrimônio genético da humanidade, embora considere necessária uma norma

específica para sua segura salvaguarda, em respeito à sua enorme dimensão.477

Segundo Adriana Diaféria, a disposição é suficiente para a tutela do patrimônio

genético dos vegetais, dos animais e dos seres humanos, inseridos

adequadamente em contexto constitucional comum, uma vez que a estrutura

biológica de todos os seres vivos é a mesma.478 Sem embargo de reconhecermos

que a clareza da letra da lei tornaria seu comando mais acessível e elevaria a

segurança jurídica, a última interpretação, no nosso modo de sentir, é mais

ajustada à vista do princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas

constitucionais.

Paralelamente, há outros direitos, consagrados na Carta de 1988,

que revigoram, como pano de fundo, a proteção da integridade genética. Entre

eles, está o direito à vida que, compreendido em conjugação com o direito ao

477LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 228-229. 478DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 52.

249

meio ambiente equilibrado, implica direito à sadia qualidade de vida, para o qual a

biodiversidade ecológica funciona como um dos assentos.

Aliás, segundo Adriana Diaféria, o próprio art. 225 consiste em

tutela mediata da vida479 porque, como diz José Afonso, assegura “a saúde, o

bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento”.480 Sob o plano

coletivo, o desenvolvimento da vida humana recebe afluência dos avanços

científicos quando interferirem na essência do gênero humano, passo em que o

respectivo direito assume projeção universal (direito à vida da humanidade), em

defesa da sobrevivência da espécie.

A integridade genética associa-se, ainda, ao direito à igualdade,

quando reclama a multiplicidade genética para a preservação do todo, refutando,

em contrapartida, uma diferenciação arbitrária fundada em dados dos

cromossomos. Finalmente, relaciona-se com o direito coletivo à saúde,

consagrado nos arts. 6º e 196, da Constituição, porque o genoma é a raiz

biológica para a formação corpórea e intelectual do ser humano e, em suas

manipulações, a ciência avança na possibilidade de, futuramente, oferecer

tratamento condigno mediante terapia genética. Incumbe ao Poder Público

analisar seus benefícios e custos à vista de outras enfermidades e, transformados

os experimentos em tratamentos, estendê-los a todos.

Havendo nexo entre a integridade genética e os nominados

direitos fundamentais, conquanto não integre o Título II (Dos Direitos e Garantias

Fundamentais), a proteção ao patrimônio genético pode ser considerada direito

479DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 53. 480SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 818.

250

fundamental decorrente do sistema constitucional (art. 5º, §2º, CF).481 Ocupando

este nível hierárquico, o direito à inalterabilidade do patrimônio genético pode

prevalecer sobre a liberdade de expressão científica, reconhecida pelo art. 5º, IX,

da Constituição, quando houver conflito entre eles (colisão de direitos

fundamentais).

8.4 Parâmetros para a intervenção penal

A dignidade penal da integridade genética deriva, em primeiro

plano, da consagração constitucional de sua tutela. A elevada categoria jurídica

está em harmonia com a desvalia do dirigismo biológico no processo de formação

do ser humano, que impossibilita ou pelo menos tende a impossibilitar a priori as

condições básicas para o livre desenvolvimento da personalidade.

Simultaneamente, é colocada em pauta a importância da variabilidade genética

para o equilíbrio e a sobrevivência da humanidade.

Em segundo lugar, a dignidade penal assenta-se na perturbação

social provocada por investidas científicas sobre o patrimônio genético não-

patológico, casos em que se revela a assustadora sobreposição de pretensões

eugênicas à liberdade individual e à preservação digna da espécie.

Infelizmente, muitas vezes a falta de informação e de ponderação

leva a sociedade a enganos, pois induzida a julgar como inofensivo o que, em

481Maria Garcia, em reflexão sobre quais seriam os direitos fundamentais, reconhece como tais

todos “diretamente vinculados a um dos cinco direitos fundamentais básicos constantes do art. 5º, caput” (GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais? Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 10, n. 39, p. 115-131, 2002). A Constituição Portuguesa, ao ser revisada em 1997, no art. 26, n. 3, introduziu referência expressa à identidade genética do ser humano, relacionando-a com a dignidade pessoal e a limitação da tecnologia e experimentação científica.

251

análise mais profunda, pouco ou nada se diferenciaria da banalização do ser

humano, perpetrada em campos nazistas. Estando em jogo a essência do ser

humano e, provavelmente, o futuro da humanidade, não nos parece que a

intervenção penal diante do uso abusivo das técnicas genéticas afronte o princípio

da ultima ratio.

A carência de tutela penal, por sua vez, está presente em virtude

da insuficiência de outros meios para a proteção do genoma humano contra

agressões ou perigos advindos da manipulação biológica. Como explica Javier

García González, as elevadas multas administrativas são passíveis de previsão

antecipada pelos interventores e, assim, podem ser computadas no assento

contábil dos gastos estimados, o que, em tese, seria neutralizado pelo repasse no

preço do produto final.482

A redução ou mesmo a aniquilação da eficácia intimidatória de

sanções administrativas é reforçada pelo volume de recursos financeiros

movimentado pela indústria farmacêutica, bem como pelas clínicas de reprodução

assistida, nas quais é manifesto o alto custeio das intervenções, arcado pelos

pacientes.

A adequação penal (aptidão da pena para evitar ou reduzir as

lesões ou riscos de lesão) exige o exame, diante de cada técnica, dos custos e

dos benefícios da incriminação da conduta, passo em que é enfática a

importância da finalidade do procedimento: terapêutica, meramente investigativa,

de melhoramento, comercial ou bélica.

Além disso, não se pode perder de vista a natureza das coisas,

em que adquirem relevância a dificuldade do nexo causal entre as manipulações

482GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 282.

252

atuais na linha germinal e os efeitos sobre a futura descendência, a

irreversibilidade das conseqüências, visto que plasmadas no código genético, e a

falta de consentimento do futuro ser e de sua estirpe, já que a investida é

efetivada, em regra, na fase embrionária.

Soma-se a falta de utilidade prática de intervenções tardias

quando em questão bem jurídico delicado e tão magnânimo, como a integridade

genética da espécie. Sob esta ótica, são profundamente tocantes as palavras de

Hans Jonas, que elaborou uma ética de responsabilidade humana à vista do

poder tecnológico conquistado no século passado e presente .

Para ele, “El dilema moral de toda manipulación biológico-humano

que vaya más allá de lo puramente negativo de la prevención de defectos

hereditarios es precisamente ése: que la posible acusación de la descendencia

contra su creador ya no encuentra a nadie que pueda responder y purgar por ella,

nin ningún instrumento de indemnización. Aquí hay un campo para el crimen no

total impunidad, de la que las personas actuales – que serán pasadas – están

seguras frente a sus futuras víctimas. Sólo esto (nos) obliga a la más extrema e

temerosa cautela en cualquier aplicación del cresciente poder del arte biológico

sobre los hombres. Lo único permitido aquí es la prevención de la desgracia, no la

prueba de una felicidad de nuevo cuño”.483

Em razão de todos estes fatores, defendemos, nesta seara, a

intervenção penal preventiva.

483Técnica, medicina y ética. Sobre la prática del principio de responsabilidad, Barcelona: Paidós,

1997, p. 127, apud BELLVER CAPELLA, Vicente. op. cit., p. 63.

253

9. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O PATRIMÔNIO GENÉTICO

9.1 A manipulação genética

A manipulação genética pode ser terapêutica ou não-terapêutica.

A terapia gênica desencadeia efeitos diferentes conforme realizada em células

somáticas ou da linha germinal e, por isso, deve ser distinta a valoração jurídica

de cada uma.484

Nas células somáticas, a intervenção implica ação específica

nestas, sem afetar o padrão genético-hereditário do embrião, feto ou adulto

submetido e, portanto, sem transmissão à descendência. Por isso, a técnica é

equiparável ao transplante de órgãos,485 salvo quanto a específicas condições

decorrentes do peculiar cunho experimental. De fato, para a prática, ao lado do

consentimento informado e da ponderação de riscos e benefícios para o paciente,

colocam-se a igualdade de oportunidade de acesso aos enfermos, a falta de

meios convencionais de tratamento, a letalidade ou a gravidade manifesta da

doença e a submissão a protocolos rigorosos, que controlem os custos e

benefícios em confronto com os tratamentos para doenças comuns. 486

Esta modalidade de intervenção deve ser lícita e, tão-somente

quando cause dano que afete a integridade física do paciente, subsumir-se-á ao 484Vide capítulo 2, supra. 485Nessa linha: ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 238; ROMEO

CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit., p. 367; HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 333.

486Cf. Lydia Feito Grande (Professora de Bioética da Universidade de Comillas, em Madrid, na Espanha) - FEITO GRANDE, Lydia. El sueño de lo posible: bioética y terapia génica. Madrid: Comillas, 1999. p. 344; ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção, cit., p. 152.

254

crime de lesões corporais.487 No Brasil, a terapia gênica somática está autorizada

e regulada pela Instrução Normativa n. 9/97, da CTNBio, onde se disciplinam os

requisitos a serem preenchidos pelos requerimentos para os experimentos, com a

avaliação submetida a Comitês Internos de Ética em pesquisa e, a seguir, à

própria CTNBio.

Para a terapia gênica germinal, Luís Archer pondera que, se

realizada com sucesso nas primeiras fases do período embrionário, é valiosa,

porque contribui para a eliminação da anomalia cromossômica, de modo que a

futura criança e sua descendência nasceriam livres do defeito e, portanto, da

possível enfermidade.488 Contudo, o procedimento é complexo, porquanto exige a

fecundação in vitro, o diagnóstico pré-implantatório, a modificação genética do

material embrionário e sua transferência. Seria bem mais simples e barata a

seleção pré-implantatória dos embriões.

A par disso, se a técnica fosse efetivada com êxito no adulto,

embora evitasse a transmissão hereditária, não lhe curaria da anomalia e, por

isso, caso ele também padecesse ou viesse a padecer da enfermidade, seria

necessária sua submissão à terapia genética somática.

Esse quadro reclama o questionamento da relação custo-

benefício da técnica, sobretudo se assinalado seu cunho experimental e se

executada mediante recursos retirados de investidas sanitárias mais prementes.

Outrossim, se a modificação causasse distúrbio, as conseqüências seriam

incontroláveis, porquanto fatalmente transmitidas aos descendentes. Enfim, como

487Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida

humana, cit., p. 367. 488Cf. ARCHER, Luís. op. cit., p. 242-243.

255

diz Lydia Feito Grande, não há prioridade para o imediato desenvolvimento do

procedimento.489

Afigura-se-nos razoável a posição de Romeo Casabona, que

propõe a submissão à moratória da terapia germinal490 até que se comprove, de

modo mais fidedigno, sua segurança e desenvolva-se melhor a terapia gênica

somática.491 Caso houvesse violação da moratória, o infrator seria passível de

contenção mediante uma sanção profissional, a qual poderia ser elidida se

configurada uma causa de justificação, como o estado de necessidade. Não há

razão para uma sanção criminal, posto que, conquanto a técnica altere o

patrimônio genético, a finalidade almejada reside, se realizada no estágio

embrionário, no benefício do paciente (embrião) e da descendência, ou somente

desta se realizada no adulto. Destarte, mesmo em face dos riscos, a técnica não

assume repulsa suficiente para ser banida pela penalidade mais grave.

Ao lado de manipulações terapêuticas, os gametas, o zigoto ou o

embrião podem ser submetidos a manejos alheios à cura de enfermidades

graves. Ignorando a relação entre as bases genéticas e o potencial humano de

autodeterminação (a dignidade humana), estes procedimentos procuram traços

genéticos perfectivos (engenharia de melhoramento), fixados segundo os critérios

da sociedade contemporânea, pouco humanitária e muito competitiva, ou,

diversamente, são buscados intentos meramente investigativos, comerciais e

bélicos.

489FEITO GRANDE, Lydia. op. cit., p. 354-356. 490A moratória da terapia gênica na linha germinal foi também sugerida pela Associação

Internacional de Direito Penal, no Congresso realizado em Viena, em 1989 (cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit., p. 368, n. 6).

491Em linha similar, HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 359-361.

