As rugas e os sulcos do instante decisivo

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| perfil | henri cartier-bresson F oram raras as ocasiões em que Jean-Pierre Montier participou das fotografias. O autor de Henri Cartier-Bresson and the Artless Art e professor do Cellam (Cen- tro de Estudos das Literaturas e Línguas Antigas e Modernas) na Universidade de Rennes, Alta Bretanha, consegue lembrar de duas ocasiões: “Uma vez, foi na Biblio- teca Nacional da França [em Paris], no momento da entre- ga do Prêmio Nadar [Prix Nadar]. Eu estava no palanque para receber a premiação e fazer um breve discurso. Antes disso, ele me perguntou se eu poderia lhe emprestar minha [câmera] Leica. Certamente emprestei, e Henri fotografou não eu, mas minha mulher e minha filha, que assistiam à cerimônia. Ele as fotografou tendo ao fundo o busto de Voltaire, que estava na sala de recepção, sem que nem elas, nem ninguém mais tivesse dado conta que ele havia tirado essas fotografias!”. A segunda vez, em Aix-en-Provence, foi ainda mais elucidativa. Jean recém-terminara de apresen- tar sua dissertação, à qual Bresson havia dado assistência, e ambos passeavam juntos pelo campus. “Ele estava sem a sua máquina, não sei por que, mas me disse: ‘Olha!’. E apontou para um grupo de jovens garotas que estavam deitadas sobre os gramados da universidade. Ele simulou uma objetiva, colocando as mãos em frente aos olhos para formar um quadro e me disse ‘Pronto! As fotografias men- tais são tão importantes quanto as outras! Essa aqui está na minha cabeça!’” 66 POR JUNIOR BELLÉ NAMORADOR DE CENAS E PAISAGENS, HENRI CARTIER-BRESSON, UM DOS GENITORES DO FOTOJORNALISMO, ESTABELECEU A HERANÇA DE GARIMPAR NOVOS ÂNGULOS ÚNICOS E REGISTRAR CENAS COM OLHOS QUE FUJAM DO LUGAR-COMUM AS RUGAS E OS SULCOS DO INSTANTE DECISIVO SU NS S OS em das er- sor Lite as) n tanh es: “U Paris x Nad ção e fa guntou s ra] Leica. Cert ão eu, mas m S F oram raras as ocasiões em que Jean-Pierre DECISIVO S C F tec ga pa dis [câ ce Vo ne ess ain tar e a a s ap de N

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| perfil | henri cartier-bresson

Foram raras as ocasiões em que Jean-Pierre Montier participou das fotografias. O autor de Henri Cartier-Bresson and the Artless Art e professor do Cellam (Cen-tro de Estudos das Literaturas e Línguas Antigas e Modernas) na Universidade de Rennes, Alta Bretanha, consegue lembrar de duas ocasiões: “Uma vez, foi na Biblio-

teca Nacional da França [em Paris], no momento da entre-ga do Prêmio Nadar [Prix Nadar]. Eu estava no palanque para receber a premiação e fazer um breve discurso. Antes disso, ele me perguntou se eu poderia lhe emprestar minha [câmera] Leica. Certamente emprestei, e Henri fotografou não eu, mas minha mulher e minha � lha, que assistiam à cerimônia. Ele as fotografou tendo ao fundo o busto de Voltaire, que estava na sala de recepção, sem que nem elas, nem ninguém mais tivesse dado conta que ele havia tirado essas fotogra� as!”. A segunda vez, em Aix-en-Provence, foi ainda mais elucidativa. Jean recém-terminara de apresen-tar sua dissertação, à qual Bresson havia dado assistência, e ambos passeavam juntos pelo campus. “Ele estava sem a sua máquina, não sei por que, mas me disse: ‘Olha!’. E apontou para um grupo de jovens garotas que estavam deitadas sobre os gramados da universidade. Ele simulou uma objetiva, colocando as mãos em frente aos olhos para formar um quadro e me disse ‘Pronto! As fotogra� as men-tais são tão importantes quanto as outras! Essa aqui está na minha cabeça!’”