256

Caso executada sobre gametas a serem utilizados em

reprodução, a manipulação genética não-terapêutica afeta negativamente a

integridade do patrimônio genético da espécie (pessoa a advir da fecundação e

sua descendência), não havendo bem individual envolvido porque ainda não há

vida para sustentá-lo. Se efetivada sobre o zigoto ou embrião, a técnica apresenta

dupla perspectiva: uma individual, ao violar a inalterabilidade do patrimônio

genético da incipiente vida (integridade genética do genótipo) e outra coletiva,

relacionada à intangibilidade do patrimônio genético da espécie, colocada em

risco pela transmissão hereditária da alteração.492

A manipulação não-terapêutica redunda em coisificação do ser

humano, na medida em que modifica, de antemão, sem consentimento, o padrão

genético sob parâmetros estranhos ao futuro ser afetado, fazendo com que a

pessoa do porvir funcione como meio para fins outros que não ela própria, tais

como desejos egoístas dos pais, de seus criadores, ou meramente lucrativos.

Representa a retomada da ideologia nazista. Além disso, estes procedimentos

abalam as bases genéticas referentes à origem e ao normal desenvolvimento da

espécie, na medida em que rompem o processo das naturais combinações

genéticas.493 Portanto, afetam valores fundamentais e causam reprovabilidade

social suficiente para justificar a intervenção penal.

Pode-se cogitar que a projeção supra-individual da técnica seria

remota, porque uma isolada aplicação não afetaria a integridade genética da

espécie humana, cujo abalo dependeria de cumuladas repetições. De

492Nesse sentido, C. M. ROMEO Casabona ao analisar o art. 159, do Código Penal espanhol (Los

delitos contra la vida y la integridad personal y los relativos a la manipulación genética, cit., p. 277). Na mesma linha, PRADO, Luiz Regis. Biossegurança e direito penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 94, v. 835, p. 422, maio 2005.

493Nessa linha: BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 443-444; GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 285-291.

257

conseguinte, em face da prática de uma manipulação, seria ilegítima a resposta

penal que mirasse a tutela da intangibilidade genética sob a dimensão coletiva.494

Todavia, ao que aferimos, uma só manipulação germinal executada com sucesso

teria reflexo considerável sobre a humanidade, pois promoveria o nascimento de

pessoa com o genótipo alterado irreversivelmente, acarretando, numa seqüência

incontrolável, a transferência da mudança aos descendentes e assim

sucessivamente.

Portanto, cada ação, em si, é potencialmente danosa para o

genoma da humanidade e, quando agregada a outras, deflagra, com

peculiaridade, significativo dano, sem controle conhecido. Se aguardada esta

situação, a intervenção jurídica seria pouco útil à sociedade, quiçá pela morte do

cientista interventor, além de cravada em dificuldades probatórias, dada a

multiplicidade de ações e sua distância do resultado. Assim, a antecipação da

barreira penal na tutela da integridade genética sob o prisma supra-individual,

antes de ser meramente simbólica, é instrumental, porque afasta uma lesão com

proporções imensuráveis e sem reversão. Demais disso, reafirma o valor deste

bem em época de considerável confusão ética, servindo tanto para a

conscientização do leigo quanto para o controle dos impulsos dos cientistas, eis

que exposta sua imagem a maiores críticas. Destarte, a prevenção geral

provocada pela norma penal apresenta-se no mínimo pela advertência sobre a

ilicitude máxima do comportamento.

Devido ao mandamento de taxatividade da lei penal, é

imprescindível o estabelecimento de critério para estabelecer zona divisória entre

494Nesse passo, pondera SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos J. La función de derecho penal y sus

consecuencias para el genoma humano. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de 1995, cit., p. 379. O autor questiona a legitimidade da técnica – delito de cumulação –, sustentando que vulnera o princípio da culpabilidade.

258

a patologia genética e o mero desvio de normalidade (gene raro ou diferente),

valendo as mesmas ponderações feitas quando da análise da seleção

embrionária.495 Não procedida a distinção (pertinente em norma não-penal, dada

a velocidade de alteração da matéria), a lei estará fadada à inaplicabilidade,

reduzindo-se à função retórica, qual seja a aclamação da importância da

intangibilidade do patrimônio genético, despida, porém, de aplicabilidade, em

razão de carente delimitação do campo de ilicitude.

No direito posto, não são constantes as posturas. A Lei alemã de

Proteção ao Embrião tipificou o delito de manipulação genética de célula humana

da via germinal (gametas e o óvulo em que penetrou o espermatozóide, sem que

tenha se findado a mescla dos núcleos - §8º), castigando o responsável pela

manipulação e o usuário do material (§5º).496 O mesmo rumo foi seguido pela

Noruega, onde a Lei n. 56/94 proíbe o tratamento dirigido à modificação do

genoma de embriões humanos (artigo 7.1 e artigo 8.5).

No Brasil, a Lei n. 8.974/95 vedava qualquer intervenção ou

manipulação genética em células germinativas humanas (art. 8º combinado com a

Instrução Normativa 8/98, da CTNBio). A atual Lei n. 11.105/05, em seu art. 25,

pune a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto

humano ou embrião humano, salvo se executada sobre as células-tronco de

embriões passíveis de uso, nos termos do art. 5º: Em confronto com o anterior, o

novo diploma é superior, ao elucidar que a atividade abarca também o zigoto e o

embrião e, ainda, ao restringir o campo da penalidade à alteração de genes

(engenharia ou manipulação molecular), excluindo o simples manejo.

495Capítulo 7, item 7.1, supra. 496A Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de março de 1989, exigiu a penalização de toda a

transferência de genes para células germinais humanas (cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 354).

259

Sem embargo, não diferenciou as investidas terapêuticas das

não-terapêuticas, nem em termos de quantidade de pena. Além disso, não

especificou que os gametas deveriam ser empregados em futura reprodução

assistida, pois, do contrário, não haveria alteração do patrimônio genético e, não

havendo vida no espermatozóide ou no óvulo isolado, inexistiria bem jurídico

atingido. Essas falhas devem ser corrigidas em futura reforma penal. Por ora,

cumpre ao intérprete promover o ajuste ao excluir do tipo a intervenção

terapêutica e o experimento sobre gameta sem fim de fecundação, em ambos os

casos com base na falta de ofensa a um bem jurídico, caso em que este, segundo

interpretação teleológica, desempenha função exegética.497

Não é essa a situação em que se encontra a manipulação sem

fim reprodutivo de embrião humano in vitro. Não havendo implantação do material

embrionário, o procedimento não viola o patrimônio genético do indivíduo futuro

ou da espécie, mas aniquila uma vida humana, eis que toma o embrião como

objeto de investigação para posterior destruição. Por isso, de lege ferenda,

pensamos que, para tal procedimento, em respeito à especificidade do bem

jurídico afetado, há necessidade de um tipo apartado das manipulações,

exclusivamente voltado para a tutela da vida.

Na Espanha, a Lei n. 35/88, em seu art. 20.2.B, referente ao “pré-

embrião”, veda, administrativamente, a manipulação genética com fins não-

terapêuticos ou terapêuticos não-autorizados. O Código Penal, em seu art. 159,

§1º, pune quem manipular genes humanos de modo a alterar o genótipo, com

finalidade distinta da eliminação ou diminuição de taras ou enfermidades. No §2º

497Cf. GOMES, Luiz Flávio. op. cit., p. 138.

260

(parágrafo segundo), sanciona a alteração do genótipo realizada com imprudência

grave, sem referir à finalidade da investida.

O §1º (parágrafo primeiro) exige, para a configuração do tipo, a

alteração permanente do genótipo. Preconiza Romeo Casabona que o preceito,

em virtude da dupla perspectiva (individual e supra-individual), apresenta

estrutura de delito de resultado (alteração definitiva do genótipo, patrimônio

individual, com prova do nexo causal) e, na seqüência, de perigo abstrato

(colocação em risco do genoma da humanidade, patrimônio da espécie, a

despeito de prova do nexo).498 Paralelamente, no §2º (parágrafo segundo), o

delito é de mera atividade, porquanto penaliza o perigo inerente à prática

perpetrada com material celular humano de forma temerária.499

A modelagem empregada no §1º (parágrafo primeiro) consagra

noções bastante ajustadas à realidade das coisas. Com efeito, nem todas as

manipulações genéticas provocam alteração definitiva no genótipo, única que,

inexoravelmente, é transmitida aos descendentes. Entre os vetores virais,

distinguem-se os retrovírus que integram a informação genética da célula e,

portanto, transferem-se às células-filhas, dos adenovírus, cuja informação não

integra o código da célula ou mantém-se independente dentro do núcleo celular.

As conseqüências penais da utilização de um e outro vetor são evidentes: a

técnica utilizada será capaz de alterar o DNA da célula somente se usado

retrovírus.500

Diante do exposto, de lege ferenda, propomos a criação de um

tipo para a manipulação não-terapêutica de embriões, sem fins procriativos, em

498Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Los delitos contra la vida y la integridad personal y los

relativos a la manipulación genética, cit., p. 278. 499Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 453-454. 500Cf. GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 295. Vide também capítulo 2, n.r. 66.

261

homenagem à vida, num paralelo à figura da fecundação de óvulos também sem

intento procriativo. Ficaria fora da esfera penal a mesma atividade com gametas.

A par disso, sugerimos que o tipo concernente à manipulação

não-terapêutica de gametas e embriões, com intento de procriação, tenha

estrutura de delito de resultado no que tange ao aspecto individual da integridade

genética, a fim de evitar a punição de tentativa inidônea. Deverá, pois, constar,

como elementar da figura penal, a prova do nexo causal entre o emprego da

técnica e a efetiva alteração do genótipo individual. A indiscutível dificuldade

probatória poderá ser minimizada mediante rigorosa fiscalização em cada um dos

procedimentos, nomeadamente quanto ao tipo de vetor empregado.

Exigida e executada a referida prova, o perigo ao genoma da

humanidade será reflexo, dispensando demonstração de seu vínculo com a

prática científica. Nesta linha, basta que o aspecto coletivo do indigitado bem

jurídico seja considerado na interpretação da lei e na dosagem da pena, figurando

a respectiva tutela como um mecanismo para conferir a segurança necessária ao

desfrute, pelas gerações futuras, do padrão genético naturalmente humano.

Por fim, é pertinente, também de lege ferenda, a inclusão do tipo

culposo (imprudência, negligência ou imperícia) com estrutura paralela ao crime

doloso. A necessidade e adequação da sanção penal apresentam-se porque a

técnica em apreço somente é realizada por profissionais especializadíssimos,

conhecedores da indefinida transmissão hereditária da alteração e da falta de

controle técnico sobre ela. Medida sob esse parâmetro, a sanção penal

representa meio para prevenir abusivas mudanças, com repercussão sem

dimensão passível de atual conhecimento e, em regra, acobertadas por contratos

de seguro.

262

9.2 A clonagem humana

9.2.1 Clonagem reprodutiva: aspecto individual

A obtenção de embriões clonados foi anunciada pelos sul-

coreanos e, após, pelos britânicos. Aceita a viabilidade da técnica, ainda que a

longo prazo, são muitas as utilidades sugeridas. Entre elas, o aperfeiçoamento ou

o auxílio em técnicas de reprodução assistida, na medida em que a clonagem

possibilitaria a criação de embriões múltiplos voltados para mulheres com baixa

produção de óvulos, permitindo o implante de número mais adequado ao sucesso

da empreitada reprodutiva, ou produção de embriões excedentes para análises

genéticas, como o diagnóstico pré-implantatório, a fim de que se implantassem

somente os sadios. Além disso, a técnica propiciaria a concretização do sonho de

réplica de um ser humano falecido ou considerado excelente, bem como a

produção em série de super-homens ou homúnculos.

Por ora, não há certeza científica sobre a veracidade dos

resultados das pesquisas sul-coreanas e bem menos prova indicativa da

viabilidade de desenvolvimento do embrião clonado.501 Somam-se, ainda,

inconvenientes atrelados ao processo: I) para cada clone aparentemente normal,

são geradas dezenas de outros abortados ou malformados;502 II) envelhecimento

precoce e doenças genéticas do clone.503

501Capítulo 2, supra. 502Cf. PEREIRA, Lygia. op. cit., p. 128. 503CONTRA -ataque dos clones. Super Interessante, n. 151, ago. 2003 (entrevista com Keith

Campbell, professor de fisiologia animal da Universidade de Nottingham, Reino Unido). A Dolly, ao completar 3 (três) anos em 1999, tinha células de uma ovelha de oito anos de idade, pois suas características biomoleculares eram as mesmas do tecido que a originou, retirado de uma ovelha mais velha. Em decorrência e em tese, o clone sofreria, na infância, doenças degenerativas mais comuns, como reumatismo, artrite, diabetes e até câncer (VEJA, São Paulo, ano 34, n. 1.686, 07 fev. 2001).

263

Diante da perplexidade em torno do procedimento, não são

poucos os temores. Na linguagem de Ferrando Mantovani, resumem-se nos

seguintes: risco de destruição do direito à identidade genética e à inviolabilidade

da individualidade humana; risco de destruição do indivíduo por ato de vontade ou

capricho de terceiro; risco de programação e reprodução totalitária de seres

humanos iguais; risco de implicações hereditárias imprevisíveis, inclusive sobre a

conservação da espécie, calcada na variedade de seus componentes.504

O problemático quadro conduz a discussões acerca dos princípios

éticos e jurídicos que colocam à prova a clonagem. O ponto de partida é a

invulnerabilidade da dignidade da pessoa humana. Em face da abertura da

correlata norma, para perquirir sua relação com o tema, novamente acode-se da

perspicaz análise de Hans Jonas, que percebe que a essência da questão está na

importância do direito à ignorância para o livre desenvolvimento da personalidade.

Diz o estudioso, in verbis: “El hecho sencillo y sin precedentes es

que el – hipotético – clon sabe (o cree saber) demasiado de sí mesmo, y outros

saber (o creen saber) demasiado de él. Ambos hechos, el propio y supuesto ya-

saber y el de otros, son paralizantes para el espontaneidad de su llegar a ser ‘el

mismo’ y el segundo hecho también para la autenticidad del trato de otros con él”.

Mais adiante: “Da igual que el supuesto saber sea verdadero o falso (y hay

buenas razones para suponer que es esencialmente falso per se): es pernicioso

para la obtención de la propia identidad. Porque lo existencialmente significativo

es que la persona clonada piensa – tiene que pensar – que no es lo que ‘es’

objetivamente en el sentido substancial del ser. En resumen: al producto de la

clonación se le ha robado de antemano la liberdad, que sólo puede prosperar bajo

504Cf. MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas

de control y técnicas de tutela, cit., p. 99.

264

la protección de la ignorancia. Robar premeditadamente esta liberdad a un futuro

ser humano es un crimen inexpiable, que no puede ser cometido ni una sola

vez”.505

Rememore-se que o componente ambiental (tempo e espaço) na

formação da personalidade tem extrema relevância, mas não atua isoladamente.

Há de ser reconhecido o acerto de Hans Jonas ao expressar a compulsão do ser

repetido a um determinismo genético, em função do artificialismo de seu genótipo,

o que não é menos perturbador e, por isso, deve ser evitado. Não se ignora que

uma criança clonada pode ser bem acolhida e gozar de condições para fluir

livremente. Não obstante, o mais comum é que seja querida em razão direta de

sua dotação genética.

Partindo dessas premissas, a clonagem reprodutiva, ao copiar o

genótipo do ser clonado no clone, vulnera a unicidade e a individualidade do ser

humano e, assim, lesa o bem em voga - a inalterabilidade do patrimônio genético

do ser humano - em sua dimensão individual.506 Além disso, viola o acesso à

dupla progênie, importante para o sentimento de normalidade, vinculado à origem

materna e paterna, como manda a natureza de nossa espécie.

A relevância do bem em questão, a exposição a ataque

significativo e a irreversibilidade do efeito genético, posto que o patrimônio

genético do clone sempre será uma cópia, evidenciam a insuficiência de sanções

financeiras e legitimam a intervenção penal.

505Hans Jonas, op. cit., p. 127, apud PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 59. 506Entre os autores que afirmam que a clonagem lesa o direito à unicidade e irrepetibilidade do

ser-humano, estão: C. M. ROMEO Casabona (El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit., p. 371-372); J.U. Hernández Plasencia (La protección penal del embrión preimplantatorio. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de 1995, cit., 122); Ferrando Mantovani, (Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas de control y técnicas de tutela, cit., p. 99) e J. F. Higuera Guimerá (El derecho penal y la genética, cit., p. 247). Os 2 (dois) últimos referem-se a eles como decorrência do direito à dignidade humana, reconhecido como tal.

265

Inquieta, a Associação Internacional de Direito Penal, em seu XIV

Congresso Internacional de Direito Penal, celebrado em Viena, em 1988, propôs a

tipificação penal da clonagem de seres humanos, na Resolução n. 6.9. Seguiram

a mesma trilha vários documentos internacionais. A Declaração Universal sobre o

Genoma Humano não permite a clonagem com fins reprodutivos em seres

humanos, sem estatuir outras referências (art. 11). O Conselho da Europa,

mediante o Protocolo específico de 1998, incorporado ao Convênio sobre Direitos

Humanos e Biomedicina, proíbe a clonagem com propósito de criar um ser

humano geneticamente idêntico a outro, vivo ou morto. A União Européia, na

Carta de Direitos Fundamentais, estabelece a proibição da clonagem reprodutiva

em seres humanos.

A incriminação da clonagem reprodutiva, em princípio, demanda

ressalva quando executada mediante gemelação artificial: se duplicados os

embriões e transferidos simultaneamente para o útero feminino, os indivíduos

nasceriam juntos, de modo que não haveria cerceamento do direito à ignorância,

simplesmente porque não existiria parâmetro preexistente. Tal como ocorre com

os gêmeos monozigóticos, o clone e o clonado viveriam sob a mesma situação.

Portanto, mesmo repetindo-se o patrimônio genético, não se desrespeitaria a

dupla progênie nem haveria ofensa à dignidade humana, à autodeterminação e,

assim, não se justificaria, em tese, a intervenção penal.

O procedimento, porém, reclama outras ponderações, pois a

gemelação artificial pode ser empregada para obter embriões excedentes, para

implantações sucessivas ou para uso em diagnóstico pré-implantatório. Para

Higuera Guimerá, o método associado a estes fins conforma-se com a dignidade,

pois “no se estaria persiguiendo la finalidad innoble y deplorable eticamente de

266

crear mediante programación y reproducción de una forma ‘totalitaria’ seres

humanos idénticos y en serie, y por outra parte, en mi opinión, no se daria en

absoluto en estos casos la finalidad de hacer una selección de la raza, o de

producir seres humanos inteligentes, estúpidos o bellos”.507 Nessa égide, Romeo

Casabona não rechaça a técnica em si mesma, porquanto não envolve

manipulação genética nem réplica de ser preexistente.508 No Reino Unido, a Lei

de Fertilização de 1990 não exclui a concessão de permissão para gemelação

artificial.509

Entretanto, é muito rara a escassez de óvulos para a reprodução

assistida e, via de conseqüência, o uso da gemelação artificial para suprir a falta.

Além disso, está presente a possibilidade de dissolução do interesse em outra

procriação, quando seria retomada a celeuma dos embriões excedentes. Se,

desde logo, for criado sem fim reprodutivo, inclusive diagnóstico, o embrião

clonado funcionará como instrumento, em visível desprezo da vida humana que

incorporará e do princípio constitucional da dignidade. Outra objeção, desta feita

relacionada a nascimentos sucessivos, está no possível conflito entre os

interesses do filho já nascido, em sua individualidade e unicidade, e o dos pais,

em reproduzirem-se por mais uma vez, servindo-se dos embriões clonados e

estocados. Esses motivos são satisfatórios para que a gemelação artificial, em

análise mais aprofundada, seja recusada.

Rigorosa, a Lei alemã de Proteção ao Embrião, sem distinção

entre os métodos de clonagem, penaliza quem produzir artificialmente embrião 507Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. Consideraciones jurídico-penales sobre las conductas de

clonación en los embriones humanos (II), cit., p. 104. 508Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus

consecuencias?, cit., p. 34. 509O art. 41 considera delito “realizar algo que, em virtude do art. 3.3 desta lei, não possa ser

autorizado por uma permissão será culpável de delito e poderá ser processado e condenado com pena de prisão por tempo que não exceda a dez anos, ou multa ou ambos”.

267

com informação genética idêntica a de outro ou a de feto, ser humano ou pessoa

morta, bem como quem o transfere a uma mulher (§6º). A Lei pátria, no art. 26,

também não faz diferenciação entre os métodos de clonagem.

Esses diplomas não exigem o nascimento do ser clonado e,

nesse ponto, divergem do Código Penal espanhol.510 Para nós, o acerto está com

o último, posto que, antes do nascimento, não há relevante confronto entre o

clone e o ser clonado, não danificando ou expondo à lesão, pelo menos de forma

significativa, o direito à ignorância. Enquanto não nascido o novo ser humano, não

se vulnera o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, condição para que

a inalterabilidade do genoma seja alçada a bem jurídico-penal. Sem prejuízo, a

mera transferência de embrião clonado ao útero feminino deve ser punível a título

de tentativa, ainda que por fato alheio à vontade do interventor o novo ser não

nasça. De lege ferenda, propomos, pois, que, sob o aspecto individual, a estrutura

de delito seja de resultado, que melhor resguarda a fragmentariedade penal.

9.2.2 Clonagem reprodutiva: aspecto supra-individual

A projeção coletiva da clonagem reprodutiva - inalterabilidade do

patrimônio genético da espécie - é bastante discutida na doutrina espanhola.

Muñoz Conde, após defender que a atividade deve ser punida no âmbito penal,

ressalta: “por lo menos en la medida en que se utilicen para fabricar seres

humanos, no ya sólo por la lesión del derecho a la individualidad, identidad y a la

propia autenticidad del ser humano, sino por el riesgo que todo ello representa

510Reza o art. 160.3 (antigo 161.2) do Código Penal: “Con la misma pena [prisión de uno a cinco

años e inhabilitación especial para empleo o cargo público, profesión u oficio de seis a diez años] se castigará la creación de seres idénticos por clonación u otros procedimentos dirigidos a la selección de la raza”.

268

para la propia humanidad”.511 Benítez Ortuzar sustenta que a técnica afronta o

natural desenvolvimento evolutivo da espécie humana, situando o centro do

problema, especificamente, na própria identidade genética de cada um dos

indivíduos que formam ou formarão a comunidade constituída pela espécie

humana.512 Em esteira similar, Higuera Guimerá.513

Diversamente, Puigpelat Martí advoga que a vedação da

clonagem, sob o argumento de que a mesma colocaria em risco a variabilidade

genética da espécie caso todo o mundo se clonasse, não lhe parece aceitável, em

função da restrita possibilidade da ocorrência.514 Nesta égide manifesta-se

Romeo Casabona, para quem as indicações sobre a interferência da clonagem na

diversidade da espécie são meras advertências, pois os riscos de que a variedade

se empobreça são muito remotos.515

No nosso modo de ver, o raciocínio depende da bipartição do

procedimento segundo sua finalidade: I) a clonagem com fins de seleção

eugênica de pessoas; II) a clonagem com qualquer outra finalidade, como a

meramente reprodutiva (resgatar um filho morto) e suas diversas variantes (maior

número de embriões para implantação ou diagnóstico).

No segundo caso, a técnica, em si mesma, não afeta o patrimônio

genético da espécie, ou seja, o genoma da humanidade. A repetição do genótipo

(genoma individual) finda-se no clone, não se transmitindo aos descendentes,

posto que, em regra, aquele se reproduzirá sexualmente, quando a singamia

511MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. 11. ed. Valencia: Tirant to Blanch,

1996. p. 130. 512Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 477. 513Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 247. 514PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59. 515Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus

consecuencias?, cit., p. 35-36.

269

entre seu material e o do parceiro ou da parceira, conforme o caso, promoverá

nova combinação genética, com a retomada da variedade.516 Portanto, a

clonagem voltada meramente para a reprodução esgota-se, pelo menos em

padrões prováveis de procriação, no bem jurídico individual, observados os

moldes supramencionados.

Diverso o impacto da primeira hipótese, que envolve duas etapas.