66P O R J U N I O R B E L L É

NAMORADOR DE CENAS E PAISAGENS, HENRI CARTIER-BRESSON, UM DOS GENITORES DO FOTOJORNALISMO,

ESTABELECEU A HERANÇA DE GARIMPAR NOVOS ÂNGULOS

ÚNICOS E REGISTRAR CENAS COM OLHOS QUE FUJAM DO LUGAR-COMUM

AS RUGAS E OS SULCOS DO INSTANTE DECISIVO

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teca Nacional da França [em Paris], no momento da entre-ga do Prêmio Nadar [Prix Nadar]. Eu estava no palanque para receber a premiação e fazer um breve discurso. Antes disso, ele me perguntou se eu poderia lhe emprestar minha [câmera] Leica. Certamente emprestei, e Henri fotografou não eu, mas minha mulher e minha � lha, que assistiam à

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Fteca Nacional da França [em Paris], no momento da entre-ga do Prêmio Nadar [Prix Nadar]. Eu estava no palanque para receber a premiação e fazer um breve discurso. Antes disso, ele me perguntou se eu poderia lhe emprestar minha [câmera] Leica. Certamente emprestei, e Henri fotografou não eu, mas minha mulher e minha � lha, que assistiam à cerimônia. Ele as fotografou tendo ao fundo o busto de Voltaire, que estava na sala de recepção, sem que nem elas, nem ninguém mais tivesse dado conta que ele havia tirado essas fotogra� as!”. A segunda vez, em Aix-en-Provence, foi ainda mais elucidativa. Jean recém-terminara de apresen-tar sua dissertação, à qual Bresson havia dado assistência, e ambos passeavam juntos pelo campus. “Ele estava sem a sua máquina, não sei por que, mas me disse: ‘Olha!’. E apontou para um grupo de jovens garotas que estavam deitadas sobre os gramados da universidade. Ele simulou

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Montier acredita que estas duas cenas ajudam a expli-car que não existe um “método Bresson”, o que ele fazia era � uido, inseparável de sua pessoa e ao mesmo tempo quase imperceptível. “[o poeta francês] Yves Bonnefoy me con-tou que algo parecido aconteceu quando ele estava com Henri no dia em que ele produziu uma famosa fotogra� a em Simiane la Rotonde, perto de Ceirèsta, onde Henri ti-nha sua casa provençal.” Eles caminhavam pela vila e, du-rante o trajeto, Bresson sacou inúmeras imagens, de forma precisa e rápida, e foi de tal modo furtivo que Yves jura não ter visto nada. “Ele viu as fotogra� as de Henri depois de reveladas, e então � cou se perguntando como ele pôde não ter visto nada.”

Se Bresson – que nasceu em 22 de agosto de 1908 em Chanteloup-en-Brie, na França, e morreu há quase 10 anos, em 3 de agosto de 2004, em Montjustin, no mesmo país – pudesse ser resumido em uma palavra, ela provavel-mente seria uma onomatopeia, talvez uma onomatopeia à la Joyce, construindo neologismos com imagens, transfor-mando-as em legados: “Gosto de fotografar, de estar pre-sente, de dizer ‘sim, sim, sim’, como as três últimas palavras em Ulysses, ‘sim, sim sim’. Fotogra� a é isso ‘sim, sim, sim’, não há um ‘talvez’, todos os ‘talvez’ vão para o lixo, por-que é um instante, uma presença, um momento. Por isso, essa pro� ssão nos faz desenvolver uma grande ansiedade, porque estamos sempre esperando pelo que vai acontecer: ‘O quê? Han? Sim!’. Você está clicando e ‘sim, sim’. Se você está fotografando é ‘click, click, click’, como um animal so-bre a presa, ‘vruuum’, e você a alcança. É uma questão de quando. Você sente tudo no seu corpo e, então, ‘vruaaa’. (…) Eu sou extremamente impulsivo, é um problema para meus amigos e família. Sou um poço de nervos. Mas tiro vantagem disso na fotogra� a: eu nunca penso, eu ajo”, ex-plica o próprio Bresson em uma série de palestras organi-zadas por Cornell Capa em 1976 e lançada em DVD, em 2007, pelo International Center of Photography, expondo uma perspectiva nova sobre seu olhar fotográ� co, dando relevo à impulsividade.

Há um notório contraste, como explica Paulo Boni, professor do mestrado em Comunicação Visual da Uni-versidade Estadual de Londrina: “Bresson era um ‘namo-rador’ de cenas e paisagens. Ele podia � car minutos, horas observando, prestando atenção, analisando a luz, prevendo o instante da melhor composição”. Boni ressalta uma ne-cessidade nova, uma herança de Bresson, aquela que im-põe ao fotógrafo o desa� o da garimpagem por um ângulo único, “de registrar a cena com outros olhos, que fujam do lugar-comum. Provavelmente ele estivesse antecipan-

do, em meados do século 20, aquilo que convencionamos chamar de ‘linguagem fotográ� ca’”.

Foi Bresson quem mediu a distância entre a obra de arte e a fotogra� a medíocre: milímetros, os quais nomeou de “instante decisivo”. Este, a princípio, era apenas o título de um artigo dentro de sua mais conhecida obra teórica, datada de 1952, cuja capa leva ilustração de Henri Matis-se (1869-1954), o Images à la Sauvette. Foi o editor Dick Simon quem emprestou o termo do artigo e rebatizou a edição em inglês.