Num primeiro passo, seria obtido o ser humano com características desejadas, o

que poderá, futuramente, ocorrer mediante clonagem (homens superdotados

intelectual ou fisicamente, ou meramente braçais) ou por meio da manipulação

genética. Uma vez conseguido o “exemplar” desejado, a clonagem reprodutiva

seria o método viável para a repetição de outros indivíduos geneticamente

idênticos, fabricando-se, assim, o grupo de pessoas almejado.

A extensão desta prática sobre a variedade da espécie é

indiscutível, pois interfere arbitrariamente no delicadíssimo equilíbrio de

transmissão hereditária que, por gerações, a natureza conservou e reproduziu.

Consubstancia risco para a humanidade, criando, sem justificativa plausível,

perigo para sua integridade e diversidade, com afetação à intangibilidade genética

sob a dimensão coletiva.

Dada a grande valia do bem em testilha e, nomeadamente, a

irreversibilidade e a amplitude do futuro dano, a utilidade social da norma reclama

a estrutura do perigo abstrato, sendo bastante a clonagem de embrião com o

intento seletivo de grupo (por exemplo, de raça) para que incida o direito penal.

Não é necessário que se espere o nascimento do clone, em

virtude da facilidade de duplicação do “exemplar” em laboratório. Esperar o 516Diverso o reflexo da manipulação genética germinal, em que a modificação no código genético

fica no genótipo, sendo irremediavelmente transferida pelo gameta à descendência.

270

nascimento, quando pode ser de número impensável de pessoas, é aceitar perigo

imensurável. Por isso, no caso, o direito penal preventivo atua não apenas com

tom simbólico, mas como forma efetivamente eficaz para garantir o interesse da

humanidade, realizando sua missão de tutela de bem jurídico.

Enfim, de lege ferenda, haveria um tipo para punir a criação,

mediante clonagem, de ser humano nascido, restrito a interesse individual,

referente ao direito à ignorância, e outro tipo para a clonagem direcionada à

seleção de pessoas, que miraria o patrimônio genético sob o cunho individual e,

em especial, sob a ótica coletiva. Na última especial penal, caso houvesse

nascimento, ocorreria concurso de infrações com o delito anterior.

O segundo delito sugerido, ao prevenir práticas discriminatórias,

funcionaria como complemento ao art. 20, da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de

1989 (com a redação dada pela Lei n. 9.459, de 13.05.97), cuja objetividade

jurídica orienta-se contra a lesão concreta ao princípio da igualdade e, mais

acentuadamente, pelo cunho coletivo que revela, o tipo prestar-se-ia como

anteparo para o crime de genocídio (Lei n. 2.889, de 1º.10.56).

No direito comparado, França e Espanha disciplinaram o tema.517

No que tange à lei espanhola, a aposição da expressão “seleção de raça” peca ao

excluir outras formas de seleção de caracteres biológicos e ao restringir a

exteriorização do preconceito ao critério de cor, quando outros são bem mais

comuns no respectivo Estado, como, por exemplo, contra imigrantes.518

517Em França, a Lei n. 94/653 prescreve que nada poderá vulnerar a integridade física da espécie

humana. Proíbe toda a prática de eugenia dirigida à organização de seleção de pessoas (art. 16-4). Mais adiante, no art. 511.1 reza: “Castigar-se-á com pena de vinte anos de reclusão a aplicação de uma prática eugênica dirigida à seleção de pessoas”. Na Espanha, o art. 161.2, parte final (art. 160.3 atual), castiga os procedimentos dirigidos à seleção de raça, com pena equivalente à clonagem.

518Sobre a adequação do art. 160.3 à realidade espanhola, conferir LANDA GOROSTIZA, Jon-Mirena. Discriminación y prácticas eugenésicas: una aproximación al problema desde la

271

9.2.3 Clonagem terapêutica

O tema está longe de harmonia ético-jurídica. A Assembléia Geral

das Nações Unidas aprovou, em 8 de março de 2005, a Declaração contra a

Clonagem Humana, em que, com caráter de recomendação, sugere aos países

que proíbam “todas as formas de clonagem de seres humanos por serem

incompatíveis com a dignidade humana e a proteção da vida humana”. A

aprovação decorreu de 84 (oitenta e quatro) votos a favor, 34 (trinta e quatro)

contra e 37 (trinta e sete) abstenções, o que representa uma vitória para os

Estados Unidos e a Costa Rica, que lideram na ONU uma campanha contra todo

tipo de clonagem humana.519

A divergência de votação deve-se à técnica em epígrafe, sendo

que os países favoráveis a ela, encabeçados por Bélgica, Reino Unido e China,

lembram que o texto não é vinculativo e, por isso, continuarão a fazer pesquisas

em células clonadas com fins terapêuticos. O grupo propõe que cada país regule,

por meio de suas legislações, a clonagem de células humanas para a pesquisa de

cura para doenças como Alzheimer, câncer e diabete.

No âmbito do direito interno, o procedimento remete à fecundação

de óvulos com fins distintos da procriação humana, largamente proibida nos mais

perspectiva jurídico-penal con especial referencia al artículo 161-2ª in fine del Código Penal de 1995. In: LA EUGENESIA hoy. Bilbao-Granada: Publicaciones da Cátedra Interuniversitaria; Fundación BBVA; Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y Genoma Humano y Editorial Colmares, 1999. p. 303-348.

519Nos Estados Unidos, a legislação federal do presidente americano George W. Bush limita radicalmente a aplicação de verbas federais em estudos nessa área. Mas, no Estado da Califórnia, sob o governo de Arnold Schwazenegger, foi feito contraponto, eis que editada uma lei que criou o Instituto de Medicina Regenerativa, com autorização para investir US$300.000.000,00 (trezentos milhões de dólares) por ano (ao longo de uma década) em pesquisas com células-tronco embrionárias. Porém, a iniciativa bilionária não saiu do papel, pois em março foi iniciado o julgamento de 3 (três) ações procuram invalidar a lei (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 28 fev. 2006. p. A-9).

272

variados Estados. É discutida se a referência legal à palavra “fecundar”, comum

nas legislações, inclui a criação de embriões mediante clonagem, pois nesta, mais

do que fecundação, há uma transferência do núcleo de uma célula somática a um

óvulo não fecundado, cuja fusão realiza-se mediante descarga elétrica. A solução

da questão está na percepção de que, mediante a clonagem, é possível fertilizar

um óvulo humano, como na fecundação. Surge, pois, uma vida humana, o que

permite que se interprete “fecundar” como criar embriões. Portanto, a produção de

embrião, mediante a clonagem, para obtenção de células-tronco é delito na

Espanha, França, Alemanha e Brasil, pelo menos.520 Está fora do âmbito criminal

na Inglaterra e na Coréia do Sul.

A doutrina não é uniforme acerca da legitimidade dessas normas.

Para Puigpelat Martí, devem ser modificadas, porque as investigações sobre o

uso de células-tronco embrionárias representam das mais firmes promessas da

medicina do futuro e porque a proteção da saúde e a promoção da investigação

científica, além de interesse geral, estão tuteladas constitucionalmente. A autora

ressalta que o embrião, embora seja bem jurídico protegido, tem menos entidade

de direitos do que a pessoa.521 Na ótica de Maris Martínez, o embrião fecundado

para fins reprodutivos e o produzido para clonagem terapêutica são

ontologicamente diferentes: somente o primeiro é formado por dupla dotação

genética e está direcionado à reprodução; o segundo não imita a natureza e

jamais originará um ser humano, pelo que não contesta a técnica apreço.522 No

Brasil, Lora Alarcón defende que a clonagem terapêutica não está eivada de

520Capítulo 7, supra. 521Cf. PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 62-63. 522Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Derecho a la vida vs. derecho a una determinada calidad de vida:

reflexiones sobre la clonación humana, cit., p. 106.

273

inconstitucionalidade, porquanto não se trata de duplicar pessoas, mas de

combater doenças.523

Em contrapartida, Minahim, ao analisar a Lei n. 11.105/05, critica

a intenção do legislador em autorizar a clonagem terapêutica e sustenta sua

refutação pelo intérprete, posto que ofende os valores tutelados pelo diploma,

sobretudo a dignidade humana e o próprio direito.524 Em linha similar, Jussara M.

Leal de Meirelles.525

Em suma apertada, como prelecionam os alemães, a postura

adotada depende claramente do estatuto moral e jurídico que se reconheça aos

embriões:526 acolhem a técnica os juristas que diferenciam o pré-embrião do

embrião, concebendo o primeiro como desprovido de vida tutelável juridicamente;

tendem a rechaçá-la os juristas que respeitam a vida embrionária em sua

totalidade. Passemos à nossa posição.

A epígrafe adotada para a técnica - terapêutica - é ambígua e

confusa, o que é particularmente útil para manipular a opinião pública, revestindo

a expressão de certa dignidade científica, humanitária e médica. Obscurece que,

pelo menos no estágio atual da ciência, o embrião, do qual são extraídas as

células-tronco, é destruído, de modo que nenhum benefício (“terapia”) ele recebe.

Segundo López Barahona e Antuñano Alea, “el simples hecho de

que la intención última de todo este proceso sea honesta y buena no convierte

523Cf. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 310. 524Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 142 e173. 525Cf. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 185. Tal doutrinadora, à vista da Lei n.

8.974/95, rechaça a produção e manipulação de embriões humanos como material biológico, pela incompatibilidade com a vida e a dignidade humana.

526Cf. ESER, Albin; FRÜWALD, Wolfang; HONNEFELDER, Luger; MARKL, Hubert; REITER, Johannes; TANNER, Widmar; WINNACKER, Ernst-Ludwig. La clonación humana: fundamentos biológicos y valoración ético-jurídica. Trad. por Leire Escajedo San Epifanio. Revista de Derecho y Genoma, n. 9, p. 102, jul./dic. 1998.

274

este acto moralmente malo en un acto de virtude”.527 Explicam que, a despeito do

fim, o ato é moralmente bom se em si mesmo favorecer o desenvolvimento da

pessoa, o que patentemente não ocorre com o embrião quando é produzido com

a intenção explícita de matá-lo para uso em pesquisas científicas.528

Desse modo, a aceitação da clonagem terapêutica envolve

cobertura moral meramente utilitarista: o embrião, em atitude planejada, é criado

para ser fulminado em favor de terceiros, retomando o criticado risco de

subalternização da pessoa perante a sociedade, para o qual enveredou Amelung,

em sua construção sociológica sobre a tutela penal.

É evidente a lesão à vida humana, além da interferência negativa

na dignidade que recai sobre o embrião, que é relegado à categoria de coisa. O

repúdio é reforçado pela presença de meios alternativos para obtenção de

células-tronco, como as presentes no sangue do cordão umbilical, em tecido

adulto e, em última instância, em embriões criados para reprodução, mas

abandonados, há muito, no congelador das clínicas. Além disso, coloca-se a

possibilidade de pesquisas com xenotransplante, sugerida por Romeo

Casabona.529

No Brasil, a Lei n. 11.105/05, ao vedar a clonagem humana

irrestritamente no art. 26, parece abranger a clonagem terapêutica. A vagueza,

porém, permite que o artigo se transforme num dos mais firmes exemplos de

direito penal simbólico, porque dificilmente aplicável em face da imprecisão. Além

disso, não autoriza a cominação diferenciada da pena para cada modalidade da

técnica.

527LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 139. 528Id. Ibid., p. 136-137. 529ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus consecuencias?,

cit., p. 36.

275

Diante do exposto, de lege ferenda, propomos a tipificação

específica da criação (não de fecundação, para evitar confusão interpretativa) de

óvulos com fins distintos da procriação, observando o exposto no capítulo VII,

item 7.1, deste trabalho. O tipo, tutelando a vida, englobaria a clonagem

terapêutica. Separadamente, seria tipificada a clonagem reprodutiva como acima

assinalado.

9.3 A seleção de gametas e de embriões: a escolha do sexo

A prática pode estar ligada a anomalias, quando adentra na seara

da eugenia negativa. Neste prisma, no que se refere ao embrião, a matéria foi

abordada quando do estudo da seleção pré-implantatória. Quanto aos gametas,

no Brasil, a técnica é autorizada pela Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal

de Medicina, em caso de enfermidades graves ligadas ao sexo (capítulo I, item 4).

Também a Lei alemã de Proteção ao Embrião permite a seleção de

espermatozóide, desde que realizada por médico, em caso de distrofia muscular

de Duchenne ou enfermidade vinculada ao sexo de igual gravidade, reconhecida

por órgão competente conforme o Estado Federado (§3º). Em França, a prática é

obrigatória e sua falta foi elevada a crime pela Lei n. 94/653.530

Em que pese a trama que envolve a delimitação entre a

enfermidade grave e o desvio de normalidade, é de se admitir a seleção de

gametas para excluir patologia hereditária, pois não redunda em lesão ao direito à

vida, porquanto, insista-se, não houve fecundação. A atividade garante a

530“Art. 511.11. Castigar-se-á com pena de dois anos de prisão e 200.000 francos de multa o

recolhimento ou extração de gametas de uma pessoa viva pra aplicação de uma técnica de reprodução assistida sem proceder às provas de detecção de enfermidades transmissíveis exigidas na aplicação da L. 665-15 do Código de Sanidade Pública”.

276

qualidade de vida do futuro filho, cuja saúde será beneficiada pelo uso de

gametas sadios, o que trará alívio aos pais, responsáveis pelo seu bem-estar, e

ao Estado, que se desonerará de gastos futuros em tratamentos que poderiam

ser evitados. Além disso, as enfermidades em foco são raras, o que reduz a

repercussão da técnica sobre o equilíbrio demográfico entre os sexos.

Se a atividade seletiva visar a obtenção de caracteres ótimos,

envereda para a eugenia positiva. Um dos intentos buscado é a seleção de sexo

simplesmente para a satisfação de desejos egoístas dos pais ou adequação a

critérios sociais mais favoráveis a um deles. A prática reduz a criatura humana a

mecanismo de prazer para terceiros e estimula preconceitos fundados em

diferenças sexuais, depois de anos de luta pela igualdade. Afronta a paternidade

responsável, eis que enraizada na preocupação com o bem-estar do filho, que

merece o gozo do direito natural de ser produto da alquimia da natureza.

Despreza, ainda, o misterioso balanceamento natural entre o número de homens

e mulheres na face da Terra, diante do qual é patente o egoísmo da intervenção,

justificada para atender a desequilíbrio do microcosmo familiar. Também provoca

sobra de embriões e, assim, representa mais uma forma de avolumar a vastidão

dos excedentes.

Diante desse quadro, ao que nos parece, a seleção de gametas

ou embriões para escolha de sexo, se não for terapêutica, é merecedora de

sanção penal, uma vez que os valores que afronta diretamente (intangibilidade do

patrimônio genético individual) ou, por via reflexa (igualdade axiológica entre

homens e mulheres e o equilíbrio quantitativo entre os sexos da espécie humana,

277

que contribui para sua preservação), têm assento constitucional, figurando como

suportes da estabilidade e evolução social.531

A assertiva é reforçada pela alarmante difusão do uso

indiscriminado da técnica pelas clínicas de reprodução assistida. Para o combate

da prática, a imposição de multas administrativas aos estabelecimentos talvez

não fosse suficientemente eficaz, em face do preço que cobram pelo

procedimento e da sua simplicidade técnica, e, ainda, não indicariam a contento

perversão ética que contamina a prática, mantendo-lhe a aparência inocente.532

Na Espanha, a seleção de sexo não-terapêutica ou terapêutica

não-autorizada é considerada infração muito grave pela Lei n. 35/88 (art. 20, n. 2,

alínea n). Está abarcada pelo tipo penal descrito no art. 160-3 (antigo art. 161-2),

parte final, consoante a lição de Casabona,533 que recusamos pela expressa

referência legal à seleção de raça, palavra que, calcada em traços físicos

similares, não engloba o sexo. Na Alemanha, a Lei de Proteção do Embrião

castiga quem fecunda artificialmente um óvulo humano com célula seminal

escolhida em função do cromossomo sexual (ressalvando o intento terapêutico),

com pena privativa de liberdade de até 3 (três) anos ou multa (§3º). Na Noruega,

a Lei n. 56/94 proíbe a seleção de sexo não-terapêutica, castigando o crime com

pena de multa ou privação de liberdade de até 3 (três) meses.

531Nesse sentido, MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal, cit., p. 235. 532Pugnam pela criminalização da escolha arbitrária do sexo: MARTÍNEZ, Stella Maris.

Manipulação genética e direito penal, cit., p. 234-235; GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 170. 533Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una

intervención jurídico-penal, cit., p. 156. Igualmente, J. F. Higuera Guimerá, que também defende, de lege ferenda¸ que o tipo remeta expressamente à intervenção não-terapêutica sobre gameta e pré-embrião para evitar divergências (HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 481). De fato, a disparidade interpretativa é revelada pela posição de Benítez Ortuzar, para quem a permanência do art. 20.2.B da Lei 35/88 restringe o art. 160-3 (antigo art. 161.2), de modo que o primeiro abrange a seleção de sexo quando efetivada com gametas ou “pré-embrião”, enquanto o segundo se refere a outras seleções perpetradas após a implantação do óvulo no útero (BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 481).

278

No Brasil, a técnica seletiva com intento não-terapêutico é vedada

exclusivamente pela Resolução n. 1.352/92, mas as clínicas de reprodução

assistida prosseguem com sua execução, sob o argumento de que se trata de

norma obsoleta.534 O Projeto de Lei n. 3.638/93 veda a seleção de sexo (art. 4º),

como também os Projetos ns. 1.135/03 e 2.061/03. O Projeto de Lei n. 2.855/97

criminaliza a utilização de “técnica de reprodução assistida com fins eugênicos,

seleção racial ou seleção de sexo”, punindo com reclusão de 1 (um) a 3 (três)

anos. Igualmente, o Projeto n. 90/99 penaliza, ressalvado o intento terapêutico, a

pré-seleção sexual de gametas e embriões com detenção de 2 (dois) a 6 (seis)

meses, ou multa (art. 13, IX ou art. 31 do substitutivo).

De lege ferenda, para maior clareza, seria adequado um tipo

específico para o combate à técnica, como existe na Alemanha e na Noruega. O

tipo deveria exigir a finalidade procriativa dos gametas ou embriões selecionados,

para que, assim, se colocasse em risco a integridade genética do futuro ser vivo.

Se a técnica fosse massificada, expondo a integridade genética da espécie, a

conduta amoldar-se-ia ao tipo sugerido para a clonagem para seleção de

pessoas.

9.4 Os híbridos e as quimeras

A hibridação e a criação de quimeras configuram outra

modalidade de eugenia positiva. Se limitada a testes diagnósticos destinados a

averiguar a capacidade de penetração do espermatozóide, quando estes

mesclam-se a gametas de animais, desde que o produto não tenha capacidade

534VEJA, São Paulo, ano 37, n. 38, ed. 1872, 22 set. 2004.p. 100.

279

de desenvolvimento desde o início, não há significativa diferença das provas

convencionais com testes que utilizam culturas de células.535 A assertiva estende-

se a outras fusões de gameta humano a animal, com fim de experimentação

autorizada.

Outra situação delineia-se quando intenta-se a produção de

unidades vitais que contenham genes humanos, em que a humanidade e a

animalidade terminarão indistintamente combinadas, com vista à criação de

contingente para trabalhos repetitivos e desagradáveis ou para funcionar como

armazém de órgãos para transplante. Graças à incorporação de material genético

de outras espécies, possibilitando o nascimento de indivíduos com desigual

capacidade para desenvolverem livremente sua personalidade, é desprezado o

valor do padrão genético humano, mínimo que iguala todos os seres humanos.

Presente tais condições, a lesão à integridade genética do futuro

ser abala sua dignidade e, na medida em que altera o genoma da espécie

humana, que a faz superior às demais, também coloca em perigo a integridade

genética da humanidade. A dimensão dos valores contra os quais a prática atenta

e o estigma que recairá sobre o futuro ser podem ser compensados tão-somente

pela sanção penal, que é exigível como mecanismo para o justo controle social.536

No que toca às quimeras, os riscos que encerram - nascimento de

ser humano hermafrodita, corpo listrado (união de negro e branco) - e a ausência

total do benefício também conduzem à máxima agressão a valores humanos, no

caso a inalterabilidade e intangibilidade do patrimônio genético individual e supra-

individual, já que ofendido o padrão genético do indivíduo e da espécie. A

535A conduta é permitida na Espanha, onde um óvulo de hamster é fecundado pelo

espermatozóide, para teste do potencial de fertilidade deste (Lei n. 42/88, art. 14.4). 536Nessa linha, ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 279.

280

carência de respaldo ético e o despropositado tratamento que confere à futura

pessoa e à sua possível descendência (se for fértil) indicam a dignidade penal do

bem jurídico em jogo. A necessidade da tutela criminal, por sua vez, decorre da

insuficiência de outras formas de sanção para protegê-lo e ressaltar sua valia.

Não se olvida que ambas as técnicas não são desejadas pela

maioria dos cientistas. Contudo, a relevância dos interesses que ameaça torna

manifesta a ineficácia do Direito caso aguardasse o nascimento da criatura para

intervir. Demais disso, a falta absoluta de benefício para a humanidade com os

procedimentos, fruto que seriam da vaidade ensandecida de certos cientistas ou

de ideologia totalitária, legitima a antecipação da barreira penal para abranger a

criação do embrião-quimera ou do embrião-híbrido em laboratório, desde que com

fim reprodutivo, a despeito de futuramente nascerem.

A Associação Internacional de Direito Penal, no XIV Congresso

Internacional de Direito Penal (1989), pronunciou-se pela criminalização de

experimentos dirigidos à geração de híbridos ou quimeras, bem como a criação

de seres humanos idênticos por clonagem.537

Nessa linha, a ampla Lei alemã de Proteção do Embrião

sanciona, com pena de prisão de até 5 (cinco) anos ou multa, a união de

embriões em uma conjunção celular com informações genéticas distintas

utilizando ao menos um embrião, bem como a geração de embrião mediante a

fecundação de gameta humano e animal. No âmbito brasileiro, o Projeto de Lei n.

537Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida

humana, cit., p. 371, ns. 16 e 17.

281

2.855/97 pune o intercâmbio de material genético com objetivo de produção de

híbrido.538

A produção de quimeras pode ser inserida no âmbito amplo do

art. 24 da Lei n. 11.105/05, eis que envolve embriões. A produção de híbridos, por

sua vez, foge ao âmbito da ilicitude penal positivada, na medida em que manipula,

tão-somente, gametas.

538“Art. 48. Intercambiar material genético com objetivo de produção de híbridos. Pena – reclusão,

de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa”.

282

10. A SUB-REGRA DA PROPORCIONALIDADE ESTRITA

10.1 Considerações gerais

A proporcionalidade em sentido estrito assenta-se no equilíbrio

entre a causa e a conseqüência, isto é, no juízo lógico onde são comparados o

delito e a pena. Não se amolda a esquemas exclusivamente retributivos, em que

são mais ajustadas penas mais graves pela maior força de intimidação geral. Com

ênfase preventiva, preocupa-se com a justiça da sanção como elemento de

cooperação no eficaz combate à criminalidade.

Na cominação da pena, os agentes estatais não gozam de

liberdade plena, eis que adstritos à Constituição, em meio à qual sobressaem os

valores da justiça, da segurança, da vedação da arbitrariedade e da dignidade da

pessoa humana. É certo, porém, que os mesmos compreendem noções pouco

precisas. Destarte, ao se atuarem, os indigitados valores demandam a

intervenção de critérios que os concretizem. Em função da heterogeneidade entre

a infração e a sanção, é impossível a utilização de critério direto para o

cotejamento, pelo que, na formulação do preceito legal, são aplicados subsídios

pragmáticos assentados em considerações de oportunidade.

Entre eles, o primeiro estriba-se na importância do bem jurídico

que orienta as penas mais graves para os bens mais importantes. A quantidade

de pena abstratamente cominada funciona como fundamento à hierarquia

material dos valores penalmente protegidos, como preconiza Gama de Magalhães

283

Gomes.539 Seguindo tal rumo, a vida, eliminada pelo homicídio, recebeu das

maiores valorações da parte especial de Código Penal pátrio. Desviando-se do

acerto inicial, a vida, mais adiante, foi sutilmente inferiorizada perante o

patrimônio, posto que cominada pena de 6 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão

para o homicídio simples e de 8 (oito) a 15 (quinze) anos para a extorsão

mediante seqüestro.