O fato de ganhar a capa certamente contribuiu para que o conceito do “instante decisivo” impactasse irreme-diavelmente a fotogra� a mundial. Entretanto, para Jean--Pierre Montier, há um fator muito mais importante: “A maneira como Cartier-Bresson concebeu a fotogra� a é, com certeza, diretamente associada à escassez de película. Como todos os repórteres de sua época, ele tinha perfeita consciência de que havia apenas um número muito limi-tado de fotos antes de precisar recarregar a máquina. Seu golpe de gênio foi ter feito dessa obrigação material uma restrição poética, no sentido usado por Paul Valéry quan-do disse que a poesia não é nada mais que restrições, e que

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mônicas no espaço são meu interesse, seja quando estou trabalhando com tomadas longas e � uidas, e consigo ver as evoluções alongadas caminhando no cenário, seja como uma evolução do próprio instante decisivo”.

Diferentes paradigmas de fluidez e beleza tem, pelo imperativo pro� ssional, Pablo de Sousa, já que o fotojor-nalismo carrega nos pixels uma obrigação, uma função so-cial: a de informar. “E a informação deve ser soberana, não posso, em detrimento daquilo que reporto, buscar somen-te o belo, o estético.” O fotógrafo convive com a tenuidade entre o informativo e o artístico diariamente, enquanto fotografa para revistas diversas.

O balanço adequado entre ambas é o segredo, e Bres-son sabia muito bem disso. Pablo lembra que ele praticou duas vertentes fotográ� cas que con� uem, mas também se chocam: “O fotojornalismo e o autoral, que é um diário do mundo. Na linha de trabalho do Cartier, pela constru-ção da imagem em si, esteticamente é fundamental ter essa exatidão que ele mesmo descreveu: ‘Fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração’. Dis-so carrego comigo, quando no fotojornalismo, a busca de um caminho do meio: informar com beleza, com harmo-nia ‘formal’ dentro do quadro”. A� nal, como lembra Pablo de Sousa, para além da objetividade, “Bresson praticava a junção com a poesia visual, com as artes plásticas. Não há quem se pretenda fotojornalista sem ter uma ou várias imagens dele gravadas no córtex”.

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a restrição é a base de toda a criação, desde que formaliza-da como uma norma de comunicação e de prazer estético. O caso do instante decisivo não é nada mais que isso”. Mas Montier admite que os avanços técnicos deram forma a uma relação diferente entre fotógrafo, objeto e receptor, o que fez avançar o fazer fotográ� co até paradigmas estéticos já um pouco distantes da realidade de Bresson. “Na minha opinião, o fotógrafo percebeu isso, porque desde que che-garam as máquinas que tiravam várias fotos por segundo, a partir dos anos 1970, ele passou a desenhar.”

A exponenciação da quantidade de imagens que podem ser capturadas é um ponto crucial para Vincent Moon, jo-vem e proeminente fotógrafo e cineasta parisiense, vence-dor do Sound & Vision Award no Festival Internacional de Documentários de Copenhague de 2009. Em meados do século 20, a imagem era algo raro e, segundo ele, era justamente a raridade o que lhe dava um grande potencial de comoção. Mas, hoje em dia, as coisas mudaram: “Todo o consumo de imagem teve e tem um impacto imenso no nosso entendimento do que é um quadro, e está claro que as pessoas não estão bem preparadas para viver em um mun-do dominado por imagens, estáticas ou em movimento”.

O contexto histórico é compulsório com fotógrafos de todas as épocas, por isso, Moon a� rma já não estar inte-ressado no instante decisivo: “Acho que ele não foi bem compreendido, ou deram a isso muita importância. Nesse sentido, a citação de Robert Capa – ‘Se a foto não está su� -cientemente boa é porque você não está perto o su� ciente’ – é muito mais profunda. Eu de� nitivamente trabalho com meu instinto e não penso muito enquanto fotografo. Mas toda a ideia do ‘instante decisivo’, o milissegundo que faria a diferença, humm, eu não acredito nisso, desculpe. Har-

vem e proeminente fotógrafo e cineasta parisiense, vence-dor do Sound & Vision Award no Festival Internacional de Documentários de Copenhague de 2009. Em meados

nia ‘formal’ dentro do quadro”. A� nal, como lembra Pablo de Sousa, para além da objetividade, “Bresson praticava a junção com a poesia visual, com as artes plásticas. Não há quem se pretenda fotojornalista sem ter uma ou várias imagens dele gravadas no córtex”.

do século 20, a imagem era algo raro e, segundo ele, era justamente a raridade o que lhe dava um grande potencial

imagens dele gravadas no córtex”. de Documentários de Copenhague de 2009. Em meados