Entre as bases para a apuração da importância dos bens

jurídicos, são interessantes as colocações de Francesco Angioni. Para o

doutrinador italiano, os bens, segundo a Constituição, dividem-se em três

categorias: fundamentais, primários e secundários. Os primeiros são aqueles sem

os quais o Estado perde sua identidade de Estado Social de Direito. Os segundos

estão nivelados com a liberdade, isto é, como esta, são essenciais para a

realização mínima do homem (vida, saúde, honra). Os demais são os terceiros.

Entretanto, como a Constituição ao menos explicitamente não dispõe sobre

eventual hierarquia entre eles, o próprio autor reconhece que a tarefa exige

delicado discernimento, fator complicador, acentuado pelo extenso rol que

comporia a categoria dos bens primários, descambando para a indeterminação.540

De toda forma, o confronto entre a liberdade ameaçada pela

reprimenda e o bem jurídico penalmente protegido cons titui um dos pilares para

delimitar a sub-regra em epígrafe. Trabalhando com estes dois interesses

jurídicos, o juízo da proporcionalidade estrita não maneja possibilidades fáticas,

como ocorre com os da necessidade e da adequação penal. Ao analisar a

quantidade de pena privativa de liberdade, cerceando este direito constitucional

individual para a proteção de outro que também encontra correspondência

539GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 156. 540ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 167, 203-204.

284

constitucional, a presente sub-regra promove a relativização de direitos e, por

isso, refere-se às possibilidades jurídicas.

Embora a importância do bem jurídico seja elemento essencial na

definição da pena, outros são colocados à disposição do legislador. Entre eles,

está o grau de ofensa ao bem jurídico, ou seja, a gravidade do ataque, podendo

associar-se ao número de bens atingidos, à intensidade da lesão (como no delito

de lesão corporal, cuja pena é aumentada na medida em que se acentua a ofensa

ao bem) ou à modalidade da conduta, permitindo diferente valoração (por

exemplo, a pena varia nos crimes contra o patrimônio, conforme sejam cometidos

com ou sem violência à pessoa, ou mediante fraude).541 O parâmetro mantém

estreita relação com a fragmentariedade do Direito Penal e realça a diversidade

entre as formas de tutela de um mesmo bem, relacionada às múltiplas

modalidades de agressão.

De certo que a gravidade da ofensa não tem importância decisiva

e, por tal razão, é possível que um delito de perigo abstrato tenha pena maior do

que a referente a um delito de resultado, quando pode, por exemplo, pesar em

favor do primeiro a peculiar e imensa extensão do provável dano associado à

conduta tipificada. No caso, pode-se afirmar, em companhia de parcela da

doutrina, que o juízo valorativo é influenciado pela nocividade social dos

comportamentos incriminados, a qual advém do probabilidade da freqüência do

cometimento do delito e sua projeção social.542

Outrossim, também funcionam, como diretivas, o elemento

subjetivo (dolo ou culpa, que remete ao desvalor da intenção do autor), a forma

541Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 174-176. 542Nessa linha, GARCÍA -PABLOS DE MOLINA, Antonio. op. cit., p. 400-401. Similarmente, Jesús

M. Silva Sánchez quando menciona a necessária relação entre o merecimento da pena e o dano social causado (Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 260).

285

de atuação (autoria ou participação) e o grau de execução (crime consumado ou

tentado).543

10.2 Proporcionalidade das penas e os delitos referentes à genotecnologia

O princípio da legalidade consolida a segurança jurídica,

representando garantia individual. Demanda, ao lado da precisa delimitação da

conduta típica, a pontual fixação abstrata dos limites mínimo e máximo da pena.

O mínimo da pena indica a colocação hierárquica do interesse protegido, tendo

em vista as possíveis modalidades de ofensa, ao passo que o máximo responde à

exigência de eficácia da tutela, marcando o limite extremo da intervenção

penal.544 Também é necessário que a relação entre o mínimo e o máximo nos

diversos tipos se mantenha harmônica.545 Expostos esses paradigmas, passemos

ao exame das condutas relacionadas à tecnologia genética.

A clonagem quando tenciona a seleção eugênica de pessoas,

além de violar o direito individual à ignorância em face do artificialismo genético

que promove, abala o desenvolvimento evolutivo da espécie e a sua

sobrevivência, interferindo sobre a intangibilidade do patrimônio genético da

humanidade. Alude, pois, às duas dimensões da integridade genética. De

conseguinte , exige penalidade severa. Tanto é assim que, no modelo legal

francês, a eugenia seletiva recebe sanção de 20 (vinte) anos de reclusão (art.

511.11, Lei n. 94/653).

543Todos os critérios expostos observam a lição de CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 286-292. 544Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 166. 545Id. Ibid., p. 168.

286

O comportamento, como assevera Higuera Guimerá, é digno de

repulsa jurídica maior e mais grave do que a clonagem sem intento seletivo.546 A

respectiva criminalização, ao prevenir idéias contrárias à pluralidade humana,

representa barreira a atividades genocidas e, bem por isso, deve guardar relação

com as penas dos tipos penais previstos na Lei n. 2.889/56.

A comparação, porém, é complexa, pois nem sempre existe

correspondência de sentido entre a conduta tipificada nas alíneas do art. 1º, da

Lei n. 2.889/56, e o tipo penal posteriormente referido para a definição da pena.

De fato, o preceito estipula que a destruição parcial de membros de grupo (étnico,

religioso, nacional ou racial) seja punida nos mesmos moldes que o

envenenamento de água potável, o qual, diversamente do genocídio, é praticado

contra a saúde pública e nem sempre revela intenção destrutiva. Da mesma

forma, não há paralelo entre a transferência forçada de crianças de um grupo

para outro e o crime de seqüestro ou cárcere privado, não se justificando a

equiparação punitiva.

O Projeto do Conselho Nacional de Política Criminal e

Penitenciária desdobra as condutas genocidas em dois artigos: I) “Art. 370. Matar

membros de um mesmo grupo nacional, étnico, racial, político ou religioso, com o

fim de exterminá-lo, total ou parcialmente: Pena – Reclusão, de 20 (vinte) a 30

(trinta) anos”; II) “Art. 371. Ofender a integridade corporal ou a saúde de membros

de um mesmo grupo nacional, étnico, racial, político ou religioso, com o fim de

exterminá-lo, total ou parcialmente: Pena – Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze)

anos”. Estabelece, ainda, que: “Nas mesmas penas incorre quem, com o mesmo

fim: I) submete o grupo a localização forçada ou a condições de existência

546Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 252.

287

capazes de ocasionar seu extermínio, total ou parcial; II) adota medidas

destinadas a impedir nascimento no seio do grupo; III) efetua a transferência

forçada de membros do grupo para qualquer outro”.547

As ações destinadas a selecionar pessoas pela biotecnologia não

conduzem à morte física e, assim, não se equiparam ao proposto art. 370. Não

obstante, aproximam-se do art. 371, porquanto afetam a integridade genética e a

higidez mental que se avizinham da saúde. É certo que as figuras não se igualam,

pois a seleção genética substitui a intenção de destruir o grupo pela busca de

manipulação do comportamento de seus membros em prol de terceiros. De todo

modo, tanto a ofensa à integridade humana com capacidade destrutiva quanto a

seleção genética revelam patente banalização da pessoa em prol da consolidação

de conjunto de idéias, crenças ou valores estranhos a ela.

Na seara da genética, porém, a injunção na liberdade de

pensamento mostra-se mais profunda, eis que, tendencialmente, a ação dos

seres humanos “copiados” será pautada pelo modelo de comportamento do

“original”. Além disso, ao agir sobre zigotos ou embriões, a clonagem afeta formas

de vida humana sem qualquer chance de defesa. Sendo assim, pensamos que

para a clonagem direcionada à seleção de pessoas, a pena mínima deveria

eliminar a possibilidade de regime aberto e a máxima deveria incluir o regime

fechado, variando, como sugestão, entre 5 (cinco) a 14 (quatorze) anos de

reclusão.

A clonagem sem intento seletivo - restrita ao âmbito de casais

inférteis ou desejosos por uma “cópia” - também não é mais grave do que a

manipulação genética. Naquela, a lesão restringe-se ao plano individual,

547Cf. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

p. 171-172 e 197.

288

arranhando o direito à ignorância. Nesta, o ataque contém dimensão individual e

coletiva, na medida em que, além de manejar o genótipo do indivíduo, ele debilita

as bases genéticas sustentadoras do surgimento e do desenvolvimento da

espécie, intervindo sobre a valiosa intangibilidade do genoma da humanidade.

O peso negativo da engenharia genética molecular humana

evidencia o disparate cometido pelo legislador ao prever penas menores para o

delito tipificado no art. 25 do que para o tipo do art. 28, ambos da Lei n.

11.105/05, o qual refere-se à proteção da tecnologia genética de restrição do uso,

quer dizer, a plantas geneticamente modificadas, a vegetais.548

No caso da manipulação genética, a Alemanha impõe pena de

até 5 (cinco) anos ou multa (§5º, Lei de 1990). Na Noruega, varia entre privação

de liberdade de até 3 (três) meses e multa (art. 8.5, Lei n. 56/94). Na Espanha, a

sanção está entre 2 (dois) a 6 (seis) anos de prisão e inabilitação para a profissão

entre 7 (sete) a 10 (dez) anos (art. 159 do Código Penal). Entre os modelos

oferecidos, parece-nos que a resposta penal espanhola é mais próxima do ideal

de justiça, até porque cumula a pena privativa de liberdade com a restritiva de

privativa de direitos específica para a conduta adotada.

Considerando que a parte geral do Código Penal pátrio confere às

penas restritivas de direito o caráter substitutivo (art. 44), não será possível, no

atual sistema, a aludida cumulação. Em decorrência, de lege ferenda, é sugerido

o aumento das penas privativas de liberdade mínima e máxima, ficando entre 3

(três) e 7 (sete) anos de reclusão e multa para a manipulação genética não-

terapêutica e, para a manipulação culposa, em patamares menores, a fim de

sejam incluídos os benefícios da Lei n. 9.099/95.

548Nessa linha: MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 129.

289

Outra opção seria a mudança da parte geral, tornando a pena

restritiva de direitos independente da privativa, quando seriam cumuláveis, sendo

assim de se reduzir o intervalo da segunda para não violar a proporcionalidade

estrita. A postura teria, provavelmente, maior eficácia preventiva, pois, associado

ao receio das penas privativas de liberdade, que é atenuado pela benevolência do

sistema pátrio quanto à progressão de regime, o temor de durante anos

encontrar-se interditado para o exercício da profissão influiria com intensa

pressão sobre a decisão de profissionais de elevado gabarito, como aqueles que

atuam na seara da genética, onde os contínuos avanços não perdoam o atraso de

conhecimento e, bem menos, a falta de prática.

A clonagem sem fim seletivo, por sua vez, pode ser reprovada

com sanção inferior, não nos aparentando desajustado o intervalo fixado no art.

26, da Lei n. 11.105/05: 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. O limite máximo de 5

(cinco) anos foi observado pela legislação penal espanhola (art. 160.3, do CP) e

pela alemã (§6º, da Lei de 1990).

Quanto à fecundação de óvulos com fim diverso da procriação, é

evidente sua proximidade do aborto, eis que afeta a vida antes do nascimento.

Consoante o art. 125, do Código Penal, provocar aborto sem o consentimento da

gestante acarreta pena de reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e, com o

consentimento, reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. No entanto, a similitude

entre as condutas enfocadas não é plena.

No aborto, a vida em relação ao zigoto ou ao embrião in vivo está,

em regra, em estágio evolutivo mais avançado, além de implantada no útero da

gestante, o que lhe confere maior capacidade para o desenvolvimento. Portanto,

o grau de ataque à vida, quando do abortamento, é maior. Em contrapartida, o

290

aborto envolve uma série de fraquezas humanas que não estão presentes na

tecnologia genética: a falta de apoio para a gestante pelo pai ou pela família, a

discriminação social à “mãe solteira”, a carência de recursos financeiros para a

criação de uma criança, o diagnóstico de enfermidades graves ou a origem

violenta da gravidez, por exemplo .

Em homenagem à complexidade emocional que, por tendência,

contorna o aborto, sua reprovação social pode ser, ao que se nos afigura, inferior

à da fecundação de óvulos, pelo menos na maioria dos casos. De conseguinte, a

pena de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão e multa, estatuída no art. 24, da Lei n.

11.105/05, parece merecer um pequeno acréscimo no patamar superior, para que

confira maior eficácia do tipo, sobretudo pela mostra da evidente desvalia do

procedimento científico em análise. A mesma sanção seria aplicável, de lege

ferenda, à manipulação genética de embriões sem finalidade de reprodução,

porquanto, como outrora analisado, também afeta a vida humana.

A reprimenda da seleção não-terapêutica de sexo, por sua vez,

deve ser diferenciada quando maneja embriões e quando direcionada a gametas.

Em relação aos primeiros, destrói vida como na fecundação de óvulos com fim

distinto da procriação, sendo razoável a reprimenda supra-sugerida. Para os

segundos, a pena poderia ser até mesmo de detenção, porque não está em jogo

a vida humana, alcançado o limite máximo de 2 (dois) anos, para que caiba a

transação penal, instituto aplicável aos delitos de menor potencial ofensivo

definidos pelo art. 2º, da Lei n. 10.259/01, que derrogou o art. 61, da Lei n.

9.099/95, por força do princípio da igualdade.549

549Do contrário, haveria de ser atendida tarefa hercúlea: ser encontrado motivo racional evidente

para autorizar a transação penal para o desacato cometido por funcionário público federal e não estender o benefício perante o mesmo delito quando imputado a funcionário público estadual. Em

291

Por fim, a produção de híbridos e quimeras afeta as perspectivas

coletiva e individual da integridade genética, como na manipulação molecular

genética. Todavia, não se olvida que a hibridação não é uma das técnicas que se

encontra no desejo de concreção da ciência, de modo que a finalidade preventiva

da norma penal não é tão significativa quanto na manipulação ou na clonagem.

Deste modo, a suficiência da futura pena, ao que nos apresenta, estará em

patamares inferiores aos da manipulação genética, sobretudo quando ao patamar

máximo. Não foi este, porém, o entendimento acolhido no Projeto de Lei n.

2.855/97, cujo art. 48 reprime o intercâmbio de material genético para a produção

de híbridos com pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão.

10.3 Relação entre os ilícitos disciplinar, administrativo e penal

Trata-se de tema complexo em razão da falta de unanimidade

doutrinária. Num dos estudos mais completos sobre o tema, Nélson Hungria, após

expor e refutar a posição de Goldschmidt, defende que: “A ilicitude jurídica é uma

só, do mesmo modo que um só, na sua essência, o dever jurídico... A única

diferença entre eles está na maior gravidade do delito penal, que, por isso

mesmo, provoca mais extensa e difusa perturbação social”.550

Sustentando que tem sido em vão a tentativa de uma distinção

ontológica entre os ilícitos penal e administrativo, afirma categoricamente que “a

separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou

ambos, o bem jurídico tutelado e a pena são idênticos, pelo que é razoável igual resposta penal. De conseguinte, a expressão “para efeitos desta Lei” constante no art. 2º da Lei 10.259/01 é inconstitucional, e a nova definição de crime de menor potencial ofensivo aplica-se na Justiça Estadual e, também, nas Especiais, como a Eleitoral, a despeito do procedimento.

550HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 206.

292

oportunidade, variáveis no tempo e no espaço” e, ainda, “a única diferença que

pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de

grau: está na maior ou menor intensidade lesiva de uma em cotejo com outra”,

complementa o doutrinador.551

E conclui: “o ilícito administrativo, à semelhança do ilícito penal, é

lesão efetiva ou potencial a um bem jurídico”,552 razão pela qual a opção por um

deles é determinada tão-somente por razões de “conveniência política”.553

Partindo desta premissa, o penalista pátrio entende que, não obstante as vias

processuais sejam diversas, em se tratando do mesmo agente, a aplicação

cumulativa de duas penas, a penal e a administrativa, redunda em infração ao no

bis in idem.554

Miguel Reale Júnior, similarmente, preconiza que a escolha da via

penal ou administrativa “nada tem a ver com a importância do bem jurídico,

tratando-se antes de uma escolha com base na conveniência política deste ou

daquele caminho, com vista a melhor alcançar os fins preventivos e retributivos do

direito punitivo que cada vez mais se faz único”. O penalista conclui que a eleição

por uma das vias é “problema de eficácia social, e não de uma questão de

diversidade axiológica”.555 A partir daí, adverte que, diante de condutas punidas

igualmente na lei penal e na administrativa, de duas uma: “ou levam a um bis in

eadem, ou encontram eficácia apenas em um dos campos”.556

551HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 211. 552Id. Ibid., p. 213. 553Id. Ibid., p. 214. 554Cf. Id. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 1,

p. 18, 1991. 555REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no direito penal econômico: uma terceira via entre o

crime e a infração administrativa? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano. 7, n. 28, p. 122, out./dez. 1999.

556Id. Ibid., p. 123.

293

Em contrapartida, Hely Lopes Meirelles escreve: “Com o Direito

Penal a intimidade do Direito Administrativo persiste em muitos aspectos, a

despeito de atuarem em campos bem diferentes. Certo é que o ilícito

administrativo não se confunde com o ilícito penal, assentado cada qual em

fundamentos e normas diversas”.557

Para Luiz Renato Topan, a legitimidade da cumulação de sanções

penal e administrativa está fundamentada no art. 225, §3º, da Constituição

Federal, que preceitua: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio

ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e

administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

A soma de penalidades, sob sua acepção, está autorizada pelo aditivo e.558

Porém, o argumento é controvertido, não faltando doutrinadores que defendam

que o preceito destina às pessoas físicas as sanções penais e às jurídicas, as

administrativas.

A jurisprudência pátria inclina-se para o entendimento de que as

esferas administrativa e penal são independentes, porque o fundamento da

sanção, o procedimento e a autoridade que decide em cada uma delas lhes são

próprios, de modo que não há empecilho a que as responsabilidades se

cumulem.559

Em linha análoga, Manuel da Costa Andrade, com base no

anteriormente referido conceito de dignidade penal (importância do bem e

557MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros Ed.,

1999. p. 36. 558TOPAN, Luiz Renato. Da legitimação executória ativa do Ministério Público em razão dos efeitos

civis panprocessuais da sentença pena condenatória nos delitos ambientais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 80, v. 667, p. 62-63, maio 1991.

559Precedentes no STF: MS 21183-DF, mandado de segurança, rel. Min. Moreira Alves, DJ 14.06.1994; no STJ, RHC 9610-SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 21.08.2000, RO em MS 9859, recurso ordinário em mandado de segurança, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 17.04.2000.

294

danosidade social da conduta), pondera que, no plano trans-sistemático, a noção

assegura a eficácia do mandamento constitucional de que somente os bens

eminentes devem gozar de proteção penal e, frise-se, que no plano jurídico-

sistemático, distingue o ilícito penal dos demais.560

Sob nossa ótica, é irrefutável que os ilícitos administrativo e penal

buscam proteger bens jurídicos, como destaca a lição de Nélson Hungria. Mais

ainda, em regra, ambos punem o infrator e, ao mesmo tempo, previnem

transgressões futuras, pela exemplaridade e, pela certeza da aplicação do Direito.

Aparentemente, portanto, não há diferença ontológica.

Contudo, na via administrativa, é possível que, sem prejuízo de

punir ou prevenir, o administrador conceda prazos e estabeleça condições,

visando conferir oportunidade ao infrator para corrigir a irregularidade, o que não

é próprio do meio penal. Além dessa diferença, outra, agregada à ontologia dos

ilícitos, apresenta-se. De um lado, o direito penal resume-se a bens vitais para a

convivência social harmônica e a legítima realização individual, contando com

correspondência constitucional, quando brilha a noção de dignidade penal. De

outro, no direito administrativo, com exclusividade, encontra-se a possibilidade de

que o bem protegido, sem afrontar a Constituição, não encontre referencial

axiológico na Carta Política, que não abraça, em si, a totalidade das situações da

vida. É o que ocorre, por exemplo, com a vedação de estacionamento em certos

locais, sob penal de multa: está em seu bojo a tutela à regularidade do tráfego e

do trânsito (bem ou interesse administrativo) que não encontra analogia

constitucional e, de fato, embora considerável, não representa interesse vital para

a sociedade.

560Capítulo 4, item 4.2.1, supra.

295

Destarte, o ilícito administrativo, conquanto também tenha

capacidade para a tutela de bens dotados de dignidade penal, protege outros

tantos despidos desta valia, como resultado de política estatal intervencionista. O

ilícito penal, por sua vez, somente é legítimo quando resguarda bens jurídicos da

primeira categoria, precisamente delimitados no tipo. Eis uma diferença de ordem

qualitativa.

Essa peculiaridade, entretanto, é excepcional, porque não é muito

simples encontrar um bem desnudo de relevância constitucional dentro da

Constituição pátria, em virtude da acentuada tonalidade analítica do seu corpo

normativo, que abarca vasto campo de atuação do homem, das coletividades

jurídicas e do Estado.561 Portanto, aceitamos que, na atividade legislativa de

escolha da via jurídica adequada, é decisiva, na prática, a conveniência política,

que se expressa nas noções de subsidiariedade e na adequação penal.

Em suma, a maioria das infrações penais e administrativas

equipara-se na essência. A diferenciação está posta a cargo da política criminal.

Nessa égide, haverá bis in idem quando, em face de fato único, o ilícito penal e o

ilícito administrativo forem previstos com o fito de proteger o mesmo bem jurídico,

recaindo sobre idêntico sujeito. A dupla punição – por exemplo, duas multas –

patrocina camuflada violação à proporcionalidade entre o delito e a pena, ou seja,

à sub-regra da proporcionalidade estrita.562

Esse posicionamento é compartilhado pelo Tribunal

Constitucional da Espanha. Na sentença de 30 de outubro de 1983, a fim de se

evitar duplicidade de sanções administrativas e penais respeitantes a um mesmo

561Daí que, rememore-se, a dignidade penal confere legitimação negativa, havendo de ser

complementada por outros juízos. 562Cf. REALE Júnior, Miguel. op. cit., p. 123.

296

fato, foi determinado que caberia à Administração suspender a sua atividade

sancionadora se, posteriormente, fosse instaurado um processo penal. A decisão

situa a proibição do ne bis in idem no bojo dos princípios da legalidade e da

tipicidade plasmados no art. 25, da Constituição, que reza: “Ninguém pode ser

condenado ou sancionado por ações ou omissões que no momento de sua

produção não constituam delito, contravenção ou infração administrativa, segundo

a legislação vigente naquele momento”. 563

Se diversos os bens tutelados, a cumulação é cabível. Por

exemplo, aplicam-se ambas as sanções quando a infração penal proteja a vida

embrionária e a administrativa tutele meramente a normalidade da realização das

pesquisas, referindo, com distância acentuadamente prolongada, ao primeiro

bem, e diretamente ao conjunto de outros interesses: ganho e funcionamento da

indústria farmacêutica, mercado de trabalho, publicidade dos resultados,

anonimato dos sujeitos que contribuem com a atividade científica,

desenvolvimento tecnológico do país. O conjunto dos últimos, aliás, configura

típico interesse administrativo.

A dupla incidência é novamente autorizada quando, não obstante

a coincidência do fato e do fundamento, o sujeito penalizado for distinto. É o que

se verificará na maioria das hipóteses de sanções veiculadas pelo art. 21, da Lei

n. 11.101/05, posto que elas aludem, comumente, à pessoa jurídica: embargo da

atividade, interdição parcial ou total do estabelecimento ou atividade, suspensão

de registro, licença ou autorização; cancelamento de registro, licença ou

563Cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. op. cit., p. 44-47. J. F. Higuera Guimerá pugna pelo

acerto da decisão do Tribunal (El derecho penal y la genética, cit., p. 112-113). I. F. Benítez Ortuzar também, insistindo que, no campo penal, fiquem apenas os casos mais intoleráveis (BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 248-251). A postura parece ser acompanhada por C. M. ROMEO Casabona, quando entende que os caminhos de regulamentação estão em forma escalonada, intensiva e extensivamente complementar (Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção, cit., p. 291).

297

autorização, perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo

governo; perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em

estabelecimento oficial de crédito, intervenção no estabelecimento, proibição de

contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco) anos.

No caso, não haverá violação à proporcionalidade estrita mesmo

que a multa administrativa e a multa penal recaiam faticamente sobre a mesma

pessoa (administrador da clínica e médico atuante na pesquisa), porquanto, na

primeira, está em pauta o patrimônio da empresa, conquistado com seu aparato

técnico e de pessoal; na segunda, o indivíduo e sua pessoa, com as capacidades

particulares, de conhecimento e domínio técnico.

Em patamar pouco distinto, coloca-se o ilícito disciplinar. É

irrefutável que a sanção disciplinar mantém relação com a gravidade do fato e

almeja a punição do infrator. Todavia, como ressalta José Cerezo Mir, em estudo

sobre a sanção administrativa disciplinar, esta penalidade revela-se independente

da sanção penal, porque considera, com peculiaridade exclusiva, as exigências

de prestígio e de bom funcionamento da Administração.564

Transportando essa consideração para o campo da biomedicina,

onde as punições disciplinares são aplicadas pelo órgão de classe, os objetivos

buscados com a reprimenda são o decoro, a superioridade e a independência da

profissão. O ressarcimento do paciente, enfocado pelo direito civil, e o impacto da

atividade sobre os direitos do indivíduo e da coletividade, objeto do direito penal,

são pouco relevantes. De certo que, empenhadas para fins distintos, a

intensidade das penas disciplinar e penal também não será idêntica, pesando

bem mais a prevenção na segunda espécie.

564Cf. CEREZO MIR, José. Sanções penais e administrativas no direito espanhol. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 33, abr./jun. 1993.

298

A desigualdade não se limita ao fim almejado. De acordo com o

direito posto, as modalidades de penas disciplinares e penais são diferentes.565

Não se igualam nem mesmo quando consistirem em interdição temporária de

direitos, posto que, na via disciplinar, a suspensão resume-se a 30 (trinta) dias, ao

passo que, na penal, o prazo corresponde ao da pena privativa de liberdade

substituída.

Dito isto, concluímos que a pendência de processo criminal,

provavelmente mais moroso, não impede o julgamento e condenação do infrator

perante os órgãos éticos de classe, restando, ao final, incidentes as duas

sanções.

565Capítulo I, item 1.3.1, supra.

299

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Ao longo deste trabalho, foram feitas muitas proposições e uma

gama de posições foi tomada, entre as quais incluem-se sugestões de lege

ferenda. Por ora, às margens da finalização, são expostas considerações

conclusivas, que expressam os entendimentos mais amplos colhidos durante no

curso da pesquisa.

A biomedicina evolui rapidamente e, entre suas novidades mais

importantes, encontra-se o manejo de seqüências de DNA e de células, ambas

sujeitas a acesso facilitado pelos procedimentos afetos à reprodução assistida. As

inovações trazem vantagens imediatas e expectativas que, mesmo às vezes

longínquas, proporcionam melhores condições de vida. Porém, simultaneamente,

estendem, de forma inusitada, ameaças aos seres humanos, decorrentes,

sobretudo da retomada de projetos eugênicos, à moda do nazismo, ou da corrida

desenfreada por pesquisas com células-tronco embrionárias.

De conseguinte, a ciência da vida está inserida entre os

identificadores que caracterizam a sociedade contemporânea como “sociedade de

risco”, marcada, entre outros fatores, pelo imenso potencial de propagação dos

danos, pela artificialidade dos perigos, eis que derivados de ação humana, e pela

complexidade da comprovação do nexo causal, pois o resultado se origina de

decisões distantes, normalmente concebidas e executadas em intrincado

contexto. Para superar os riscos e o medo a eles associado, o reclamo por um

controle constitucionalizado é maciço, redundando em clamores pela passagem

300

do Estado Liberal para o Estado de Prevenção, no qual é muito acentuada a

inclinação para excessos na intervenção penal.

Refletindo sobre tal realidade, é sustentada, antes da exclusão, a

atuação equilibrada do Direito Penal e, para tanto, apresentada a noção de

proporcionalidade, que se exprime como norma, com categoria de regra e dotada

de hierarquia constitucional, eis que uma das bases do Estado Democrático de

Direito em suas relações com os direitos humanos. Com o fito de harmonizar a

atividade estatal à máxima tolerância e à máxima liberdade, próprias da

democracia, a proporcionalidade exige que a legislação e a jurisdição penais

ajustem-se ao quadro axiológico constitucional e que considerem as condições

reais do sistema jus-positivo e da sociedade, para que ambas não recaiam na

inaplicabilidade e no descrédito. Nestes moldes, a proporcionalidade legitima a

incidência do Direito Penal tão-somente quando necessário, idôneo e, ainda,

quando a pena seja justa em face da infração.

No âmbito do ius puniendi, a proporcionalidade defronta-se com a

noção de bem jurídico. Depois de evoluções e involuções desta categoria,

atualmente a doutrina busca seu sentido material. A corrente sociológica propõe

sua substituição por outros conceitos, enquanto a constitucional, sua

permanência. A segunda é mais adequada, porque, para evitar arbitrariedades na

seleção de bens, elege a Constituição - retrato dos valores e anseios primordiais

do povo – como filtro na captação dos interesses essenciais da sociedade, únicos

hábeis a integrarem a esfera dos bens dignos de tutela penal.

Sem fornecer um catálogo de bens jurídico-penais, a

Constituição, impregnada por textura aberta, estabelece um conjunto ordenado de

valores em relação ao qual cabe ao direito penal manter correspondência de

301

sentido e de fim. Muitos dos valores constitucionais são expostos a perigo ou a

dano pela biotecnologia e, entre eles, destacam-se os referentes ao embrião e ao

genoma humano, já que transitam pelo cotidiano da comunidade por intermédio

dos meios de comunicação.

O estudo do status jurídico do embrião remete aos limites do

direito à vida, que é aclamado no art. 5º, da Carta Política de 1988, que não

distingue a vida intra e a extra-uterina, nem mesmo as fases embrionárias.

Considerando a abrangência da mensagem legal e que, no atual estágio da

ciência, é consenso que o zigoto constitui uma célula especialíssima, porque

carrega a carga genética humana que perdurará no adulto e tem potencialidade

assustadora de se dividir de forma contínua e desenvolver o feto, tem-se que a

tutela constitucional à vida principia com a fecundação.

Ao lado da vida humana, a livre criação científica pode afetar o

patrimônio genético (genoma), donde surge novo bem jurídico, qual seja a

integridade genética que, em face de crenças sobre sua projeção na formação da

personalidade, mantém apertada conexão com o respeito à dignidade da pessoa

humana. Sua habilitação como bem constitucional tem fundamento no art. 225, II,

da Constituição, como também em todo o sistema jus-fundamental, graças às

relações que trava com a vida, a saúde e a igualdade.

Portanto, a vida e a integridade genética, estando expressamente

anunciadas na Carta de 1988, revelam evidente correspondência constitucional.

Este traço, contudo, não é bastante para justificar uma medida com cunho de

ultima ratio, como a pena. Por isso, a idéia de bem jurídico é complementada

pelas noções de fragmentariedade e subsidiariedade.

302

Ambas não impelem o Direito Penal a se retirar da zona

normativa destinada ao controle das novidades científicas. Diante da importância

dos mencionados bens em jogo e das repugnantes modalidades de ataque a que

se sujeitam, as quais envolvem perigos de dimensão incontrolável para as

gerações presentes e mais ainda para as do porvir, afastar a tutela penal seria

inverter o princípio da intervenção mínima. A assertiva é reforçada pela

insuficiência de multas administrativas, pois o respectivo montante é passível de

integrar o gastos estimados ou de ser anulado pelo volume de dinheiro com que

trabalham os centros de pesquisas.

Sendo assim, ao lado da função primária de proteção de bens

jurídicos, é acertado que o Direito Penal, pela sua ímpar simbologia, desenvolve

função promocional, na crença de que a qualificação de um comportamento como

crime tem o condão de estabelecer ou reforçar sua grave reprovação social,

assegurando o interesse jurídico em apreço, dentro da magnitude de que este

desfruta.

Sem o amparo de leis criminais, dificilmente, a sociedade

contemporânea - laica, pluralista e, muitas vezes, eticamente confusa –

conscientizar-se-á da relevância dos bens em jogo, porquanto os ataques

assumem formas nunca pensadas ou são executados diante de bens pouco

conhecidos. O corpo social, sem uma drástica advertência, tende a prosseguir

absorvido por informações rápidas e fáceis, calcadas no consumismo, no

egoísmo ou na vaidade de certos profissionais especializados. Aliás, havendo a

incriminação de certos comportamentos, a vaidade levaria personalidades do

mundo científico a mudarem de posicionamento para ajustarem-se às normas

penais, a fim de preservarem incólume sua imagem pública.

303

Todavia, nem sempre a afronta à vida ou à integridade genética

está apta a ser tutelada penalmente. A regra da proporcionalidade também impõe

que o direito penal incida apenas quando tenha capacidade para combater

infrações à vista da realidade a que se volta. Desse modo, a norma punitiva será

proporcional se, em juízo prognóstico, ela contribuir efetivamente para coibir os

desvios de conduta, sem que, simultaneamente, seja contraproducente.

Sob o primeiro ângulo, é repisada a capacidade educativa do

Direito na seara da biomedicina, porque as normas são dirigidas a profissionais

de renome, não suscetíveis à amargurada inclinação ao crime. Além disso, em

obediência à natureza das coisas, muitas vezes na luta contra a criminalidade, é

imperiosa a antecipação da barreira penal com a tipificação sob a modelagem de

perigo abstrato, para superar a dificuldade probatória do nexo causal, em função

da distância entre ação e resultado, o que se manifesta, nomeadamente quando

em voga bem jurídico atinente às gerações futuras.

Sob o segundo ângulo, em contrapartida, há casos em que é mais

razoável a impunidade do que a punição, em face de delicadas situações em que

mergulha o casal que procurou a reprodução assistida, seja em razão de

vicissitudes da suas vidas ou de patologia embrionária. O penalista, com

esperada sensibilidade, não pode ignorar a dureza da realidade, sob pena de criar

leis contrárias às necessidades sociais.

Trabalhando com os parâmetros assinalados, que conformam a

necessidade e a adequação penal, o legislador, sempre respeitando os ditames

da Constituição, tem subsídio para formular, sem ofender a norma da

proporcionalidade, os juízos de conveniência e oportunidade sobre a tipificação

de um comportamento e, em caso positivo, sobre suas elementares. Mais adiante,

304

na cominação da pena, é devida sua correspondência com o peso da infração,

quando prestam, como diretivos, a importância do bem, o número de bens

ofendidos e o grau de ataque, entre outros. É preciosa a comparação com tipos

similares, para que não se perca a harmonia do sistema legislativo, o que, à

evidência, desintegra a confiança do cidadão no Direito.

O mesmo conjunto de parâmetros dirige-se aos juízes, porém,

para que estes não violem o princípio da separação de poderes, devem ter em

mente que o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pela violação à

regra da proporcionalidade há de ser flagrante.

As considerações ora traçadas não têm intento de serem

percebidas como verdades irrefutáveis, senão como fruto de reflexão sobre

intrincado e por vezes doloroso tema. Objetivam instigar a discussão acerca da

relação entre o direito penal e as atividades científicas, sob a premissa de que,

em íntima ligação com a sociedade, estas não são neutras, mas interagem com

os caracteres humanos e, assim, são parciais e falíveis.

Mais do que encerrar o debate, nossa pretensão é veicular que

seu ponto central está no justo equilíbrio entre os valores tocados pelas ciências

da vida, sempre à luz do respeito que merecem cada pessoa e o todo, crendo,

como crê Norberto Bobbio (Constituição pastoral Gaudium et Spes (alegria e

esperança), in: Elogio da serenidade e outros escritos morais, p. 198), que “com

quanto mais humanidade e amor entrarmos em seu modo de sentir, tão mais

facilmente poderemos iniciar com eles um diálogo”. Quiçá assim atingiremos a

conscientização de que o homem não existe isolado, mas coexiste junto aos

demais, e agiremos sob guiados por tal máxima.

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